Resumo: Com a pandemia de Covid-19, houve expansão dos serviços de entregas, especialmente aqueles mediados por plataformas digitais. Contudo, os trabalhadores desta atividade têm vivenciado mais precariedade social. Este ensaio investiga a relação entre a atuação estatal e os problemas enfrentados por tais trabalhadores(as) nesse contexto. Em um percurso teórico-metodológico que vai do concreto pensado à teoria social, e resultante de pesquisa bibliográfica e documental, foram analisados, em um primeiro momento, atos legislativos e judiciais que conformam a precariedade social dos entregadores. Nessa etapa, buscou-se apresentar o terreno de normatividade estatal que tem sido operado de modo a erodir a esfera de incidência tanto dos deveres assistenciais do Estado quanto dos direitos trabalhistas nas relações contratuais entre entregadores(as) (sujeitos contratados) e as plataformas de aplicativos (sujeitos contratantes). Na seção seguinte, examinaram-se algumas categorias que permitem a compreensão das tendências de atuação dos sujeitos contratantes e dos sujeitos contratados, a partir de aportes teóricos acerca dos processos das contratualidades espoliativas, da financeirização e da agenda do genocídio, observando como, a um só tempo, trabalhadores(as) em aplicativos de entrega são classificados como “essenciais” e expostos ao sacrifício de si mesmos e de suas famílias, sem básicas condições de saúde e segurança do trabalho.
Palavras-chave: Covid-19, Trabalhadores em aplicativos de entrega, Precariedade.
Abstract: Delivery app services have expanded their activities during the Covid-19 pandemic. However, their workers have experienced even more social precarity. This paper investigates the relations between State action and the vulnerability faced by these workers during the pandemic context. It does so by following a two-fold methodological approach: based on research of legal documents and on literature review, the analysis ranges from the examination of concrete cases and norms to the consideration of underlying social theory concepts. In its first section, the paper analyses legislative and judicial documents and actions that conform delivery app workers’ social precarity, so as to present the normative structure and the institutional dynamic that have operated in order to erode the incidence of social security rights, as well as of labor rights in contracts between delivery workers (contracted party) and digital platforms (contracting party). In the following section, the paper examines some theoretical categories - such as “espoliative contracts”, “financialization” and “genocidal agenda” -, which allow a better understanding of the current patterns of relations between these parties. One may notice how, at the same time, delivery app workers are classified as “essential” but are continuously exposed to the sacrifice of themselves and their families, due to the lack of basic health and safety conditions at work.
Keywords: Covid-19, Delivery App Workers, Precarity.
Dossiê
Os Trabalhadores das Plataformas de Entregas: essencialidade em tempos de Covid-19 e desproteção legislativa e judicial
Delivery App workers: essentiality during Covid-19 and the lack of legislative and judicial protection
Recepção: 28 Abril 2021
Aprovação: 27 Julho 2021
A pandemia tem provocado, de modo geral, severa retração da atividade econômica. Ao mesmo tempo, contudo, observa-se a expansão dos serviços de entregas (delivery), especialmente daqueles mediados por plataformas digitais (os chamados “aplicativos”). Apenas no ano de 2020, segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, o faturamento do setor atingiu o recorde de R$ 224,7 bilhões, em crescimento de 37% em relação a 2019 (ALVARENGA, 2021).
Parte desse boom se deve ao fato de os serviços de delivery serem alternativas úteis para viabilizar a circulação de alimentos, remédios, entre outras mercadorias, no momento em que o distanciamento físico da população é medida de saúde pública necessária para conter a propagação do vírus. Nesse sentido, pode-se perceber que os(as) trabalhadores(as) do setor, ao mesmo tempo em que se expõem com maior frequência ao risco do contágio, exercem uma função de fato essencial à sociedade. O “de fato” se justifica pois, ao longo do ano de 2020, pesquisas apontaram como o processo de qualificação jurídica de uma atividade como essencial esteve muito mais determinada por interesses políticos do que por imperativos de natureza sanitária (VENTURA, 2021)1 Entretanto, a essencialidade dessa atividade não encontra adequada correspondência no plano dos direitos laborais e sociais, uma vez que prevalece um quadro geral de precarização e desproteção, motivando, inclusive, inéditos e recentes protestos por melhores condições de trabalho2.
Em vista desse contexto, a presente pesquisa adota por objeto de análise justamente a regulação jurídica do trabalho de entregadores(as) em plataformas digitais durante a pandemia. O objetivo consiste em investigar como se opera a relação entre a atuação estatal e os problemas enfrentados por tais trabalhadores(as). Em um percurso teórico-metodológico que vai do concreto pensado à teoria social, faz-se, primeiro, uma análise da lógica de atos legislativos e judiciais para, em seguida, apresentar conceitos que iluminam determinações que conformam a dinâmica de precarização dos(as) entregadores(as) em plataformas digitais.
Assim sendo, os resultados da pesquisa bibliográfica e documental são expostos da seguinte maneira: na seção 2, são escrutinados tanto atos legislativos federais produzidos para regular a situação jurídica dos(as) trabalhadores(as) em plataformas (subseção 2.1) quanto decisões de tribunais trabalhistas em relação a conflitos entre essas empresas e os(as) respectivos(as) trabalhadores(as) (subseção 2.2). Busca-se, com isso, apresentar o terreno de normatividade estatal, que tem operado de modo a erodir a esfera de incidência tanto dos deveres assistenciais do Estado quanto dos direitos trabalhistas nas relações contratuais entre entregadores(as) (sujeitos contratados) e as plataformas de aplicativos (sujeitos contratantes).
Estabelecida essa dinâmica normativa, a seção seguinte propõe examinar algumas categorias teóricas que permitem a compreensão das tendências de atuação dos sujeitos contratantes (subseção 3.1) e dos sujeitos contratados (subseção 3.2). A partir de aportes teóricos acerca dos processos das contratualidades espoliativas, da financeirização e da agenda do genocídio, observamos como, a um só tempo, entregadores(as) são classificados(as) como “essenciais” e expostos(as) ao sacrifício de si mesmos(as) e de suas famílias, sem básicas condições de saúde e segurança do trabalho.
Esta seção descreve e analisa a erosão da proteção social e trabalhista em virtude da atuação da política federal de enfrentamento à disseminação de Covid-19, em atos normativos que resultam em cobertura assistencial insuficiente para motoristas de aplicativos (subseção 2.1) e, também, da atuação do Poder Judiciário em face das graves violações contra a vida e a saúde de entregadores e entregadoras (subseção 2.2).
Como na maior parte do mundo, o Brasil foi instado a tomar medidas de distanciamento social como estratégia de combate à pandemia da Covid-19. Políticas adotadas especialmente no âmbito dos governos estaduais e municipais, haja vista a sistemática relutância negacionista do governo federal3. Nesse contexto, inclusive, muitas atividades foram reorganizadas e passaram a funcionar via teletrabalho. Não foram poucos(as) os(as) trabalhadores(as) que enfrentaram o desafio de, abruptamente e sem estrutura ou preparação, engajar-se no teletrabalho ou continuar nos estabelecimentos empresariais com maiores riscos de exposição ao vírus. Na outra ponta, atividades consideradas essenciais tiveram a autorização governamental para continuar a prestação regular de serviços, ainda que mantendo protocolos para diminuir a exposição e os riscos de contágio.
Nas chamadas legislações de urgência (Medidas Provisórias n. 905, 927 e 936), por sua vez, a opção política foi pela erosão de direitos trabalhistas, como suspensão contratual, redução de salários, negociação individual, antecipação de férias, entre outras. Houve, inclusive, desrespeito às regras constitucionais que exigiam a negociação feita com a participação sindical para a retirada desses direitos laborais. Para um outro conjunto de trabalhadores(as), especialmente para aqueles(as) que, conforme modelo de negócio das plataformas digitais são formalmente classificados como parceiros(as) e autônomos(as), e não empregados(as), a desproteção foi ainda maior. Isso porque não houve, a princípio, nem mesmo a incidência das erodidas regras de proteção trabalhista no contexto da pandemia.
Além da questão sanitária, a vulnerabilidade financeira tem se configurado como uma das mais sensíveis questões para a sobrevivência de largo conjunto da força de trabalho. Circunstância ainda mais grave para trabalhadores(as) autônomos(as), informais, eventuais, microempreendedores(as) individuais, precarizados(as), desempregados(as), entre outras situações laborais caracterizadas pela escassa proteção trabalhista e social. Dentro desse cenário, diversos países têm adotado políticas assistenciais para enfrentamento dos efeitos econômicos e sociais adversos da pandemia, a exemplo das políticas de renda mínima (OCDE, 2020).
No Brasil, após uma série de ajustes e embates políticos e orçamentários, a Medida Provisória n. 959/20, alterada e convertida na Lei n. 13.982/20, criou o “auxílio-emergencial” de R$ 600,00 (seiscentos reais), principal programa assistencial do governo federal para apoiar setores populares no período da pandemia. Os beneficiários são trabalhadores de baixa renda, informais, microempreendedores individuais, autônomos e desempregados, excluindo-se, contudo, os empregados e os menores de 18 anos.
Aparentemente, os(as) entregadores(as) em plataformas digitais seriam favorecidos(as) pelo programa assistencial. No entanto, o Presidente Jair Bolsonaro vetou o art. 2-A da Lei 13.982/2020, que incluía motoristas de aplicativos no rol de beneficiados. Para a categoria, a proteção social emergencial oportunizaria, no mínimo, a diminuição da necessidade material de recorrentes e extenuantes jornadas que caracterizam o setor (MORAES; OLIVEIRA; ACCORSI, 2019; FILGUEIRAS; ANTUNES, 2020).
As razões do veto presidencial se fundamentaram em dois pilares. O primeiro deles sustentou a suposta ofensa à isonomia no enunciado normativo, que se consubstanciaria pela instituição de vantagem indevida em favor de algumas categorias profissionais. O segundo eixo argumentativo concerne à reprovabilidade da criação de nova obrigação financeira aos cofres públicos sem indicação da fonte de custeio.
Com o veto, para o(a) entregador(a) obter o benefício, resta a possibilidade de se formalizar como MEI (Microempreendedor Individual). Isto é, o acesso ao auxílio emergencial não adviria da condição de trabalhador(a) e/ou da essencialidade desta atividade que viabiliza que muitos permaneçam em suas residências, mas sim da condição de registro como MEI. Prática, inclusive, que destoa da cultura e do histórico destes trabalhadores de “bicos” (ABÍLIO, 2017).
Daí, identificamos que a decisão do Poder Executivo, contrariando proposta aprovada no Legislativo, foi, na prática, a de erodir o direito ao auxílio emergencial, a despeito da essencialidade desta atividade. Isto é, a condição em si de entregador(a) não permitiria, pela legislação sancionada, percepção da renda mínima dirigida às demais categorias.
Sem acesso à proteção do benefício emergencial e diante do agravamento da precariedade sanitária no trabalho de entregas, a Justiça foi provocada a intervir na situação. A resposta do sistema de justiça, por sua vez, não tem alterado o quadro de precariedade que envolve trabalhadores(as) em plataformas digitais, especialmente em virtude das decisões das cortes superiores.
Na qualidade de legitimado para a defesa da ordem constitucional e dos direitos fundamentais de trabalhadores (e não apenas dos empregados), o Ministério Público do Trabalho (MPT) recorreu ao Poder Judiciário para implementar, via sistema processual da tutela coletiva, medidas de proteção sanitária e econômica para entregadores(as) de plataformas digitais. Além do MPT, sindicatos profissionais de motoristas e demais “trabalhadores(as) de aplicativos” demandaram diversas ações em variados Estados do Brasil, resultando em decisões da primeira instância da Justiça do Trabalho que, em geral, deferiram medidas de proteção sanitária e de concessão de auxílio financeiro ou salário.
Duas decisões são paradigmáticas da postura das Varas do Trabalho. Primeira, a liminar em Vara de São Paulo concedida contra a plataforma Cabify no processo n. 1000531-71.2020.5.02.0007 (SÃO PAULO, 2020c), obrigando-a ao fornecimento de álcool gel, lavatórios, máscaras, luvas, higienização dos veículos e auxílio financeiro (um salário mínimo por mês para quem contraiu a Covid). Segunda, a liminar em Vara do Ceará concedida contra a Uber e a 99 no processo n. 0000295-13.2020.5.07.0003 (CEARÁ, 2020) que determinou pagamento de salário por tempo à disposição ou trabalhado (remuneração mínima por hora efetivamente trabalhada ou à disposição com base no salário mínimo) e para aqueles com Covid ou suspeita, além da disposição de medidas sanitárias (entregas gratuitas de equipamentos de proteção individual, tais como máscaras cirúrgicas e preparação alcoólica a 70%).
Todavia, a mais alta corte trabalhista, o Tribunal Superior do Trabalho (TST), suspendeu, em processo n. 1000504-66.2020.5.00.0000 oriundo de Minas Gerais (BRASIL, 2020), a imposição de adoção de medidas sanitárias à Uber em favor de seus motoristas, com base em questões processuais e na dificuldade de se encontrar alguns bens de proteção individual.
Particularmente em relação aos entregadores(as), o caso da Ação Civil Pública-ACP n. 1000396-28.2020.5.02.0082 (SÃO PAULO, 2020a), proposta contra a plataforma iFood, é sintomático e sua análise, devidamente aprofundada, revela a racionalidade de erosão de direitos que se opera também pela atuação do Poder Judiciário. Trata-se de um processo judicial que contém mais de 4700 páginas nos autos eletrônicos, abordando inúmeras questões jurídicas materiais e processuais. Contudo, a presente análise do julgado foca no tema geral da proteção sanitária dos(as) trabalhadores(as) daquela plataforma digital.
Na petição inicial do caso em exame, o MPT esclarece que a iFood não teria respondido sua Notificação Recomendatória que sugeria medidas de prevenção ambiental e sanitária para os(as) entregadores(as) que usam o aplicativo da empresa. Isto é, a judicialização da questão decorreria da frustração das ações administrativas do MPT, alegação que, por sua vez, foi controvertida no processo.
O argumento central utilizado pelo MPT é o da essencialidade do serviço de entregas. Por isso, permitir-se-ia a excepcional continuidade de funcionamento da atividade e até a sua expansão no período da pandemia, o que atrai recomendações para proteção ambiental sanitária daqueles(as) trabalhadores(as). Além disso, o inquérito cível do MPT apurou que as medidas normais de proteção sanitária, a exemplo do simples fornecimento de álcool gel ou da disponibilização de local adequado para higienização das mãos, estavam sendo feitas pela iFood.
A fundamentação normativa da pretensão do MPT parte, então, da premissa de que o trabalho é determinante social para as condições de saúde e da “Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora” (Portaria n. 1.823, de 23 de agosto de 2012). Ampara-se, ainda, no direito fundamental à “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança” e no “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa” (Constituição Federal, art. 7, XXII e XXVIII). Situação que seria, ainda, abarcada pela regra civilista da responsabilidade objetiva do empregador (arts. 927, parágrafo único, e 932, III, do Código Civil).
No plano das normas internacionais, o MPT menciona o direito à saúde previsto no art. 12.1 do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil via Decreto n. 591/1992. Cita também a Convenção n. 155 da OIT, ratificada pelo Brasil (Decreto n. 1.254/1994), que impõe ao Estado o dever de construir e implementar uma política de saúde para os(as) trabalhadores(as), visando a prevenção dos acidentes de trabalho e redução de riscos no trabalho. Deste conjunto normativo, a iFood teria um dever constitucional e legal de adotar medidas de precaução e prevenção aos riscos sanitários da Covid-19 em razão da sua atividade econômica ser essencial e encontrar-se em expansão.
Interessante destacar que o Ministério Público qualifica a reclamada não como um aplicativo, mas sim como uma empresa de transporte de mercadorias e transporte de pessoas via plataformas digitais. Isto denota certa clareza sobre a atividade desenvolvida pela iFood, que é bem mais do que o fornecimento de um serviço tecnológico de “aplicativo” para celular: é a organização (e governo) de uma atividade de entregas, envolvendo diversos autores (restaurantes, clientes e entregadores(as)).
Em razão de a ação ter sido proposta em um sábado, o pedido liminar foi apreciado pelo plantão judiciário, e não pelos magistrados da Vara na qual foi distribuído o processo. A imediata decisão, em juízo provisório, reconheceu a urgência da questão e sobretudo caracterizou a empresa iFood como responsável pela centralização e organização da “conexão” entre trabalhadores(as) e restaurantes. Não sendo vista apenas como um canal de comunicação ou um mediador, a iFood, ao ditar os modos de funcionamento do trabalho de entregas, assumiria a responsabilidade pela proteção sanitária das pessoas envolvidas nessas entregas. Além das normas alegadas pelo MPT, a decisão também se sustentou na Lei n. 13.979/20, destinada ao enfrentamento da emergência de saúde pública, que assimilou diretrizes do Regulamento Sanitário Internacional com medidas especiais para evitar infecções em razão do transporte de mercadorias e encomendas. A liminar concedida abrangia dever de difundir informações sobre medidas de proteção e segurança, fornecimento de insumos e organizações de locais, assistência financeira aos(às) Trabalhadores(as) de alto risco ou àqueles(as) afastados(as) pela contaminação da Covid.
Uma semana depois, foi impetrado um Mandado de Segurança pela iFood na 2ª Instância no Tribunal do Trabalho de São Paulo, no TRT-2, processo n. 1000954-52.2020.5.02.0000 (SÃO PAULO, 2020b), com o objetivo de suspender a mencionada decisão liminar. Igualmente apreciado em plantão judiciário, o Desembargador cassou a decisão de Primeira Instância, valendo-se de argumentos de índole processual, como a irreversibilidade dos efeitos da decisão e o prazo curto para cumprir provimentos complexos. Na fundamentação dessa decisão, citou, embora sem demonstração de conexão com o caso concreto, medidas trabalhistas para o enfrentamento da pandemia, como as Medidas Provisórias n. 927 e 936 e o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda.
Por conseguinte, no julgamento desse Mandado de Segurança, o conjunto de Desembargadores mencionou que não haveria relação de emprego naquela plataforma, embora esse tema não tivesse sido suscitado pelo MPT, o qual amparou suas pretensões no direito de proteção sanitária ao trabalhador, e não ao empregado. Referenciou a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual considerou que a Uber também não seria empregadora, o que seria semelhante ao caso. Citou, ainda, notícia nos autos de que espontaneamente a iFood teria adotado medidas informativas para o combate à Covid-19. O acórdão sugere, inclusive, que o auxílio financeiro deveria ser alcançado através do Programa de Auxílio Emergencial. Conforme Ementa do julgado: “Disposições humanitárias e de saúde pública envolvendo a empresa e os entregadores são questões de regulamentação pelos entes federativos” (SÃO PAULO, 2020b, p. 01).
Voltando ao curso da ação principal, a ACP, a iFood apresentou nos autos informação de que espontaneamente estava adotando medidas de proteção, especificamente a elaboração e divulgação de informações via vídeos e de manual constante do seu sítio eletrônico, bem como citou que fez distribuição de álcool gel em duas oportunidades. Sobre o auxílio financeiro, a empresa sustenta que teria criado um fundo de proteção para grupos de risco e um fundo solidário para infectados, os quais permitiriam amparo financeiro parcial aos(às) entregadores(as). Mesmo oferecendo proposta de acordo pela empresa, não houve composição entre as partes.
Na defesa da iFood, são feitas inúmeras objeções processuais e materiais à pretensão da ação, a exemplo de alegação de incompetência da Justiça do Trabalho, haja vista que não haveria a relação de trabalho exatamente porque, em sua ótica, os(as) entregadores(as) seriam usuários(as) do serviço oferecido pela plataforma digital reclamada, e não trabalhadores(as). Sobre sua atividade econômica, a tese central da iFood é de que oferece serviço de tecnologia e, ademais, enfatiza que não há dever em lei que imponha a obrigação de prestar assistência financeira aos usuários de seus serviços, de modo que decisão judicial instituidora dessa obrigação violaria a legalidade e a separação dos poderes. Por consequência, entende a iFood que caberia à iniciativa legislativa a criação desse apoio financeiro.
Na réplica do MPT, rebate-se que a iFood, ao cumprir “pequena fração” das obrigações postuladas, indica que tais medidas são necessárias ao seu negócio. Destaca que, conforme documentos dos autos, apenas 4,7% dos pedidos de auxílio junto aos fundos de amparo criados espontaneamente pela empresa teriam sido acolhidos, o que indica que, na prática, não há tal auxílio financeiro. Esclareceu o MPT que o auxílio financeiro requerido judicialmente em face da iFood seria complementar ao auxílio emergencial federal, isto é, ambos seriam pagos cumulativamente.
Até março de 2021, a ACP já tinha encerrada sua fase probatória e aguardava prolação de sentença. Das argumentações jurídicas lançadas nesse processo, em especial aquela acolhida pela Segunda Instância do TRT-2, há uma recorrente tese da transferência de responsabilidade pela proteção sanitária e financeira dos(as) entregadores(as), em especial daqueles(as) contaminados(as) ou integrantes de grupo de risco. Para a empresa iFood, seria dever do Estado cuidar dessas pessoas em razão da excepcional situação sanitária, embora afirme, contraditoriamente, que espontaneamente adotou algumas medidas de proteção econômica e sanitária. Também o colegiado do TRT-2 atribuiu ao Poder Legislativo a responsabilidade de criar “disposições humanitárias e de saúde pública” (o não ocorreu conforme explicado anteriormente), pois, presumindo-se a ausência de relação de emprego, não caberia a uma mera intermediária (a plataforma) cuidar dos seus intermediados. Em sentido distinto, a decisão provisória do juízo plantonista da Primeira Instância reconheceu um papel diverso da iFood nesse processo, com objetivo de organizar e centralizar a atividade de entregas, e não meramente fornecer um serviço tecnológico de “aplicativo”, tal como sustentou no MPT nas suas razões no processo.
Curiosamente, uma das ações espontâneas da empresa para garantir proteção sanitária foi justamente a criação de um “novo procedimento de entregas”, denominada “entrega sem contato”. Ora, se uma empresa de tecnologia estabelece, unilateralmente, um método de trabalho para o serviço de entregas, ainda que por razões corretas de índole sanitária, ela acaba por confessar que, no plano fático, mais do que conectar grupos de usuários, organiza aquela cadeia de serviços, de modo a dizer como deveriam funcionar os atos físicos de entregas. Com isso, visualizamos que a atividade econômica dessa empresa não pode ser entendida como mera venda de “conexão” de usuários. Ali, vende-se sobretudo alimentos e, portanto, o nome empresarial, a síntese máxima daquilo que a empresa se propõe, remete à comida pela internet - iFood; caso fosse apenas empresa de tecnologia, melhor seria usar o nome de Itec ou Iconexão.
Independentemente do debate sobre a existência ou não do vínculo empregatício, a fundamentação normativa para a proteção de trabalhadores(as) apresentada pelo MPT foi, no caso estudado, rechaçada pelas cortes superiores da Justiça do Trabalho por argumentos afeitos apenas ao debate do vínculo empregatício. Como resultado, os(as) entregadores(as) também não lograram proteção sanitária e econômica via Poder Judiciário, apesar da essencialidade de sua atividade e dos riscos dela em tempos de pandemia.
A classificação de entregadores(as) como empregados(as) ou autônomos(as), por um lado, e como potenciais beneficiários(as) do auxílio-emergencial como MEI, por outro, suscita reflexões sobre o caráter da relação do Estado com essa camada de trabalhadores(as). Relação que está longe de se caracterizar como omissiva ou de compor um quadro definitivo e finalizado. Em outras palavras, o exame dos atos pelos quais governo, empresas e órgãos do Estado atribuem legalidade à exposição de corpos, majoritariamente negros, de trabalhadores(as) e suas famílias ao risco de morte parece explicitar a existência de elementos volitivos de uma “agenda genocida” em curso, como será explicado mais adiante.
Assim sendo, cuida-se de observar, nessa seção, o quadro analítico em que contratualidades espoliativas criam direito e abrem espaço para que se exerçam liberdades contratuais em sacrifício da vida de trabalhadoras e trabalhadores (MELLO, 2020; GEDIEL; MELLO, 2020). A adequada compreensão da lógica desses negócios jurídicos exige ensaiar uma caracterização dos sujeitos contratantes (as plataformas digitais), apenas compreensíveis no quadro da financeirização e do neoliberalismo (seção 3.1), e dos sujeitos contratados (entregadores(as) em plataformas digitais), identificados e descritos como grupo de pessoas potencialmente caracterizável como vítima da agenda genocida (seção 3.2).
O entendimento mais amplo dos problemas de precariedade do trabalho dos(as) entregadores(as) pressupõe uma compreensão mais profunda deste novo modelo empresarial que são as plataformas digitais. Situadas como produtos da 4ª Revolução Industrial4, as plataformas digitais de trabalho performam um modelo de negócios estruturado em tecnologia digital, bem exemplificada na internet rápida, de alta capacidade de processo, de produção massiva de dados (big data), com algoritmos e (simulacros de) inteligência artificial.
Para Oliveira (2021), as plataformas digitais de trabalho, junto com o comércio digital e “plataformas industriais”, formam o cenário mais amplo da economia digital, ora também chamada de “capitalismo de plataformas”, “economia de bicos” (gig economy) ou “economia do compartilhamento” (sharing economy). Caldas (2020) indica que as empresas formatadas em plataformas não se enquadram, em termos reais, como economia do compartilhamento, pois possuem fins lucrativos. Kalil (2019; 2020), por seu turno, menciona a ideia de capitalismo de plataforma, precisamente para enfatizar as desigualdades destas trocas e a precariedade do trabalho.
Na perspectiva de Srnicek (2018), as plataformas digitais são infraestruturas digitais que permitem a interação de mais de um grupo e assim se posicionam como intermediárias que conectam usuários diferentes como clientes, anunciantes, provedores, produtores e distribuidores. Mais do que apenas conectar os seus usuários, as plataformas transcendem esta faceta tecnológica e comunicativa, porque constroem um modo de interação capitalista de compra e venda de diversas mercadorias, no sentido de governar e delimitar as possibilidades de ação dos seus usuários. Por conseguinte: “aplicativo” é apenas um programa informático reduzido para telefones celulares, mas tem servido equivocadamente de metonímia para uma rede tecnológica (aplicativo, site, dados, algoritmos etc.), criado por uma empresa com certos interesses econômicos.
Por trás das ilusões libertárias da 4ª Revolução Industrial (SCHWAB, 2016) e das falsas promessas de fim do trabalho (BENANAV, 2019), encontram-se muitas empresas que exercem direção, controle e apropriação do labor dos seus “parceiros”, como também outras plataformas que, efetivamente, prestam-se apenas à conexão de grupos sem práticas de governo ou controle sobre usuários.
Perante a diversidade de atuação das plataformas, De Stefano (2016) caracteriza aquelas de entrega como a modalidade de “trabalho sob demanda”, e não apenas um serviço de fornecimento de tecnologia. Nota-se, dessa forma, que a tecnologia é formada para a vigilância e monitoramento constantes necessários ao controle, às punições e à precificação do trabalho.
No caso específico dos(as) entregadores(as), eles(as) fazem parte de um segmento social que já vivia demarcado pela vida precária e instável, vivendo aquilo que Abílio (2017) denominara de regime da “viração”. Regime marcado pela ausência de direitos sociais, pela informalidade no trabalho e pela intermitência na renda (“bicos”). Especificamente sobre a plataforma iFood, Oliveira, Santos e Rocha descrevem que:
[...] a Ifood (2020), uma das diversas empresas de plataformas digitais em exercício no país, ao redigir os termos de uso do aplicativo para o entregador, define sua atividade como intermediação tecnológica, a qual possibilita a venda de produtos por estabelecimentos comerciais parceiros a seus consumidores finais. Outro ponto de destaque no referido documento é o estabelecimento de perfis distintos para os entregadores. O trabalhador pode ser enquadrado como “entregador-nuvem”, “entregador de Operador Logístico”, “entregador vinculado a um Estabelecimento Parceiro” ou “híbrido”5 (OLIVEIRA; SANTOS; ROCHA, 2020, p. 70).
A precariedade social de entregadores(as) em plataformas é confirmada nos dados recolhidos em pesquisas científicas, indicando ainda mais intensidade e menor remuneração no período da pandemia. A pesquisa de âmbito nacional da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista - REMIR, em 2020, constatou que mais de 60% dos ouvidos trabalhavam mais que 9 horas por dia, apurando que, no período da pandemia, aproximadamente 52% dos entrevistados relataram trabalhar os sete dias da semana. Além do diagnóstico de diminuição da remuneração para 54% dos entrevistados durante a pandemia, a pesquisa da REMIR apurou que 71,9% declararam receber até R$ 520,00 por semana, mesmo com aquelas imensas jornadas. Na pesquisa realizada na Faculdade de Economia da UFBA (2020), dos(as) entregadores(as) que tinham esta atividade como principal ocupação, informaram uma média de 10h24min de jornada para 5,8 dias por semana.
Desses dados, visualizamos que o perfil de quem presta serviços em plataformas de transporte e entregas é de extensas jornadas e, nesta proporção, baixa remuneração quando se faz a dedução das despesas de aquisição e manutenção dos instrumentos de trabalho. Esta realidade comprova como é falsa a narrativa de que seriam pessoas que trabalham pouco tempo em razão da plena liberdade. Ainda que em um caso específico o(a) trabalhador(a) labore na plataforma por poucos dias para fins de complemento de renda, o que percebemos, na totalidade, é que são pessoas que têm naquela ocupação a sua principal fonte de renda. Ocupação que lhes demanda jornadas superiores à da legislação trabalhista em, pelo menos, seis dias por semana. Por outro lado, os dados sobre a remuneração confirmam que ali não há, como regra, prosperidade econômica, pois os mecanismos de controle, em especial a precificação, estabelecem quem se apropria da maior parte dos frutos do trabalho. Daí, observa-se que a categoria de entregadores tem sido alvo de verdadeiras “contratualidades espoliativas” (MELLO, 2020), conformando-se por vínculos jurídicos que se estruturam a partir da negação da esfera protetiva tradicional do Direito do Trabalho, uma vez que a forma jurídica estabelecida pelas plataformas é de ser enquadrada como trabalho autônomo.
Essa precariedade da condição de trabalho dos(as) entregadores(as) se insere na tendência regulatória do capitalismo contemporâneo, que vem fragilizando as posições econômicas e jurídicas dos(as) trabalhadores(as) vis-à-vis os poderes dos atores empresariais nas cadeias globais de valor. A deterioração da condição jurídico-protetiva dos(as) trabalhadores(as) é uma das facetas dramáticas do neoliberalismo6.
O neoliberalismo, mais do que um conjunto de ideias7, do que um rol específico de políticas8, do que uma ofensiva de classe9, é plenamente apreendido como um novo sistema de acumulação. Ao ressaltar essa perspectiva sistêmica, o conceito busca incorporar elementos ideológicos, políticos e de classe sem descurar das estruturas materiais particulares que fundamentam a dinâmica de valorização do capital no contexto neoliberal. Nesse sentido, o neoliberalismo é concebido como fase do capitalismo marcada pela acumulação fundada nos processos da financeirização (FINE; SAAD-FILHO, 2016; SAAD-FILHO, 2017).
Mais do que expressar um aumento quantitativo dos setores e ativos financeiros na economia, o termo financeirização é aqui usado para apontar uma distinção qualitativa na dinâmica contemporânea junto aos processos de valorização do capital. Como argumenta Saad-Filho (2017, p. 250), trata-se de um modo particular de existência do capital em geral. Ou seja, não se trata meramente de um setor capitalista hipertrofiado, mas de um sistema que se reproduz sob a lógica do ciclo de valorização daquilo que Karl Marx chamou de “Capital Portador de Juros” (2008, p. 453-454). Trata-se de lógica de valorização que subsume as demais formas do capital, alterando a alocação e a composição de recursos (produção, crédito, investimentos etc.), ampliando a quantidade e a importância de ativos financeiros, reduzindo a temporalidade e a espacialidade da valorização, propiciando altas remunerações e bônus para seus administradores, entre outras expressões (VASCONCELOS, 2020, p. 72). Assim,
[...] a hipertrofia da esfera financeira se integra e contribui para o surgimento de uma nova configuração histórica do capitalismo mundial, devido à situação privilegiada e exorbitante que essa hipertrofia atribui aos “credores” - proprietários de ativos financeiros que têm invariavelmente um componente de capital fictício - de moldar, de forma decisiva, o conjunto do movimento. Porque é precisamente a favor destes que são tomadas as medidas de contínua redução das despesas sociais, de desregulamentação e de privatização dos serviços públicos, de marginalização econômica e social de uma fração crescente dos assalariados e dos jovens ainda sem trabalho, intimados a considerar ‘um privilégio’ a obtenção ou a manutenção de um emprego. (CHESNAIS, 1998, p. 293).
Surgida historicamente das contradições do sistema de acumulação baseado no regime monetário e financeiro desenhado a partir das conferências de Bretton Woods, a financeirização conformou uma reestruturação no padrão de desenvolvimento do capitalismo, subordinando a esfera da produção aos impulsos de valorização capital financeiro. Nesse processo, o horizonte do acionista se sobrepõe aos demais interesses sociais na esfera econômica, pressionando para uma maior rentabilidade possível dentro do curto-prazo, ainda que às custas dos investimentos de longo prazo para evitar obsolescência tecnológica de empresas, do desemprego em massa, da pauperização e desigualdade social (PIKETTY, 2014), da instabilidade macroeconômica dos países submetidos aos humores dos fluxos de capitais etc. (ASHMAN; FINE, 2013).
Nesse quadro geral de determinações do capitalismo contemporâneo se encontram as plataformas digitais, que são articuladas, fomentadas e controladas pela lógica do capital financeiro. Não é incomum que, diante da uma proposta digital inovadora (como uma startup), fundos de investimento dispendam vultosas somas financeiras para que o empreendimento atraia ainda mais capital financeiro, viabilizando, na lógica de bolha especulativa, dividendos no curto-prazo aos acionistas, ainda que a plataforma apresente prejuízos operacionais reiterados, como tem sido o caso da Uber (FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). Somente grandes aportes especulativos conseguem manter as práticas agressivas de subvenções que esse tipo de plataforma usa para ganhar parceiros, trabalhadores e clientes, como cupons de desconto (vouchers), promoções, prêmios, brindes e isenções de tarifas. Por tal razão, Grohmann (2020) indica que a plataformização do trabalho é, de fato, um modelo de imbricação da financeirização da atividade econômica com a racionalidade neoliberal do sujeito como empreendedor de si.
Portanto, com esse quadro geral do neoliberalismo, podemos passar a destrinchar a complexa rede de relações particulares que envolvem e conformam a figura dos(as) entregadores(as) de plataformas digitais no Brasil: trabalhadores(as) precarizados(as), racializados(as) e explorados(as) a partir de plataformas digitais, as quais estruturam seus modelos de negócio a partir dos impulsos da financeirização.
Os conflitos em torno da regulação social do trabalho de entregadores(as) apresentam importantes repercussões à “agenda que disputa a intensidade do genocídio no país” (FLAUZINA; PIRES, 2020; FLAUZINA, 2014). Esta agenda possui profunda repercussão racial, afinal a categoria de entregadores(as) é formada majoritariamente por trabalhadores(as) negros(as) (FILGUEIRAS, 2020; ABÍLIO et. al., 2020), dimensão que no segmento de entregadores(as) ciclistas se torna ainda mais expressiva: 71% são negros(as) e 75% jovens (ALIANÇA BIKE, 2019).
Além da composição racial da categoria e da precariedade geral a que ela é submetida, como desenvolvido na seção anterior, cuida-se de destacar que o gerenciamento por algoritmos reproduz as práticas sociais de discriminação e racismo estrutural da sociedade brasileira.
A compreensão sobre raça, gênero e sexualidade é fato implícito, mas sensível para a atribuição de nota pelo cliente do serviço, de modo que se percebe que os homens brancos possuem as maiores notas e, nessa escala de discriminação e racismo, as mulheres negras recebem as menores. E são justamente as notas que podem dar razão a punições, atribuição de piores entregas, menores pagamentos e até a exclusão da plataforma, conformando, à força, uma “docilidade” do trabalhador (ABÍLIO, 2017), agravada pelas discriminações e racismo estrutural da sociedade brasileira.
A intensificação da agenda do genocídio negro se expressa a partir de uma dinâmica que impõe pesados sacrifícios em trabalho tido por essencial no contexto da pandemia. A regulação social desse trabalho colabora, por sua vez, para os índices que registram que a pandemia contamina mais pessoas negras do que brancas, como observado, por exemplo, no Estado de São Paulo (SÃO PAULO, 2020 d).
Ainda que tenha se difundido no repertório da política nacional, gerando inclusive reações autoritárias e de intimidação por parte do governo federal10, é necessário conferir precisão de sentido ao termo “genocídio”, a par da história de controvérsias sobre esse conceito. De início, observa-se que a “Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio”, aprovada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948, define o termo, em seu artigo II, da seguinte forma:
Na presente Convenção, entende-se por genocídio quaisquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tais como:
(a) assassinato de membros do grupo;
(b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;
(c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;
(d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
(e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.
Segundo Ana Flauzina (2014), a formulação originária de Lemkin, rejeitada pela Assembleia Geral da ONU no ano de 1947, refere-se a uma destruição social ampla, composta por homicídios, agressões, assaltos políticos e também econômicos sobre determinado grupo alvo, não necessariamente de forma imediata. A expressão, como descrita pelo projeto de Lemkin, levava em consideração dimensões de desintegração política, social, cultural e linguística. A linguagem do esboço referia-se não apenas à morte direta, mas também ao “ataque sistemático sobre as estruturas gerais da vida social do grupo-alvo” (FLAUZINA, 2014, p. 123)11.
No lugar da redução do termo ao assassinato em massa com intenção expressa12, Flauzina (2014, p. 127) propõe compreender as denúncias de genocídio também como “fenômeno informativo”. Dessa maneira, discute o que denomina “assassínio indireto”, ou seja: “o fato de expor à morte, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a morte política, a expulsão, a rejeição etc.” (FLAUZINA, 2006, p. 100). Dinâmica presente no Estado brasileiro, como uma verdadeira agenda estrutural13:
Dentro dessa dinâmica, a forma como o genocídio se processa no país afasta-se dos moldes convencionais com que se tem compreendido essa categoria. A partir de uma leitura pela via da criminalização, a responsabilidade está posta de maneira difusa. Aqui, o genocídio está nas bases de um projeto de Estado assumido desde a abolição da escravatura, com o qual nunca se rompera efetivamente. A agenda genocida é recepcionada pelos sucessivos governos que assumiram a condução do país desde então, sem que se alterassem os termos desse pacto. Daí a grande dificuldade em se ter acesso ao projeto: ele não é episódico, mas estrutural (FLAUZINA, 2006, p. 120).
Esta perspectiva estrutural defende que não há razão para redução do conceito de genocídio a determinadas situações que orbitam o paradigma de tragédias que ocorreram dentro da Europa, a exemplo do holocausto14. O debate tradicional, a partir da atual definição internacional de genocídio, constante do Estatuto de Roma de 1982, que cria o Tribunal Penal Internacional, e da Lei 2.889/1956 no Brasil, não dá conta da complexidade que cerca a prática deste crime na atualidade. A busca de identificação do tipo penal não leva em consideração a inadequação de elementos subjetivos do tipo, como “intenção de destruir”15 para um conjunto de ações que se articulam e se expandem ao longo de um período de tempo, dado que a intenção dos agentes pode estar revestida, por exemplo, de um dado cultural assimilado por indivíduos ou grupos de indivíduos, envolvidos em práticas de atos que resultem em genocídio.
Assim, aposta-se que a visão ampliada permite pensar o genocídio a partir das complexas interações entre legados coloniais, globalização e economia neoliberal (WISE, 2018). Nessa chave, há o desafio de pensar a relação entre a situação da categoria de entregadores(as) em plataformas, a atuação estatal e a agenda estrutural do genocídio. No campo juslaboral, a observação da crescente desproteção social não pode ignorar, portanto, que a classe trabalhadora da periferia global é estruturalmente precária (ANTUNES, 2020) e tem na precarização do trabalho de negros um traço de sua particularidade e de sua racionalidade (ANTUNES, 2020; ALMEIDA, 2018), dada a relação entre a construção do Direito do Trabalho e a experiência da escravidão (ALVES, 2017).
A lógica sob a qual esta precariedade se expande, desde 2014 e após a contrarreforma trabalhista, fragiliza as posições econômicas e jurídicas dos(as) trabalhadores(as) vis-à-vis os poderes dos atores empresariais nas cadeias globais de valor. Essa disparidade tem sido, por sua vez, chancelada por decisões judiciais que se utilizam do argumento de autonomia contratual para responsabilizar o sujeito trabalhador, por meio de uma “razão sacrificial” (BROWN, 2018; GEDIEL; MELLO, 2020), por eventuais erros de suas escolhas.
A razão sacrificial, nessa perspectiva, consiste na eliminação da cidadania clássica e na retenção, transformada, da ideia de sacrifício compartilhado (BROWN, 2018, p. 33). O contratante mais fraco na relação entre plataformas e entregador(a) vê-se diante não apenas da renúncia a direitos laborais em sentido estrito, mas também daqueles que recobram sua personalidade e a própria vida.
Por um lado, a situação de dependência econômica se combina à política do governo federal, de erosão do direito ao auxílio emergencial para a categoria de entregadores(as) em plataformas, para dificultar o acesso a direitos, a despeito da essencialidade da atividade. Na dimensão judicial, o Tribunal Superior do Trabalho suspendeu a imposição de medidas protetivas para trabalhadores(as) em plataformas, com base em razões de decidir que limitam a tutela laboral ao reconhecimento do vínculo de emprego.
Em ambos os casos, o Estado brasileiro deixou de impor tutela normativa na exposição contínua do corpo, entendido como substrato físico do sujeito, à obrigação trabalhista assumida em relação a plataformas digitais. Com jornadas exaustivas e sub-remuneradas, como se observou, multiplica-se seletivamente o risco de morte para alguns grupos sociais, em especial para as pessoas negras. Não por acaso, uma comparação direta entre entregadores(as) em plataformas e entregadores(as) de uma empresa terceirizada, realizada por Abílio (2020b), demonstrou que nesta a remuneração é maior e a jornada inferior. Além disso, conclui a autora que “em condições mais precárias, a mesma atividade se apresenta mais juvenil e negra.” (ABÍLIO, 2020b, p. 591).
Nesse sentido, impõem-se a trabalhadores(as) ritmos de trabalho acelerados dados pelo gerenciamento algorítmico, com atribuição de notas mais baixas a mulheres negras, o que pode dar razão a punições, como piores entregas, menores pagamentos e até mesmo a exclusão da plataforma (ABÍLIO, 2017; 2020a; ABÍLIO et. al., 2020), o que desproporcionalmente afeta a saúde e a vida de setores da categoria. Longe de ser mera “desregulação”, a compatibilidade de tal imputação de responsabilidade com o ordenamento jurídico revela dimensões da agenda do genocídio em curso e permite pensar a questão de Alexander Hinton (2012): não apenas como as pessoas com a experiência e as consequências do genocídio, mas como as instituições, processualmente, articulam e estruturam práticas genocidas.
A análise da regulação jurídica da categoria de entregadores(as) em plataformas digitais revela como se operam certas metonímias que dificultam a adequada compreensão das determinações explicativas da tragédia em curso.
A primeira grande metonímia consiste em reduzir o problema da pandemia ao vírus Sars-cov-2. Decerto, o vírus é o agente físico imediatamente responsável pela doença Covid-19. Contudo, é na forma como a sociedade se organiza para lidar com a pandemia que encontramos as razões fundamentais da presente crise econômica e sanitária.
Nesse sentido, a crise da pandemia é inseparável da crise do capitalismo, que, como exposto, modula-se pelos impulsos sistêmicos da financeirização como marca distintiva do neoliberalismo (FINE; SAAD-FILHO, 2016; SAAD-FILHO, 2017). Trata-se de processo multifacetado, que tem, dentre suas características, a reorganização do papel das estruturas estatais e empresariais no sentido de ampliar a esfera de acumulação do capital. Processo que é viabilizado pelas agendas de privatizações de bens públicos, de desregulamentação financeira, de redução de direitos trabalhistas e sociais, dentre outras iniciativas (VASCONCELOS, 2020).
Dentro desse quadro geral, pode-se, então, compreender a lógica de uma série de contradições aguçadas pela pandemia, a exemplo dos lucros extraordinários das plataformas de entrega e a precarização da condição dos(as) seus(suas) trabalhadores(as), bem como da aceleração da concentração da riqueza em contexto de queda geral da atividade econômica16, assim como a vulnerabilidade é maior nas populações negras e marginalizadas etc.
De forma específica, a questão aguçada pela pandemia que investigamos foi tentar compreender como direitos de trabalhadores(as) considerados(as) essenciais, no caso dos(as) entregadores(as) em plataformas, têm sido sistematicamente erodidos pelas empresas contratantes e pelo Estado. Do ponto de vista empresarial, notamos que a categoria sofre da dinâmica de contratualidades espoliativas (MELLO, 2020; GEDIEL; MELLO, 2020), que visam dirimir os custos do trabalho mediante redução das responsabilidades e deveres impostos pela legislação juslaboral.
Do ponto de vista estatal, opera-se igualmente uma dinâmica que reduz a incidência de normas protetivas à categoria. Tanto na esfera legislativa quanto na judicial há outra metonímia que corrobora com essa dinâmica. Isso porque a redução dos modelos de negócio das plataformas digitais ao nome “aplicativos” obscurece o papel de organização e controle por parte de algumas plataformas, especialmente no caso de entregadores(as). Tomar o todo dessa atividade empresarial pela sua parte, no caso a dinâmica de conexão tecnológica entre usuários e serviços, impede a compreensão da real dinâmica de exploração do trabalho que ocorre nessa estrutura, a qual, como visto, é moldada pelos impulsos do capital financeiro.
Como elo frágil dessa cadeia de contradições, encontram-se os que realizam efetivamente os serviços de entrega por aplicativos: os(as) entregadores(as). Apesar de formalmente essenciais, esses(as) trabalhadores(as) são tratados(as) como descartáveis. Não parece ser coincidência que a maioria dessa categoria é composta por corpos negros. A razão sacrificial imposta a esses sujeitos se molda aos impulsos do racismo, que, na sociedade brasileira, aponta para uma agenda estrutural genocida. Agenda que se desnuda quando se supera a metonímia teórica que insiste em abordar o conceito de genocídio pelo prisma eurocêntrico.
Apostamos, dessa maneira, que transcender o horizonte que toma a parte pelo todo é passo analítico necessário para iluminar as determinações que modulam a crise sanitária e econômica vigente. Compreensão necessária para transformar a dinâmica desastrosa pela qual a sociedade e o Estado têm lidado com a pandemia.