Resumo: Durante a pandemia de covid-19, uma coalizão de organizações, movimentos e coletivos de favela obteve uma intervenção sem precedentes do Supremo Tribunal Federal na política de segurança pública do Rio de Janeiro, em face da violência policial e do racismo. Este estudo investiga o processo jurídico e político de construção dessa ação e seus primeiros desdobramentos a partir do campo de estudos da mobilização do direito.
Palavras-chave: Movimentos sociais, mobilização do direito, direitos humanos, violência policial.
Abstract: During the covid-19 pandemic, a coalition of organizations, social movements and favela collectives obtained an unprecedented intervention by the Supreme Court in Rio de Janeiro's public security policy, in face of police violence and racism. This study investigates the legal and political process of construction of this legal action and its first consequences, in dialogue with legal mobilization studies.
Keywords: Social movements, legal mobilization, human rights, police violence.
Dossiê
ADPF das Favelas: mobilização do direito no encontro da pandemia com a violência policial e o racismo
“ADPF das Favelas”: Legal mobilization in the intersection between police violence and racism.
Recepção: 01 Junho 2021
Aprovação: 25 Julho 2021
Nos primeiros meses da pandemia de covid-19 no Brasil, a partir de março de 2020, territórios no estado do Rio de Janeiro (RJ) com mais dificuldade de praticar medidas de prevenção, com população empobrecida e em parte relevante sem trabalho formal, também viveram operações policiais que davam seguimento a uma escalada de violência, observada ao longo dos últimos anos. Dessa maneira, nesses locais, onde vivem majoritariamente pessoas negras (v. FLAUZINA; PIRES, 2020), a maior vulnerabilidade à letalidade do coronavírus veio a se associar a um crescimento no número de mortes violentas provocadas por agentes da segurança pública. Foi nesse momento que uma coalizão de organizações, movimentos e coletivos de favela do RJ obteve uma intervenção sem precedentes do Supremo Tribunal Federal (STF) na política de segurança pública do estado, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que ficou conhecida como ADPF das Favelas.
A prática de violações graves de direitos humanos pelos órgãos incumbidos da política de segurança pública no Brasil não é algo novo, ou restrito ao RJ, embora esse estado tenha particularidades e índices especialmente altos de violência de Estado2. Órgãos internacionais de direitos humanos, tanto no âmbito da ONU3 quanto do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) vêm chamando atenção para a gravidade da questão. Relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, publicado em 2021, constatou que a violência institucional no país não é um problema de desvios individuais. A própria política criminal, penitenciária e de segurança pública tem atuado de forma sistemática e generalizada para exterminar pessoas afrodescendentes, podendo “se aproximar, perigosamente, de processos que buscam extinguir, no todo ou em parte, as pessoas dessa origem étnico-racial” (OEA, 2021: § 33). A CIDH manifestou preocupação diante de evidências de que a situação vem se agravando, e destacou o papel na perpetuação dessa situação dos órgãos do sistema de justiça, que, ao mesmo tempo, atuam de forma a criminalizar e punir a população afrodescendente, e não levam adiante processos de investigação e responsabilização de crimes cometidos por agentes da segurança pública4.
Abdias Nascimento (2016) escreveu em 1977 que há um projeto de Estado voltado à produção do desaparecimento, físico e cultural, do povo negro no Brasil, que, portanto, caracteriza o crime internacional de genocídio. A partir da experiência histórica de discriminação nas ações das polícias e no sistema penal, e da publicação de dados e estudos empíricos demonstrando os impactos desproporcionais das suas práticas em prejuízo da população negra, organizações do movimento negro passaram a denunciar as mortes provocadas por agentes da segurança pública como parte desse projeto genocida (RAMOS, 2014; RAMOS; TOMENASI, 2020; SINHORETTO; MORAIS, 2017). No mesmo sentido, acadêmicos como Ana Flauzina têm produzido pesquisas que concluem ser “[...] possível visualizar o braço armado do Estado como um instrumento a serviço do controle e extermínio da população negra no país, o que, necessariamente, aponta para a existência de uma plataforma genocida de Estado” (FLAUZINA, 2006: 14).
Este estudo tem o objetivo de analisar a construção e os primeiros desdobramentos da ADPF das Favelas a partir do campo de estudos da mobilização do direito, que busca compreender o papel das táticas jurídicas entre as estratégias dos movimentos sociais. Em especial, intenciona-se investigar se a alteração no cenário político e social trazida pela calamidade da pandemia fez com que os atores envolvidos na ADPF das Favelas encontrassem espaço para as suas demandas no STF, o que a literatura da mobilização do direito chama de abertura de uma oportunidade jurídica. Tem-se a hipótese de que, não obstante a prévia situação gravemente violadora de direitos humanos, bem como o fato de que a luta social contra o racismo institucional e estrutural5 e por um controle efetivo da atuação das polícias já exista há décadas, a tragédia da pandemia esteve entre os fatores que tornaram jurídica e politicamente possível a discussão da questão na cúpula do Judiciário brasileiro6.
A pesquisa se insere em uma agenda de investigação das professoras-pesquisadoras autoras, nas temáticas da mobilização do direito por movimentos sociais e de respostas no campo dos direitos humanos em casos de violência institucional. Além disso, a aproximação ao processo de construção da ADPF pareceu, e de fato se revelou, instrutiva para uma reflexão, como a que temos realizado ao estruturar ações extensionistas como docentes na Unifesp, sobre como desenvolver ações coletivas relevantes na área dos direitos humanos, envolvendo movimentos sociais e universidade.
O artigo está dividido em 5 seções. Primeiramente, apresenta-se o referencial teórico, sobre mobilização do direito e oportunidades jurídicas (seção 1) e se expõe a metodologia utilizada (seção 2). Em seguida, são examinadas ações judiciais movidas em outros foros, que se revelaram importantes para que a ADPF das Favelas pudesse acontecer no STF: o caso Favela Nova Brasília no SIDH e a Ação Civil Pública (ACP) da Maré, na justiça estadual do RJ (seção 3). Passa-se então a analisar a ADPF das Favelas, com foco na forma como se dá a sua construção, a adesão das ONGs, movimentos sociais e coletivos de favela, e a organização desses em torno da ação (seção 4), e nos desdobramentos da ADPF no contexto da pandemia de covid-19 (seção 5). Ao final, apresentam-se as considerações finais, destacando-se os principais achados da pesquisa (seção 6).
Este artigo se insere no conjunto de investigações que buscam analisar a relação entre movimentos sociais, direito e Poder Judiciário, e se baseia principalmente no referencial teórico da mobilização do direito, desenvolvido a partir do trabalho de Michael McCann (1994; 2006; 2008). Tal campo de estudos procura compreender o papel que as táticas jurídicas desempenham no conjunto mais amplo de estratégias empregadas por movimentos sociais em sua luta política. Ele tem como aspecto central a busca por interligar pesquisas sociojurídicas, focadas nas cortes e em suas decisões, com pesquisas sobre movimentos sociais, focadas na mobilização coletiva de atores sociais, e que até então pouco dialogavam entre si.
Essa tradição de estudos compreende o direito de forma expandida e não apenas do ponto de vista formal. Assim, para ela, o direito não é composto somente por normas jurídicas, leis e decisões judiciais, mas também é uma reunião de significados que intermedia as práticas e relações sociais, ao mesmo tempo que é constituído por meio delas (McCANN, 1994, 2006). Tendo em vista essa ideia, as pesquisas sobre mobilização do direito buscam compreender não só os efeitos diretos que leis e decisões judiciais têm sobre as demandas dos movimentos sociais, mas também seus efeitos indiretos na mobilização desses grupos. Para tanto, elas adotam uma “abordagem de baixo para cima” (bottom-up approach), deslocando o centro da investigação do Poder Judiciário e suas decisões para os atores dos movimentos sociais (McCANN, 1994).
O campo de estudos sobre a mobilização do direito compreende as estratégias jurídicas, entre elas o litígio nos tribunais, como uma parte de campanhas multidimensionais dos movimentos sociais na busca pela concretização de suas demandas (LEVITSKY; 2007, 2015). Táticas que mobilizam o direito são um dos recursos possíveis que tais grupos podem lançar mão, em meio a diversas outras estratégias (combinadas ou não com estratégias jurídicas). Soma-se a isso a compreensão de que o direito pode ser mobilizado pelos movimentos sociais não somente por meio de ações judiciais, mas de várias outras formas, como quando buscam a criação ou revogação de uma lei, quando usam linguagem do direito para a construção de suas demandas, em protestos, ou em negociações informais, por exemplo.
A partir dos anos 2000, surge no contexto desta agenda de pesquisa a noção de “estrutura de oportunidade jurídica” (legal opportunity structure), que aprofunda o diálogo já existente entre os campos de estudos sociojurídicos e sobre movimentos sociais. Ela é um desdobramento da noção de oportunidade política, ferramenta analítica desenvolvida no contexto da Teoria do Processo Político (TPP). De forma sintética pode-se dizer que a TPP busca investigar a influência que fatores externos aos movimentos sociais têm em sua organização, na definição de demandas e estratégias, e na possibilidade de realizá-las ou não. A TPP analisa os movimentos sociais no contexto “macro” de suas trajetórias, e em que medida fatores externos e circunstanciais podem interferir na forma como esses grupos se mobilizam. As oportunidades ou restrições políticas são ferramentas analíticas para se avaliar as escolhas estratégicas dos movimentos sociais em sua luta política tendo em vista mudanças no contexto político institucional em que se encontram. Quando o contexto se altera, a tendência é que as estratégias desses grupos também mudem (TARROW, 2009). Assim, mudança para um regime político mais ou menos democrático do país, a eleição de determinado chefe do Poder Executivo ou de determinada composição do Poder Legislativo, ou alianças formadas na sociedade em certo momento são oportunidades ou restrições políticas que se abrem ou fecham para os movimentos sociais.
De maneira geral, os estudos sobre movimentos sociais realizados no contexto da TPP ou não levavam em consideração os atributos do direito e sistema de justiça, ou os incluíam no campo das oportunidades políticas (VANHALA, 2011; HILSON, 2002). Nesse contexto, desenvolveu-se a noção de oportunidade jurídica7, que busca justamente examinar aspectos específicos do Poder Judiciário que o diferenciam das outras instituições do sistema político e que poderiam favorecer ou restringir estratégias dos movimentos sociais direcionadas a ele. Na medida em que as cortes têm regras de acesso e de processamento das ações judiciais, a linguagem empregada é aquela específica do direito, há atores específicos desse campo, as oportunidades e restrições relacionadas a elas deveriam ser consideradas de forma especial (VANHALA, 2011; HILSON, 2002).
A noção de oportunidade jurídica tornou-se uma das ferramentas analíticas mais usadas para explicar a mobilização do direito por movimentos sociais (VANHALA, 2012). Ela diz respeito “às características do sistema jurídico que facilitam ou impedem a possibilidade de que os movimentos sociais tenham suas queixas atendidas pelo Poder Judiciário” e conformam as expectativas desses grupos em relação à conquista de suas demandas por meio da mobilização do direito (DE FAZIO, 2012: 4). Assim como acontece com as oportunidades políticas, quando há alterações no contexto político-institucional, espera-se que as oportunidades jurídicas se alterem.
A literatura sobre oportunidades jurídicas vem focando na investigação dos incentivos e restrições institucionais que moldam a capacidade e a disposição de um grupo de movimentos sociais de litigar nas cortes (VANHALA, 2018a, 2018b). De Fazio (2012) aponta três fatores que influenciam nesta decisão: (i) a acessibilidade às cortes, (ii) a disponibilidade de direitos “judicializáveis” e (iii) a receptividade do Poder Judiciário às reivindicações a ele apresentadas.
A primeira dimensão das oportunidades jurídicas determinante para a mobilização do direito é o acesso dos movimentos sociais às cortes (ANDERSEN, 2005; DE FAZIO, 2012). Dois fatores são relevantes nesse caso: as regras de legitimidade processual para propor ações judiciais e os custos e acessibilidade ao processo judicial. O primeiro deles diz respeito às regras do direito processual, que podem ser mais restritivas ou mais amplas. Quanto mais abertas forem as regras de acesso a atores coletivos da sociedade civil, maior a possibilidade de que os movimentos sociais mobilizem o direito nos tribunais. Além da possibilidade de propor a ação judicial, existem mecanismos que permitem que movimentos sociais participem do processo e apresentem seus posicionamentos em questões que interessam diretamente a eles, como por exemplo as audiências públicas ou o amicus curiae.
O segundo fator da dimensão da acessibilidade às cortes diz respeito aos custos e ao tempo de duração dos processos judiciais, que podem demandar dos movimentos sociais recursos, estrutura material e expertise para o litígio. A este respeito, Epp (1998) apresenta o argumento de que para que estratégias de mobilização saiam vencedoras nos tribunais é necessário mais do que direitos garantidos constitucionalmente, juízes abertos a discutir determinadas temáticas e membros dos movimentos sociais conhecedores de seus direitos (rights consciousness). Para que essas táticas tenham sucesso é fundamental a presença de recursos materiais para que se crie e seja mantida uma “estrutura de suporte para a mobilização do direito” (support structure for legal mobilization). De acordo com o autor, essa estrutura é formada por organizações de defesa de direitos, advogados especializados e fontes de financiamento (EPP, 1998: 17-18). Limitações relacionadas à falta da “estrutura de suporte para a mobilização do direito” podem ser superadas quando há algum tipo de assistência jurídica do Estado ou isenção de taxas do processo judicial (DE FAZIO, 2012), quando há reformas no desenho institucional do Poder Judiciário que ampliam e facilitam o acesso a ele (WILSON e CORDERO, 2006), ou ainda quando os movimentos sociais fazem alianças com advogados e/ou grupos mais bem estruturados, com experiência no litígio voltado a ampliação de direitos.
A segunda dimensão das oportunidades jurídicas diz respeito à existência de direitos “judicializáveis”. Isso quer dizer que, para que movimentos sociais mobilizem o direito por meio do litígio, é preciso que existam mecanismos processuais por meio dos quais os direitos possam ser demandados e executados judicialmente (DE FAZIO, 2012). Em alguns casos, mesmo quando não há proteção judicial específica, os movimentos sociais podem buscar que determinados entendimentos sejam proferidos pela corte, de maneira a expandir o sentido de normas existentes e criar jurisprudência favorável às suas demandas (VANHALA, 2011).
Por fim, a terceira dimensão das oportunidades jurídicas é a receptividade do Poder Judiciário às demandas a serem apresentadas. Para que movimentos sociais vejam nas cortes arenas políticas promissoras, o Poder Judiciário deve sinalizar que teria alguma abertura a essas demandas. Assim, um cenário em que juízes sinalizam que estão abertos a debater determinados temas no campo jurídico, ou mesmo que são favoráveis a certos entendimentos, pode ser visto como uma oportunidade jurídica para empreender o litígio. O contrário, em um contexto em que há uma cultura jurídica avessa a garantir certos direitos, somada a juízes e tribunais fechados a determinados entendimentos jurídicos, é hostil à mobilização do direito (DE FAZIO, 2012: 7).
Este artigo foi elaborado a partir de pesquisa qualitativa realizada especialmente em duas fontes primárias: documentos judiciais da ADPF das Favelas disponíveis no site do STF8 e entrevistas com os atores envolvidos no processo. Além disso, foram utilizados documentos e material audiovisual disponibilizados na internet por esses atores9, e documentos do Caso Favela Nova Brasília no SIDH e da Ação Civil Pública da Maré, na justiça estadual do RJ10.
As entrevistas semiestruturadas, realizadas com um roteiro de perguntas não fechado, permitiram que fossem captadas as narrativas dos entrevistados, assim como suas avaliações e impressões a respeito do fenômeno estudado. Foram realizadas 19 entrevistas, entre os dias 12 de março e 13 de abril, totalizando aproximadamente 25 horas e 41 minutos de conversa com 22 pessoas. Foram convidados membros das diferentes organizações, grupos e movimentos que participaram da construção da ADPF das Favelas. Deu-se preferência para aqueles que vêm falando publicamente a respeito da ação, por exemplo nos vídeos disponíveis no Youtube, no canal da ADPF das Favelas11, ou no processo judicial12.
Os dados coletados com as entrevistas e os documentos foram analisados qualitativamente, buscando investigar a hipótese de pesquisa e cumprir os objetivos propostos.
A pesquisa revelou que dois casos anteriores à ADPF 635 foram importantes para a construção da ação: o Caso Favela Nova Brasília, no qual o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) em 2017 (seção 3.1), e a chamada Ação Civil Pública (ACP) da Maré, proposta na Justiça Estadual do Rio de Janeiro em 2016 (seção 3.2).
A condenação do Estado brasileiro no Caso Favela Nova Brasília foi a primeira em que a CorteIDH tratou de execuções extrajudiciais por agentes da política de segurança pública no Brasil. O caso decorreu de denúncia apresentada ao SIDH pelas ONGs Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil) e Human Rights Watch Americas (HRW), à qual depois viria aderir a ONG Instituto de Estudos da Religião (ISER), em razão da falta de respostas às execuções de 26 homens e aos atos de violência sexual contra três mulheres praticados em duas incursões policiais realizadas nos anos 1994 e 1995, na Favela Nova Brasília, no RJ.
Segundo Beatriz Galli (entrevista 2021), diretora do Cejil no Brasil, o caso chamou atenção a partir da documentação, que então era feita pela HRW com base em fontes de imprensa, sobre casos de violência policial nas favelas no RJ. Um contexto em que pesquisas vinham sendo desenvolvidas sobre mortes causadas pela polícia no RJ13 e chacinas ganhavam repercussão na imprensa contribuiu para a decisão das ONGs de internacionalizar o caso. A denúncia à CIDH foi feita em 1995, sobre a primeira chacina, e em 1996 sobre a segunda, e o caso, submetido pela CIDH à CorteIDH em 2015, foi julgado em 2017.
Na sentença, a Corte concluiu que houve violação de direitos humanos internacionais14, e estabeleceu um conjunto variado e abrangente de medidas de reparação. Entre as garantias de não repetição estabelecidas, afirmou que o Estado brasileiro deve publicar anualmente relatório com dados sobre mortes ocasionadas pela polícia; que nesses casos a investigação deve ser realizada por órgão independente e diferente da força pública envolvida; e que o estado do RJ deve estabelecer metas e políticas de redução da letalidade e de violência policial (OEA, 2017).
Por outro lado, ao mesmo tempo em que a sentença da CorteIDH avançou na determinação das obrigações internacionais do Estado brasileiro em matéria de proteção dos direitos humanos nas políticas de segurança pública, ela mencionou a conexão da violência policial com o racismo apenas no momento da descrição do contexto em que as violações foram praticadas (OEA, 2017: § 103). Ou seja, não enfrentou o racismo como uma violação de direitos humanos, nem entre as medidas de reparação15. De forma geral, observou Beatriz Galli (entrevista 2021), até então a CorteIDH ainda não havia desenvolvido jurisprudência sobre a questão do racismo nas Américas.
Depois da sentença de 2017, o caso passou à fase de supervisão da implementação das suas determinações16. Segundo Isabel Pereira (entrevista 2021), do ISER, os espaços para diálogo entre as organizações requerentes e as instâncias dos governos federal e estadual sobre a adoção das medidas de implementação vinham sofrendo um processo de fechamento e desestruturação, principalmente a partir de 2019. A omissão em cumprir algumas das garantias de não repetição determinadas pela Corte seria parte do objeto da ADPF das Favelas. Nesse sentido, para Beatriz Galli (entrevista 2021), a ADPF 635 funcionaria como uma ferramenta para o cumprimento da sentença da CorteIDH17.
Por sua vez, a sentença da CorteIDH seria importante para a ADPF das Favelas, tanto como um precedente em que os fatos - violação generalizada de direitos humanos na política de segurança pública do RJ - já foram apurados, quanto no que se refere à regulação jurídica aplicável. Nesse segundo aspecto, a sentença da Corte indica normas de direito internacional violadas pelo Estado brasileiro e impõe medidas de reparação, de cumprimento obrigatório pelo Estado. Com isso, a existência da sentença da CorteIDH reduz o ônus, na ADPF das Favelas, da demonstração (pelo seu autor) e da fundamentação (pelo STF) de que se está diante de uma situação gravemente violadora de direitos humanos. Para além das normas de direitos humanos violados, é incontroverso que o Estado brasileiro descumpre a sentença da Corte. Algumas das medidas de reparação determinadas, notadamente o estabelecimento de metas e políticas de redução da letalidade e de violência policial e a investigação por órgão independente, farão igualmente parte dos pedidos da ADPF das Favelas. Assim, a decisão da Corte contribui para a dimensão das oportunidades jurídicas de disponibilidade de direitos “judicializáveis”, já que as medidas de reparação são obrigações invocáveis judicialmente18.
A ACP da Maré foi iniciada em 2016 pela Defensoria Pública do RJ (DPE/RJ), por meio do seu Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos (NUDEDH) e do seu Núcleo Contra a Desigualdade Racial (NUCORA), a partir da demanda e de provas produzidas por organizações da sociedade civil atuantes na Maré, um bairro constituído por 16 favelas na cidade do Rio de Janeiro. O ponto de partida foi um pedido formulado em um plantão judiciário, para que se determinasse que uma operação policial que estava em curso não continuasse durante o período noturno, pelo temor de que isso poderia levar a uma chacina. Depois de uma liminar eficaz na suspensão daquela operação, a DPE fez um aditamento da petição inicial, de maneira a construir uma ação de caráter coletivo. O objetivo central da ACP da Maré é levar o Judiciário a determinar que as operações policiais observem a legislação estadual pertinente, especialmente a presença obrigatória de ambulâncias nas operações e instalação de câmeras e sistema GPS nas viaturas, e que seja apresentado pelo estado do RJ um “plano de redução de danos para o enfrentamento das violações de direitos humanos” (RJ, 2016: 42) no Complexo da Maré. A petição inicial afirma que esse plano deve atentar à necessidade de proteção de crianças e adolescentes, mulheres contra a violência de gênero, e ao enfrentamento do racismo institucional (RJ, 2016).
Segundo relataram os defensores públicos Lívia Casseres e Daniel Lozoya (entrevista 2021), naquele momento a DPE/RJ atuava em casos individuais de violência institucional, por meio do acompanhamento de investigações e assistência aos familiares das vítimas, e foi feita uma avaliação no âmbito dos seus núcleos especializados de que seria importante o desenvolvimento de outras estratégias para incidir de forma mais estrutural na política de segurança pública do estado. Da mesma maneira, Shyrlei Rosendo (entrevista 2021) e Thais Gomes (entrevista 2021) relataram que no âmbito das ONGs Redes da Maré e Observatório de Favelas se refletia sobre como ir além do recurso ao sistema de justiça a cada nova operação.
As duas organizações atuariam em articulação com a DPE na construção dessa ação coletiva. A Redes de Desenvolvimento da Maré (Redes da Maré) é uma organização fundada há mais de 20 anos por moradores da Maré, com atuação no território em diferentes áreas, entre elas segurança pública, com ações preventivas, presença no local dos conflitos e suporte aos moradores. É pioneira na produção de dados sobre operações policiais, a partir da atuação de agentes em campo, de uma grande rede de colaboradores e de fontes secundárias (Rosendo, entrevista 2021; HIRATA et. al. 2021: 23; Hirata, entrevista 2021). O Observatório de Favelas, sediado na Maré e construído por pessoas com origem em espaços populares, também tem entre suas linhas de atuação iniciativas voltadas à garantia do direito à vida e à segurança pública (Gomes, entrevista 2021). Na ACP, essas organizações apresentaram as demandas dos moradores e forneceram provas das violações de direitos humanos a partir do seu monitoramento in loco, e ingressaram no processo como amici curiae. Além disso, investiram na mobilização social em torno da ACP e na popularização do conhecimento a respeito dela, com estratégias de comunicação popular.
A ACP nasceu então da atuação cotidiana da DPE/RJ em casos de violência institucional nas favelas e de um trabalho consolidado de organizações da sociedade civil no território, em construção conjunta. Além disso, ela estimularia a construção de um plano de redução de danos no âmbito do “Fórum Basta de Violência! Outra Maré é possível”, que congrega diferentes movimentos e atores atuantes no território19, a partir de consulta pública com os moradores da Maré (CÂNDIDO, 2021). A Redes da Maré organizaria ainda a elaboração e envio ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) de 1500 cartas de moradores da Maré, com desenhos de crianças, sobre como a violência afeta o seu cotidiano (BETIM, 2019).
A tutela antecipada foi concedida em junho de 201720. Dados produzidos pela Redes da Maré revelaram que a liminar levou a uma redução significativa no número de operações policiais na Maré entre 2017 e 2018, e, consequentemente, nos confrontos armados, no número de mortos e feridos e nos dias de escolas e postos de saúde fechados (HIRATA et. al., 2021). Conforme avaliação de Daniel Lozoya (entrevista 2021), embora em diferentes aspectos a decisão liminar nunca tenha sido estritamente cumprida, pesou para esse impacto a visibilidade que a ACP proporcionou para as violações, e o maior controle social que estimulou, inclusive por meio do interesse da imprensa. Mas mais tarde o número de operações voltou a se elevar de forma significativa e, em junho de 2019, a ação foi julgada improcedente (RJ, 2019b).
A experiência na ACP da Maré é destacada como muito importante para tornar possível a ADPF. A DPE/RJ participou da redação da petição inicial da ADPF, especialmente com a elaboração dos seus pedidos, alguns dos quais se alimentam da experiência da ACP. Também é relevante para a ADPF o aprendizado com a construção coletiva da ACP e a mobilização social em torno dela, envolvendo diálogo com outros atores locais e moradores (Fichino, entrevista 2021).
O contexto que levou à propositura da ADPF das Favelas foi de um quadro grave de violações de direitos humanos pelas polícias do estado do RJ, decorrentes de uma política de segurança pública baseada no confronto armado, e que atingem especialmente a população negra e pobre moradora de favelas, sem investigação ou respostas efetivas pelo sistema de justiça local21. Uma realidade de rotinização do uso da violência, com armamentos e procedimentos de guerra, que produz mortes cotidianamente, além do fechamento habitual de escolas e postos de saúde, inviabilização do trânsito e invasão de domicílios. No ano da propositura da ADPF, 2019, houve um agravamento da situação, com número recorde de mortes provocadas por policiais22. No começo daquele ano, haviam tido início as gestões de Jair Bolsonaro na Presidência da República e de Wilson Witzel no governo do estado do RJ, ambos defensores do uso da violência por agentes da segurança pública no enfrentamento à prática de crimes23. Ademais, foram adotadas políticas como a ampliação do uso de helicópteros como plataformas de tiro e a extinção do incentivo à redução da letalidade policial, anteriormente previsto em decreto estadual24, e a Secretaria de Segurança Pública do estado foi extinta, com suas competências transferidas para as secretarias da Polícia Militar e da Polícia Civil, de maneira a ampliar a autonomia destas. Houve ainda diversas mortes de crianças, baleadas por agentes das forças de segurança25. A percepção, conforme relatado em entrevistas, era de que a situação havia chegado em níveis insustentáveis, e que outros espaços institucionais não tinham abertura para discutir a questão.
A ideia de propor a ADPF partiu de Daniel Sarmento, professor de direito constitucional e advogado especializado em atuação no STF, que já tinha um histórico de promoção de ações de litígio estratégico em nome de partidos políticos progressistas e de organizações da sociedade civil. Segundo Sarmento relatou (entrevista 2021), sua iniciativa se originou da percepção tanto do agravamento da situação da segurança pública no RJ, quanto de que aquele seria um bom momento para levar o tema ao STF. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) havia movido uma ação sobre segurança pública no RJ, focada em manifestações de Witzel em estímulo à violência policial (ADPF 594), de relatoria do Min. Edson Fachin, o que justificava a distribuição de uma nova ação sobre o mesmo tema ao mesmo ministro, que na avaliação de Sarmento tem afinidade com temas de direitos humanos e poderia estar aberto para olhar para a segurança pública com essa visão. Sarmento levou então a proposta ao Partido Socialista Brasileiro (PSB), entidade com legitimidade ativa para propor ADPF. Em seguida, a apresentou aos defensores públicos do NUDEDH e do NUCORA DPE/RJ, que já tinham experiência de atuação nessa temática, pautada pelas demandas das favelas, no sistema de justiça local, inclusive por meio da ACP da Maré. Os defensores confirmaram a avaliação de que a atuação nas instâncias locais havia chegado a um teto e não tinha mais eficácia. Segundo a defensora pública Lívia Casseres (entrevista 2021), tendo em vista a ausência de legitimação constitucional para propor uma ação como essa, a DPE/RJ considerou ser essa uma boa oportunidade para a realização de um trabalho conjunto.
A petição inicial foi elaborada por equipe de advogados coordenada por Daniel Sarmento com a colaboração da DPE/RJ, que depois ingressaria no processo como amicus curiae. As organizações da sociedade civil e movimentos sociais atuantes no campo foram convidados para um encontro voltado à apresentação da proposta, pouco antes do protocolo. Parte das pessoas entrevistadas integrantes das ONGs e movimentos observou que a ADPF das Favelas não teve de início, como seria mais adequado, uma construção coletiva, com a participação das entidades da sociedade civil com atuação de muitos anos nesse campo - como havia sido feito na ACP da Maré - e, especialmente, com aqueles com longo histórico de enfrentamento da violência nos territórios. Também chamaram atenção para uma reticência em relação à promoção do processo por um partido político, por se tratar de uma questão cuja relevância vai muito além de disputas político-partidárias. No entanto, isso se reverteria, com a adesão dessas entidades, movimentos e grupos ao processo, pouco tempo depois do ajuizamento da ação.
A petição inicial, protocolada em novembro de 2019, afirma que a política de segurança pública do estado do RJ viola os direitos fundamentais à vida, à dignidade, à segurança e à inviolabilidade de domicílio. Além disso, contraria o princípio da igualdade, tendo em vista que produz um impacto negativo desproporcional sobre a população negra, refletindo o racismo estrutural da sociedade brasileira e institucional das corporações policiais. Por fim, deixa de atender a exigência constitucional de absoluta prioridade na garantia dos direitos das crianças e adolescentes, tendo em vista que essas são vítimas da letalidade e têm com frequência suas escolas fechadas em razão de tiroteio. Entre os pedidos de medida cautelar formulados estão o de elaboração pelo governo do RJ de um plano visando à redução da letalidade policial e ao controle das violações de direitos humanos, com a participação da sociedade civil, a ser homologado e monitorado pelo STF; medidas de prevenção como abstenção do uso de helicópteros como plataforma de tiro, presença de ambulâncias em operações policiais, e observância de diretrizes na realização de operações em perímetros próximos de escolas, creches, hospitais ou postos de saúde; e medidas para garantir o controle da atuação dos agentes de segurança e a sua responsabilização pela prática de crimes, como preservação dos vestígios dos crimes, auditabilidade das perícias e investigação independente pelo Ministério Público.
A ação é vista como um caso de litígio estrutural, por enfrentar um problema complexo, com impactos sobre os direitos de um conjunto grande de pessoas, diante do qual as instituições estatais permanecem inertes ou omissas, e cuja solução depende de uma “reforma estruturante” (DPE/RJ et. al., 2020: 14)26, coordenada e monitorada pelo tribunal. Nesse sentido, se alimenta da experiência da ADPF 347, relativa ao estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário brasileiro, que teve Daniel Sarmento como patrono do autor, o PSOL. Em seus pedidos, a ADPF das Favelas guarda semelhança com o que havia sido proposto na ACP da Maré, embora seja mais abrangente e realce a dimensão constitucional do problema. E tem a decisão da CorteIDH no caso Favela Nova Brasília - e a omissão do Estado brasileiro em cumpri-la - como parte de sua fundamentação. Porém, diferentemente do que acontece nessa sentença da CorteIDH, a ADPF aborda diretamente a conexão entre a violência policial e o racismo, na petição inicial e principalmente depois do ingresso dos amici curiae, sendo esse um dos seus elementos centrais na visão dos diferentes atores envolvidos.
Nesse sentido, as entrevistas destacaram que, com a importância que o tema do racismo ganhou na esfera pública no Brasil a partir das lutas do movimento negro, e da produção de conhecimento decorrente do ingresso de pessoas negras nas universidades, hoje é impossível falar de segurança pública sem tratar da questão racial27. Foi apontado que apresentar dados estatísticos de que quem morre são as pessoas negras não é suficiente para enfrentar o racismo estrutural e institucional, criticando-se uma tradição no campo de estudos sobre segurança pública que não enfrentou essa questão com a devida centralidade (Goulart, entrevista 2021)28. Sublinhou-se também que não basta olhar para o racismo nas polícias, é também preciso refletir sobre a forma como ele é perpetuado pelo próprio sistema de justiça29. Tem-se a visão de que o STF deveria analisar as demandas da ação com essa chave e dar respostas que estejam à altura da gravidade da situação (Corbo, entrevista 2021; Dias, entrevista 2021; Fichino, entrevista 2021; Pereira, entrevista 2021; Sampaio, entrevista 2021; Sarmento, entrevista 2021; Silva, entrevista 2021)30, ainda que algumas pessoas entrevistadas tenham apresentado um ceticismo em relação às chances de o STF enfrentar a questão em sua profundidade e produzir uma mudança efetiva capaz de romper com o racismo estrutural no país (Dias, entrevista 2021; Florentino, entrevista 2021; Goulart, entrevista 2021; Medeiros, entrevista 2021).
A posterior entrada na ação das organizações, movimentos e coletivos atuantes no campo, conforme relatado em entrevistas, foi motivada pela confiança nas expertises de Daniel Sarmento e dos defensores públicos em sua leitura sobre os momentos do Judiciário local e do STF frente à urgência da questão, pela importância das questões tratadas na ação (Fichino, entrevista 2021), legitimidade dos interesses que a embasam (Casseres, entrevista 2021), e adequação da abordagem (Gomes, entrevista 2021; Sarmento, entrevista 2021) - ela contempla conteúdos que foram objeto de uma construção de décadas pelos movimentos de favela e organizações de direitos humanos (Goulart, entrevista 2021) -, e pela visão de que, existindo a ação, era preciso que se apropriassem dela, passassem a atuar de forma protagonista (Sampaio, entrevista 2021), e a popularizassem (Rosendo, entrevista 2021).
A decisão de ingresso foi tomada de forma coletiva, em reuniões entre uma multiplicidade de personagens. Criou-se dessa maneira uma grande coalizão de organizações, movimentos e coletivos em torno da ADPF. Em suas reuniões, foi decidido que os diferentes atores não apenas ingressariam no processo, mas também que atuariam de forma coordenada, e que todas as decisões relativas ao processo seriam partilhadas (Fichino, entrevista 2021; Hirata, entrevista 2021; Pereira, entrevista 2021; Sampaio, entrevista 2021; Silva, entrevista 2021). Foram criados espaços de tomada de decisão, entre um grande grupo político, um subgrupo jurídico e outro de mobilização e comunicação (Hirata, entrevista 2021; Neri, entrevista 2021; Rosendo, entrevista 2021; Silva, entrevista 2021). Foi definido ainda que as peças processuais mais importantes seriam construídas em conjunto, teriam os logotipos dos diferentes atores, e seriam assinadas por todos, inclusive pelo autor da ação, o PSB (Corbo, entrevista 2021; Sampaio, entrevista 2021; Sarmento, entrevista 2021; Silva, entrevista 2021). Com o compartilhamento das decisões e peticionamento conjunto, inclusive na apresentação de pedidos e recursos, os amici curiae passam a atuar quase que como co-autores da ação.
Percebeu-se que a pluralidade do grupo enriqueceria e daria força à ação. Na visão de pessoas entrevistadas, a união de sujeitos tão heterogêneos coloca em evidência a necessidade da intervenção do STF como um ponto de convergência entre todas elas31. Além disso, entrevistas destacaram a riqueza de um processo em que cada entidade, movimento e grupo é reconhecido em seus saberes específicos e contribui da maneira que pode e que sua experiência permite32. Assim, há de um lado a expertise jurídica de Daniel Sarmento e da DPE/RJ. Ademais, fazem parte da coalizão as ONGs de direitos humanos Justiça Global, ISER e Conectas Direitos Humanos, com experiência em foros institucionais relevantes nas esferas nacional e internacional, inclusive no tema do enfrentamento à violência institucional. Em um segundo momento, o Cejil também se juntou ao grupo. Mas também há a participação de grupos e organizações que têm se dedicado à produção independente e análise de dados sobre o uso da força pelo estado no RJ, um campo em que as informações oficiais são poucas, subnotificadas e de difícil acesso. A Redes da Maré, pioneira, foi seguida na produção de informações alternativas por outras iniciativas que cresceram nos últimos anos com a proposta de contribuir com o controle social das práticas do Estado.
Na esfera acadêmica, um ator importante entre esses últimos é o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF). Segundo Daniel Hirata (entrevista 2021), o GENI/UFF trabalha em uma base de dados sobre operações policiais na região metropolitana do Rio de Janeiro, e por essa razão, e da parceria com a Redes da Maré em projetos relacionados, foi convidado a integrar a mobilização em torno da ADPF33. A partir do deferimento da tutela incidental, o GENI/UFF produziria relatórios sobre os impactos da tutela, tendo um destes sido feito em parceria com o laboratório de dados Fogo Cruzado34.
A ADPF passou a contar ainda com as informações produzidas pelos grupos que já faziam o monitoramento in loco nos territórios. Além do trabalho da ONG Redes da Maré no Complexo da Maré, a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), criada em 2019, vinha produzindo dados sobre a violência de Estado na Baixada Fluminense. A IDMJR, uma organização social de favela articulada, segundo seus fundadores Fransérgio Goulart e Giselle Florentino (entrevista 2021), depois de um ato de racismo no Fórum da Baixada, tem o objetivo central de debater a segurança pública a partir da centralidade da questão racial, com ações de mobilização e formação, de incidência política, de construção de memória das violações, e com a produção de indicadores (IDMJR, 2020). Acredita na necessidade de mudanças profundas para o enfrentamento do racismo estrutural no Brasil, tendo como pauta atual a defesa da abolição das polícias (Florentino, entrevista 2021; Goulart, entrevista 2021).
Estão ainda presentes organizações tradicionais do combate ao racismo no Brasil, notadamente o Movimento Negro Unificado (MNU), fundado em 1978 a partir de diferentes movimentos preexistentes depois da morte sob tortura pela polícia do jovem negro Robson Silveira da Luz, e que sempre denunciou a violência policial como forma de perseguição política e tentativa de dominação da população negra (Dias, entrevista 2021; FREITAS, 2020). E também a Educafro, ONG que tem como foco a promoção da educação e dos direitos humanos com vistas ao respeito às minorias raciais, com experiência de atuação em espaços institucionais. A presença das organizações do movimento negro, de advogados negros e de pessoas negras dos movimentos de favela foi enfatizada nas entrevistas como fundamental para que a política de segurança pública seja abordada de forma adequada, dando à questão racial a devida centralidade.
Destaca-se também a presença na ADPF de ONGs com experiência em ações nos territórios como a Redes da Maré e o Observatório de Favelas. Mas principalmente, a participação vista como o coração da ADPF é a dos movimentos de mães e familiares de vítimas da violência e a dos coletivos de favela. A Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência (Rede contra a Violência), fundada em 2004, como relatou Patrícia de Oliveira da Silva (entrevista 2021), nasceu da articulação de mães e familiares de vítimas da violência de Estado no RJ, que já tinham uma atuação em busca de respostas, e de apoio e orientação a familiares de novas vítimas, desde as chacinas de Acari, Candelária e Vigário Geral, no início da década de 1990. A Rede foi pioneira nesse tipo de luta, relevante para a constituição de outras organizações de familiares, como o Movimento Mães de Maio, em São Paulo (SILVA; DARA, 2015: 85-86). Para além da presença como apoio e assessoria em casos individuais de execuções e outras violações, a Rede construiu uma atuação de caráter coletivo e incidência política35.
O Movimento Mães de Manguinhos foi formado em 2014 com a atuação organizada de mães de jovens assassinados na favela de Manguinhos, que converteram a sua luta pessoal por respostas em um movimento coletivo para apoio a outras mães, difusão de informações, pressão sobre órgãos públicos, e sobretudo para impedir o assassinato de outros jovens negros da favela, conforme relatado por Ana Paula de Oliveira (entrevista 2021): “Acima de tudo é uma luta pela vida, pela vida dos que ainda estão aqui”. Os movimentos de mães são marcados por mulheres que trazem essa composição entre dor pessoal e ação política, e que, com a singularidade da experiência da tragédia que atravessa suas vidas, e da mudança de percurso dessas para a dedicação à luta coletiva, passam a ser atores fundamentais na discussão do uso da violência pelo Estado na cena pública (v. VIANNA; FARIAS, 2011).
Além dos movimentos de mães, estão presentes coletivos de favela, como o Papo Reto e o Fala Akari. O coletivo Papo Reto é formado por jovens moradores dos Complexos do Alemão e da Penha, que atuam pela proteção da comunidade especialmente por meio de ações de comunicação independente (MNU et. al., 2020). Uma das principais estratégias de atuação desenvolvidas pelo coletivo é o registro dos abusos praticados pela polícia em vídeo, e posterior divulgação pública nas redes ou encaminhamento como provas para procedimentos de investigação (PUFF, 2015). Segundo Thainã de Medeiros (entrevista 2021), o coletivo, que construiu metodologias para filmar a violência policial, parte da percepção de que a visibilidade é uma ferramenta para conquista de outros direitos36. O coletivo Fala Akari, por sua vez, é constituído por militantes da favela de Acari, que usam a comunicação e a cultura como meio de promoção dos direitos humanos (MNU et. al., 2020).
Quando as diferentes organizações, movimentos e coletivos decidiram ingressar na ADPF, construiu-se o entendimento de que aqueles que estão presentes nos territórios e desenvolveram um conhecimento no enfrentamento cotidiano da violência deveriam atuar de forma protagonista, mudando-se o paradigma no qual as demandas que lhes dizem respeito são levadas às cortes por organizações com mais estrutura (Sampaio, entrevista 2021), e em que os movimentos e organizações das periferias são vistos como público alvo (Goulart, entrevista 2021). Ou seja, aqueles que enfrentam constantemente a violência, com seus corpos, se arriscando, sem proteção ou respaldo institucional, e muitas vezes sem recursos materiais, deveriam ter participação efetiva nas deliberações da coalizão, na elaboração das peças processuais e em sustentações perante o STF, em um lugar de centralidade, inclusive por meio de advogados das favelas.
Isso deveria acontecer, em primeiro lugar, por uma questão de legitimidade, como apontou Djefferson Amadeus (entrevista 2021), advogado do MNU e coordenador do Instituto de Defesa da População Negra, pois quem fala diretamente é quem vive a situação e que, portanto, têm maior compreensão dos fatos. No mesmo sentido, outras entrevistas destacaram que a melhor forma de entender o que as comunidades passam nas operações policiais no RJ - a brutalidade dessas, com armamento de guerra, e seu caráter rotineiro - é ouvir as pessoas atingidas pela violência. Nas palavras de Ana Paula Oliveira, do Movimento Mães de Manguinhos, “Ninguém vai falar como uma mãe que teve o seu filho assassinado” (Oliveira, entrevista 2021). Há aqui uma dimensão de humanização das histórias, da qual a apresentação de dados duros não dá conta, e também a dimensão de um saber desenvolvido com a experiência no enfrentamento cotidiano da violência, fundamental para um debate sobre políticas públicas no campo da segurança pública que respeitem o direito à vida. Foi destacado ainda que, com os movimentos de favela na coalizão, se passou a ter conhecimento e registro do que estava acontecendo em tempo real, e se conseguiu contato direto com as pessoas atingidas, possibilitando que se levasse constantemente documentação sobre a violência ao STF.
A apropriação da ação pelos movimentos de favela justificou a criação do nome, para fazer referência a ela, de “ADPF das Favelas”. Apesar de muitas experiências prévias negativas com o Judiciário, e de um ceticismo em relação a ser essa a via para uma mudança efetiva, representantes desses grupos disseram em entrevista ter visto na ADPF uma oportunidade importante. Se trataria da abertura de um novo espaço para as pessoas que já estão na linha de frente o tempo todo travarem suas lutas, e um espaço de grande relevância política. Mesmo grupos que têm como propósito central de suas ações o alcance de mudanças mais profundas e estruturais, como a IDMRJ, embarcam ativamente na construção da ADPF, por vê-la, segundo Fransérgio Goulart (entrevista 2021), como parte de um projeto político maior: “[...] a gente se tornou, eu digo isso, um fórum de segurança pública, um fórum de movimentos, universidades, sobre segurança pública”. De forma semelhante, Marcelo Dias, do MNU (entrevista 2021), afirmou que a ADPF contribuiu para um movimento de articulação das resistências nas favelas que une militantes dos diferentes territórios, e, se inicialmente essa união acontece de forma virtual em razão da pandemia, quando possível esses militantes seguirão debatendo em seminários e se reunirão em manifestações. Para além da possibilidade de reverterem suas demandas em decisões judiciais, foram desenvolvidas em torno da ADPF estratégias de comunicação, com foco na sensibilização do tribunal37, em pautar a imprensa, lançar e difundir vídeos nas redes sociais, e em informar e mobilizar os moradores das favelas (Neri, entrevista 2021).
A construção de uma atuação direta no Judiciário, sem intermediários, dos grupos diretamente atingidos pela violência - que há décadas lutam pelo direito à vida com ferramentas diversas - foi apontada por algumas das pessoas entrevistadas como o mais importante do processo, e como um passo importante na democratização do acesso à justiça. A maior parte desses grupos nunca tinha acessado diretamente o STF, alguns representantes deles disseram em entrevista que nem cogitavam essa possibilidade, e que passaram a entender que existe esse caminho. Simultaneamente, como observou Thainã de Medeiros (entrevista 2021), veem que a presença dos movimentos de favela como postulantes no STF passa uma mensagem de que estão organizados para fazerem avançar as suas demandas. As organizações mais estruturadas, como Conectas e Justiça Global, com experiência nesses espaços, se viram no papel de colaborar com essa mudança, apoiando as organizações de base e seus advogados na apropriação das ferramentas para postulação no STF.
Nesse sentido, foi uma conquista importante o fato de os movimentos de base terem sido aceitos formalmente como amici curiae no processo, apesar de não serem organizações com personalidade jurídica. Em um primeiro momento, o Min. Fachin não admitiu os coletivos sem institucionalidade por falta de regularidade da representação processual (BRASIL, 2020a). As entidades insistiram em um pedido de reconsideração, e o Ministro reviu a sua posição38.
No momento em que a pandemia de covid-19 chegou ao Brasil, em março de 2020, a ADPF tramitava há quatro meses e as organizações, movimentos e coletivos debatiam sobre como construir o ingresso no processo. O movimento de entrada da maior parte deles se deu em abril, antes de começar o julgamento virtual pelo plenário do tribunal das medidas cautelares requeridas na petição inicial, entre 17 e 24/4/2020. Nessa ocasião, o Min. Edson Fachin proferiu voto pelo deferimento parcial das medidas cautelares, e o julgamento foi suspenso em razão de pedido de vista do Min. Alexandre de Moraes.
O PSB, autor da ação, e depois também os amici curiae, logo começaram a chamar a atenção para o fato de que o advento da pandemia de covid-19 agravava a urgência na concessão das medidas cautelares, tendo em vista a sua tendência de “[...] atingir de modo especialmente grave as camadas mais pobres e vulneráveis da sociedade - exatamente aquelas que, no Estado do Rio de Janeiro, são mais expostas às violações a direitos fundamentais nas políticas de segurança pública” (PSB, 2020: 22). Foi em um contexto de piora nesse cenário que a coalizão da ADPF decidiu apresentar, em maio de 2020, conjuntamente, um pedido de tutela provisória incidental mais ousado - ainda que menos estrutural (Fichino, entrevista 2021) - do que os pedidos de medida cautelar inicialmente formulados, de que se determinasse a suspensão das operações policiais no RJ durante a pandemia, a não ser em situações absolutamente excepcionais (PSB et. al., 2020a), que foi deferido em 5/6/2020 monocraticamente pelo Min. Fachin (BRASIL, 2020b), com posterior referendo pelo plenário do tribunal (BRASIL, 2020d).
Alguns fatores foram destacados nas entrevistas como determinantes para que o pedido e o seu deferimento se tornassem possíveis. Em primeiro lugar, o fato de que, em um contexto de pandemia e isolamento social, quando indicadores criminais caíram39, não houve redução no número de operações ou em sua letalidade. Ao contrário, relatório produzido pela Rede Observatórios de Segurança RJ (2020) indicou que no mês de abril de 2020 o número de operações policiais superou o do mesmo período em 2019, e a quantidade de mortes decorrentes de intervenção policial foi 57,9% maior. Em 15 de maio, uma operação voltada a prender um traficante matou 13 pessoas no Complexo do Alemão (PSB et. al, 2020a), o que foi repudiado pela CIDH via twitter poucos dias depois (OEA, 2020). Em meio à pandemia, os moradores tiveram que recolher parte dos corpos (RAMOS et. al., 2020: 26).
Outro ponto destacado foi o fato de que os territórios onde ocorrem as operações, já vulneráveis, sofriam especialmente durante a emergência sanitária com a dificuldade de acesso a meios de prevenção e mesmo de subsistência, e que na ausência de amparo pelo Estado, os movimentos sociais atuantes nos territórios coletaram doações e se organizaram para entregar produtos de higiene e limpeza, e alimentos. Episódios de operações policiais interrompiam as ações humanitárias, que ficavam paralisadas em meio a tiroteios, e levavam ao fechamento de unidades de saúde (PSB et. al, 2020a). Houve casos de mortes em meio à distribuição de cestas básicas (ALMEIDA, 2020; REGUEIRA, 2020), e situação em que um tiroteio se iniciou em torno de um caminhão com doações, que foi parado pela polícia como potencial transporte de carga roubada (Medeiros, entrevista 2021).
Mas o estopim, segundo diversas das pessoas entrevistadas, foi o assassinato em 18 de maio do adolescente João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, na cidade de São Gonçalo, em operação da Polícia Civil. João Pedro estava na casa da sua tia com outros adolescentes, quando esta foi invadida por policiais que o atingiram com um tiro de fuzil. O menino foi levado por um helicóptero policial, e a família, impedida de acompanhá-lo, permaneceu muitas horas sem informações sobre o seu paradeiro (PSB et. al, 2020a). O evento repercutiu na imprensa. Para além da brutalidade da violência - que é recorrente no RJ, mesmo contra crianças e adolescentes -, ele sensibilizou especialmente porque João Pedro estava brincando dentro de casa, em atenção às orientações do Estado durante a pandemia (Silva, entrevista 2021; Hirata, entrevista 2021; Oliveira, entrevista 2021; Corbo, entrevista 2021).
Por fim, é considerado importante que esses eventos dramáticos no RJ tenham ocorrido no mesmo momento em que se davam os protestos de movimentos negros nos Estados Unidos em torno do assassinato de George Floyd, homem negro que morreu após policial permanecer ajoelhado sobre seu pescoço, e suas repercussões no Brasil, como em outros países, inclusive com atos de rua, contra a violência policial e o racismo. As mobilizações antirracistas e, de forma mais ampla, o tema do racismo, conquistaram um espaço na grande mídia brasileira, o que não acontecia antes, e em um momento em que as pessoas estavam em casa assistindo telejornais, em razão da pandemia (Corbo, entrevista 2021). Nesse sentido, para além dos acontecimentos trágicos em meio à pandemia e por ensejo desses, a luta histórica dos movimentos negros em âmbito global permitiu a criação de uma ocasião favorável para que um problema grave de décadas se tornasse pauta no STF, inclusive em diálogo com o movimento negro (Florentino e Goulart, entrevista 2021). No RJ naquele momento, observou Daniela Fichino (entrevista 2021), a palavra de ordem dos movimentos de favela era “Nem de tiro, nem de covid, nem de fome: o povo negro quer viver”, o que sintetizava bem o significado do pedido de tutela incidental. Nas palavras de Wallace Corbo (entrevista 2021), “O debate encontrou um espaço mais frutífero a partir da tragédia”.
A concessão da tutela, com a determinação de que as operações deveriam se restringir a situações absolutamente excepcionais, produziu uma redução substancial nos números de operações policiais e de mortes provocadas pela polícia nos meses subsequentes, com centenas de vidas poupadas40. Para além disso, abriu espaço para que se levasse ao processo um debate de fundo sobre o modelo de segurança pública adotado no RJ. Manifestações do governo do RJ no processo argumentaram que as operações seriam relevantes para a garantia da segurança pública e que, ao impedir a atuação das polícias militar e civil, a tutela concedida pelo STF geraria riscos às comunidades (RJ, 2020b), de forma convergente com o discurso público do mesmo governo, que associa as mortes praticadas pela polícia a uma redução nos índices de criminalidade (cf. DPE/RJ et. al., 2020: 28-29).
Em contraposição, os amici curiae levaram aos autos estudos produzidos por grupos acadêmicos e organizações da sociedade civil, demonstrando com base em dados que as operações policiais não são eficazes para reduzir a prática de crimes41. Estudiosos do campo da segurança pública, como Luiz Eduardo Soares, Jacqueline Muniz, Michel Misse e Silvia Ramos, se manifestaram no processo em favor da ADPF, por meio de documentos juntados aos autos (SOARES, 2020; LEMGRUBER et. al, 2020) e na audiência pública que seria promovida pelo STF no âmbito da ADPF42, e via nota da Rede Fluminense de Pesquisadores sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos (2020). Os pesquisadores chamam a atenção para o fato de que a escolha por operações policiais como política de segurança pública não está baseada em evidências (HIRATA, 2021).
O período de vigência da tutela incidental permitiu que se demonstrasse, como apontou Daniel Hirata (entrevista 2021), que a visão de que a violência policial seria um mal necessário para a manutenção da ordem não se sustenta, pois junto com a restrição das operações policiais a situações excepcionais se observou uma redução na prática de crimes contra a vida e contra o patrimônio, bem como nos tiroteios. Foram produzidas evidências de que as operações não favorecem a redução dos crimes, ao contrário, parecem contribuir para o seu incremento (Hirata, entrevista 2021; GENI/UFF; FOGO CRUZADO, 2020). Na audiência pública promovida na ação, pesquisadores do campo apresentaram a hipótese de que, em lugar de atentar aos direitos fundamentais e aos princípios do serviço público, a realização das operações policiais está associada a interesses privados e à expansão das milícias (v. HIRATA, 2021; NUNES, 2021; MISSE, 2021). Sublinharam que não se pode justificar as mortes provocadas pela polícia com o objetivo de combater o crime, não só porque a vida não seria sacrificável em favor do controle da criminalidade, mas também porque a letalidade policial não produz esse efeito. Defenderam, por fim, que é possível uma política de segurança pública que resguarde os direitos humanos.
O plenário do STF, além de referendar a tutela incidental de suspensão das operações policiais, acompanhou o Min. Edson Fachin no deferimento de parte dos pedidos de medida cautelar formulados na petição inicial da ADPF, em sessão virtual realizada entre 7 e 17/8/2020 (BRASIL, 2020e). Com uma fundamentação, no voto condutor do Min. Fachin, fortemente lastreada no direito internacional dos direitos humanos (DIDH) - o que permite identificar um avanço do tribunal na atenção ao DIDH, por exemplo, em relação à decisão do STF em 2010 na ADPF 153, referente à Lei de Anistia (v. VENTURA, 2010) - foram acatados pedidos como o de observância de diretrizes na realização de operações em perímetros nos quais estejam localizados escolas, creches, hospitais ou postos de saúde, de que sejam preservados os vestígios dos crimes e os órgãos de perícia documentem por meio de fotografias as provas periciais produzidas para garantia de sua auditabilidade, e de que o MP/RJ instaure procedimentos investigatórios autônomos. Foi também estabelecida a restrição do uso de helicópteros a casos de estrita necessidade.
Porém, em relação ao pedido de que se determinasse ao governo do RJ a elaboração de um plano de redução da letalidade policial e controle das violações, o Min. Fachin decidiu que não poderia ser objeto de concessão em sede de cautelar, e afirmou ter dúvidas sobre a utilidade do provimento, porque o mesmo foi já foi determinado pela CorteIDH no caso Favela Nova Brasília. Neste último ponto, que foi objeto de embargos de declaração do autor da ação e amici curiae (PSB et. al., 2020c), ficaram vencidos os Ministros Lewandowski, Gilmar Mendes e Dias Toffoli, que entenderam que o fato de haver decisão da CorteIDH não torna a medida desnecessária, ao contrário, nos termos do voto do Min. Gilmar Mendes, o descumprimento da decisão da CorteIDH pelo estado do RJ ressalta a necessidade de sua adoção43.
O acórdão, de qualquer maneira, no voto condutor do Min. Fachin, já reconhece que há “violação generalizada de direitos humanos”, a qual é “consequência da omissão estrutural do cumprimento de deveres constitucionais por parte de todos os poderes” (BRASIL, 2020e: 19)44. Em despacho posterior, o Min. Fachin acrescentaria que “as ponderações trazidas pelo e. Min. Gilmar Mendes orientam a compreensão que se afigura majoritária no Tribunal: o atual número de casos de episódios letais configura gravíssima violação de direitos, um estado de coisas que não é compatível com a Constituição” (BRASIL, 2020f: 19). E sinalizou para a possibilidade de uma atuação futura do STF voltada a contribuir para a efetividade da determinação da CorteIDH de elaboração de um plano de redução de letalidade, ao promover audiência pública sobre o tema, nos dias 16 e 19/4/2021. A audiência pública, que de forma inédita levou a um diálogo com o tribunal diferentes familiares de vítimas e movimentos de favela - para além dos que já atuam como amici curiae no processo -, e contou com a participação de organizações de direitos humanos, representantes de entidades públicas e especialistas na área da segurança pública, foi encerrada com uma fala do Min. Fachin no sentido de que a atuação do STF deve estar à altura da coragem de mães e familiares em compartilhar a sua dor na audiência.
Uma das questões levadas à audiência pública foi a de um aumento significativo no número de operações e letalidade policial mesmo com a vigência da tutela incidental, a partir de outubro de 2020 e especialmente em janeiro e fevereiro de 2021, quando também se via um agravamento dos efeitos da pandemia no Brasil. O autor e os amici curiae já vinham apresentando nos autos denúncias de descumprimento da decisão do STF pelas instituições policiais do RJ (PSB et. al. 2020d; 2020e; 2020f; 2021; HIRATA, 2021). A ausência de representantes do governo do RJ na audiência pública foi apontada por algumas das pessoas entrevistadas como um aparente boicote ao processo. As entrevistas também destacaram o risco de, o STF não reagindo ao descumprimento de sua decisão, a ação ser desidratada e, ao final, se tornar ineficaz (Hirata, entrevista 2021; Fichino, entrevista 2021)45.
Esse artigo buscou investigar o processo político e jurídico de construção da ADPF das Favelas e seus primeiros desdobramentos. A pesquisa revelou o envolvimento de uma pluralidade de atores sociais bastante heterogêneos que formaram uma coalizão para questionar no STF a política de segurança pública do RJ. O aumento progressivo da violência e da letalidade policial em territórios já fragilizados por questões sociais, somado à alteração no cenário político nas esferas federal e estadual e ao fechamento de outros espaços institucionais, fez com que a situação se tornasse insustentável. O quadro se agravou com o início da pandemia de covid-19. Diferentes entrevistas apresentaram a percepção de que o STF era, nesse contexto, a última alternativa à sociedade civil do RJ. A pandemia foi referida nas entrevistas como um agravante, porque a letalidade policial seguiu aumentando, ao mesmo tempo em que os moradores das favelas, especialmente atingidos pela crise sanitária, organizavam redes de apoio sem suporte do Estado. Essa conjuntura - ponto extremo da barbárie, que não deixa alternativa senão um “grito de socorro ao judiciário” (Dias, entrevista 2021) - foi ao mesmo tempo vista como a situação que finalmente seria capaz de sensibilizar, permitindo que a coalizão apresentasse o pedido de restrição das operações policiais a situações absolutamente excepcionais durante a pandemia. Nesse sentido, a conjuntura trazida pela pandemia teria gerado uma oportunidade jurídica para a formulação de um pedido de intervenção judicial diante de uma situação que já era inaceitável antes da crise sanitária.
Ao mesmo tempo, as entrevistas destacaram o fato de que a luta dos movimentos sociais do RJ contra a violência policial nas favelas, somada ao combate ao racismo, é um acúmulo de décadas, e que a ADPF apenas se tornou possível em razão dessa construção histórica. Chamaram atenção, também, para a relevância das mobilizações antirracistas no plano global, e das disputas que passaram a acontecer no Brasil nos planos acadêmico, político e cultural com o ingresso de pessoas negras nas universidades, a partir das políticas de ação afirmativa. Contudo, as entrevistas apontaram que para os movimentos de favela a utilização do STF como arena de debate político é algo novo. Apesar da desconfiança em relação ao Poder Judiciário, parte dos entrevistados afirmou considerar o STF como arena político-institucional relevante de ser ocupada, e até mesmo a única em que esse debate pode ser feito no atual contexto. Destacou ainda a importância de esses movimentos pela primeira vez estarem presentes no STF participando ativamente em um processo e serem ouvidos sem intermediários.
Ao longo da análise desenvolvida pôde-se identificar alguns momentos em que oportunidades jurídicas foram percebidas pelos atores envolvidos na ADPF e que favoreceram a mobilização do direito por parte desses grupos. No que diz respeito à acessibilidade às cortes, a falta de legitimidade processual para propor ação foi superada, por um lado pela articulação feita com o PSB, e por outro pela participação da coalizão como amici curiae na ação, na medida em que esses grupos compartilham a tomada das decisões em relação ao processo e peticionam conjuntamente com o autor da ação. Já no que tange aos custos do processo e à expertise jurídica para executar uma ação como a ADPF, esse obstáculo foi superado pela articulação, no interior da coalizão, de grupos com diferentes experiências, alguns com prática na seara judicial constitucional. Em relação à questão da necessidade da existência de direitos “judicializáveis”, a decisão da CorteIDH no Caso Favela Nova Brasília contribui para a oportunidade jurídica na medida em que já traz uma condenação da política de segurança pública do RJ à luz do DIDH, e estabelece medidas de reparação obrigatórias. Por fim, no que diz respeito à receptividade do Poder Judiciário às demandas apresentadas na ADPF das Favelas, vale ressaltar a percepção de que aquele era um momento propício para propor a ação no STF, não só pelo contexto do agravamento da situação da segurança pública no RJ e esgotamento das instâncias locais, mas também por haver fundamentação jurídica para a distribuição ao Min. Edson Fachin, que tem afinidade com a temática dos direitos humanos e portanto poderia estar propenso a interpretar as demandas apresentadas a partir desse olhar.
Independentemente do resultado final da ADPF das Favelas, alguns ganhos já podem ser observados. A tutela incidental salvou quase 300 vidas, segundo estimativa do GENI/UFF (HIRATA, 2021). Isso por si só já valeria todo o esforço de mobilização em torno da ADPF das Favelas. Para além disso, pesquisadores do campo da segurança pública puderam comprovar na prática que uma redução substancial no número de operações policiais não leva ao aumento da prática de crimes. Outro ponto destacado nas entrevistas como uma conquista importante da ação foi o acesso direto ao STF de movimentos de base, coletivos sem institucionalidade e pessoas atingidas por violações de direitos humanos. Finalmente, a coalizão de organizações, grupos e movimentos sociais formada no processo de construção da ADPF das Favelas é um dos mais relevantes legados da ação. A associação entre grupos tão diferentes entre si (ainda que não sem conflitos), tanto como fórum para diálogo horizontal quanto para a construção de ações conjuntas, tem o potencial de se manter no tempo para além dos resultados da ação, fortalecendo a luta desses grupos por direitos humanos, contra o racismo e a violência policial.