Resumo: O objetivo deste ensaio é analisar criticamente a política do tempo construída no campo da justiça de transição e reproduzida no âmbito das comissões da verdade. Trata-se de investigar a relação entre os discursos histórico e jurídico e seus efeitos na delimitação simbólica do passado violento e do presente democrático. A experiência da Comissão Nacional da Verdade atravessa o presente ensaio enquanto importante referência para o estudo crítico das comissões da verdade, evidenciando os limites e as potencialidades desse mecanismo de justiça.
Palavras-chave: Política do tempo, Comissão da verdade, Justiça de Transição.
Abstract: This study aims to investigate the politics of time constructed by the transitional justice field and reproduced by truth commissions. It seeks to analyze the relationship between historical and legal discourses and their effects on the delimitation of what should be considered the past and the present. The experience of the Brazilian National Truth Commission is addressed as a reference for the study of truth commissions, capable of bringing relevant contributions to the analysis of these mechanisms of justice.
Keywords: Politics of time, Truth Commissions, Transitional Justice.
Artigo
O que resta da Comissão Nacional da Verdade?: A política do tempo nas comissões da verdade
What is left of the Brazilian National Truth Commission?: The politics of time in truth commissions
Recepção: 02 Fevereiro 2021
Aprovação: 19 Julho 2021
Inseridas no âmbito da justiça de transição — campo teórico e prático destinado a investigar como as sociedades têm dado conta dos legados de graves violações de direitos humanos —, as comissões da verdade contabilizam hoje em torno de 35 experiências1, implementadas em diferentes países ao redor do mundo. Associados à ideia de realização de uma justiça histórica, de implementação de políticas de reparação e de memória e de execução de “políticas retrospectivas”2, estes novos modelos institucionais foram criados, na década de 1980, no contexto das transições democráticas no Cone Sul Americano. E, posteriormente, a partir dos anos 1990, consolidaram-se como um dos principais mecanismos de “acerto de contas” com o passado violento, implementados em contextos posteriores a guerras, conflitos internos, massacres, genocídios e ditaduras.
Órgãos oficiais, temporários, autônomos, investigativos, centrados nas vítimas e com atribuições jurídico-políticas, comissões têm por função elucidar a verdade sobre as violências pretéritas, concluindo seus trabalhos com a publicação de um relatório final. Diferenciam-se de tribunais penais principalmente em razão do modo como constroem a verdade, tida geralmente por mais flexível e mais aberta à participação das vítimas e da sociedade. Comumente associadas à fundação de uma nova ordem política, à reconciliação social, ao reconhecimento e reparação das vítimas e à contribuição para o “nunca mais”, as comissões da verdade revelaram-se um potente espaço de encontro entre o direito, a memória e a história em contextos de violência política3.
Na prática, a grande maioria das comissões da verdade combinou investigações sobre violações de direitos humanos com a construção de narrativas históricas sobre o passado violento e a coleta das memórias das vítimas, em um complexo processo de produção de verdades. No interior destes mecanismos da justiça de transição, o discurso jurídico se une ao discurso histórico na construção e regulação das categorias do passado, presente e futuro, de modo que os limites entre o direito e a história tornam-se cada vez mais permeáveis. O objetivo mais amplo deste ensaio é, portanto, investigar algumas das promessas, potencialidades e limites das comissões da verdade, refletindo criticamente sobre a política do tempo, forjada no interior do campo da justiça de transição e reproduzida por tais mecanismos de justiça. Em diálogo com a tese desenvolvida por Berber Bevernage, a crítica volta-se para a compreensão dos usos e abusos do discurso histórico em sua relação com o direito e seus efeitos na delimitação simbólica do passado violento e do presente democrático. Em outras palavras, trata-se de investigar os usos performativos dos discursos histórico e jurídico, responsáveis tanto pela delimitação do conceito de violência (seus contornos, lacunas e silêncios) quanto pela demarcação da distância entre o passado de atrocidades e o presente dito “democrático e pacificado” de uma determinada sociedade4.
A experiência da Comissão Nacional da Verdade brasileira (CNV) atravessa o presente ensaio enquanto importante referência para o estudo crítico das comissões da verdade e, mais amplamente, do campo da justiça de transição. Instituída por lei (lei 12.528) em 18 de novembro de 2011, a CNV teve por objetivo examinar e esclarecer o quadro de graves violações de direitos humanos praticadas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, buscando consolidar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional. Iniciou seus trabalhos em 16 de maio de 2012, tendo concluído os mesmos em 10 de dezembro de 2014, data da publicação de seu relatório final e ano do cinquentenário do golpe militar (1 de abril de 1964) que levou o Brasil a vivenciar por mais de vinte anos um regime ditatorial.
Por estudo crítico, é preciso desde já esclarecer, entende-se não a adoção de um posicionamento de rejeição ou descrédito em relação ao campo da justiça de transição e a suas instituições, mas sim a produção de um pensamento complexo, capaz de relacionar teoria e prática, apontando potencialidades, limites, avanços e lacunas no âmbito de atuação de tais mecanismos transicionais. Por isso, não se trata de abandonar esse campo de estudo e suas ferramentas conceituais, mas sim de tensionar seus limites e fronteiras a partir da prática. O objetivo não é tampouco negar ou colocar em questão processos históricos, memorialísticos e jurídicos, mas complexificar suas análises, inserindo as comissões da verdade em um espaço de conflito e disputa pelos sentidos do passado violento e do presente democrático. A crítica aqui desenvolvida aos trabalhos da CNV não tem, portanto, qualquer conivência com posturas negacionistas sobre a ditadura militar brasileira.
Feito esse esclarecimento, o presente ensaio sustenta que a política do tempo, construída pela CNV, acabou por influenciar profundamente o alcance de seus trabalhos no âmbito das disputas pelas memórias da ditadura militar brasileira, limitando significativamente a sua capacidade de contribuir para as lutas democráticas no presente. Este ensaio divide-se, assim, em três partes: a primeira traça alguns dos principais contornos histórico-conceituais das comissões da verdade; a segunda analisa teórica e criticamente a política do tempo construída no interior do campo da justiça de transição e reproduzida no âmbito das comissões; e a terceira aborda a experiência da CNV, analisando como sua política do tempo foi construída no texto de seu relatório final e quais suas contribuições para se pensar a violência de Estado no tempo presente.
Poucas ideias ganharam tamanha atenção internacional em tão pouco tempo quanto as comissões da verdade, criadas a partir da década de 1980 para investigar legados de violações de direitos humanos, no curso de transições democráticas5. Apesar da sua recente disseminação em uma diversidade enorme de contextos6, seria um erro examinar as comissões da verdade de modo isolado do campo mais amplo da justiça de transição, destinado a investigar como as sociedades têm dado conta dos legados de violações de direitos humanos, de atrocidades em massa e de outros tipos de traumas sociais (incluindo o genocídio e a guerra civil), bem como a delinear as possíveis respostas às demandas por justiça que surgem em períodos de transição política e de reconstrução democrática7. Ao lado de tribunais, comissões constituem, hoje, os principais mecanismos da justiça transicional, responsáveis por garantir o direito à verdade das vítimas, de seus familiares e das sociedades que vivenciaram períodos de violência.
É certo que as demandas por justiça dos crimes do passado são mais comumente associadas à atuação de tribunais penais (nacionais, internacionais ou mistos), protagonistas em matéria de julgamento e de imputação de responsabilidade criminal. Mas vale dizer que se as primeiras comissões da verdade surgiram na década de 1980 como uma espécie de segunda opção ou de alternativa à justiça penal8, inviabilizada em determinados contextos de transição (seja em razão de leis de anistia ou de políticas oficiais de esquecimento e perdão), hoje elas são consideradas instituições determinantes para a consolidação da ordem democrática em contextos pós-conflito ou pós-governos autoritários9. Como bem aponta Freeman, se a justiça penal fosse suficiente para lidar sozinha com legados de graves violações de direitos humanos, o campo da justiça de transição provavelmente não teria sequer razão de existir10, sendo possível atribuir à invenção das comissões da verdade um capítulo central deste novo paradigma de justiça.
Formulado a partir da década de 1990, no seio de organizações internacionais, nos debate acadêmicos do direito e da ciência política, bem como na política externa dos países centrais, a justiça de transição indica, ao mesmo tempo, um fenômeno a ser estudado e uma forma hegemônica de teorização sobre as transições políticas11. O que distingue, inicialmente, esse campo de outros esforços por justiça é tanto a escala das violações quanto a fragilidade dos contextos, marcados por instituições fracas, pela pouca legitimidade do Poder Judiciário, pela alta instabilidade política e por recursos financeiros limitados12. Alguns de seus principais dilemas giram em torno das questões: O que fazer com os crimes do passado? Como reparar as vítimas? Quem deve ser punido e como punir? Como garantir a pacificação e reconciliação da sociedade após contextos de violência?
A ideia de uma justiça de transição encontra-se historicamente associada a uma série de ferramentas e práticas heterogêneas, adotadas em nível local, nacional e internacional, que perseguem uma pluralidade de propósitos, por vezes até mesmo contraditórios entre si, sobre como fazer justiça às vítimas, alcançar a pacificação e reconciliação da sociedade ou ainda evitar novas catástrofes sociais (como genocídios, guerras, ditaduras e massacres)13. Esse termo acaba por agrupar desde procedimentos criminais e comissões da verdade até as reformas institucionais do Estado e as políticas de memória e de reparação das vítimas. Trata-se menos de um conceito acabado do que de um processo de racionalização de um modelo de justiça a ser aplicado a situações ditas de transição política ou pós-conflito, voltado para a garantia da pacificação social ou da consolidação da democracia14.
A constatação de que não existe um modelo puro ou uma fórmula universal de justiça de transição, contudo, não implica ignorar a influência crescente dos discursos, dispositivos e das normas internacionais15, formuladas sobretudo no âmbito da ONU e no campo formado pelos “profissionais especialistas” da justiça de transição, com destaque para a ONG International Center for Transitional Justice (ICTJ). Em 2004, o tema da justiça de transição se consolidou na agenda da ONU, com a edição do relatório “O estado de direito e a justiça de transição em sociedades em conflito e pós-conflito”, que define a justiça de transição como:
A noção de Justiça de Transição, discutida no presente relatório, compreende a gama de processos e mecanismos associados às tentativas de uma sociedade de superar um legado de abusos em massa no passado, a fim de garantir responsabilidade (accountability), oferecer justiça e alcançar a reconciliação. Tais mecanismos podem incluir mecanismos judiciais e não judiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum) e processos individuais, reparações, busca de verdade, reforma institucional, investigações e demissão, ou uma combinação destes16.
A partir de então, foram estabelecidos quatro eixos considerados espécies de “boas práticas” a serem adotadas em contextos de reestabelecimento da paz, da democracia ou da estabilidade política: a busca pela verdade, através sobretudo da criação de comissões da verdade; a realização da justiça (a “accountability”), com a investigação e punição dos responsáveis por crimes pretéritos; a reparação das vítimas; e a realização de reformas institucionais (”rule of law”).
Foi apenas em 2005 que a ONU reconheceu expressamente a crescente importância das comissões da verdade e conferiu maior precisão terminológica a esse novo modelo institucional. Em 2006, o Alto Comissariado para os Direitos Humanos aprovou ferramenta específica sobre a temática17. O documento define as comissões da verdade como órgãos oficiais, temporários, investigativos e não judiciais, que buscam investigar padrões de violações de direitos humanos, suas causas e consequências. Estabelece, também, que ainda que as comissões da verdade não sejam substitutos para a realização de julgamentos, elas constituem um importante meio de acerto de contas com o passado, sendo particularmente importantes em contextos nos quais o julgamento de crimes em massa são impossíveis ou não desejáveis.
Apesar de não serem órgãos jurisdicionais, revelando-se incapazes de julgar e punir os responsáveis por condutas criminosas, as comissões da verdade incorporaram fortemente a retórica dos direitos humanos e o discurso da memória. Buscavam revelar a verdade (jurídica e histórica) sobre as violações perpetradas no passado, escutar e reparar as vítimas e garantir a reconciliação de sociedades divididas por conflitos políticos ou étnicos. As comissões da verdade, explica Garapon, contentam-se, em regra, em estabelecer os fatos e as circunstâncias das violações, definir o número de vítimas e indicar responsáveis por violações pretéritas. E, apesar da pluralidade de mandatos e de competências estabelecidas nas diferentes experiências, todas elas tiveram a preocupação comum de ir além da lógica estritamente judicial, superando o modelo do processo e da pena18.
De modo geral, o que podemos observar é que as experiências de comissões da verdade precederam a sua própria definição. Foi somente após a instauração das primeiras comissões19 em contextos de transição política ou pós-conflitos armados, que pesquisadores e organizações internacionais (como a ONU e o ICTJ) dedicaram-se ao estudo e à posterior normatização deste novo mecanismo de justiça. Com efeito, por ser um modelo institucional recente, com experiências muito diversificadas, a própria definição do que é uma comissão da verdade permanece em construção e deve-se evitar tomá-la normativamente.
A definição mais amplamente utilizada foi formulada por Priscilla Hayner, autora de um dos principais livros sobre a temática, Unspeakable Truths. Na segunda edição do livro (2010), Hayner aprimorou a definição cunhada na edição anterior (2001), afirmando que comissões da verdade são órgãos: (1) focados no passado e não em eventos que ocorrem no presente; (2) que investigam um padrão de eventos que ocorreu durante um certo período de tempo; (3) que se relacionam direta e amplamente com a população afetada, recolhendo informações de suas experiências; (4) temporários, com o objetivo de elaborarem um relatório final; (5) oficialmente autorizados ou apoiados pelo Estado. Segundo a autora, um dos elementos centrais das comissões da verdade é a sua intenção de afetar o conhecimento e a aceitação social sobre o passado de determinado país e não apenas resolver certos eventos mal esclarecidos20 .
Por sua vez, Mark Freeman, outro reconhecido estudioso do tema, define comissão da verdade como um órgão ad hoc, autônomo, centrado na vítima, estabelecido e autorizado por um Estado com os objetivos primários de: (1) investigar e reportar as principais causas e consequências de padrões, amplos e relativamente recentes, de violência ou repressão severas que tenham ocorrido no Estados durante um determinado regime autoritário ou período de conflito; e (2) fazer recomendações para a reparação e futura prevenção de tais violações21. Seguindo a mesma linha, o ICTJ define tais instituições como “investigações oficiais temporárias, estabelecidas para determinar fatos, causas e consequências de violações de direitos humanos ocorridas no passado”22.
De modo geral, pode-se sustentar que o que distingue centralmente comissões da verdade de outras instituições de justiça é a superação de um modelo de justiça criminal, tradicionalmente voltado para a punição de condutas individuais, bem como o compromisso assumido com a elucidação da verdade, construída sobretudo a partir das memórias das vítimas e de seus testemunhos. No lugar de uma sentença, comissões da verdade têm por objetivo a publicação de um relatório final, no qual elucidam os padrões das graves violações de direitos humanos e de direito humanitário cometidas em determinado período, identificam as vítimas e, por vezes, os agentes responsáveis por crimes pretéritos. Ao invés de impor uma sanção jurídica, comissões indicam recomendações a serem implementadas pelos Estados, em matéria, por exemplo, de reformas legislativas e institucionais, modos de reparação das vítimas e implementação de políticas de memória.
No âmbito da justiça de transição, comissões da verdade empreendem, portanto, a busca pela verdade dos fatos (truth finding), por meio da investigação das causas e circunstâncias das violências perpetradas no passado, e a construção de uma narrativa oficial da verdade (truth telling), através da coleta de testemunhos das vítimas, de depoimentos de pessoas implicadas nos fatos e da utilização de outros tipos de registros históricos. Longe de serem uma solução neutra ou acabada para os problemas decorrentes de conflitos armados, guerras, massacres, ditaduras ou outras formas de autoritarismo, estes mecanismos são, acima de tudo, espaços de luta política, de conflito entre diferentes memórias e de disputa pelos sentidos do passado violento.
Através da construção de uma “ampla imagem da verdade”23, comissões da verdade buscam publicizar e reconhecer fatos passados que já não podem mais ser negados: a prática sistemática de tortura ou de desaparecimento forçado por governos autoritários, as graves violações perpetradas durante o Apartheid, ou o genocídio de uma determinada população ou grupo minoritário, por exemplo. É o que se poderia chamar de “macro-verdade” ou de “verdade global”24, ou seja, verdades que, apesar de sempre seletivas e limitadas, buscam estabelecer algum nível de consenso sobre o intolerável25. Arrisco dizer que esta é uma das principais (se não a principal) funções de uma comissão da verdade: enfrentar políticas negacionistas, diminuindo o escopo permitido de mentiras em uma dada sociedade26.
Em sua escrita oficial da violência, comissões da verdade elucidam os fatos e outorgam sentido à violência do passado. Negociando as fronteiras entre as chamadas verdade jurídica e verdade histórica27, comissões combinam as investigações de violações de direitos humanos com a coleta de testemunhos das vítimas e a construção de uma narrativa histórica sobre a violência. Com efeito, a grande maioria das comissões da verdade buscou não somente investigar as graves violações de direitos humanos, como também construir uma narrativa histórica em seus relatórios finais, seja por meio de um capítulo destinado especialmente a tal função, seja através da própria delimitação conceitual e temporal da violência política a ser investigada.
Como mostra Onur Bakiner, das trinta e três comissões que produziram um relatório final público até 2014, pelo menos dezessete tomaram como função primordial o estabelecimento de uma narrativa histórica. Dentre elas, algumas outorgaram uma parte pequena do relatório à contextualização da violência (como na Argentina); outras limitaram as investigações de violações de direitos humanos a um número de casos emblemáticos, dando maior atenção aos padrões estruturais da violência (como em El Salvador); algumas adentraram mais profundamente em questões sociológicas e históricas do conflito (como na Guatemala e no Peru); enquanto outras declararam não ser competentes para julgar moralmente o passado sobre fatos históricos controvertidos (como no Chile)28. Ainda que não haja uma abordagem historiográfica comum e que a qualidade de seus trabalhos varie muito, fato é que comissões da verdade, ao investigarem as graves violações de direitos humanos, contribuem para a historiografia do período de violência política de um determinado país.
Mas o debate em torno da relação entre os trabalhos das comissões da verdade e a construção de uma narrativa histórica não se volta, no presente estudo, para a tentativa de saber se uma “boa historiografia” pode ser produzida por mecanismos transicionais. À luz da tese desenvolvida por Berber Bevernage, uma análise crítica do discurso histórico, no interior de comissões da verdade, não se limita a realizar uma contraposição aos argumentos mais comuns do campo da justiça de transição, relativos às ideias de “reconciliação através da narrativa da verdade”, da “cura através da memória” ou “da memória como justiça”. Tampouco fica tal análise restrita à concepção da história como produtora de verdades oficiais e como instrumento contra o esquecimento. A crítica volta-se, mais precisamente, para a compreensão da “política do tempo” no interior das comissões da verdade, a fim de analisar os usos e abusos do discurso histórico e seus efeitos na delimitação simbólica do passado e do presente29.
Segundo o referido autor, comissões da verdade voltam-se para a história a fim de impor a irreversibilidade do tempo histórico a determinados eventos violentos, tornando-os fatos que já não podem mais ser alterados ou revertidos30. Se, por um lado, isso contribui para a construção de uma memória coletiva (oficial e institucionalizada) acerca dos crimes do passado, por outro lado, estabelece um problemático distanciamento de eventos pretéritos traumáticos, transformando-os numa questão essencialmente do passado, claramente diferenciada da ordem política do presente. Ao invés de continuidade ou permanência, o discurso histórico vem à tona, no âmbito da transição política, com o objetivo de demarcar a descontinuidade do passado violento, proclamando o que (política, social, cultural e juridicamente) pertence ao presente de uma nação e o que deve ser inserido no passado supostamente já superado31.
As próprias ideias de perdão, de reconciliação, de pacificação e de não-repetição (“nunca mais”), centrais ao campo da justiça de transição e aos trabalhos das comissões, pressupõem a capacidade de nos distanciarmos do tempo passado (o qual devemos condenar) e nos desligarmos da experiência violenta supostamente ausente no presente (que, por sua vez, parece restar livre de críticas). A nova ordem política, pós-conflito ou pós-transição democrática é, nesse sentido, fundada numa necessária descontinuidade com o passado violento, o que acaba por produzir, em muitos casos, uma visão acrítica da violência do presente. Em outras palavras, a ruptura simbólica e artificial entre passado e presente, operada por meio do discurso histórico32 no âmbito dos trabalhos das comissões da verdade, pode acabar por ocultar as sobreposições e interpenetrações entre o “passado violento” e o “presente democrático”.
Pautado pela naturalização do tempo cronológico, o discurso histórico, adverte Bevernage, funciona nas comissões de modo a inserir certos fenômenos no reino epistemológico do passado. O que explica, segundo o autor, a maneira obsessiva pela qual comissões da verdade referem-se às atrocidades investigadas como “crimes do passado”, mesmo nos casos em que as condutas ocorreram pouco antes da instituição do referido órgão ou em que as condutas continuaram a se repetir ou se agravaram no presente33. Focando em um período do passado delimitado, comissões acabam por dar pouca atenção à continuidade de certos fenômenos históricos, distanciando-se de uma análise crítica do presente34.
De um ponto de vista ético, explica Bevernage, a falta de um olhar crítico sobre o presente pode gerar um duplo registo pelo qual condena-se moralmente o passado e mantém-se uma total inércia em relação às violências perpetradas no presente. E, assim, o passado assume a função de “armazenar” todo o mal que, por sua vez, deixa de fazer parte do tempo presente da transição política35. No limite, esta política do tempo pode levar a uma espécie de “maniqueísmo temporal” que não somente sustenta que o passado é mal, mas que o mal pertence ao passado36. Em outras palavras, “o custo de se alcançar um consenso moral de que o passado foi mal é alcançar um consenso político de que o mal é passado”37. Disso decorre a tendência das comissões da verdade de adotarem uma visão moralista e apolítica da violência: o passado passa a ser visto como detentor de todo o mal, o presente democrático como o mais alto estágio a ser alcançado e o futuro emerge como um espaço de garantia da paz e da não violência (“nunca mais”). Produz-se, assim, uma separação radical entre passado, presente e futuro, que impede qualquer compreensão “transtemporal” das injustiças e violências perpetradas no interior de determinado Estado38.
Essa separação tampouco seria possível sem a utilização do discurso jurídico que, no interior das comissões da verdade, se une ao discurso histórico na construção e regulação das categorias do passado, presente e futuro. Fato é que o campo da justiça de transição, desde sua origem, é dominado, na teoria e na prática, por visões legalistas da justiça pautadas pelos direitos humanos, sendo esses os principais vetores de ruptura simbólica e prática com o passado, capazes de demonstrar publicamente a fundação de uma nova ordem pós-violência39. É certo que os direitos humanos garantiram uma linguagem comum ao campo da justiça de transição, contribuindo para o reconhecimento e para a inserção da violência em um espaço público mais amplo. Também é inegável que esse discurso jurídico garantiu maior visibilidade a diferentes formas de violência, permitindo que as mesmas fossem nomeadas com melhor precisão, seja por órgãos oficiais seja por aqueles diretamente afetados pela violência40, que passaram a se utilizar de conceitos como crime contra a humanidade, tortura, violência sexual, genocídio, desaparecimento forçado, dentre outros.
Contudo, como bem aponta Catherine Turner, no lugar de um elemento essencialmente político, a aplicação do direito, no campo da justiça de transição, é vista como um meio necessário para transcender o conflito político e para permitir que uma sociedade avance em direção a um novo governo protegido pela lei. A ação de ruptura com o regime anterior -- fundada na condenação moral e jurídica da violência pretérita -- acaba por retirar a violência, de forma ilusória, da “nova” dinâmica política e social, instaurada com a transição. Tal operação toma a violência enquanto elemento excepcional, ao invés de uma parte também intrínseca às próprias normas e à ordem política posteriormente estabelecidas41. O direito, representado por meio de princípios supostamente técnicos, neutros e universais, passa a regular e substituir a política, que, por sua vez, é concebida enquanto ameaça à transição e à estabilidade do Estado de direito42.
O discurso jurídico, esclarece Douzinas, constrói o tempo enquanto uma esfera linear, ao mesmo tempo que transforma a história em procedimento legal e a utiliza para criar um registro autorizado do passado, a fim de legitimar o presente e evitar mudanças radicais no futuro43. Enquanto a história busca fixar “objetivamente” o passado, o direito procura “reverter” o passado ao mesmo tempo em que normaliza o futuro: cabe ao direito punir e reparar atos pretéritos a fim de controlar comportamentos sociais futuros. Por um lado, a história distingue o presente do passado, transformando o último em seu objeto central de análise. Por outro, o direito, aproveitando-se dessa delimitação histórica do tempo, define o que pode ser convocado ao presente, a fim de ser juridicamente reconhecido e reparado, e o que deve ser deixado para trás. E, assim, artificialmente estabelece o encerramento do evento violento a partir da lei: traz determinadas violências do passado para o presente, dando-lhes uma definição jurídica e uma reparação apropriada, e volta a inseri-las em um passado considerado juridicamente superado.
A importância dessa operação jurídica, de reparação da violência pretérita, não está aqui em questão. Mas, ao contrário da visão predominante no campo da justiça de transição, é preciso levar em consideração que a linguagem jurídica não é nem o oposto da violência nem mesmo o seu antídoto44. É certo que a lei pode impedir, punir e reparar atos violentos, mas assim atua necessariamente no interior de uma gestão política mais ampla, responsável por definir o que está dentro ou fora do conceito de violência, demarcando-o subjetiva, espacial e temporalmente. No interior das comissões da verdade, a interpretação legal se dá sobretudo através da análise do passado a partir da lei, ou melhor, através do enquadramento dos fatos pretéritos em categorias jurídicas pré-estabelecidas (graves violações de direitos humanos, crimes contra a humanidade, genocídio, tortura…). Este ato de interpretação legal pertence tanto a um horizonte de significados (à hermenêutica), quanto à uma economia de força (às relações de poder)45, responsáveis por nomear e inscrever a violência ao mesmo tempo em que produz silenciamentos e lacunas.
Sendo assim, os discursos histórico e jurídico se sobrepõem no âmbito das comissões da verdade, atribuindo-lhes um caráter ritualístico. Comissões definem o passado e estabelecem o presente, com base em uma reminiscência controlada e em um esquecimento seletivo do passado46. Com efeito, é no espaço de tensão entre as memórias das vítimas e os discursos historiográfico e jurídico sobre a violência que se situam as comissões da verdade. Ao longo de seus trabalhos, estes mecanismos transicionais não se “voltam” simplesmente para o passado; eles constroem e regulam as próprias categorias de passado e de presente. O uso do discurso histórico e do discurso dos direitos humanos, pelas comissões, faz parte, portanto, de uma política do tempo mais ampla, através da qual os Estados, em contextos de transição democrática ou pós-conflito, buscam exorcizar os fantasmas do passado, determinando o que pode ser considerado ou não como parte do presente de determinada nação47. Não por acaso é tão comum que comissões da verdade falem em tortura, desaparecimento forçado, prisões ilegais, assassinatos ou massacres como “crimes do passado”, um passado rememorado pelas vítimas, reparado pelos trabalhos das comissões e devidamente afastado da nova ordem política do presente (ainda que nela continuem a fazer parte).
Enfim, a crítica desenvolvida neste ensaio volta-se para um dos pressupostos centrais que fundamentam o campo da justiça de transição e, mais especificamente, a atuação das comissões da verdade: a adoção de uma temporalidade própria da transição, a do “nunca mais”. A crítica ao “nunca mais”, cabe esclarecer, não é aqui dirigida à sua concepção enquanto bandeira de luta de movimentos sociais (algo recorrente no Brasil e que lhe confere múltiplos sentido), mas sim ao seu uso pelo Estado e por mecanismos oficiais de justiça enquanto meio de demarcação da violência a ser relegada ao passado. Através da propagação de uma duração linear do tempo -- rumo a um futuro necessariamente democrático e pacífico, protegido pela lei --, a violência pretérita é vista como desvinculada das violências do presente, o que contribui tanto para a legitimação da nova ordem política quanto para uma visão acrítica da violência.
Nesta terceira e última parte nos cabe finalmente questionar como, no âmbito da experiência da CNV, sua política do tempo foi construída e quais os seus efeitos no presente. Cabe aqui, contudo, um esclarecimento anterior. A CNV é tomada, nesse ensaio, como uma importante referência para o estudo crítico das comissões da verdade e, mais amplamente, do campo da justiça de transição por três razões centrais. Em primeiro lugar, a CNV possui a particularidade de ter sido uma das mais recentes comissões da verdade instituídas em todo o mundo, tendo sido profundamente influenciada pelas experiências anteriores e pelas principais referências normativas gestadas no plano internacional. Encontra-se inserida, portanto, no âmbito das “boas práticas” latino-americanas de acerto de contas com o passado e no processo mais amplo de internacionalização da justiça de transição, abordados na primeira parte deste ensaio. Segundo avaliação do International Center for Transitional Justice, sua criação pode ser vista como “um gigantesco passo para afirmar o crescente consenso internacional sobre a importância do direito à verdade sobre as mais graves violações dos direitos humanos”48.
Em segundo lugar, a CNV vem sendo internacionalmente reconhecida como uma experiência bastante exitosa de comissão da verdade. De acordo com Kathryn Sikkink e Bridget Marchesi, colaboradoras do Transitional Justice Research Collaborative (Universidade de Minnesota) — a mais ampla base de dados sobre justiça de transição — a experiência brasileira pode ser considerada a última grande investigação sobre violações de direitos humanos perpetradas no século XX, devendo ser destacada em razão da qualidade de seus trabalhos49. Durante a análise de 43 diferentes comissões da verdade, estabelecidas entre 1972 e 2014, as autoras atribuíram a cada experiência notas de 0 a 7. Enquanto a média das comissões alcançou a nota 3.18 do total de 7, a CNV recebeu nota 6, destoando significativamente da grande maioria de experiências anteriores.
Em terceiro lugar, seu amplo reconhecimento internacional e sua forte relação com o campo normativo da justiça de transição não foram capazes de garantir a implementação de suas recomendações pelo Estado brasileiro ou de assegurar a seus trabalhos um alcance social significativo, de modo que o legado da CNV encontra-se hoje sob intensa disputa e sob o risco real de apagamento. O caso brasileiro reforça a constatação de que a estabilidade da memória, construída no interior de uma comissão da verdade, depende necessariamente de uma série de arcabouços e suportes materiais, bem como de um trabalho ativo de recordação, perpassando desde as lutas sociais e a implementação de políticas de memória, até o reconhecimento oficial da violência nas diferentes instâncias do Estado50. Ao iluminar algumas das potencialidades e principais limites das comissões da verdade, no âmbito das disputas pelas memórias da violência de Estado, o caso brasileiro em muito contribui para um estudo crítico destes mecanismos de justiça.
Feito esse breve esclarecimento, cabe retomar a pergunta acima introduzida: como, no âmbito da experiência da CNV, sua política do tempo foi construída e quais os seus efeitos no presente? Trata-se, em outras palavras, de compreender como os discursos histórico e jurídico foram utilizados pela CNV na regulação e produção das categorias de passado e presente e na definição dos contornos da violência política condenável. A fim de responder tal questão, foi preciso direcionar o presente estudo para o texto do relatório final da CNV, publicado em dezembro de 2014, após o fim de seus trabalhos. Para além de um documento jurídico de investigação das graves violações de direitos humanos perpetradas durante a ditura militar, o relatório final -- formado por mais de 4.000 páginas divididas em 3 volumes principais -- é também um dispositivo de memória, que esclarece e nomeia a violência de Estado, ao mesmo tempo em que inscreve, em seu próprio corpo, os esquecimentos e as lacunas. É precisamente no processo de escrita que comissões definem certas condutas como violência e categorizam determinados sujeitos como vítimas. E, nesse sentido, por meio de seus recortes, seleções e enquadramentos conceituais, o relatório é capaz tanto de expor seus avanços quanto de revelar uma escrita inacabada, situada entre o passado e o presente, o traço e o resto, os retratos e as biografias faltantes.
Sem desmerecer o importante trabalho da CNV51, o objetivo desta parte do ensaio é, portanto, jogar luz sobre alguns de seus silêncios, a fim de contribuir para um debate crítico em torno de seu legado. Se, por um lado, sete anos podem ser considerados um período relativamente curto para análises assertivas sobre o legado da CNV, por outro, há uma urgência, no contexto político brasileiro atual, em se pensar porque seus trabalhos não foram capazes de alcançar o mais modesto e central objetivo de uma comissão da verdade: enfrentar políticas negacionistas, diminuir o escopo permitido de mentiras em uma dada sociedade e estabelecer algum nível de consenso sobre a violência intolerável. Não há, é preciso esclarecer, respostas unívocas ou fechadas para tal questionamento. Na tentativa de enfrentar a questão acima colocada, é necessário analisar três pontos específicos do relatório final da CNV. São eles: os contornos e limites jurídicos do conceito de violência investigada pela CNV; a categorização restrita de vítimas da ditadura militar; e a problemática reprodução da lógica temporal do “nunca mais”. Ainda que separados para manter alguma clareza na exposição, esses três pontos encontram-se, na prática, profundamente imbricados.
Quanto ao primeiro ponto, é preciso considerar que a CNV optou expressamente por adotar o discurso dos direitos humanos como lente interpretativa do passado e parâmetro para a compreensão, interpretação e nomeação da violência. A partir do conceito de “graves violações de direitos humanos”, disposto em seu mandato legal, a CNV definiu que suas investigações deveriam se voltar centralmente para casos de tortura, prisão ilegal e arbitrária, execuções e desaparecimento forçado, conceitos desenvolvidos à luz da doutrina e jurisprudência do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Ainda que tenha havido significativo esforço em contextualizar historicamente a violência de Estado, fato é que a CNV, apoiada no discurso jurídico dos direitos humanos, voltou-se sobretudo para a análise da violência política tomada principalmente em seu aspecto subjetivo -- diretamente visível e exercida por um agente facilmente identificável --, deixando em segundo plano seu caráter econômico e estrutural. Por certo, a investigação de graves violações de direitos humanos é um trabalho fundamental. A questão é que a compreensão da violência subjetiva, por um lado, e da violência sistêmica e estrutural, por outro, partem de pontos de vista diferentes: a primeira é pensada enquanto violência física direta, em contraposição a um grau zero de não-violência, enquanto a segunda é precisamente aquela inerente a um estado dito “normal” das coisas, associada ao próprio funcionamento regular de nosso sistema econômico e político52.
No limite, o resultado é a propagação de uma visão moral da violência, condenada como um mal absoluto cometido por indivíduos desvirtuados, no lugar da adoção de visões políticas mais amplas, através das quais condutas violentas são historicamente situadas no interior de projetos econômicos e políticos de poder. Ao focar em graves violações de direitos humanos, comissões da verdade tendem a mascarar a continuidade das dimensões sócio-econômicas do conflito ou de regimes autoritários precedentes. A noção de democracia a ser instaurada dificilmente põe em xeque as desigualdades socioeconômicas perpetuadas, e normalmente aprofundadas, quando da instauração da nova ordem política53.
Tal questão ganha especial relevância no caso brasileiro. Em razão da seletividade das vítimas fatais do regime militar, o posicionamento da CNV, em parte, pode servir para reforçar a visão equivocada de que a ditadura brasileira fora menos grave do que aquelas implementadas em outros países da região. Não é possível ignorar que uma das narrativas hegemônicas sobre a ditadura brasileira consiste precisamente na defesa dos crimes praticados pelo regime militar como medida necessária e excepcional para o combate de grupos armados opositores ao regime. Prevalece, até hoje, a ideia de que a ditadura atingiu apenas um pequeno número de indivíduos, que optou por lhe fazer oposição política. Como se a repressão do período ditatorial tivesse sido dirigida apenas aos “comunistas” ou “subversivos” que resistiram violentamente ao regime militar instaurado com o golpe de Estado de 1964, enquanto o restante da sociedade, em seu conjunto, mantivera-se a salvo de todo tipo de violência. Esta visão é não somente equivocada, como ignora o projeto mais amplo de poder implementado pela ditadura que, por meio de um dispositivo político-empresarial-militar, atingiu violentamente o conjunto da sociedade brasileira, mas principalmente alguns grupos historicamente marginalizados, durante seus 21 anos de vigência54.
Mesmo porque um regime autoritário jamais se limita a perseguir seus opositores políticos, violando também e necessariamente os direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos de uma série de setores da sociedade. O problema consiste, nesse sentido, em abordar outros tipos de violações, como aquelas relativas a direitos econômicos, sociais e culturais, como pontos secundários e apartados de crimes tão atrozes como a tortura, o desaparecimento ou o assassinato. Daí a importância, aponta Weichert, de se avaliar, por exemplo, no âmbito da educação, os prejuízos decorrentes da cassação de professores, a interdição à discussão filosófica, a mudança dos currículos e a imposição de disciplinas autoritárias. Ou ainda, de se investigar as violações dos direitos à saúde, à previdência, à moradia e à distribuição de terras, como um modo operante do autoritarismo instaurado no Brasil55, cujas heranças são até hoje perceptíveis. No mesmo sentido, pode-se refletir sobre a importância da investigação das violações dos direitos dos trabalhadores ou mesmo a desvalorização do salário mínimo ao longo dos governos militares. Compreender as graves violações de direitos humanos perpetradas durante a ditadura no Brasil demanda, em grande medida, relacioná-las às facetas sociais, econômicas e políticas do projeto de governo arquitetado pela ditadura, algo que a CNV, sobretudo em razão de seu mandato legal e de escolhas políticas internas, optou por não tomar como elemento central em sua atuação.
Para além da pouca relevância outorgada aos direitos econômicos, sociais e culturais e às facetas estruturais da violência, a CNV, ao guiar seus trabalhos a partir do conceito jurídico de graves violações de direitos humanos, acabou por estabelecer uma “tipologia restrita sobre quem foram as vítimas da ditadura”56, segundo ponto a ser analisado. Nesse sentido, foram excluídos de seu escopo investigativo alguns setores da população, como, por exemplo: os moradores de favelas e periferias, vítimas de uma política habitacional repressiva durante a ditadura militar, marcada pelas remoções em massa, pela desarticulação de suas organizações políticas e pela perseguição política a seus líderes57; a população negra, um dos principais alvos de ações repressivas por parte das polícias políticas dos estados e de comprovado monitoramento pelos órgãos da repressão58; e as vítimas dos assassinatos e desaparecimentos, perpetrados por esquadrões da morte, formados clandestinamente por militares e policiais.
Esta constatação ganha ainda mais força a partir da análise de alguns dos documentos localizados no acervo da CNV, disponibilizado no Arquivo Nacional. Em texto dedicado à temática59, o historiador Lucas Pedretti chama atenção, no âmbito das violações perpetradas contra a população negra, para a existência de um documento, no acervo da CNV, intitulado “A repressão aos negros durante a ditadura”60, elaborado por assessores e pesquisadores da comissão. Trata-se de um texto preliminar de treze páginas, em que se buscava demonstrar que “a ditadura agiu no cerceamento da cultura negra e das manifestações políticas e sociais dos variados grupos negros que se organizaram pelos direitos humanos”. Apesar da existência da pesquisa, a mesma não foi aprofundada pela CNV e o texto preliminar tampouco foi incluído ou sequer mencionado no relatório final. Uma decisão política interna que demonstra, nas palavras de Thula Pires, que “no âmbito da CNV, a questão racial não é apresentada de maneira transversal, tal como se evidenciou nas violências perpetradas, muito menos como tratamento apartado”61.
Se, por um lado, a CNV excluiu certos setores sociais de seu escopo investigativo, por outro, atribuiu um tratamento diferenciado a determinadas vítimas da ditadura, em especial aos trabalhadores, camponeses e indígenas. É certo que a CNV incluiu as violações perpetradas contra estes três grupos em suas pesquisas, resultado sobretudo da pressão dos movimentos sociais. Ainda em 2012, a CNV determinou a criação dos Grupos de Trabalho sobre “Ditadura e repressão aos trabalhadores e ao movimento sindical” e “Sobre violações de direitos humanos relacionadas à luta pela terra e contra populações indígenas, por motivações políticas no período compreendido entre 1946-1988”, cujos trabalhos espelharam, em grande medida, o acúmulo de informações organizadas sobretudo por grupos da sociedade civil62. Mas se a CNV teve o êxito de abordar temas tão importantes e complexos, comumente ignorados por comissões da verdade, não se pode deixar de considerar o tratamento diferenciado outorgado a esses grupos no relatório final.
As violações perpetradas contra trabalhadores, indígenas e camponeses foram inseridas no volume II do relatório final. Enquanto o volume I e o volume III foram incorporados como uma verdade oficial produzida pela CNV como órgão de Estado, o volume II de seu relatório consistiu, de maneira excepcional, numa coletânea de textos publicados sob a autoria individual de algum de seus conselheiros (sem que sua autoria fosse atribuída à CNV como órgão de Estado). Segundo consta expressamente em sua introdução, o volume II contém:
um conjunto de textos produzidos sob a responsabilidade individual de alguns dos conselheiros da Comissão. Inclusive parte desses textos foi elaborada a partir da atividade desenvolvida por grupos de trabalho constituídos no âmbito da própria Comissão, integrando vítimas, familiares, pesquisadores ou interessados na memória dos temas e das pessoas investigados.63
A razão para tal distinção, apesar de alegadamente metodológica, consistiu mais uma vez em uma decisão política. Com feito, a estrutura do relatório final acabou por criar dois tipos de vítimas: as vítimas do volume I (que abrange principalmente questões relacionadas aos militantes políticos, membros de partidos e organizações de esquerda torturados, desaparecidos ou mortos) e as vítimas do volume II (dentre elas, trabalhadores, camponeses e povos indígenas). Enquanto os mortos e desaparecidos do volume I tem sua história de vida e de militância política posteriormente contemplada no volume III (que aborda individualmente suas biografias, expondo as fotos das vítimas e informações sobre sua vida política), as vítimas fatais do volume II, como é o caso dos indígenas e camponeses assassinados pela ditadura, permanecem em sua grande maioria sem nome, rosto ou história a ser contada. A situação é ainda mais problemática se considerarmos que o volume III do relatório final (tido como produto oficial da CNV) reconheceu 434 vítimas fatais da ditadura, excluindo as 8.350 vítimas indígenas, mencionadas no volume II.
Ao mesmo tempo que o relatório final aborda as graves violações de direitos humanos, não toma como central o esforço de vinculá-las ao contexto econômico e social mais amplo da ditadura, separando-as de outras formas de violência estrutural que marcam toda a história do Brasil (como é o caso das profundas desigualdades econômicas e raciais). No mesmo sentido, o texto aborda as violações perpetradas contra trabalhadores, camponeses e indígenas, mas as exclui do volume I (correspondente às verdades oficialmente estabelecidas) e do volume III do relatório final (correspondente às vítimas fatais oficialmente reconhecidas). Inscreve-as no texto, mas retira-lhes a força de uma “verdade oficial”, expondo e reproduzindo traumas históricos que não cessam de se reproduzir no presente da sociedade brasileira. Não é um mero acaso que os sujeitos historicamente marginalizados da justiça de transição brasileira (a população negra e pobre, moradora de favelas, os povos indígenas e os camponeses) sejam precisamente os mesmos submetidos, no presente, ao contexto de sistemáticas violações de direitos humanos, o que nos leva ao terceiro ponto de nossa análise: a problemática reprodução da lógica temporal do “nunca mais”.
De acordo com a introdução do relatório final, os trabalhos desenvolvidos pela CNV convergiram em um “firme desejo de que os fatos descritos nunca mais venham a se repetir”64. Publicadas em dezembro de 2014, tais palavras pouco se conectavam com o cotidiano de graves violações de direitos humanos às quais era (e ainda é) submetida cotidianamente, no Brasil, uma grande parcela da população. Com efeito, no preciso momento em que desenvolvia suas pesquisas, aquelas mesmas violências de Estado — prisões ilegais, tortura, desaparecimento forçado, execuções sumárias — se repetiam e se reconfiguravam na democracia. É fato que a CNV reconheceu, em suas conclusões finais (conclusão número 4), a persistência, no presente, do quadro de graves violações de direitos humanos verificado ao longo do período ditatorial. Mas assim o fez sem desenvolver investigações ou quaisquer considerações sobre tais “persistências”, seja durante a realização de pesquisas e audiências públicas ou no próprio texto de seu relatório final. Motivada pelos limites legais e políticos de seu mandato, a CNV voltou suas investigações para os “crimes do passado”, concebidos sob a lente histórico-jurídica do “nunca mais”.
Construída no interior da CNV a partir dos paradigmas centrais do campo da justiça de transição, a temporalidade do “nunca mais” acabou, na prática, por reforçar a separação artificial entre passado e presente, o que impossibilitou uma compreensão “transtemporal” das violências de Estado em nosso país. Se, por um lado, o “nunca mais” reconhece algum nível de persistência das violações (é preciso que não se repita), por outro lado, carrega em si a suposição bastante problemática de que o conhecimento da verdade sobre o passado seria uma condição suficiente para a superação da repetição de erros pretéritos. Ou seja, pressupõe ser possível “estancar a espiral de violações de direitos humanos, como se a verdade tivesse efeito profilático”65. Algo que, no caso brasileiro, provou não ter absolutamente nenhuma garantia.
Vale dizer que uma compreensão “transtemporal” das violências de Estado não implica nem negar as profundas diferenças entre um regime ditatorial e um regime democrático, tampouco estabelecer conexões pré-determinadas de causa e efeito entre o passado (ditatorial) e o presente (democrático). Implica, mais precisamente, reconhecer continuidades, interrupções e reconfigurações da violência de Estado, de modo que passado e presente não podem ser concebidos separadamente. Com efeito, ao deixar de investigar e aprofundar a análise sobre algumas das continuidades mais gritantes da violência de Estado — dentre as quais: a manutenção das estruturas policiais e das prerrogativas militares66, a repetição de certos padrões de violações de direitos humanos perpetradas por agentes de Estado no presente (prisões ilegais, tortura, execuções e desaparecimentos forçados) e a permanência de desigualdades estruturais, econômicas e raciais —, a CNV contribuiu, em parte, para reforçar uma das marcas fundantes do processo da justiça de transição no Brasil: a separação artificial da violência de Estado do passado e do presente.
As lacunas na escrita oficial da violência, empreendida pela CNV, não são meros acidentes de percurso, mas partes de um panorama mais amplo de apagamento de certos sujeitos e de certas formas de violência da história, dita oficial, do Brasil. Daí ser possível concluir que a CNV não foi capaz de romper com alguns dos mais profundos e estruturais modos de silenciamento e esquecimento forçados, precisamente porque não aprofundou, ao longo de seus trabalhos, a relação entre a violência de Estado do passado e do presente, estabelecendo uma ruptura forçada em nome do “nunca mais”. Ao se voltar exclusivamente para os “crimes do passado”, o legado da CNV tem sido pouco capaz de aproximar as lutas por memória, verdade e justiça do passado ditatorial das lutas por memória, verdade e justiça da violência de Estado no presente.
Ao comprovar e reconhecer a prática de graves violações de direitos humanos por agentes de Estado no contexto da ditadura militar brasileira, a CNV -- atuando enquanto um órgão de Estado -- buscou inserir tais verdades no âmbito do debate público, a fim de fixar oficialmente memórias e institucionalizar uma visão sobre a violência do passado ditatorial. Ao invés de atos isolados ou supostos excessos cometidos por alguns, tais violações foram taxativamente concebidas, pela CNV, enquanto partes de uma política de Estado “que mobilizou agentes públicos para a prática sistemática de detenções ilegais e arbitrárias e tortura, que se abateu sobre milhares de brasileiros, e para o cometimento de desaparecimentos forçados, execuções e ocultação de cadáveres.”67
Como bem aponta Torelly, o fato da CNV ter enfrentado expressamente a versão militar sobre o regime ditatorial— segundo a qual eventuais violações teriam sido apenas excessos, por vezes sequer provados — representou uma ruptura importante no âmbito da justiça de transição brasileira, marcadamente limitada pelos vetos formais ou informais impostos pelas Forças Armadas68 (seja através da participação de seus membros nas comissões oficiais de reparação anteriormente estabelecidas, da proibição do debate em torno da lei de anistia ou de ameaças institucionais diante da possibilidade de investigação dos crimes pretéritos). Não por acaso, em 2018, o então Comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas declarou publicamente ser preciso garantir que militares (envolvidos em intervenções urbanas) não viessem a enfrentar “uma nova Comissão da Verdade”69, numa clara demonstração do incômodo das forças militares com as investigações e conclusões desenvolvidas pela CNV.
Mas tais avanços, ainda que importantes, mostraram não ter sido suficientes. Os conflitos em torno das verdades sobre o passado ditatorial voltaram ao epicentro da política brasileira, diante da força assumida por discursos negacionistas70 que visam ocultar e legitimar as violências de Estado então perpetradas. Com efeito, o fim da CNV coincidiu com um contexto político nacional absolutamente desfavorável -- de desmonte das políticas de memória e verdade, de propagação de discursos negacionistas sobre a ditadura militar e de políticas oficiais de esquecimento -- que acabou por revelar muitos dos limites desse mecanismo de justiça. Desvinculada das lutas do presente e fortemente atacada por práticas e discursos oficiais de deslegitimação de seus trabalhos — sobretudo a partir do governo de Jair Bolsonaro (2019-), ex-militar e confesso defensor da ditadura militar e da prática da tortura — o legado da CNV encontra-se hoje sob o risco real de apagamento. Nem mesmo os objetivos mais modestos de uma comissão da verdade — enfrentar políticas negacionistas, diminuir o escopo permitido de mentiras em uma dada sociedade e estabelecer algum nível de consenso sobre a violência intolerável — puderam, até o momento, ser efetivamente alcançados pelos trabalhos da CNV.
Não se pretende aqui incorrer no erro de se atribuir à CNV os retrocessos da justiça de transição brasileira, muito menos atribuir-lhe responsabilidade pelo contexto político atual. Não se trata disso. Os bloqueios ao avanço das políticas por memória, verdade e justiça, no Brasil, são anteriores à CNV, ao mesmo tempo em que a atravessam e a superam. Fundamentam-se historicamente na suposta lógica da reconciliação por cima, por meio da qual, em nome da governabilidade democrática, silenciam-se as demandas das vítimas, “impondo na constituição do novo regime uma política de esquecimento”71. No mesmo sentido, a violência de Estado no Brasil de hoje não pode, obviamente, ser pensada única e exclusivamente sob a chave da ditadura militar, de modo a ignorar a herança escravocrata e colonial da sociedade brasileira e a desconsiderar inúmeras rupturas e reconfigurações da repressão pelo Estado. Fato é que a ponte entre o passado e o presente jamais está dada, sendo necessário constantemente (re)construí-la.
O que se pretende destacar neste ensaio é, mais precisamente, os efeitos da política do tempo forjada no campo da justiça de transição e constantemente implementada no âmbito das comissões da verdade. Se, por um lado, tais mecanismos transicionais têm o potencial de transformar o modo como dada sociedade compreende e lembra de seu passado — na medida em que nomeiam a violência e reconhecem suas vítimas — por outro lado, a concretização deste potencial depende, necessariamente, de uma série de circunstâncias: dos limites jurídicos de seus mandatos; dos contornos do conceito de violência a ser investigada; da demarcação temporal do passado, do presente e do futuro; da relação estabelecida com as lutas por memória, verdade e justiça empreendidas no presente; bem como do contexto político no qual seus trabalhos e seu legado encontram-se inseridos.
De onde se pode concluir que a instituição de uma comissão da verdade e a consequente revelação das verdades sobre o passado violento não garantem, por si só, a não-repetição das violações, a consolidação democrática, ou mesmo o enfraquecimento de discursos negacionistas. Sem refutar a potência desses mecanismos de justiça, o que este ensaio pretende sustentar é que a relevância de uma comissão da verdade, no que tange à construção de memórias coletivas e à produção de suportes para as lutas políticas democráticas, depende necessariamente da construção de uma outra política do tempo. Política esta que tenha em seu centro a crítica da violência no presente, um presente no qual as formas de violência de Estado não cessam de se atualizar, não como mera repetição idêntica do passado, mas como “diferença”, na qual o “antes” e o “agora” não se substituem, mas coexistem e dialogam.
Doutora em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio em cotutela com a Université Paris Nanterre (França). Professora do Departamento de Direito da PUC-Rio. Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e do Núcleo Democracia e Forças Armadas (NEDEFA) da mesma instituição. Foi pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e assessora da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro. E-mail: andrea-schettini@puc-rio.br