Resumo: A economia política da pena (EPP) há muito representa uma das mais relevantes correntes teóricas na criminologia. No entanto, recentes experiências latino-americanas colocam em questão sua capacidade para compreender padrões e tendências de punição para além dos países centrais. O intenso aumento nas taxas de encarceramento em um período de considerável desenvolvimento econômico na região supostamente indicaria o fracasso do potencial explicativo da EPP em relação à punição na periferia global. Amparado em revisão bibliográfica, estabeleço um balanço teórico, metodológico e histórico desta corrente teórica, e apresento dois caminhos para superar seus atuais dilemas e limitações: o resgate da categoria gramsciana ‘hegemonia’ e o olhar concreto à realidade dependente local. Reconhecidas suas limitações contemporâneas e ajustadas algumas de suas premissas históricas, a EPP tem sua relevância renovada e se apresenta como marco teórico fundamental para compreender a punição inclusive na periferia do capitalismo.
Palavras-chave: Economia política da pena, Hegemonia, Dependência.
Abstract: Political economy of punishment (PEofP) has long represented one of the most relevant theoretical frameworks in criminology. However, recent Latin American experiences cast doubt on its potential for comprehending patterns and trends of punishment beyond core countries. The intense rise of incarceration rates in a period of considerable economic development in the considered region appears to indicate a possible failure of the PEofP’s explanatory power in relation to punishment in the global periphery. Drawing on literature review, I establish a theoretical, methodological, and historical balance of this theoretical framework and offer two paths to overcome its current dilemmas and limitations: rescuing the Gramscian category of ‘hegemony’ and looking concretely at the local, dependent reality. Provided that its contemporary limitations are acknowledged, and its historical premises are adjusted, the PEofP’s relevance is renewed. The PEofP is then an essential theoretical framework for making sense of punishment even in peripheral countries.
Keywords: Political economy of punishment, Hegemony, Dependency.
Artigo
Economia política da pena: contribuições, dilemas e desafios
Political economy of punishment: contributions, dilemmas and challenges
Recepção: 01 Julho 2020
Aprovação: 11 Janeiro 2021
Desde Rusche e Kirchheimer ([1939]2003), passando por Melossi e Pavarini (1977), e Hall e seus colaboradores (1978), até tantos outros criminólogos mais contemporâneos, a Economia Política da Pena (EPP) se estabelece como uma das mais relevantes correntes teóricas na criminologia. Tal perspectiva traz uma abordagem materialista aos debates e análises criminológicas. Como já demonstrado por outros autores, essa perspectiva tem sido uma das mais influentes para pensar também a penalidade na América Latina (ver MARTINS, 2014; LEAL, 2017; GINDRI, 2018).
Transformações de dimensões políticas, sociais e econômicas observadas no presente século em boa parte dos países latino-americanos parecem impor limites à EPP para pensar a punição em nossa região e compreender, de modo razoavelmente satisfatório, suas variações e continuidades. Este quadro pode sugerir que a EPP é uma corrente teórica com reduzida ou nenhuma capacidade analítica em relação a países na periferia do capitalismo. Se antes muitos criminólogos críticos latino-americanos reproduziam a EPP sem qualquer adaptação substancial e relevante à realidade local, hoje uma nova tendência é seu rechaço de antemão – seja por ser considerada historicamente superada ou eventualmente por ter sua capacidade analítica e seu poder explicativo limitados à realidade dos países centrais.
Seria, portanto, o caso de abandonarmos a EPP enquanto marco teórico de relevância contemporânea e atribuirmos a ela uma mera posição no desenvolvimento histórico do pensamento criminológico? Para superar este aparente dilema, estabeleço inicialmente um breve percurso histórico desta tradição, indicando suas fundações na primeira seção deste artigo. Em seguida, apresento seu recente remodelamento – o que Sozzo (2018) chama de “renascimento” –produzido como resposta a críticas e problemas enfrentados por esta corrente teórica em momentos anteriores. Na medida em que impasses persistem mesmo após a recente reorientação do campo, apresento, nas duas últimas seções deste artigo, contribuições para um desenvolvimento da EPP visando a uma melhor compreensão da punição na periferia do capitalismo, para além de previsões mecânicas e análises centradas em categorias e conceitos elaborados a partir da realidade dos países centrais. Tais contribuições são centradas no resgate da categoria gramsciana de “hegemonia” e na incorporação de outras categorias extraídas das condições e relações existentes na realidade local, periférica e dependente. Reconhecidas suas limitações contemporâneas e ajustadas suas premissas históricas, a EPP tem sua relevância renovada.
As fundações desta tradição teórica são frequentemente atribuídas a Rusche e Kirchheimer ([1939]2003). A segunda edição do livro Punição e Estrutura Social, lançada 30 anos após a publicação da obra original, obteve particular relevância,1 contribuindo para o desenvolvimento de relevantes estudos revisionistas sobre punição, como os de Foucault (1975), Melossi e Pavarini (1977), e Ignatieff (1978). Há muitas lições importantíssimas extraídas deste trabalho magistral. No entanto, me limitarei a duas delas. A primeira se refere ao argumento de que tendências de punição não correspondem a variações das taxas de criminalidade. Em realidade, seu correspondente quantitativo estaria de certa forma relacionado ao mercado de trabalho. Os autores sugerem que quanto maior o nível de desemprego, maior o número de pessoas sob o controle do aparato penal do Estado tenderia a ser. A prisão, portanto, funcionaria como regulação do mercado de trabalho, controlando o tamanho do exército industrial de reserva e suas consequências, como o salário, por exemplo.
Em termos qualitativos, o sistema penal seria associado às condições de vida da classe trabalhadora. Mais especificamente, a vida prisional seria deliberadamente pior do que a situação dos segmentos da classe proletária mais desfavorecidos (RUSCHE, [1933]1978, p. 4). Essa relação constitui o princípio da menor elegibilidade, o qual, em outras palavras, significa dizer que a vida na prisão não poderia ser preferível em relação à vida em liberdade. Consequentemente, isso funcionaria como coerção, dissuasão às pessoas à ordem estabelecida, incluindo a necessidade de trabalhar (ou de ser explorado) sob determinadas condições (capitalistas). Em períodos de crise econômica, a punição não apenas seria expandida, mas seria também mais dura. Portanto, variações no tamanho de populações prisionais e os padrões de vida prisional estariam relacionados a mudanças na força de trabalho excedente e nas condições de vida da classe trabalhadora.
O segundo elemento relevante a ser destacado aqui se refere aos padrões de punição. “Todo sistema de produção tende a encontrar formas de punição que correspondem a suas relações de produção” (RUSCHE; KIRCHHEIMER, [1939]2003, p. 5). Os autores observaram que os sistemas punitivos historicamente sempre acompanharam, em termos de mudanças e transições, o desenvolvimento de sistemas econômicos. O surgimento das prisões, bem como outras formas e instituições que a ela deram lugar, tais quais casas de trabalho forçado, casas de correção e poorhouses (RUSCHE; KIRCHHEIMER [1939]2003]; MELOSSI; PAVARINI, 1977), teria sido essencial ao nascimento (e à reprodução) do sistema capitalista, na medida em que permitiu, por exemplo, a acumulação primitiva (MELOSSI; PAVARINI, 1977).
Ademais, com base no princípio da menor elegibilidade, a prisão enquanto instituição também permitiu o desenvolvimento do conceito de disciplina burguês, imposto em uma medida de tempo devidamente vinculado aos conceitos de trabalho e produtividade.2 Variações nos sistemas de produção tornam obsoletas as formas de punição prévia, na medida em que elas se tornam inúteis ao novo sistema de produção e suas respectivas relações. A sociedade capitalista, particularmente em seu estágio industrial, encontraria na prisão suas correspondentes formas de punição.
O limite espacial não possibilita o desenvolvimento de uma abordagem mais densa sobre a longa tradição da EPP. De todo modo, análises mais aprofundadas sobre o tema foram já apresentadas por outros autores (ver, por exemplo, SERRA, 2009; SANTOS, 2019). Portanto, nessas condições, restringirei o destaque das fundações da EPP às duas premissas acima indicadas: (i) variações de tendências de punição não são determinadas por variações das taxas oficiais de criminalidade, mas correspondem sobretudo às condições do mercado de trabalho e às piores condições de vida em liberdade da classe trabalhadora; e (ii) os padrões e formas de punição tendem a ser relacionados com transformações nos modos de produção.
Nesta seção, novas e diferentes abordagens dentro da EPP são apresentadas e discutidas, buscando dar ênfase em suas contribuições e limitações para compreender e explicar a punição contemporânea.
Na medida em que Rusche e Kirchheimer faleceram bem antes de que os sistemas penais começassem a indicar o que viria a diante, os autores não fizeram uma análise de tais sistemas na era do encarceramento em massa.34 De todo modo, vários outros criminólogos têm feito tal análise a partir das lentes trazidas por estes acadêmicos alemães ao campo criminológico. No entanto, antes disso, a EPP se manteve praticamente limitada a estudos quantitativos por volta da década de 1980,5 observando, na década seguinte, um “giro culturalista” (SOZZO, 2018) tomar conta dos debates sobre sociologia da punição, ao menos nos países centrais do capitalismo.6 A partir daí, autores como de Giorgi, Cavadino e Dignan, e Lacey promoveram o retorno da EPP à centralidade dos debates sobre punição, incorporando novos elementos e abordagens ligeiramente diversas. A seguir, ainda que de modo breve e generalizado, três novas características da EPP são exploradas: a incorporação de novos elementos a seu quadro analítico; a reconsideração sobre indicadores de punitividade, da economia e das condições de vida extramuros; e uma nova abordagem concentrada em estudos comparativos.7
O primeiro elemento a ser aqui destacado é o que de Giorgi (2013) – necessariamente ou não – chama de economia política da pena “pós-reducionista”. Isso significa que, à instância materialista ou estrutural, elementos políticos, culturais e institucionais são acrescentados. Trata-se de clara resposta a críticas frequentemente direcionadas à EPP, também enquanto representante de uma perspectiva marxista na criminologia. Argumenta-se, com certa frequência, que a EPP tem suas bases em um reducionismo econômico, sendo, portanto, mecanicista ou determinista.
Vale questionar se Rusche e Kirchheimer de fato foram reducionistas em suas análises, como sugerem autores como Garland (1990, p. 108-109). Esta pode ser uma crítica imprecisa. Antes de Punição e Estrutura Social, Rusche havia destacado a complexidade entre sistemas econômicos e de punição, argumentando que “a dependência do crime e do controle do crime em relação a condições econômicas e históricas não oferece, contudo, uma explicação completa. Essas forças não determinam, sozinhas, o objeto de nossa investigação e por si só são limitadas e incompletas em várias formas” (RUSCHE, [1933]1978, p. 3, tradução livre). Além disso, Reiner (2017, p. 121) sustenta que o próprio Marx ([1867]2013) havia analisado criminalização e crimes corporativos dando “o devido peso a ações humanas e conflitos que mediam macro estruturas e específico eventos”. Nesse sentido, mesmo que estudos posteriores ao, e fundamentados no, estudo de Rusche e Kirchheimer tenham utilizado metodologias mais simplistas e, muitas vezes, de fato mecânicas para chegar a suas conclusões, isso não significa dizer que tais autores eram necessariamente “economicistas”, nem que tal corrente teórica, por completo, o seja.
De todo modo, a partir desta ótica de “economia política da pena pós-reducionista”, autores como Cavadino e Dignan (2006; 2011), Lappi-Seppälä (2008; 2011) e Lacey (2008) incorporam elementos como (i) a influência de corporações e organizações intergovernamentais,8 (ii) o nível da incorporação de cidadãos a um projeto político-comunitário de nação,9 (iii) a tradição ideológico-cultural,10 (iv) o impacto da mídia,11 (v) modelos de instituições políticas,12 (vi) o papel e status da burocracia profissional,13 (vii) a percepção dos cidadãos sobre a legitimidade de instituições estatais14 e (viii) estruturas constitucionais.15 O fato é que, se estes elementos foram inicialmente considerados de alguma maneira relacionados à economia política, alguns deles parecem ser, na prática, completamente alheios a ela. E tais autores reconhecem esse fato.16 De toda forma, se estes elementos constituem mediações ou são independentes da economia política, essa permanece sendo uma questão ainda sem resposta definitiva no debate criminológico contemporâneo.
Além da incorporação dos elementos acima mencionados, outra característica da EPP “renascida” é a reconsideração dos métodos de mensuração das condições de vida das classes trabalhadoras mais baixas. De Giorgi (2002; 2013; 2018) e Sutton (2004), por exemplo, consideram inadequado e insuficiente considerar taxas de desemprego como o único medidor possível, na medida em que eles não contemplam níveis de subordinação, insegurança e exploração, por exemplo.17 Tentando superar tal insuficiência, Sutton inclui o poder e a organização de sindicatos em sua análise.
Na mesma direção, as próprias taxas de encarceramento passaram a ser também consideradas insuficientes para mensurar o quão punitivo um sistema penal ou um pais é.18 Na realidade brasileira, a limitação à taxa de encarceramento exclui da análise sobre o grau de punitividade ou severidade do sistema penal as altas taxas de letalidade policial, por exemplo (DAL SANTO, 2020). Em sentido mais amplo, as próprias condições de cumprimento de pena de prisão acabam sendo desconsideradas. Ainda que de certo modo limitados, tais indicadores continuam tendo substancial utilidade.
Esse ponto nos traz à terceira nova característica dos estudos sobre EPP. Boa parte destes novos trabalhos são metodologicamente comparativos – limitados, no entanto, a países considerados “de economia avançada”. Devido à limitação de informações padronizadas em escala global, o uso de indicadores tais quais taxas de encarceramento, de desemprego e índice de GINI, torna possível o desenvolvimento de estudos comparativos entre diferentes países, além de estudos longitudinais (CRUTCHFIELD; RAMIREZ, 2012). Ao possibilitar tais abordagens, a utilização destes indicadores permite também a eventual expansão do nível de abstração de certas teorias e a testagem de hipóteses gerais, comparando diferentes tipos contemporâneos de economia política. De certa maneira, é isso o que Sutton (2004), Cavadino e Dignan (2006), Lacey (2008) e Lappi-Seppälä (2008; 2010) fazem, concluindo que países neoliberais19 são mais punitivos que os demais.20
Aqui reside um ponto problemático nos estudos contemporâneos sobre EPP, ao menos em relação à realidade para além dos países centrais. Estudos que incorporam países latino-americanos apresentam resultados distintos (SOZZO, 2016; 2017; ITURRALDE, 2019; DAL SANTO, 2019b; 2020a). “Neoliberalismo” enquanto tipologia de economia política não é suficiente para explicar a ascensão, nem a intensificação do encarceramento em massa em tal região (MARTINS, 2018; DAL SANTO, no prelo). Ainda que alguns autores rechacem a hipótese de ter o Brasil superado tal modelo durante o período o qual o pais foi governado por Lula e Dilma (SERRA, 2019; BRANDARIZ GARCIA; BOZZA, 2014), parece pouco possível argumentar o mesmo em relação a países como Venezuela, Bolívia e Equador, os quais também têm experienciado um considerável aumento em suas taxas de punição (PALADINES, 2016; HERNANDEZ; GRAJALES, 2016; SOZZO, 2017). Isso potencialmente indica que, na melhor das hipóteses, certas relações, aspectos e características têm sido negligenciados ou desconsiderados – tanto em países centrais, quanto periféricos. Visando à superação deste impasse, proponho dois caminhos possíveis – e complementares – para que a EPP seja capaz de explicar tendências e padrões de punição na periferia do capitalismo: resgatar a categoria gramsciana “hegemonia” e se atentar mais a questões locais não abordadas nas análises provenientes do chamado ‘Norte Global’.
Aparentemente, um relevante elemento trabalhado a partir da tradição da EPP foi perdido, ou secundarizado, pelos estudos mais recentes sobre EPP. Hall e seus colaboradores (1978), assim como Melossi (1985; 1993; 2000), extraíram a centralidade da hegemonia, em termos gramscianos, na questão da economia política, analisando sua conexão com a punição e o sistema penal. Trata-se de uma abordagem diversa para compreender as relações entre economia política e punição, o que ressalta diferentes instâncias e atores envolvidos neste processo. Portanto, na medida em que essa abordagem possui grande potencial para orientar estudos posteriores no campo, retorno ao trabalho destes autores, destacando brevemente suas contribuições e ideias centrais.
Para tanto, é necessário primeiro retomar o desenvolvimento de Gramsci sobre hegemonia e o exercício de poder do Estado capitalista, para então compreender de que maneira punição e sistema penal se relacionam com a economia política. Gramsci ([1948]1977) estabelece que o Estado capitalista exerce dois tipos de poder: consenso e coerção. Enquanto coerção se refere ao uso da forca pelos aparatos estatais (tais quais polícia, tribunais, exército etc.), produzindo autoridade e violência, consenso corresponde à produção de hegemonia, a qual possibilita a formação de uma “civilidade” e é reproduzida por organizações não necessariamente estatais, localizadas na sociedade civil (igreja, escolas, sindicatos etc.). Hegemonia, em termos gramscianos, é o domínio cultural, moral e ideológico de um grupo sobre outros, estabelecendo, portanto, uma determinada visão de mundo de certa forma compartilhada por diferentes segmentos e grupos sociais.21 Nesse sentido, Hall et al. (1978, p. 218) sustentam que a hegemonia, em última instância, assegura as condições sociais de longo prazo necessárias para a reprodução contínua do capital.
Portanto, para garantir a universalização da visão de mundo da classe dominante,22 o aparelho estatal opera de modo a defender sua hegemonia. Dessa forma, coesão e estabilidade sociais são preservadas. No entanto, caso a produção de consenso falhe por qualquer razão, haverá uma crise de hegemonia e autoridade. Ao invés de consenso, o exercício do poder se volta para a coerção pelos mecanismos e aparelhos coercitivos do Estado, a fim de desenvolver o que Hall e seus colegas (1978, p. viii e 217) chamam de consenso autoritário. O direcionamento e a liderança, produzidos por meio do consenso, dão lugar à dominação, conquistada pela coerção, como um resultado complexo.
Trazendo essa perspectiva ao campo criminológico, Melossi (1993: 259) argumenta que as taxas de punição variam de acordo com a percepção e resposta das elites em relação a períodos críticos. Segundo Melossi, variações nas taxas de punição são o resultado de relações entre mudanças na estrutura social, expressadas em parte por indicadores econômicos e mudanças nos vocabulários sobre crime e punição. Para ele, a percepção das “elites morais”23 sobre possível crise de sua própria hegemonia – seja ela devido a mudanças políticas, socioeconômicas ou culturais – é crucial para determinar suas ações destinadas à sua defesa e proteção (Melossi, 1993; 2000). A situação da economia24 e do mercado de trabalho podem ou não contribuir para a formação de tais “situações críticas”. Portanto, essa perspectiva atribui centralidade à percepção das elites sobre crises sociais, o que desarma boa parte das críticas recebidas pela EPP em relação ao seu eventual caráter economicista.
A este ponto, é valido destacar que tanto alguns trabalhos sobre EPP, quanto críticas destinadas a essa tradição de modo generalizado, certamente se baseiam em uma concepção superficial de economia, a qual Marx se refere como “economia vulgar” ([1867]2013). Neste âmbito, debates sobre “economia” acabam sendo reduzidos a questões “técnicas”, como PIB, taxa de juros ou inflação, por exemplo. Não se considera, nestes estudos e críticas, economia política enquanto teoria social e estudo dos elementos constitutivos e do funcionamento da sociedade, do conjunto da vida social ao qual se inserem as relações de produção. A análise sobre relações sociais em uma dada estrutura social é substituída por análise de meros indicadores econômicos.
Retornando ao debate sobre a percepção das elites, Melossi (2000) argumenta que estas “apertam os cintos” quando sentem suas relações dominantes ameaçadas. Trata-se de movimento direcionado à preservação de sua hegemonia, de sua moral, de sua visão dominante de mundo. Em termos práticos, isso significaria “mudar representações de crime e criminalidade” e, consequentemente, tornar a punição mais severa e frequente. A mudança de tais representações remodelaria o funcionamento de diversas instituições sociais relacionadas ao controle do crime. Este é o mesmo entendimento de Hall e seus colegas (1978) em relação ao surgimento da sociedade de “lei e ordem”. Os autores consideram esse movimento como um controle coercitivo, pelo Estado, da luta de classes e de uma crise na hegemonia por volta dos anos 1960. Este cenário, argumentam os autores, teria sido provocado tanto pela fraqueza crescente da estrutura econômica do capitalismo britânico, quanto pelas revoltas estudantis, pelo fortalecimento de partidos comunistas e pela organização de hippies, mulheres e negros. Trata-se, portanto, de um cenário de polarizações sociais, econômicas e políticas acontecendo simultaneamente.
Uma análise de EPP centrada na questão da hegemonia – e, portanto, desassociada das chamadas interpretações economicistas – pode clarear diversos pontos em relação ao supracitado impasse sobre a EPP em falhar ao compreender recentes tendências de punição na América Latina. Este inclusive parece ser o caminho traçado por Beckett e Godoy (2015), as quais argumentam ser o incremento punitivo observado nos países latino-americanos o resultado de uma reação à transição para o retorno à democracia na região. Esta transição, sustentam as autoras, representaram uma ameaça a certos grupos das elites nacionais, na medida em que o compromisso com o enfrentamento a desigualdades históricas na região potencialmente promoveria consideráveis mudanças nas ordens social e econômica, representando, portanto, uma “ameaça aos privilégios arraigados” de tais grupos. Nesse sentido, “opositores ao aprofundamento da democracia invocavam cada vez mais a linguagem do crime e da punição” (BECKETT; GODOY, 2015, p. 161). Essa abordagem aparenta, portanto, ter melhor potencial para compreender a expansão punitiva observada não apenas no Brasil, mas em outros países da região, mesmo em um período de redemocratização e de certos avanços sociais.
Um outro aspecto que tem muito a contribuir para os estudos sobre EPP na América Latina é a superação do anglocentrismo ainda existente – não apenas na criminologia, mas nas ciências sociais de modo geral. Em realidade, isso não constitui um debate novo no campo. Desde a década de 1970, quando da chegada da criminologia crítica no Brasil e na América Latina, muitos autores têm discutido a necessidade de desenvolver uma criminologia (crítica) latino-americana ou brasileira (e.g. OLMO, 1981; PRANDO, 2006; ANDRADE, 2012; ver mais em LEAL, 2017). No entanto, tal questão permanece mal resolvida, e os debates criminológicos contemporâneos tendem, ainda, a ser orientados por noções e categorias desenvolvidas a partir de experiencias de países centrais, tais quais “excepcionalismo” e “giro punitivo”.25
Em relação à EPP, um problema seria enquadrar a realidade dependente e periférica dos países da América Latina a uma das tipologias de economia política utilizadas nos estudos comparativos entre países centrais (em regra, como país neoliberal). Na medida em que características de estados dependentes, tais quais a condição de superexploração ou seus respectivos lugares na divisão internacional do trabalho (ver mais em MARINI, [1973]2000; SANTOS, 2000; BAMBIRRA, [1972]2013; MARTINS, 2011), são integradas às pesquisas criminológicas, estas têm sua capacidade analítica consideravelmente ampliadas.
Tais contribuições se dão tanto em dimensões qualitativas, quanto quantitativas da punição. Qualitativamente, a ausência de caráter disciplinador nas prisões, configurando o que se chama de prisões-depósito enquanto nova tendência prisional, é colocada em xeque. Isso não significa, no entanto, que a questão da disciplina é necessariamente atrelada ao trabalho prisional,26 como teria sido em um local e contexto histórico específico (MELOSSI; PAVARINI, 1977). Ao invés disso, o caráter disciplinador da punição emergiria por meio das próprias relações e regras experimentadas e estabelecidas cotidianamente no interior das prisões, as quais remetem, por exemplo, à subordinação (DIETER, 2017; DAL SANTO, 2019a; 2019b), de modo a reproduzir relações também externas à prisão (FREITAS JR, 2017). O mesmo vale para estudos que retomam à história da punição no Brasil, encontrando a correspondência da disciplina pelo castigo, desde o século XIX, nas relações corporais violentas (KOERNER, 2006; DIETER, 2012), reproduzindo relações de domínio em um contexto de prevalência de trabalho físico e distintos, portanto, de qualquer modelo panóptico de prisão.
Quantitativamente, além da questão explorada na seção sobre hegemonia, um olhar específico à realidade periférica dependente pode auxiliar também na compreensão da variação de taxas de punição. Para ilustrar tal questão, elementos como as tardias urbanização da sociedade e modernização do Estado brasileiros podem contribuir consideravelmente. Na medida em que populações começam a migrar de zonas rurais para zonas urbanas, outros tipos de controle e de punição passam a ser exercidos. Essas migrações podem explicar o aumento do uso do encarceramento em certos momentos da história brasileira, bem como a mudança de patamar do cárcere enquanto elemento de controle e punição na sociedade brasileira (DAL SANTO, no prelo, p. 108-110). O processo de modernização tardia de Estados periféricos igualmente afeta de forma relevante os padrões de punição e, consequentemente, as taxas de encarceramento. Nesse sentido, Fonseca (2018a; 2018b) observa como transformações de nível estrutural, envolvendo processos tardios de industrialização, impactaram a própria expansão e modernização das instituições estatais, incluindo aquelas vinculadas ao controle do crime, conferindo ao Estado maior capacidade de punir.
Certo é que, mesmo diante da incorporação de distintos elementos políticos, institucionais e culturais ao quadro analítico da EPP nos países centrais, configurando a construção da chamada “EPP pós-reducionista”, os elementos abordados nesta seção passam longe dos estudos contemporâneos sobre EPP no “Norte Global”. Isto porque tais questões estão distantes, tanto geográfica, quanto historicamente, da realidade de tais países.
Demonstrei, nesse trabalho, como a economia política da pena ainda tem muito a contribuir para o debate sobre punição. Para tanto, seus aparentes dilemas contemporâneos devem ser superados. Algumas alternativas foram aqui indicadas, o que evidentemente não exaure o debate. O resgate da categoria “hegemonia” para a centralidade das análises sobre punição e economia política ressalta a importância do uso do aparato penal do Estado na defesa da hegemonia das classes dominantes, quando esta se encontra ameaçada. Sua incorporação ao quadro analítico da EPP serve também como satisfatória resposta às críticas sobre o eventual caráter determinista supostamente estabelecido nas próprias fundações desta tradição.
Além disso, para que a EPP possa contribuir à compreensão de padrões e tendências de punição na América Latina, é necessário que pesquisadores diferenciem características centrais da economia política na periferia e no centro do capitalismo, desvinculando-se de categorias e conceitos impróprios, e substituindo-os por outros mais adequados e vinculados às nossas próprias relações e condições. Nesse sentido, elementos como tardias urbanização e modernização do Estado são elementos desconsiderados nas análises produzidas nos países centrais, mas fundamentais para compreender as mudanças e continuidades da punição nas regiões periféricas. Não basta, portanto, alegar que o Estado brasileiro é dependente e periférico e, por isso, pune mais, e de modo mais severo. É necessário compreender de que forma concreta a relação de dependência afeta transformações (e permanências) na punição local, tanto quantitativa, quanto qualitativamente.
Portanto, cabe a nós, na periferia do capitalismo, pensar nossa própria realidade, sem que isso signifique, por um lado, dispensar as relevantes contribuições da EPP ao debate sobre punição feitas até o presente, ou, por outro lado, reproduzi-las de maneira acrítica.
Doutorando em Criminologia pela Universidade de Oxford (2019-). Professor Visitante em Criminologia na Universidade de Roehampton (Reino Unido). É Assistente de Pesquisa no Centro de Criminologia da Universidade de Oxford e no Departamento de Criminologia e Sociologia da Universidade de Hull (Reino Unido). É também 'Graduate Teaching Facilitator' na Faculdade de Direito da Universidade de Oxford. Mestre em Criminologia Crítica e Segurança Social pelas Universidades de Bolonha e Pádua (Itália) (2018). Pós-graduado em Direito Penal pela Universidade de Coimbra (2016). Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011-16). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6576-3151. E-mail: luiz.dalsanto@crim.ox.ac.uk