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Construindo a partir de Marx: reflexões sobre “raça”, gênero e classe
Revista Direito e Práxis, vol. 13, núm. 3, pp. 2079-2101, 2022
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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Recepção: 15 Novembro 2021

Aprovação: 04 Dezembro 2021

DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2021/63501

Eu sei que não estou sozinha. Deve haver centenas de outras mulheres, talvez milhares, que se sentem como eu. Pode haver centenas de homens que queiram que as mesmas mudanças drásticas aconteçam. Mas como se relacionar com eles? Como podemos interligar nossa própria luta e objetivos com essa miríade de pessoas hipotéticas, pessoas que estão completamente escondidas ou camufladas por estereótipos e/ou generalidades de “plataforma” como qualquer novo movimento que parece surgir? Eu não sei. Não gosto dessa sensação de estar sozinha quando está claro que será preciso multidões trabalhando juntas ao redor do mundo para que uma mudança radical e positiva seja imposta a esse hediondo status quo que desprezo em todo o seu poder avassalador (Jordan 1989, p. 115).

Introdução

Atualmente, é convencional nos círculos acadêmicos e políticos falar de “raça” ao mesmo tempo em que se fala de gênero e classe. É mais ou menos reconhecido que a “raça” pode ser combinada com outras relações sociais de poder e que elas poderiam mediar e intensificar umas às outras1. Essa combinação de “raça”, gênero e classe é frequentemente expressa através do conceito de “interseccionalidade”, no qual três vertentes particulares de relações sociais e práticas ideológicas de diferença e poder são interpretadas como que surgindo em seu terreno social específico e, em seguida, cruzando-se “inter-seccionalmente” ou de forma agregada2. Diferentes problemas sociais são reunidos para que se crie, a partir desta reunião, um momento de experiência social.

No entanto, quando se fala de experiência, tanto os não-brancos como os brancos que vivem no Canadá e no Ocidente sabem que essa experiência social, ao ser vivida, não é uma questão de interseccionalidade. Sua sensação de estar no mundo, texturizada através de inúmeras relações sociais e formas culturais, é vivida ou sentida ou percebida em conjunto e ao mesmo tempo. A presença de uma mulher não-branca da classe trabalhadora (negra, sul-asiática, chinesa, etc.) em seu ambiente habitual racializado não é divisível, não pode ser separada e seriada. Sua negritude, seu sexo e sua personalidade neutra em termos de gênero enquanto trabalhadora, se misturam simultânea e instantaneamente em algo como uma identidade3. Essa identificação está tanto nos olhos do observador como no próprio sentido de presença social que essa trabalhadora tem sobre si mesma, capturado por aquele olhar. O mesmo se aplica a uma mulher branca e, no entanto, quando somos confrontadas com esta questão do “ser” e da experiência, temos dificuldade de teorizá-los nos termos de uma ontologia social. Qual poderia ser a razão desta inadequação de conceptualização que não consegue captar tal experiencialidade formativa? Se ela é vivida, então como pode ser pensada e como podemos superar nossas deficiências conceituais? Minha intenção aqui é sugerir uma possível teorização que possa abordar essas questões, ou pelo menos compreender as razões pelas quais precisamos questioná-las em primeiro lugar. Não se trata de simplesmente responder a um desafio teórico, mas também a um desafio político. Esta é uma peça básica no quebra-cabeça da construção da democracia social.

Para que a democracia seja mais do que uma mera forma constituída por rituais políticos que apenas servem para enraizar o domínio do capital e lançar água benta sobre as desigualdades sociais existentes, ela deve ter um conteúdo popular e realmente participativo. Esse conteúdo deve conter reivindicações sociais e culturais concentradas em movimentos sociais e organizações que trabalham através de processos políticos visando a obtenção de direitos populares em todos os níveis. Tal política precisa de um entendimento social que conceba as formações sociais como fenômenos complexos, contraditórios e inclusivos de interações sociais. Não basta que seja um simples exercício aritmético de adição ou intersecção de “raça”, gênero e classe de forma estratificada. Essa política não pode apresentar a “raça” como fenômeno cultural, e o gênero e a classe como fenômenos sociais e econômicos. Ela precisa superar a fragmentação completa do social em tais aspectos elementares de sua composição. Por exemplo, não se pode dizer que um sindicato seja uma organização de luta de classes se ele só pensa a classe em termos econômicos, sem ampliar o conceito de classe para incluir “raça” e gênero em sua definição formativa intrínseca. Além disso, ele tem que tornar sua compreensão sobre a classe aplicável sobre essa mesma classe, enquanto base socialmente composta4.

Fora dos sindicatos – que são explicitamente organizações de “classe” –, a prática usual nos movimentos de justiça social atuais é adotar o que se chama de política de “coalizão”, sem discriminar as plataformas sobre as quais essas organizações foram constituídas5. Este ativismo de coalizão não é apenas uma questão tática, mas reflete a mesma lógica agregadora pluralista de compreensão do social. Tanto organizações que se baseiam na classe quanto organizações que não se baseiam nesta se unem por conta do seu interesse compartilhado em determinadas questões. Mas nos chamados “novos movimentos sociais”, as próprias questões de classe e capital são consideradas desnecessárias, se é que são de alguma forma consideradas6. Assim, as demandas populares em termos de gênero, “raça”, sexualidade, identidade, etc., são formuladas primordialmente como exteriores à classe e ao capital, e em termos culturais. Nessa estrutura política, o “antirracismo” se torna uma questão de multiculturalismo e etnicidade, uma vez que os aspectos socialmente relacionais da racialização incluídos no “antirracismo” são convertidos em uma demanda cultural. Não é de surpreender que, nos últimos tempos, tenha havido um forte declínio de trabalhos sobre “raça” que combinem senso comum hegemônico/cultural com o funcionamento da classe e do Estado7. A virada para o pós-modernismo e o afastamento do marxismo e da análise de classe resultou na crescente valorização das normas e formas culturais e transformou as teorias do discurso em veículos para a política “radical”. Se no passado tivemos que lidar com o economicismo e o reducionismo de classe dos marxistas positivistas, agora a nossa batalha é contra o “reducionismo cultural”. Nenhuma destas leituras da ontologia social nos permite fazer jus à política pela justiça social. Nossa jornada teórica deve começar em outro lugar para chegar a outro destino.

1. Teorizando o social

A teorização e a política que sugiro não são exercícios de abstração. Elas não se furtam a pensar ou a se organizar em torno de questões específicas relacionadas à economia, à cultura ou à política. Elas podem ser altamente específicas ou locais quanto ao seu escopo – sobre bairros ou pessoas sem-teto em Toronto, por exemplo – ou falar de problemas culturais. Mas usando estes diferentes pontos de entrada no social, elas têm de analisar e formular as suas questões em termos de problemáticas políticas que mostrem como estas questões particulares ou locais só surgem em um contexto mais amplo ou extralocal de relações socioeconômicas e culturais. Se elas são questões “específicas”, temos de perceber que é porque são “específicas” de um conjunto geral, maior, de relações sociais, estruturais e institucionais8. Pode, por exemplo, o tipo de privação do acesso à moradia vivido em Toronto ser possível fora da forma como o desenvolvimento econômico e social capitalista tem ocorrido no Canadá como um todo? Para corrigir os erros neste caso, é preciso pensar e investigar para além da situação imediata; é preciso ir acima e por detrás dela. Também não adiantaria pensar na “pobreza” como uma questão ou um problema por si só (para ser então acrescentada à “raça”, classe ou gênero), ou concebê-la como sendo exterior ao capital.

Apesar dos frequentes discursos rasos sobre teorização social reflexiva ou mesmo de alguns excelentes trabalhos, especialmente de historiadores, sobre classe, escravidão, colonialismo e imperialismo, precisamos nos aventurar em uma leitura mais complexa do social, onde cada aspecto ou momento deste pode ser apresentado como refletindo outros, onde cada pedacinho dele contém o macrocosmo em seu microcosmo – como disse Blake, “o mundo em um grão de areia”. O que temos ao invés disso é uma próspera indústria teórica que rompe a integridade do social e orgulhosamente valoriza os “fragmentos”, preferindo apresentá-los em uma incoerência não-relacional, ou adicioná-los sempre que necessário. De acordo com tais abordagens, como dito anteriormente, o social constitui uma ordenação das partes reguladoras – a velha aritmética utilitarista – e, propriamente falando, é inconcebível. Marxistas e neomarxistas também sucumbiram a um debate incessante sobre modernismo e pós-modernismo, permitindo que a categoria estética e moral do “moderno” os distraísse. Procurando ultrapassar os termos desse debate, gostaria de voltar à própria formulação de Marx do “social” – do ontológico ou do existencial – em termos ou conceitos diferentes. Aqui, parto do princípio de que o “social” significa uma complexa formação socioeconômica e cultural, trazida à vida através de uma miríade de relações, organizações e instituições sociais e históricas finitas e específicas. Envolve agentes humanos vivos e conscientes e o que Marx chamou de sua “atividade prática, humana-sensível” (MARX; ENGELS, 2007, p. 534).9 Aqui, cultura e sociedade não se encontram numa relação mecânica de base econômica e de superestrutura cultural. Todas as atividades do e no social são relacionais e são mediadas e articuladas com as suas formas expressivas e incorporadas de consciência. Aqui, práticas significantes e comunicativas são momentos intrínsecos do ser social. Usando tal formulação do social, minha principal preocupação é realizar uma crítica marxista do que a “raça” significa para a “classe” e o gênero em particular. Em outras palavras, estou tentando socializar a noção de “raça”.

Antes de articular minha teoria do social, gostaria de me debruçar brevemente sobre o hábito do pensamento fragmentado ou estratificado tão predominante entre nós, que acaba por apagar o social da concepção de ontologia. Este mesmo hábito pode também produzir um gesto avaliativo pelo qual o “cultural”, por exemplo, se torna secundário, aparente ou ilusório, e a “classe”, entendida como uma função da “economia”, torna-se a força criativa “verdadeira” ou fundamental da sociedade. A cultura como superestrutura “reflete” ou “corresponde” à base econômica. Por outro lado, temos o hábito conceitual inverso pelo qual o poder formativo do discurso determina o social. Ao tornar-se essencialmente discursivo, o social torna-se um objeto do pensamento. As epistemologias atingem uma aura de exclusividade, que naturalmente não é nova e sobre a qual Marx fala na primeira de suas Teses sobre Feuerbach10. Através destes dois modos redutivos, a política de classes pode ignorar a “raça” ou o gênero, ou a política baseada em qualquer um destes dois pode ignorar a classe. O marxismo positivista também pode classificar a importância das questões sociais de luta ao relegar as relações de gênero ao status de “contradições secundárias”, enquanto “raça” ou casta são vistas como meras formas “culturais” de desigualdade. Atualmente, os movimentos de trabalhadores predominantes no Ocidente rejeitam frequentemente as questões de “raça” como políticas de discurso ou de identidade étnica/cultural. Por outro lado, os ativistas da “raça” podem descartar a política de classe ou anti-imperialista como política “dos brancos”. O gênero ou o patriarcado podem ser considerados totalmente supérfluos por ambos os grupos, enquanto as feministas que teorizam a comunidade a partir do ponto de vista de seu gênero podem acreditar que a “raça” e a classe são dispensáveis ou não possuem significado intrínseco11. Além disso, todos esses grupos podem achar que o que não consideram importante também pode ser desagregador e prejudicial para o avanço dos seus movimentos. Minha principal preocupação, por outro lado, é ultrapassar essas posições conceituais e oferecer uma crítica marxista inclusiva com uma interpretação social da diferença, especialmente no que diz respeito ao que a “raça” significa para a classe e o gênero. Em outras palavras, como a classe pode ser transformada de um conceito econômico em um conceito social, que implica constitutivamente tanto as relações sociais quanto as formas de consciência. O que eu pretendo é melhor apresentado por Edward P. Thompson em A Formação da Classe Operária Inglesa, quando ele discute a classe e a consciência de classe como criações ativas de indivíduos sociais12.

Não é novidade ouvir que a cultura do pensamento positivista que permeou o mundo intelectual do século XIX europeu (especialmente o inglês) e o prestígio concedido a um cientificismo quantitativo alterou o tom do pensamento social de seu teor filosófico anterior. Noções como “conhecimento” e “ciência” assumiram um caráter decididamente tecnológico e quantitativo, e a isso foram acrescentadas noções estritas de causalidade, bem como a ideia de “leis” sociais, paralelas às “leis naturais” – como um ramo de estudo da evolução humana. Se olharmos para o trabalho tardio de Engels, por exemplo, podemos ver como o marxismo posterior absorveu esta cultura de cientificismo e positivismo utilitarista13. À medida que a economia emergiu enquanto ciência, uma vez que podia prestar-se mais plenamente à quantificação, o marxismo deixou de ser uma “crítica” da economia política, como intentado por Marx, para se tornar economia política. A noção de economia veio para substituir as noções do social. Como tal, a organização social e a sociedade tornaram-se enunciações ou funções da economia. Relações sociais vividas e sujeitos em experiência [experiencing subjects] passaram a ser submetidos a interpretações unidimensionais do social; isto é, interpretações das relações ou estruturas econômicas. Este hábito de cientificismo perdurou, irrompendo, por exemplo, na argumentação de Louis Althusser a respeito de um “corte epistemológico” na obra de Marx – periodizando-a em filosófica e científica14. A teoria e a prática do marxismo ou socialismo “científico” tornou-se um dogma dos partidos comunistas em todo o mundo.

Esse marxismo científico ou positivista, com sua compreensão truncada e reificada do social, baseou-se, curiosamente, muito mais em algumas características do pensamento liberal do século XVIII do que nos próprios escritos de Marx. Uma dessas características nada desprezível é a forma compartimentalizadora de pensamento que rompe a integridade formativa e complexa do todo social e cria segmentos ou esferas do “econômico”, do “político” e do “cultural”, que na realidade são ontologicamente inseparáveis. Esta separação das esferas sociais foi essencial para o Estado e a sociedade burgueses em ascensão. Na democracia burguesa ou liberal, apesar das suas pretensões universalistas, a igualdade só poderia ser formal e, portanto, as noções de “liberalidade” e “democracia” não poderiam ser realmente concretizadas. Mas esta forma de pensar em esferas autônomas tornou-se hegemônica ou naturalizada o suficiente para que o marxismo programático, político, possa, talvez até inconscientemente, recair sobre a mesma separação de esferas. Em termos gerais, a “classe” torna-se assim uma categoria econômica abrangente, enquanto o gênero/patriarcado é considerado uma categoria social e “raça”, “casta” ou “etnia”, categorias da cultura. Não é difícil perceber então como a luta de classes ou a consciência de classe pode ser teorizada – ou como se pode agir baseado nela – subtraída da “raça” e do gênero, ou vice-versa. Mas nem todos os marxistas se submeteram a esta leitura liberal/burguesa fragmentária e economicista do social. “Marxistas culturais” como Georg Lukaćs, Walter Benjamin ou Raymond Williams – assim chamados por conta de sua diferença com relação a outros marxistas – exploraram ativamente as relações formativas entre cultura e sociedade em seu sentido mais amplo, enquanto Antonio Gramsci teorizou sobre as relações entre estes e as instituições do Estado e da sociedade civil15.

2. Socializando a “raça”

De início, tenho de afirmar que o fenômeno social a que me refiro como “raça” não é uma distinção biológica inerente às próprias pessoas. É uma maneira, e uma maneira de poder inscrito, de ler ou estabelecer diferenças, e encontrar formas duradouras de reproduzir tais leituras, organização e prática. Grosso modo, é isso o que as pessoas sinalizam quando dizem que a “raça” é uma construção. A inexistência da “raça” como uma entidade física tem sido comentada por darwinistas críticos, como Stephen J. Gould (2014 [1981]), por exemplo. Isto explica o meu uso das aspas, evitando o perigo do termo ser considerado como um fato da natureza. “Raça”, portanto, é nada mais, nada menos que uma organização social ativa, uma constelação de práticas motivadas, consciente e inconscientemente, por imperativos políticos ou de poder, com formas culturais implícitas – imagens, símbolos, metáforas, normas que abrangem desde o cotidiano até o institucional. Esta é a visão que eu desejo sustentar através da minha teorização aqui.

Se considerarmos a “raça” como um aglomerado conotativo e expressionista de relações sociais no terreno de certas relações históricas e econômicas, e a classe como um conjunto de relações sociais orientadas para a propriedade com práticas significantes, é fácil perceber como elas estão implicadas uma na outra desde a sua formação. Desse ponto de vista, pode-se dizer que a “raça” moderna é uma cultura social do capitalismo colonialista e imperialista. A “raça”, portanto, é uma coleção de discursos do colonialismo e da escravidão firmemente enraizada no capitalismo em seus diferentes aspectos ao longo do tempo. Tal como está, a “raça” não pode ser desarticulada da “classe”, assim como o leite não pode ser separado do café uma vez misturados, ou o corpo separado da consciência em uma pessoa viva. Essa inseparabilidade, essa relação formativa ou figurativa, tanto é verdadeira para o processo de extração de mais-valia no capitalismo, quanto é uma prática de senso comum ao nível da vida social. A participação econômica, o valor do trabalho, a participação e os direitos sociais e políticos, a marginalização ou a inclusão cultural, fazem todos parte desta formação social global.

Essa integridade entre “raça” e classe não pode existir independente da organização social fundamental do gênero, ou seja, da divisão social do trabalho específica do sexo, com normas mediadoras e formas culturais. Várias relações de propriedade – inclusive de corpos, de trabalho produtivo e reprodutivo – institucionais, normativas e de senso comum cultural, se encontram, portanto, em uma relação reflexiva e constitucional16. É esta a razão pela qual as corporações multinacionais se voltam para o terceiro mundo quando contratam uma força de trabalho esmagadoramente feminina para aumentar a sua margem de lucro. Em cada espaço social existe um conhecimento normalizado e experiencial, bem como ideológico, a respeito do trabalho que vale menos. O verdadeiro processo de realização do capital não pode estar fora de uma dada forma ou modo social e cultural. Não há capital que seja uma abstração universal. O capital é sempre uma prática, um conjunto determinado de relações sociais – relações que também são culturais. Desta forma, “raça”, gênero e patriarcado são inseparáveis da classe, pois qualquer organização social repousa sobre relações intersubjetivas de corpos e mentes marcadas pela diferença socialmente construída no terreno da propriedade privada e do capital.

3. Voltando à Marx

Em todas as formas de sociedade, é uma determinada produção e suas correspondentes relações que estabelecem a posição e a influência das demais produções e suas respectivas relações. É uma iluminação universal em que todas as demais cores estão imersas e que as modifica em sua particularidade. É um éter particular que determina o peso específico de toda existência que nele se manifesta (MARX, 2011, p. 59).

Para realizar uma teorização reflexiva do social, é útil voltar a alguns conceitos-chave utilizados pelo próprio Marx. Desses, vou me concentrar principalmente em três: o “concreto” (Grundrisse), “sociedade civil” (A Ideologia Alemã, O Manifesto Comunista), e “ideologia” (A Ideologia Alemã, A Sagrada Família, A Questão Judaica). De maneira relacionada, poderíamos usar noções como “mediação”, “reificação” e “fetichismo”, que embora parcialmente articuladas pelo próprio Marx, foram desenvolvidas por marxistas. É interessante que, desses marxistas, tais como Lukaćs, Benjamin, Althusser, Dorothy E. Smith, Frederic Jameson, para citar alguns, nenhum foi economista político. Como teóricos críticos sociais e culturais, eles procuraram libertar-se de um entendimento economicista ou reducionista da classe, bem como de uma compreensão do social que fosse reducionista em termos de cultura, conforme o social é elaborado em particular pelo capital.

Marx adaptou o conceito hegeliano do “concreto” em suas notas sobre o Capital compiladas como Grundrisse. Parece-me que o seu tratamento deste conceito guarda correlação com a epistemologia reflexiva anteriormente delineada como materialismo histórico em A Ideologia Alemã. Sobre esta noção, ele faz as seguintes observações:

O concreto é concreto porque é a síntese de múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação (Ibid., p. 54; grifos nossos).

Podemos ver que o “concreto” enquanto social tem um caráter duplo para Marx. É uma categoria mental ou conceitual, por um lado, e, por outro, uma formação social específica já existente. Portanto, é tanto “um ponto de partida” (enquanto o social) como “um ponto de chegada” (enquanto teoria). Algo que é “concreto” não é como um “objeto” que é visível, como uma mesa ou uma cadeira, mas, no entanto, sua “concretude” é uma forma determinada de existência social. Ela é concretizada por relações sociais específicas com formas de consciência e práticas mediadoras e expressivas, bem como reprodutivas. De fato, essa forma social “concreta” deve ser vista em contraste com um fato ou um “objeto”, pois não é reificada/fixa, hipostasiada. É uma formação fluida, dinâmica e significativa, criada por sujeitos vivos, no tempo e no espaço realmente vividos, mas com características particulares perceptíveis que a implicam em outras formações sociais e, ao mesmo tempo, a tornam específica. Nessa perspectiva, então, a “raça”, como dito anteriormente, é um agrupamento conotativo de relações sociais, implicado em outras relações codificadas como “econômicas” e “sociais”, quais sejam, classe e gênero. Se se alargasse a “classe” enquanto uma categoria sociológica, fazendo-a representar todo um conjunto de relações sociais, organizações e práticas significantes, ela não poderia ser articulada no interior de formações sócio-históricas específicas como a nossa sem incluir “raça”. Por essa razão, pode-se dizer que a “raça” é o discurso ideológico, bem como o senso comum cultural de um capitalismo colonial, imperialista e patriarcal. Em tal terreno histórico existente, é impossível desarticular “raça” de “classe”. Desnudada de sua armadilha metafísica, a noção de “concreto”, então, no uso de Marx, torna-se a de uma formação social sinalizando uma complexidade constitutiva. As relações e a organização social, ao mesmo tempo complementares e contraditórias, com acréscimos e inflexões históricos, entram na construção da ontologia social do sujeito-agente. Mas tal noção tem também a capacidade de conceitualizá-las de uma forma não-mecânica, não-serializada.

É sensato passarmos agora dos conceitos de “concreto” e “social” para a noção de “sociedade civil”, crucial para a epistemologia crítica de Marx17, e perceber sua íntima conexão com a noção de “modo de produção”. A ênfase de Marx aqui é sobre o modo, o terreno organizacional e social para a produção, bem como para a reprodução e sua política, administração e culturas respectivas. A Ideologia Alemã, onde ele apresenta suas ideias sobre a formação do social e a mudança social, é uma rica fonte para se entender a complexidade dos modos de produção conforme articulados por Marx. Libertando-se da separação qualitativa e ontológica entre a sociedade civil e o Estado, a economia e a cultura, e entre esfera política e pública e a privada e familiar, ele apresenta neste texto um espaço histórico/social integrado e em constante elaboração. É o cenário da luta de classes e da revolução. Esse movimento histórico e social não é apresentado como evolucionista e teleológico, e é atravessado tanto por formas de consciência resistentes como dominantes. Aqui estão alguns exemplos do que ele tem a dizer sobre a sociedade civil, o terreno para “o modo” ou o estilo e a forma de se organizar uma vida cotidiana para a produção da propriedade privada e a respectiva propriedade moral e cultural. Para Marx, a “sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a história, e quão absurda é a concepção histórica anterior que descuidava das relações reais, limitando-se às pomposas ações dos príncipes e dos Estados” (MARX; ENGELS, 2007, p. 39). Ele também trata a sociedade civil como “a organização social (…) que constitui em todos os tempos a base do Estado e da restante superestrutura idealista” (Ibid., p. 74).

Se examinarmos as afirmações de Marx, duas questões inicialmente prendem nossa atenção. Primeiro, que o “modo” do social é um modo dinâmico e integral. Por suas características enquanto processo formativo, ele não pode ser um processo aditivo. Essa natureza processual requer tanto aspectos temporais como espaciais que constituem uma forma específica aqui e agora que, no entanto, passará a ser algo diferente no futuro. Ao mesmo tempo, alguns aspectos desta formação que se encontram no presente estarão consequentemente também no passado. Não se pode separar essa forma social viva do ser e seu percurso formativo em partes componentes e ainda assim esperar que ela permaneça viva e se mova. Assim como um corpo humano desmembrado e dissecado não revela o segredo de uma vida consciente em evolução, um “modo” de produção não revela o seu ser social vivo quando considerado com suas relações sociais e formas de consciência segregadas, ainda que “interseccionadas”. É precisamente isso que está errado com o que se chama de “método interseccional”. Neste sentido, há que se concordar com aqueles românticos do século XIX com quem Marx compartilhou grande parte de seu weltanschauung ou sua visão de mundo –o todo é mais do que a soma de suas partes.

A segunda questão a se notar é a da cultura e da consciência. Está claro, a partir de afirmações explícitas, que a consciência não é um pensamento posterior da existência. Todas as atividades são atividades “práticas humana-sensível” e, como tais, realizadas por agentes e sujeitos conscientes. Daí a necessidade de Marx de apresentar a noção de “consciência prática”18 como um momento fundamental de todos os aspectos da forma de existência “concreta”. Nesse processo de aprendizado, mudança e transmissão, a vida continua, a história segue em frente e é feita – tanto consciente como subconscientemente. O gesto de forjar uma ferramenta primitiva, de esfregar dois pedaços de madeira, adivinhar as estações do ano através das estrelas, tornam-se a ciência e a tecnologia do nosso tempo presente. Nesse esquema, nenhuma maçã cai longe da vista de um olhar consciente. Não é de se admirar, portanto, que formas de estabelecer propriedade e reproduzir diferença baseadas na propriedade privada sejam uma parte básica da existência social, envolvendo a consciência e a institucionalização. Vista dessa forma, a “raça” é nada mais nada menos que uma forma de diferença, criando um modo de produção através de atos práticos e culturais de racialização. A “raça” é essa diferença e não pode existir por si própria19.

Se essa “unidade” ou integridade formativa do social for “violentamente rompida” (para usar outra expressão de Marx nos Grundrisse), então temos formas fenomênicas de objetos ou objetos de pensamento que são fetichizados. O trabalho dos teóricos marxistas é desconstruir essa forma objetiva e devolvê-la às suas diversas determinações sociais concretas. Como afirma Lukaćs, uma ontologia do ser social só pode ser compreendida de maneira adequada através de uma epistemologia que conecte o pensamento ao seu terreno sócio-histórico material (LUKÁCS, 2012). Assim, versões positivistas e empiricistas do marxismo não servem a tal propósito, pois tendem a retratar o concreto como não mais do que uma “coisa” ou um “objeto” – como um “fato” morto.

Tentativas de separar determinações mutuamente constitutivas e diversas para apresentar o resultado como realidade conduzem ao tipo de problema que acomete os movimentos sociais, que, para sua eficácia, deveriam integrar “raça”, gênero e classe. De maneira não intencional, produzimos objetos de pensamento reificados que desafiam a compreensão do social e são obstrutivos ou truncados. Confundimos a especificidade das formas ou figurações sociais com particularidades desconexas. Dessa forma, a cultura torna-se não-material, não-social, exclusivamente discursiva, enquanto a economia ou a política carecem de formas mediadoras de consciência. Como já foi apontado anteriormente, essa leitura fraturada resulta em ideologia, na pretensão da democracia burguesa de oferecer igualdade de cidadania ou de direitos, preservando e aperfeiçoando legalmente relações sociais reais de desigualdade e de dominação. É na crítica a essa economia política burguesa que Marx elabora reiteradamente sua teoria de um modo (como estilo, forma, combinação) de produção. Em oposição ao pensamento liberal/burguês, ele mostra como cada forma social específica serve como o microcosmo do macrocosmo social, assim como cada célula física do corpo contém todo o código genético. Tal modo de entendimento é antidualista e antipositivista. O modo de produção, como ele o apresenta nos Grundrisse, não é “organizado de maneira linear e causal”20. Ao empregar a noção de mediação entre as relações sociais e as formas de consciência – ambas práticas e ideológicas – ele mostra como todo um conjunto social expressivo e significante/comunicativo deve existir para que uma dada economia ou política funcionem e sejam eficazes. Vista assim “socialmente”, a classe não pode existir sem gênero ou sem cultura, nem pode a cultura existir sem gênero e sem classe.

É óbvio que o capital é uma prática social, não apenas uma abstração teórica. Como tal, os seus processos reprodutivos e de realização estão enraizados na sociedade civil, no seu terreno cultural/social. Neste sentido, a classe, para Marx e para outros, é uma categoria da sociedade civil21. A exploração do trabalho não é simplesmente uma proporção aritmética entre a força de trabalho e a tecnologia no terreno dos meios de produção. Fatores sociais e culturais do gênero e da “raça”, por exemplo, participam dessa exploração e com suas normas e formas implícitas organizam o espaço social que compreende o capitalismo como um modo de produção, uma organização da sociedade civil. Entramos num reino de mediações extensas e sutis que determinam formas, valores, processos e objetos de produção22. Portanto, “classe”, quando vista concretamente, ao mesmo tempo depende e excede o que chamamos de economia. Os debates outrora frequentes sobre o trabalho das mulheres no lar, os salários para o trabalho doméstico, e a relação da escravidão com o capitalismo revelaram as profundas raízes socioculturais da economia. Assim, poderíamos identificar “raça” e patriarcado/gênero com os momentos ditos extraeconômicos ou culturais/discursivos, porém sociais, do modo geral de produção capitalista, que tem sua própria ontologia social. É a essa relação formativa entre produção e reprodução que Marx sinaliza quando fala da mediação como “o ato em que todo o processo transcorre novamente” (Ibid., p. 49). Como modos de mediação, portanto, gênero ou “raça” não só ajudam a produzir a constante desvalorização da força de trabalho e da personificação de certos grupos sociais, mas também criam um senso comum cultural “codificado em cores” para o Estado e a sociedade em geral23.

A epistemologia que rompe a integridade do que é socialmente concreto em um nível conceitual e o coloca como uma propriedade do social é identificada por Marx em A Ideologia Alemã como “ideologia”. Ao contrário de muito do marxismo que nos é familiar, ele não considera a ideologia apenas em termos do seu conteúdo de pensamento, mas considera a própria forma de produção de conhecimento que gera tal conteúdo que dessocializa, despolitiza e desistoriciza a nossa compreensão social. Embora a preocupação primordial de Marx seja precisamente com o método que produz ideologia, ele também está profundamente preocupado com o conteúdo do pensamento ou as ideias que são geradas. Por serem ideias de dominação, elas precisam ser tratadas especificamente por nossas organizações políticas. Como tal, os discursos racializadores precisam ser considerados nestes termos. Em uma seção sobre classe dominante e ideias dominantes, Marx afirma:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual (MARX; ENGELS, 2007, p. 47).

Depois de oferecer esta visão críptica, embora altamente sugestiva, da criação de um “senso comum cultural” que legitima e reproduz as relações e instituições gerais de dominação, Marx afirma categoricamente que as “ideias dominantes”, ou o que chamamos geralmente de ideias predominantes, “são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação” (Ibid., p. 47). Não é de se surpreender que as relações dominantes do capitalismo colonial patriarcal produzam discursos patriarcais racistas de diferenças físicas, sociais e culturais. É exatamente isso o que acontece quando os discursos ou categorias ideológicas de “raça” ou de “natureza humana” são utilizados para “explicar” comportamentos sociais ou características culturais: na verdade, tal uso não passa de uma interpretação ideológica desses comportamentos ou características.

No entanto, mais importante é a questão de como são gerados esses discursos obstrutivos, substitutivos ou deslocadores de categorias ideológicas. Em A Ideologia Alemã, Marx faz um esboço dessa prática epistemológica, ligando-a à divisão social do trabalho manual e mental. Ele expõe as práticas disciplinares dos metafísicos através das quais ideias, eventos e experiências cotidianas são descontextualizados, sobregeneralizados ou sobreparticularizados com relação às suas relações e interesses sociais de origem. Em seguida, essas partículas empíricas de ideias desarraigadas são reconfiguradas em sistemas discursivos ou dispositivos interpretativos que assumem uma aparência de independência e substantividade. É útil tanto parafrasear como citar Marx aqui. Considerando a ideologia como um dispositivo epistemológico empregado na descontextualização e extrapolação, Marx nos oferece uma elucidação desse método. Sua elucidação revela o que ele chama de “truques”, e há três deles. Podemos começar, considerando “o curso da história”, por “separar[mos] as ideias da classe dominante da própria classe dominante e as tornar[mos] autônomas” (Ibid., p. 48). Depois de separá-las dos seus lugares sociais e históricos específicos, nós agora devemos permanecer “no plano da afirmação de que numa época dominaram estas ou aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condições da produção nem com os produtores dessas ideias” (Ibid., p. 48). Agora temos um conjunto de ideias ou discursos independentes da sua ontologia social. Essas ideias e discursos parecem gerar-se uns aos outros, aparentam ser sui generis, enquanto ao mesmo tempo se alega que eles moldam, ou mesmo criam, as próprias realidades sociais que a princípio lhes deram origem. Assim, a consciência dá origem à existência, ao invés da existência originar a consciência – entendida enquanto existência consciente. A vida imita ou ilustra a teoria. Apenas se “desconsiderarmos os indivíduos e as condições mundiais que constituem o fundamento dessas ideias”, então nós produzimos verdadeiramente “ideologia” (Ibid., p. 48). Podemos facilmente esquecer que noções como honra e fidelidade surgiram no tempo da aristocracia e que a dominação da burguesia produziu os conceitos de liberdade ou igualdade (Ibid., p. 48). Assim, “as ideias que dominam são cada vez mais abstratas, isto é, ideias que assumem cada vez mais a forma da universalidade” (Ibid., p. 48). Escondendo-se atrás da universalidade abstrata e da metafísica consagrada pelo tempo, as ideias de dominação, por exemplo as de “raça” ou gênero, representam seus interesses “como o interesse comum de todos os membros da sociedade” (Ibid., p. 48).

Intelectuais ou ideólogos orgânicos de um sistema de dominação, guardiães das relações de propriedade, assumem então a tarefa de desenvolvimento e sistematização desses conceitos descontextualizantes. Conhecemos bem a quantidade de trabalho filosófico, “científico” e cultural despendida na produção da “raça”, além das práticas despendidas na racialização de sistemas legais e políticos inteiros24. Desnecessário dizer que desviar a atenção das diferenças de poder organizado na vida cotidiana, na história e nas relações sociais só pode ser útil para fins de dominação e hegemonia, não de resistência.

Formas ideológicas disfarçadas de conhecimento. Elas simplesmente produzem discursividades incorporando partículas de ideias descontextualizadas, eventos ou experiências com consciência material de um tipo prático. O modus operandi destes “saberes dominantes” baseia-se em epistemologias criando essencialização, homogeneização (ou seja, desespecificação) e universalização a-espacial e atemporal. Como o truque mais poderoso da ideologia é separar um conceito das suas relações sociais de origem e mediação, até conceitos críticos e de resistência, como “classe” ou a categoria feminista de “mulher”, quando utilizados de tal maneira, podem se tornar obstrutivos e servir aos interesses das relações de dominação através da exclusão e da invisibilidade do poder contido nas relações de diferença. O mundo da teoria feminista tem sido atravessado por lutas em que se tornou evidente que a categoria “mulher”. em seu emprego dessocializado (classe/“raça”) e desistoricizado (colonialismo e imperialismo), tem ajudado a introduzir agendas políticas de mulheres brancas de classe média, ao mesmo tempo em que tem ocultado a relação de domínio que alguns grupos sociais de mulheres mantêm em relação a outros grupos sociais25.

Conclusão

Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram (MARX, 2011, p. 25).

Quais, podemos perguntar, são as consequências da prática ideológica da dissociação entre “raça”, classe e gênero que tanto marxistas como não marxistas têm se engajado? No que diz respeito aos movimentos sociais, essa prática fez com que eles em grande parte ignorassem a tarefa de elaborar uma política informada socialmente de maneira integral. Para os marxistas, sua leitura ideológica/economicista de classe – o costume de separar a classe da cultura e das relações sociais de gênero/patriarcado – conseguiu criar, na melhor das hipóteses, comprometidas políticas pequeno-burguesas. Ao tratar a questão da “raça” como uma questão alheia à classe ou até anticlassista, eles marginalizaram aqueles setores da população que são os mais despossuídos e que mais fornecem combustível ao capital, tanto no Ocidente como em outros lugares. Assim, as questões de “raça” e gênero tornaram-se principalmente identificadas com a política liberal, com as políticas de direitos e cidadania, e não com as de lutas socialistas. Os movimentos de trabalhadores e o que resta do movimento de mulheres são assim movimentos sociais ou anticapitalistas não representativos e incompletos e, como tais, participam na reprodução da organização do capital e do domínio burguês.

Outra consequência tem sido uma mistura ou coalizão promíscua entre políticas de classe, de gênero e de “raça” cuja falta de entendimento comum e de bases construtivas internas criaram apenas tênues possibilidades de associação e relações rancorosas. Além disso, a incapacidade de criar movimentos socializados de classe ou anticapitalistas deu lugar ao desenvolvimento de grupos “raciais” culturalistas que, com a ajuda do multiculturalismo oficial, tornaram os movimentos sociais reféns de políticas fundamentalistas e de “identidade”. As opressões criadas por relações sociais dominantes e desiguais não desaparecem ao serem simplesmente invisibilizadas. Elas não desaparecem na realidade. Desnudadas de sua plena concretude ou realidade sócio-histórica, tanto no nível da sociedade civil como no do Estado, elas ressurgem em formas ideológicas e reificadas da “raça” e de identidades étnicas nacionalistas ou em atos de simples desesperança e decepção.

A melhor maneira de se entender essa política destrutiva da ideologia é lembrar Marx em O 18 de Brumário de Luis Bonaparte, onde ele fala de identidades culturais deslocadas, substituídas, que concretizam o trabalho de domínio de classe no terreno da hegemonia. As máscaras de Deus que são usadas pelas atuais agências políticas fundamentalistas só podem servir para nos lembrar as máscaras romanas usadas pelos sucessivos protagonistas da Revolução Francesa – até as formas/identidades socioculturais excluídas e não-integradas baseadas na classe que desembocam no fascismo em vez de na emancipação social. O nacionalismo atual, o imperialismo e o multiculturalismo oficial recorreram todos à política de “identidade” e desencadearam guerras, genocídios, vigilância e opressão social geral. Os pronunciamentos cristãos ou civilizatórios de Bush e Blair26, as suas ambições capitalistas e militaristas disfarçadas com as máscaras da democracia e da liberdade, ou os seus discursos feministas de cooptação sobre o salvamento das mulheres muçulmanas, são devastadores projetos ideológicos de identidade. É apenas ao se empreender uma análise social “concreta” que esses truques legitimadores e unificadores – que levaram uma grande parte dos norte-americanos (em sua maioria, brancos) a se identificarem com vários mitos de dominação – podem ser desafiados.

Os marxistas do Ocidente, em particular porque apelam a uma política social, precisam reconhecer suas próprias implicações no rebaixamento da luta de classes ao promoverem a política de “identidade” através da sua postura defensiva ou de seu liberalismo “tolerante” em relação à “raça”. Sendo rápidos em descartar como periférica à luta anticapitalista ou de classes muito da raiva popular contra a injustiça social, eles adotaram um caminho que não pode trazer nenhuma transformação social “real”. A incapacidade de considerar racista a política colonial capitalista e imperialista combinada com a política “de identidade” colonialista dos últimos quinhentos anos tornou os marxistas ocidentais politicamente ineficazes. Se os movimentos feministas antirracistas que desafiam a hegemonia têm neles um elemento de recuperação da identidade cultural apagada, isto não é, por si só, necessariamente desastroso. O ponto principal é avaliar de que ponto de vista essa chamada “identidade” é elaborada, e que culturas, histórias e relações sociais ela evoca. De quem é a identidade da qual estamos falando – dos opressores ou dos oprimidos? Os teóricos da esquerda ou os marxistas não têm motivos para temer a “identidade”, porque há espaço suficiente nas obras do próprio Marx para criar movimentos sociais que não precisam escolher entre cultura, economia e sociedade ou “raça”, classe e gênero, a fim de organizar as políticas de revolução social. Indo além de gestos de interseccionalidade, coalizão e coesão social, os marxistas dispõem de uma compreensão não fragmentária do social que pode mudar o mundo tal como o conhecemos.

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Notas

1 Sobre o começo da teorização acerca da relação entre “raça”, gênero e classe que constitui o ponto de partida deste ensaio, ver Bannerji, 1993, 1995; Davis, 2016; Smith, Hull, and Bell-Scott, 1982.
2 A noção de “interseccionalidade” é a mais utilizada nas teorias críticas da raça, bem como nas teorias do Direito. Ver, por exemplo, Crenshaw (1989), Hill Collins [1998] (2019).
3 Ver Terkel (1982). Ver também Bannerji, 1995, p. 121-58.
4 É necessário fazer um exame da história canadense do trabalho ou de textos de estudos do trabalho para ver como a “raça” nas suas várias formas foi incorporada na teorização da classe, do trabalho ou da política de classe. Seria interessante ver se, nesse campo de estudos, existem textos comparáveis a Roediger (1992) ou Li e Bolaria (1988). Este é um convite para mais pesquisas. As historiadoras feministas negras iniciaram o projeto, mas ele precisa ser aprofundado.
5 Por exemplo, a Metro Network for Social Justice. N.T.: A Metro Network for Social Justice foi uma rede canandense que reunia diversas organizações de base (entre sindicatos, associações comunitárias, organizações de bairro e coletivos identitários) com objetivo de promover justiça econômica e social. Surgiu nos anos 1990 para fazer frente às políticas de austeridade impostas por Mike Harris, governador conservador de Ontario, região administrativa que abarca Toronto e sua área metropolitana.
6 Para um exemplo clássico desta formulação ver Laclau e Mouffe, 2015.
8 Para uma compreensão do meu uso do termo “específico”, ver Bannerji 1995, p. 41-54.
9 Para além disso, meu uso da noção de “o social” precisa de um comentário, um reconhecimento da dívida que tenho não só com o trabalho de Marx, mas também com o de Dorothy E. Smith, que em todos os seus trabalhos, mas principalmente em Writing the social, ofereceu uma visão relacional e constitutiva do mesmo. Em ensaios como “Ideological practices of sociology”, em Conceptual Practices of Power, Smith também detalhou o seu próprio método “reflexivo”, assim como o de Marx. Ver também Bannerji, 1999, p. 55-98.
10 Em sua “Primeira Tese”, Marx (MARX; ENGELS, 2007, p. 533) afirma que “o principal defeito de todo o materialismo existente até agora (o de Feuerbach incluído) é que o objeto [Gegenstand], a realidade, o sensível, só é apreendido sob a forma do objeto [Objekt] ou da contemplação, mas não como atividade humana sensível, como prática; não subjetivamente. Daí o lado ativo, em oposição ao materialismo, [ter sido] abstratamente desenvolvido pelo idealismo – que, naturalmente, não conhece a atividade real, sensível, como tal”.
11 Duas formulações interessantes deste método de exclusão podem ser encontradas em textos agora clássicos: Spelman 1998, and Smith, Hull, and Bell-Scott 1982.
12 Neste livro Thompson socializa o conceito de classe, recuperando-o assim do economicismo. Ele introduz no aspecto relacional-social o elemento da subjetividade consciente. A “classe” para ele é um “um processo ativo, que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos. A classe operária não surgiu tal como o sol numa hora determinada. Ela estava presente ao seu próprio fazer-se” (THOMPSON, 2004, p. 9). Também estou de acordo com sua afirmação de que a classe é “um fenômeno histórico, que unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência” (idem, p. 9).
13 A autora faz referência aqui à “Do socialismo utópico ao socialismo científico”. A mais recente versão desta obra em língua portuguesa encontra-se em Engels, 2015 (N.T.).
14 Ver Althusser, Ranciére, Macherey (1979), especialmente as considerações de Althusser sobre ciência e teoria, no capítulo 1, “De O Capital à Filosofia de Marx”.
15 Ver Gramsci (2014). Atentar especialmente ao seu tratamento da relação entre o Estado e a sociedade civil nos diferentes ensaios.
16 Para a implicação de noções “proprietárias” [“proprietorial”] ou morais, bem como de relações familiares, e para uma visão reflexiva/constitucional do social, ver as afirmações clássicas de Marx e Engels (2007, p. 33, 36, 90). Discutindo a família como um momento de propriedade, eles dizem, por exemplo, que ela é “a primeira forma (...) onde a mulher e o filho são escravos do homem” (p. 36). As teorizações posteriores conservam o essencial de sua concepção. No contexto norte-americano, ver Davis, 2016.
17 Para uma discussão aprofundada da “sociedade civil”, ver MARX; ENGELS, 2007, p. 40-46, assim como a seção anterior (Feuerbach e História – Rascunho e Anotações, p. 29-39), no mesmo volume. Ambas envolvem discussões sobre a construção do social, onde a organização das relações sociais envolve todos os aspectos básicos da vida, incluindo o da consciência. Aqui, a produção e o consumo são impensáveis em separado e sem uma forma de consciência material, intrínseca e ativa.
18 Além de discutir “relações históricas originárias”, Marx fala da “consciência […] que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens” (MARX; ENGELS, 2007, p. 34).
19 Para uma compreensão clara do conceito de diferença, ver Gates Jr. (1985). Embora os autores dos ensaios não sejam marxistas, eles fornecem exemplos de materialismo cultural com uma forte base na história cultural.
20 Marx, 2011, p. 51-52
21 Ver, por exemplo, a visão de Hegel sobre a “sociedade civil” na introdução de C. J. Arthur a Marx e Engels, 1970 p. 5.
22 Sobre a importância do conceito de mediação, ver Marx, 2011, p. 261-263.
24 Este processo ideológico de que Marx fala é abordado de diferentes maneiras, por exemplo, por Harding (1993) ou por Dua e Robertson (1999).
25 Esta questão também tem sido abordada em escritos feministas pós-coloniais. Ver Midgley (1998) e McClintock (2010).
26 A autora aqui faz menção à invasão do Iraque, levada à cabo a partir de 2003 pela coalizão liderada pelos EUA, governados pelo republicano George W. Bush, e pelo Reino Unido, governado pelo trabalhista Tony Blair, no contexto da famigerada “guerra ao terror” lançada após os atentados de 11 de setembro de 2001. Dentre os pretextos utilizados para justificar a invasão estavam a suposta existência de armas de destruição em massa – nunca comprovada – e a derrota do fundamentalismo islâmico em prol dos valores ocidentais cristãos, liberais e democráticos (N. T.).
Versão original:

BANNERJI, Himani. “Building from Marx: reflections on ‘race’, gender and class”. In: BANNERJI, Himani. The Ideological Condition: Selected Essays on History, Race and Gender. Leiden; Boston: Brill, 2020. p. 5-22.

Tradução recebida em 15/11/2021 e aceita em 4/12/2021.

Tradução

Thiago Romão de Alencar, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: thiagoromaoalencar1505@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9179-2469.

Rhaysa Ruas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: rhaysaruas@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1726-4363.



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