RESENHA
DU BOIS W. E. B.Boide Alexandre. As almas do povo negro. 2008. São Paulo. Veneta |
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Recepção: 07 Junho 2021
Aprovação: 15 Outubro 2021
William Edward Burghardt Du Bois, conhecido como W. E. B. Du Bois, foi um dos grandes intelectuais do século XX, tendo ampla produção em ensaios, artigos e intervenções políticas sobre as disparidades raciais e sociais nos Estados Unidos da América. Du Bois foi o primeiro homem negro a ingressar na Universidade de Harvard, onde recebeu o título de Doutor em 1895, e também frequentou a Universidade Humboldt de Berlim.
A trajetória do autor é fundamental para que se compreenda as bases de sua reflexão sobre a questão racial, com dimensões em todo o mundo. Du Bois nasceu livre, no estado de Massachusetts1, em 1868. O avô paterno, de W. E. B. Du Bois, Alexander Du Bois (1803-1887), assumiu sua identidade de negroapesar de ter a pele clara. Alfred, pai de W.E.B. Du Bois, se separou da mãe do autor logo após o seu nascimento, de modo que não teve muito contato com a família paterna até os seus quinze anos (DU BOIS, 2021: 72).2
Sociólogo de formação e ativista político, W. E. B. Du Bois desenvolveu uma análise profunda sobre a constituição do negro norte-americano. Desse modo, foi muito sofisticado em demonstrar a complexidade da sociedade estadunidense apontando não apenas a situação racial do país, mas também os processos de formação da subjetividade humana como um todo. Além disso, sem perder de vista a necessidade de organização política, foi fundador da National Association for the Advancement of Color People (NAACP) em 1909, uma das mais importantes organizações negras dos Estados Unidos.
A obra “As almas do povo negro” foi publicada pela primeira vez em 1903, e apresenta a trajetória dos negros após a abolição da escravatura e da Guerra Civil Americana (1861-1865), bem como o impacto das decisões da Suprema Corte no Caso Dred-Scott (1856), em que decidiu que os negros não tinham direito de gozar de nenhuma cidadania ou direito constitucional.3 A seguir, em 1896, no caso Plessy versus Ferguson, engendrou a doutrina do separate, but equal.4
A obra é formada por um conjunto de ensaios que tratam sobre raça, trabalho, educação e cultura de homens e mulheres recém libertos, demonstrando os impactos da escravidão na condição material e na formação subjetiva do negro. Du Bois parte de uma pergunta central: “Como é a sensação de ser um problema?” (DU BOIS, 2021: 21) para analisar a experiência do negro de ser visto e de ver a si próprio como um ser apartado e diferente socialmente.
Du Bois evidencia que a violência da escravidão, as características da Emancipação,5 bem como as falhas da Reconstrução6 deixaram marcas profundas nas relações entre brancos e negros. Para delinear os contornos dessas relações, utiliza dois conceitos fundamentais: véu e dupla consciência, os quais integram as dimensões objetivas e subjetivas do negro e do branco. O autor conclui que “o problema do século XX é o problema de linha de cor” (DU BOIS, 2021: 35), referindo-se à discriminação racial nos Estados Unidos.
As concepções articuladas pelo autor são referentes à dupla consciência de ser negro e um cidadão dos Estados Unidos, sobre a importância das igrejas negras enquanto esperança em favor da libertação e o significado do véu, utilizado como metáfora do véu que foi rasgado por Deus após a morte de Jesus Cristo para salvação da humanidade conforme ensinamento em muitas igrejas cristãs.
A dupla consciência integra uma sociedade permeada por contradições, em que há cidadania para brancos e ausência de liberdade para negros, como se não fossem todos estadunidenses e apresenta-se nas relações sociais em que tenta conformar e disciplinar o negro para subserviência enquanto promove ao branco a liberdade de ser o que quiser.
Em outras palavras, o negro está submetido a uma consciência cindida, vivendo o dilema definido por “uma sensação peculiar, essa consciência dual, essa experiência de sempre enxergar a si mesmo pelos olhos dos outros, de medir a própria alma pela régua de um mundo que se diverte ao encará-lo com desprezo e pena” (DU BOIS, 2021: 23). O conflito entre esses dois polos indissociáveis também evidencia o desejo do negro de retomar a consciência de si mesmo, isto é, de “fundir esse duplo eu em um único indivíduo, melhor e mais verdadeiro [...] ele simplesmente deseja tornar possível para um homem ser ao mesmo tempo negro e norte-americano” (DU BOIS, 2021: 23). A esse respeito, Du Bois relata o momento em que teve a percepção da consciência cindida em sua vida:
Em uma pequena escola de madeira, algum motivo levou os meninos e as meninas a comprar belíssimos cartões de visita – a dez centavos de dólar o pacote - e os trocar entre si. A troca estava divertida, até que uma garota, alta e recém-chegada, recusou meu cartão- e de forma categórica, com um olhar. Foi quando me veio a percepção quase imediata de que eu era diferente dos demais; ou semelhante, talvez em termos de coração e de força vital e de aspirações, mas apartado do mundo deles por um enorme véu. Não senti nenhum desejo de rasgar esse véu; de atravessá-lo; passei a desprezar todos os que estava do outro lado e a viver acima desse véu em uma região de céu azul e grandes sombras errantes (DU BOIS, 2021: 21).
A experiência do autor aponta para o fato de que o racismo é violento e traumático, e praticado por crianças que tiveram sua subjetividade formada a partir da inferiorização dos negros. Grada Kilomba (2019), mulher negra, que também estudou seu doutorado na Alemanha, afirmou que a ferida do racismo faz com que o imaginário social sobre o negro seja o reflexo de um “Outro” que o branco não quer ser, 7 e dessa forma a identidade é imposta independentemente da vontade dos sujeitos.8
A referência ao véu para mostrar a divisão entre brancos e negros é retirada em analogia ao véu mencionado na bíblia, no Antigo Testamento, o qual impedia que os homens se achegassem a Deus, precisando de um intermediário, o sacerdote. Porém, com a morte de Jesus Cristo, Filho de Deus, para mostra a soberania de Deus e a vontade em se religar ao homem. Desta forma, assim como o véu foi rasgado, Du Bois propõe que o véu da divisão seja rompido, já que a sua existência leva os negros e os brancos a enxergarem realidades parciais e encobertas.
Para além disso, “o véu é algo que impede que sejamos vistos como realmente somos, mas também nos impede de ver o mundo como ele realmente é” (ALMEIDA apud DU BOIS, 2021: 12). Assim sendo, o processo de retomada da consciência e de libertação do negro deve passar pela superação do véu por ambas as partes. John Rawls (2016) também trabalha com a concepção de véu da ignorância, em que as pessoas devem se abster das subjetividades para que a estrutura da sociedade promova a igualdade para todos. No entanto, quando presentes problemas estruturais, eles não são resolvidos por políticas apenas, deve-se buscar o que causa a desigualdade social - seja a segregação racial, a divisão em classes, gênero ou outras, de modo que o véu não deve ser utilizado como desculpa para manutenção da estratificação.
Achille Mbembe também utiliza a metáfora do véu para mostrar a divisão social, de modo que para ele o pensamento pós-colonial não pode deixar de evidenciar o “véu sombrio da cor”, em que negros são enclausurados, estigmatizados e mortos por terem a cor negra de pele. Por serem o outro. O autor afirma que tudo relacionado à África foi atribuído conceitos negativos (MBEMBE, 2019:80-81), de modo que “os Estados Unidos da América não são sinônimos de Oportunidade para todos os seus filhos” (DU BOIS, 2021: 169, grifo original).
Du Bois (2021: 33-61) direciona o foco de análise da obra para o modo como o governo dos Estados Unidos lidou formalmente com o negro emancipado. Nesse cenário, a educação e o trabalho são temas centrais no livro, que igualmente se dedica a compreender o aparato institucional e político mobilizado para a gestão da crise nacional, decorrente dos resquícios da escravidão e da Guerra Civil, como o caso do Gabinetes do Libertos, criado em 1865 para representar e cuidar da proteção dos negros.
A educação, especialmente, das crianças se torna fundamental para que a dualidade da sociedade seja extinta. “Hoje mais do que nunca precisamos da instrução das escolas – do treinamento de mãos inaptas, de olhos e ouvidos alertas, e acima de tudo cultivar de forma mais ampla e profunda as mentes talentosas e os corações puros” (DU BOIS, 2021: 29). No entanto, apesar da escola poder ser considerada revolucionária, ela também tem poder para servir de instrumento de dominação e disciplina dos corpos quando reproduz a discriminação racial, xenofobia e divisão social.9
O autor também evidencia que essa busca de emancipação pela educação deve ser uma demanda imediata, porque não há como incluir os negros a conta gotas; o processo de mudança precisa ser radical para que tenha impacto em toda sociedade com o objetivo de romper com o véu. “Trabalho, cultura, liberdade – de tudo isso precisamos, não individualmente, mas juntos, não sucessivamente, mas ao mesmo tempo, cada coisa alimentando e ajudando a outra [...]”(DU BOIS, 2021: 30).
Seguindo a análise da educação como prática emancipatória, Du Bois apresenta reflexões sobre os projetos educacionais implementados a partir da Guerra Civil. Ao analisar o Acordo de Atlanta e a atuação do líder negro Booker T. Washington,10 que defendia a educação profissionalizante, Du Bois tece críticas ao projeto que, na sua visão, segue um modelo econômico voltado para o trabalho e dinheiro, ofuscando por completo os propósitos maiores da vida (DU BOIS, 2021: 6). Ademais, em resposta, argumenta que o progresso do negro não deve se basear unicamente em conquistas materiais, em alusão à “tendência nascida da escravidão e intensificada pelo insano imperialismo atual, de considerar os seres humanos um dos recursos materiais de uma região e formá-los visando apenas aos dividendos futuros” (DU BOIS, 2021: 121).
Outro tema bastante debatido no livro em análise é o trabalho rural dos camponeses negros no Sul. O autor menciona que o arrendamento de terras se tornou política comum após a abolição e, em que pese a “Ordem do Campo Número Quinze”,11 não houve distribuição de terras para os libertos, que tiveram que figurar como meeiros ou arrendatários de terras, o que na prática implicava em uma “servidão moderna” caracterizada pelo acúmulo de dívidas para com os proprietários de terras e comerciantes impossíveis de serem quitadas.
Ainda na descrição do trabalhador rural, Du Bois transporta o leitor para a cidade de Atlanta, na Geórgia, narrando com riqueza de detalhes “o solo vermelho e inculto” (DU BOIS, 2021: 140) e os territórios indígenas, até a chegada nos Cinturão Preto e Cinturão do Algodão.12 A produção do algodão nos latifúndios monocultores moldou a formação dos negros estadunidenses no período, tornando-os “as principais figuras de uma grande indústria mundial; e isso por si só, e à luz do interesse histórico, torna os trabalhadores dos algodoais dignos de estudo” (DU BOIS, 2021: 164). Ainda assim, o sistema trabalhista era precário e as condições de vida dos lavradores era insatisfatória, com pouquíssimas expectativas de desenvolvimento.
O autor também apresenta como as igrejas constituídas após a abolição foram fundamentais para o fortalecimento da comunidade negra liberta. Afirma que as igrejas negras garantiam a respeitabilidade pelos seus pares e os integrava enquanto cidadãos e seres humanos. Um dos exemplos trazidos pelo autor é a celebração de casamentos, não apenas com a junção dos casais, mas com a intervenção de um padre ou pastor para dar legitimidade e reconhecimento à nova família (DU BOIS, 2021: 168).13
Havia igrejas distintas para negros e para brancos e a ministração e louvores nas igrejas negras serviam como luz para atravessar o deserto que se apresentava. Em muitas destas instituições se justifica que assim como os hebreus escravizados, que pelo deserto foram encaminhados à Terra Prometida, de igual modo os negros também deviam marchar a caminho de Sião.14
O paradoxo apresentado nas bases cristãs com o comportamento segregacionista dos brancos também é mencionado por Du Bois como uma contradição à crença que professam, já que em nenhum momento Jesus Cristo pregou a segregação, pelo contrário, ele salvou a mulher acusada de adultério, alimentou os famintos e esteve com samaritano. Jesus Cristo afirmou que homens e mulheres, judeus e gregos, assim como as crianças devem ser tratados com equidade e solidariedade.
Religiosas e intensamente democráticas como são as populações brancas, elas percebem com clareza a falsidade da posição que o problema do negro as coloca. Um povo tão honesto e generoso em sua essência não pode propagar os preceitos niveladores do cristianismo, nem acreditar na igualdade de oportunidades para todos os homens, sem cada vez mais se dar conta de que a atual barreira de cor está em enorme contradição com aquilo que seus cidadãos acreditam e professam (DU BOIS, 2021: 202-203).
Não há dúvidas de que a ideia da Teologia Negra estava presente em Du Bois. Especialmente porque no início de cada capítulo há um spiritual, cânticos entoados nas igrejas negras, e que exemplificam em certa medida a desobediência civil necessária para alcançar a libertação. 15
Ronilson Pacheco (2019), escreveu que a Teologia Negra tem o objetivo de atuação do Espírito contra as estruturas que produzem e reproduzem o racismo:
Com isso, quero dizer basicamente duas coisas. A primeira, é que, enquanto movimento do Espírito, este sopro sempre esteve presente e permanentemente ao redor das relações de poder que sustentaram estruturas escravistas, isto é, estruturas onde grupos humanos mantiveram outros grupos humanos na condição de escravos e mercadorias. A segunda, é que a Teologia Negra é uma das faces da “encarnação deste corpo”, como uma “carta aos racistas”, uma epístola aos teólogos e aos que, ainda que não se assumindo enquanto tal, sustentam uma estrutura de pensamento (teológico ou não) que se construiu racista (PACHECO, 2019: 15). 16
Através de sua obra, Du Bois também permite a reflexão sobre a condição existencial dos negros no Brasil, último país a abolir a escravidão, em 1888, que não foram integrados na sociedade da mesma forma que os brancos. Conforme Florestan Fernandes, com a abolição no Brasil, o negro se tornou o contingente da população nacional que menos aproveitou a integração ao regime social formado ao longo do término da escravidão e do posterior desenvolvimento do capitalismo (FERNANDES, 2008: 21). O cenário, portanto, é marcado pela subalternação do negro com a impossibilidade de acesso ao mercado de trabalho, a destinação das mulheres negras para atividades de empregadas domésticas, além das disparidades salariais presentes até os dias de hoje (GONZALEZ, 1984).
O véu existente no Brasil pode ser denominado de democracia racial, que ainda faz parte do imaginário de muitas pessoas que afirmam que no Brasil não existe racismo, e que o problema é meramente econômico. No entanto, a especificidade e sofisticação do racismo brasileiro demonstram que a desigualdade pela raça muitas vezes independe da classe social. A falácia da democracia racial é a forma que o racismo encontrou de perpetuar sua reprodução em todas as relações sociais, de modo que ainda é normalizado e naturalizado a ausência de pessoas negras em funções executivas, professores universitários, pesquisadores e representantes do governo. Justamente por essa razão as ações afirmativas e métodos includentes constituem mecanismo ainda imprescindíveis para a superação do racismo na realidade nacional.17
As contribuições teóricas desenvolvidas por Du Bois em “Almas do Povo Negro” são relevantes para a luta antirracista contemporânea, na medida em que fornecem um método analítico da formação subjetiva e objetiva do negro, que pode ser aplicado, em certa medida, à realidade de outras nações que também passaram por regimes escravocratas. Compreender o que houve com a comunidade negra após a abolição e qual foi o projeto educacional e de integração do negro ao capitalismo industrial emergente, por exemplo, é de grande relevância para a reflexão da linha de cor existente na contemporaneidade, marcada por violências e desigualdades estruturadas pelo racismo.
Como homem de seu tempo, Du Bois acreditava no ideal da irmandade humana, conquistado através da superação da linha de cor, isto é, da unificação das raças. Sua obra é revolucionária ao conduzir, ainda no início do século XX, um estudo consciencioso sobre o contato entre brancos e negros e relevar um horizonte possível com “liberdade de corpo e de vida, a liberdade para viver e pensar, a liberdade de amar e ter aspirações” (DU BOIS, 2021: 30).
Referências bibliográficas
DU BOIS, W. E. B. As almas do povo negro. Tradução de Alexandre Boide. Ilustração de Luciano Feijão. Prefácio de Silvio Luiz de Almeida. São Paulo: Veneta, 2021.
FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes – Volume I. São Paulo: Editora Globo, 2008.
GONZALEZ, Lelia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.1984. Disponível em: http://eavparquelage.rj.gov.br/wp-content/uploads/2019/04/Gonzalez_RacismoESexismoNaCulturaBrasileira.pdf. Acesso em: 18 out. 2021.
HAIDER, Asad. Armadilha da identidade: Raça e Classe nos dias de hoje. Tradução de Leo Vinicius Liberato. Prefacio de Silvio Almeida. São Paulo: Veneta, 2019.
IZECKSOHN, Vitor. Escravidão, federalismo e democracia: a luta pelo controle do Estado nacional norte-americano antes da Secessão. Rio de Janeiro: Tapoi, 2003.
RAWLS, John. Uma teoria da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2016.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1ª. Ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: Ensaio sobre a África descolonizada. Tradução de Fábio Ribeiro. Rio de Janeiro: Vozes, 2019.
PACHECO, Ronilso. Teologia Negra: o sopro antirracista do Espírito. Brasília: Novos Diálogos; São Paulo: Editora Recriar, 2019.
ROMANELLI, Sandro Luís Tomás Ballande; TOMTO, Fabbrício Ricardo. Suprema Corte e segregação racial nos moinhos da Guerra Fria. Revista Direito GV, São Paulo, v. 13, n.1 jan-abr, 2017, p. 204-235. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201709. Acesso em: 06 jun. 2021.
Notas