Resumo: Soberania Alimentar é um conceito multidimensional e um direito dos povos que nasce em oposição ao modelo produtivo capitalista, pautado no agronegócio. Tendo como método o materialismo histórico e uma abordagem dialética, o objetivo central deste artigo é apontar alguns dos limites econômicos, (geo)políticos e jurídicos que se contrapõem à garantia de tal direito em um país de capitalismo periférico, como é o caso do Brasil.
Palavras-chave: Soberania alimentar, Capitalismo, Brasil.
Abstract: Food Sovereignty is a multidimensional concept and a people's right that is born in opposition to the capitalist productive model, based on agribusiness. Taking historical materialism as a method and a dialectical approach, the main objective of this article is to point out some of the economic, (geo) political and legal limits that oppose the guarantee of such right in a country of peripheral capitalism, as is the case of Brazil.
Keywords: Food sovereignty, Capitalism, Brazil.
Artigos
Direito à Soberania Alimentar no Capitalismo Periférico
Right to Food Sovereignty in Peripheral Capitalism
Recepção: 03 Dezembro 2020
Aprovação: 23 Março 2021
Para além do direito humano à alimentação adequada, mas com ele conectado, o conceito de Soberania Alimentar possui múltiplas dimensões, entre elas, a dimensão jurídico-ambiental, na medida em que trata do direito dos povos a escolher a forma como organizarão os meios de acesso, produção e consumo de alimentos sem degradar o ambiente.
No entanto, o modo de produção capitalista oferece uma série de limites e impedimentos à garantia de tal direito. A questão é saber, considerando a realidade concreta desse modo de produção, que limites econômicos, (geo)políticos e jurídicos podem ser apontados no que tange à garantia da soberania alimentar - como um direito - em um país de capitalismo periférico, como é o caso do Brasil.
Nesses termos, tem-se como objetivos, a partir de uma abordagem crítica jurídica, analisar a soberania alimentar, enquanto um conceito que evolui e um direito que exige políticas públicas, para compreender a gênese do conceito e suas dimensões ambiental e jurídica e apontar alguns dos limites econômicos, geopolíticos e jurídicos à soberania alimentar, a partir da realidade concreta das relações capitalistas em sua atual fase, especialmente, no Brasil, tendo-se como marco temporal inicial o ano de 1996.
Na tentativa de ensaiar uma resposta à problemática apresentada, utilizou-se da pesquisa bibliográfica adotando-se como matriz teórico-metodológica o materialismo histórico e uma abordagem dialética do tema com o propósito de “desvendar, sob o mundo da aparência, o mundo real, visando à destruição da pseudoconcreticidade, para que se chegue à concreticidade” (KOSIK, 2002), explicitando as contradições entre o que se entende por soberania alimentar, no campo jurídico e político, e o modo de produção capitalista - especialmente, em países periféricos como é o caso do Brasil
Em conexão com a problemática apresentada e com o caminho metodológico escolhido, optou-se por uma exposição dividida em duas seções construídos com base nas referências-chave abaixo citadas:
A primeira seção trata da soberania alimentar, enquanto um conceito que evolui e um direito que exige políticas públicas, a partir das contribuições de Josué de Castro e João Pedro Stédile e, ainda, de documentos da Via Campesina Internacional. Para abordagem a respeito da soberania alimentar no Brasil, utiliza-se documentos governamentais e legislação referentes às políticas públicas e instrumentos normativos que são expostos.
A segunda seção, ao referir sobre os limites econômicos, geopolíticos e jurídicos à soberania alimentar, parte da realidade concreta das relações capitalistas, tendo-se como principal referência Ladislau Dowbor. Também são apontados os principais retrocessos à soberania alimentar, no Brasil. Para tratar, especificamente, sobre os limites jurídicos à garantia da soberania alimentar, busca-se na crítica ao direito, realizada por E. Pachukanis e nas contribuições de Alysson L. Mascaro e Ricardo Prestes Pazello, os fundamentos para compreender a essência/aparência do direito e seus efeitos na realidade concreta.
Por fim, a título de conclusão, elabora-se uma síntese do que foi analisado, trazendo-se algumas considerações baseadas no contexto atual e algumas perspectivas em relação ao futuro relativas ao tema abordado.
É importante compreender o histórico que antecede a formalização do conceito de Soberania Alimentar, no ano de 1996, em Conferência da Via Campesina Internacional e do Movimento dos Pequenos Agricultores, considerando as circunstâncias e estratégias que conduziram à criação deste conceito por estes movimentos sociais. Para isso, parte-se da realidade concreta do Brasil, enquanto país periférico, para, em seguida, verificar como a força do movimento por soberania alimentar acaba se refletindo no país, no campo jurídico e das políticas públicas.
A Organização das Nações Unidas (ONU) considera, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o direito humano à alimentação adequada (DHAA) como um dever dos Estados. Apesar disso, Jean Ziegler (2012) assevera que “Dentre todos os direitos humanos, o direito à alimentação é, seguramente, o mais constante e mais massivamente violado em nosso planeta” (2012, p. 19).
Nesse sentido, em meados do século XX, o estudioso brasileiro Josué de Castro, autor de “Geografia da Fome” (1946), já denunciava o silêncio em torno dessa temática no Estado brasileiro, ao estabelecer relações entre a questão alimentar e nutricional e os processos de desenvolvimento nacional. A Josué de Castro, atribui-se o reconhecimento da fome como um problema social, isto é, uma condição estrutural das relações de poder que se estabelecem na geopolítica global.
É possível afirmar que as conclusões de Josué de Castro ratificam a condição de subdesenvolvimento, fruto da expansão do capitalismo no período colonial1, que condenou os países periféricos às fragilidades do abastecimento alimentar de sua população. A consolidação da agricultura capitalista, como modelo produtivo nacional, em atendimento à lógica do mercado, acentuou a desigualdade nas áreas rural e urbana e, consequentemente, a luta pelo acesso à terra.
Assim, no final da década de 1940 e início da década de 1960, dá-se o processo de organização, reivindicação e luta no campo brasileiro, com a formação do movimento “Ligas Camponesas”, na região nordeste do país e a nacionalização da luta pela reforma agrária (OLIVEIRA, 2007, p. 104, 106, 109), que, ainda hoje, se apresenta como uma demanda atual.
Nesse cenário de luta, houve a juridicização do acesso à terra, com a assinatura do Estatuto da Terra, em 1964; na década de 1970, o Decreto-Lei n. 1.110 de 09 de julho de 1970 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); e, nos anos 1980, foi criado o Plano Nacional da Reforma Agrária (OLIVEIRA, 2007, p. 121, 122). Apesar disso, a organização latifundiária impediu a consecução de reformas no campo, mantendo-se a estrutura fundiária altamente concentrada e a má distribuição de terras entre a população (SANTOS, 2016, p. 19).
Pode-se afirmar, assim, que a história do capital é atravessada pela luta de classes e, no Brasil, a concentração da propriedade privada da terra é parte constitutiva do capitalismo que se desenvolveu no país. Por isso, os conflitos no meio rural ocorrem sob duas frentes: “uma para entrar na terra, para se tornarem camponeses proprietários, e em outra frente, lutam para permanecerem na terra como produtores de alimentos fundamentais à sociedade brasileira”. A luta camponesa é, nesse sentido, constante (OLIVEIRA, 2007, p. 132-134).
Nesses termos, busca-se o direito de acessar a terra, para um novo formato de produção de alimentos, que compreenda a alimentação como um direito e não como uma possibilidade de mercado. Para tanto, a soberania alimentar é contrária ao sistema do alimento-mercadoria.
Conceitualmente formalizada no ano de 1996, a Soberania Alimentar já havia sido objeto de discussões na década de 1980, em que movimentos do campo e governos da América Central reivindicavam melhores condições no mercado de alimentos (COCA, 2016, p. 22).
Nesse sentido, a gênese do conceito de Soberania Alimentar encontra respaldo no âmago de movimentos sociais do campo, tanto no meio internacional, através daVia Campesina Internacional, quanto no âmbito nacional, com oMovimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sendo este um de seus diferenciais.
Cabe mencionar que os movimentos sociais rurais percebem a importância de se repensar os sistemas alimentares, a partir da construção de alternativas agroecológicas (ALTIERI, 2010, p. 29). Por isso, dedicar-se-á algumas linhas para tratar sobre os movimentos que dão voz à soberania alimentar.
A Via Campesina, formalizada em 1993, durante a I Conferência Internacional do movimento, tem como escopo a promoção da soberania alimentar como eixo central para um novo modelo de sociedade (COCA, 2016, p. 85). Por isso, é concebida como uma “articulação popular e internacional que se contrapõe ao atual modelo de produção na agricultura em nível mundial” (ALEM; OLIVEIRA; G. G.; OLIVEIRA, J.; IMBIRUSSÚ, 2015, p. 20).
Pode-se afirmar que a Via Campesina é uma das principais organizações em defesa dos interesses do campesinato em escala global, pautada na aliança com outros movimentos sociais, como o dos pescadores, pastores, mulheres do campo e da cidade, consumidores, ambientalistas, bem como com governos progressistas preocupados com a construção coletiva da soberania alimentar (STÉDILE; CARVALHO, 2010, p. 11). Trata-se de uma rede articulada das diversas lutas dos povos do campo que conta, atualmente, com cerca de cento e oitenta e duas organizações camponesas, distribuídas por oitenta e um países de todos os continentes (VIA CAMPESINA, 2020).
No Brasil, alinhadas aos fundamentos da Via Campesina, o MPA e o MST se constituem como os movimentos nacionais em defesa dos interesses dos camponeses e dos pequenos produtores rurais, no sentido de lhes garantir condições de vida adequadas às suas realidades.
A construção do MPA ocorreu entre os anos 1995 e 1996, devido à insatisfação dos agricultores, em especial, no Rio Grande do Sul, quanto ao não atendimento de seus anseios, pelo sindicato rural. As famílias de agricultores organizaram, assim, acampamentos, denominados “acampamentos da seca”, que tinham como objeto inicial a conquista de crédito emergencial. Entretanto, com o tempo, percebeu-se que a crise superava as questões financeiras, tornando-se uma luta coletiva de cunho ideológico (DUTRA JÚNIOR; DUTRA, 2008, p. 203).
O camponês, para o MPA, é o indivíduo que, embora inserido no sistema de mercadorias, não se vê como capitalista, escapando às simples definições, pois “[...] apresenta um modo de vida que o diferencia nas mais diversas localidades do planeta, constituindo, a partir de suas relações, formas distintas de produção que traduzem o seu entendimento de mundo e dessa forma a sua identidade” (SANTOS, 2016, p. 26). Possuindo, portanto, características estas que lhe são próprias.
Por fim, o MST, fundado em 1984, é tido como um dos maiores movimentos camponeses do mundo, revelando-se como a face moderna do país e a parte deste país que está em luta. “[...] É um movimento que contradiz o movimento geral da marcha do campo para a cidade, mas é também, um movimento que busca a construção de uma nova sociedade (OLIVEIRA, 2007, p. 145-146).
Cabe destacar que, na história do movimento, verifica-se a transformação de seus fundamentos, havendo a migração de um “discurso com forte viés produtivista, para outro mais aderente à visão agroecológica”, em especial em meados da década de 1990. Assim, passa a incorporar ao centro de seus ideais aportes como o resgate e a valorização da agricultura camponesa, com os princípios da agroecologia2 (BORSATTO; CARMO, 2013, p. 646).
Sob essa perspectiva, o conhecimento tradicional camponês assume centralidade nas propostas que se voltam ao desenvolvimento dos assentamentos, passando à condição de sujeito criador de sua própria história. Importa destacar que, em 2007, quando da realização do V Congresso Nacional do movimento, dá-se o aprofundamento da valorização de preceitos agroecológicos como meio para consolidação da reforma agrária. Nesta seara, a produção se volta à segurança alimentar da família, com a garantia de alimentação de qualidade e em abundância (BORSATTO; CARMO, 2013, p. 656-657).
Enquanto crítica ao modelo de produção de alimentos, o MST, vinculado à Via Campesina, “defende, que cada povo tem o direito de produzir seu próprio alimento e, por isso, o Brasil deve romper com o domínio das transnacionais que buscam atender o mercado internacional para obter fabulosos lucros”. Estabelece-se, assim, uma crítica aos organismos multilaterais, como o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, que introduziram o neoliberalismo no campo, priorizando monoculturas de agroexportação, como a soja e a cana-de-açúcar (CARRARO, 2008, p. 161). Expostas as considerações a respeito dos movimentos sociais do campo, cumpre destacar que, num primeiro momento, a Via Campesina Internacional definiu Soberania Alimentar como “o direito de cada nação para manter e desenvolver sua própria capacidade de produzir alimentos básicos, respeitando a diversidade cultural e produtiva” (VIA CAMPESINA, 1996).
Essa definição, conforme apontado, é mutável, considerando os diferentes períodos históricos e demandas sociais. Assim, o primeiro conceito foi acrescido de alguns atributos e dimensões, permanecendo, porém, a premissa de que o alimento não pode ser tratado como mercadoria, mas sim como um direito fundamental.
Por isso, para além do acesso aos alimentos, faz-se necessário a soberania frente sua produção. Conforme João Pedro Stédile e Horário Martins de Carvalho (2010, p. 09), é o direito de produzir alimentos que garante ao povo a soberania sobre suas existências. Na visão dos autores, a soberania alimentar transcende os limites de um conceito, consistindo em um princípio e ética de vida (STÉDILE; CARVALHO, 2010, p. 11).
A Soberania Alimentar é um conceito que assume múltiplas dimensões, mas tem, em sua essência, a luta pelo acesso aos recursos produtivos, a começar pela terra. Portanto, uma de suas dimensões se volta à implementação de processos radicais de reforma agrária (ROSSET, 2006, p. 315).
Entretanto, demanda-se, para além de políticas de reforma agrária, a oferta de subsídios governamentais aos pequenos agricultores e à agricultura familiar, possibilitando que estes trabalhadores tenham a oportunidade de se reproduzirem enquanto tal, tendo resguardados seus hábitos culturais e diversidade ambiental (ZAAR, 2015, p. 33).
No que tange à diversidade ambiental vale relembrar que a Soberania Alimentar se enraíza em processos sustentáveis de produção, partindo da concepção de meio ambiente como um bem comum e que, por isso, deve ser preservado para as presentes e futuras gerações, tendo a agroecologia como um de seus fundamentos (COCA, 2016, p. 23-24).
Nos termos do que foi apresentado, consolida-se a premissa de que a gênese da Soberania Alimentar tem como berço as relações capitalistas que cercam a produção de alimentos, pautados no sistema alimento-mercadoria. Logo, a proposta dos movimentos sociais do campo se volta ao resgate da alimentação como um direito humano fundamental, tal qual está consagrado em normas internacionais.
Por isso, a partir da formalização do conceito de Soberania Alimentar, o Estado brasileiro adotou políticas públicas e instrumentos jurídicos para viabilizar a sua concretude, aos quais se dedicará o estudo no próximo item, delimitado às dimensões jurídica e ambiental do conceito, em especial, quanto à produção de alimentos, pela via da agricultura.
Inicialmente, deve-se considerar que, embora a Constituição Federal de 1988, em seu texto original, não mencionasse a alimentação como um direito, em 1999, o Estado brasileiro ratificou o Protocolo de El Salvador, o qual estabelece que a alimentação é um direito social e, por isso, constitui dever do Estado a sua promoção (CIDH, 2007).
Assim, partindo-se do conceito de Soberania Alimentar e do compromisso assumido pelo Brasil, com a ratificação do Protocolo de El Salvador, passa-se ao estudo, num primeiro momento, das políticas públicas relacionadas ao tema e, posteriormente, da legislação adotada pelo país para atender a esses preceitos.
Conforme demonstrado anteriormente, o tema da reforma agrária é intimamente relacionado à garantia da soberania alimentar, na medida em que se refere à democratização do acesso à terra, enquanto principal recurso produtivo da agricultura. Nesse sentido, em meados da década de 1990, as reivindicações campesinas fizeram com o governo de Fernando Henrique Cardoso desse respostas mais sólidas às demandas sociais do campo, formando as bases do programa de distribuição de terras, que viria a eclodir nos anos seguintes.
Nesse contexto, em 2002, quando Luiz Inácio Lula da Silva assumiu a presidência da República, a reforma agrária ainda se apresentava como uma pauta urgente. As políticas promovidas pelo referido governo se pautaram na manutenção do Banco da Terra, fundo de financiamento de terras criado pelo Congresso Nacional, que tinha caráter estatal. Além disso, um dos compromissos do Presidente foi priorizar a política de reforma agrária por desapropriações, o que se refletiu na elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) (SILVA, I. K. S., 2017, p. 75).
Quanto aos subsídios, através de programas governamentais, para a produção da agricultura familiar, pode-se apontar o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), criado em 28 de junho de 1996, por meio do Decreto 1.946 da Presidência da República, com o fim de fortalecer a agricultura familiar, concedendo apoio técnico e financeiro, através da promoção do desenvolvimento rural sustentável (SCHNEIDER; MATTEI; CAZELLA, 2004, p. 23).
Sob essa mesma perspectiva, o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), instituído no Plano Safra 2003/2004 representa o incentivo do governo para a compra de produtos advindos da agricultura familiar, sendo considerado uma política de assistência comercial (BITLER, 2019, p. 14).
Expostas as principais políticas públicas voltadas à agricultura, interessa apontar os instrumentos normativos do Estado brasileiro que se coadunam com os preceitos elencados pela Soberania Alimentar, considerando a delimitação conceitual e temporal do presente estudo: Agricultura orgânica; Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais; Lei do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica.
Faz-se uma ressalva quanto ao Estatuto da Terra e à Lei de Agrotóxicos, que, embora sejam anteriores ao ano de 1996, serão abordadas neste estudo devido à afinidade com o tema da Soberania Alimentar. Além disso, abordar-se-á a Emenda Constitucional nº 64 de 2010.
Conforme o art. 2º do Estatuto da Terra, “É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei” (BRASIL, 1964). Para esta norma, considera-se Reforma Agrária “o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento da produtividade” (BRASIL, 1964).
A Lei de Agrotóxicos, por sua vez, estabelece que os agrotóxicos “só poderão ser produzidos, exportados, importados, comercializados e utilizados, se previamente registrados em órgão federal, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos federais responsáveis pelos setores da saúde, do meio ambiente e da agricultura” (BRASIL, 1989). Estabelece-se, assim, a gerência do Estado frente ao uso de agrotóxicos.
Nos termos da Lei da Agricultura Orgânica, considera sistema orgânico de produção, dentre outros aspectos, aquele que “[...] tem por objetivo a sustentabilidade econômica e ecológica, a maximização dos benefícios sociais, a minimização da dependência de energia não-renovável, empregando, sempre que possível, métodos culturais, biológicos e mecânicos [...]” (BRASIL, 2003).
A Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais, por seu turno, estabelece os conceitos, princípios e instrumentos destinados à formulação dos programas estatais direcionados à Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. Aponta, ainda que a sua execução deve estar articulada com a política agrícola e com a realização da reforma agrária (BRASIL, 2006a).
A institucionalização do direito à alimentação no Estado brasileiro se deu através do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN), instituído pela Lei 11.346/2006, que prevê que a segurança alimentar e nutricional abrange, dentre outros aspectos, a ampliação das condições de acesso aos alimentos, em especial a partir da agricultura tradicional e familiar, e a conservação da biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos. Além disso, estabelece que “A consecução do direito humano à alimentação adequada e da segurança alimentar e nutricional requer o respeito à soberania, que confere aos países a primazia de suas decisões sobre a produção e o consumo de alimentos (BRASIL, 2006b).
Pode-se destacar, enquanto principal política social voltada à segurança alimentar e nutricional, o Programa Fome Zero e sua estratégia central, o Bolsa Família. Para tanto, parte-se de uma das diretrizes do Programa Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, qual seja: “a promoção do acesso universal à alimentação adequada e saudável, com prioridade para as famílias e pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional” (BRASIL, 2006b).
Embora tenha ratificado em 1999 o Protocolo de El Salvador, passando a considerar o direito à alimentação como um direito social, apenas em 2010, através da EC 64/2010, o Estado brasileiro consagrou, no art.6º da Constituição Federal de 1988, a alimentação como um direito social (BRASIL, 2010b).
Por fim, a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) é instituída para “[...] integrar, articular e adequar políticas, programas e ações indutoras da transição agroecológica e da produção orgânica e de base agroecológica, contribuindo para o desenvolvimento sustentável e a qualidade de vida da população [...]” (BRASIL, 2012).
Expostos os conteúdos da legislação brasileira, que se comunicam com a garantia de soberania alimentar, interessa refletir sobre o que é posto pelo direito e o que se tem no plano concreto.
Conforme já advertido, embora o Estado brasileiro venha desenvolvendo, desde a formalização do conceito de Soberania Alimentar, instrumentos normativos e políticas públicas voltadas à garantia desse direito, o próprio sistema - capitalista - apresenta limites econômicos, (geo)políticos e jurídicos a essas iniciativas, cabendo, assim, apontar alguns dos principais limites, no que se refere, especialmente, aos limites jurídicos, tentar responder por que, pela via jurídica, não se garante a Soberania Alimentar.
O caminho a ser percorrido, neste item, consiste na exposição das principais contradições do capitalismo no que tange à garantia da Soberania Alimentar, a começar pela consideração dos limites econômicos e, especialmente, na atual fase do capitalismo, denominado rentista. Esses limites se refletem na esfera geopolítica através da globalização neoliberal que, por sua vez, se expressa na seara produtiva, com a mercadorização do alimento.
Inicialmente, cabe considerar que Marx preceitua que a circulação de mercadorias consiste no ponto de partida do capital. Assim, a teoria marxista aborda formas distintas de circulação de mercadorias: M-D-M (circulação simples de mercadorias) e D-M-D (circulação do dinheiro como capital) (MARX, 2011, p. 291-292).
Ocorre que no rentismo impera a forma D-D’, não havendo, para tanto, a produção de mercadorias. Para Ladislau Dowbor (2017), trata-se da dinâmica geral em que “os avanços gerados por produtores se veem apropriados por rentistas”. Sob essa perspectiva, a atual fase do capitalismo é considerada improdutiva, já que não visa ao atendimento de necessidades humanas e, sim, à produção de dinheiro a partir de dinheiro, num “processo cumulativo de enriquecimento proporcionalmente maior dos que já são mais ricos” (DOWBOR, 2017, p. 91, 140).
Para Vanessa de C. Rosa, os reflexos do movimento de financeirização do capital incidem na agricultura a partir do momento em que o capital financeiro passa a controlar a produção e a comercialização dos produtos agrícolas. Assim, gera-se um crescimento dessas empresas, “que tiveram um investimento de capital acumulado de fora dos processos agrícolas, contribuindo para dominarem a produção e o comércio dos insumos e as máquinas agrícolas” (ROSA, 2019, p. 29).
Na verdade, emergem do próprio sistema as suas principais contradições, a começar pelos índices de desigualdade, que, conforme Dowbor (2017, p. 22) atingiu “níveis obscenos”, quando oito indivíduos são donos de mais riquezas do que a metade da população mundial, enquanto 800 milhões de pessoas passam fome.
No entanto, há que se considerar que a fome não é um problema novo para a humanidade, mas sim, reflexo do agravamento da crise alimentar, pela atual crise do capitalismo. Nesse sentido, conforme dados do relatório “O Estado de Segurança e Nutrição Alimentar no Mundo 2019” (SOFI), a fome está em curva ascendente na América Latina: em 2018 afetou 42,5 milhões de pessoas, o que equivale a 6,5% da população regional.
Contraditoriamente, ao se observar os índices de produção da agricultura capitalista, constata-se que apenas 30% da sua produção é destinada aos seres humanos, pois a maior parte se volta a biocombustíveis e forragem. Ainda, cerca de 33 a 40% dos alimentos são perdidos na produção e transporte ou são desperdiçados (ROSA, 2019, p. 24, 25). Logo, a crise alimentar não está relacionada à falta de alimentos.
Diante do exposto, importa ressaltar que, imerso na globalização neoliberal, o Estado brasileiro é um país de capitalismo periférico e dependente, cercado pelos elos da dependência e subordinação, dos quais não conseguiu se libertar totalmente desde o período colonial, convivendo, no século XX, com um cenário de “neocolonialismo” do século XX (BIFANI, 1999, p. 170) ou “bioimperialismo” (SHIVA, 2003, p. 100).
Para além dos fatores elencados, o imperialismo, calcado pela lógica do capital financeiro, avança na prática da “‘recolonização’ da periferia, e, consequentemente, na pilhagem e privatização dos seus recursos naturais - o Brasil e a América Latina como um todo são exemplos vivos disso” (SILVA, M., 2020, p. 08).
Nesse contexto, o Brasil tem sofrido uma série de retrocessos no que diz respeito à garantia da Soberania Alimentar, principalmente nos últimos anos, em virtude do “projeto político” de desmonte dos programas sociais de incentivo aos pequenos produtores, fragilização da política de reforma agrária e de desestruturação da proteção ambiental, iniciado a partir de 2016 com o golpe político-jurídico, que levou Michel Temer a assumir a presidência da República, e aprofundado no governo de Jair Messias Bolsonaro.
Especificamente, quanto à realização da reforma agrária, deve-se considerar que apesar das políticas adotadas pelo Estado brasileiro, os latifúndios ainda protagonizam a realidade agrária do país. Nesse sentido, embora as metas dos Planos Nacionais de Reforma Agrária (PNRA) não tenham sido atendidas, de forma absoluta, nos governos de Lula e Dilma, houve significativa distribuição de terras, o que propiciou uma pequena alteração no processo de concentração fundiária do país.
Em 2014, a promulgação da Lei n. 13.001, que dispõe sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e concede remissão em casos nela especificados, representou um retrocesso, pois possibilitou a aquisição de lotes dos beneficiários do programa de reforma agrária, em casos de carências nos assentamentos, legitimando a venda de terras em posse dos assentados (BRASIL, 2014).
A partir de 2016, com o governo de Michel Temer, verifica-se o enxugamento dos gastos públicos com as políticas de reforma agrária e, em contrapartida, o fortalecimento do agronegócio. A extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário e a criação da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República - que passou a gerenciar o Pronaf e o INCRA - e a redução em 80% do orçamento para a Reforma Agrária, expõem as reais intenções do governo representado por Temer quanto à agricultura familiar (https://www.cut.org.br/noticias/temer-nao-assenta-nenhuma-familia-e-corta-orcamento-da-agricultura-familiar-cede).
Ainda, na contramão da garantia da soberania alimentar, a Emenda Constitucional 95/2017 previa o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, ensejando o “sucateamento dos programas e órgãos públicos de apoio ao desenvolvimento sustentável” (https://mst.org.br/2017/11/08/governo-golpista-mantem-cortes-na-reforma-agraria-e-na-agricultura-familiar/).
Sob essa mesma perspectiva, Jair Messias Bolsonaro foi eleito em outubro de 2018, e a exemplo do governo precedente, deu continuidade aos cortes orçamentários em áreas sociais.
A fragilização das políticas de reforma agrária no país não tardou. Conforme Daniel Camargo e Diego Junqueira (2019), no terceiro dia de governo, através de memorandos enviados às superintendências regionais do INCRA, Bolsonaro determinou a suspensão de todos os processos de compra e desapropriação de terras.
Com a MP 910/2019, o governo Bolsonaro ampliou e flexibilizou a regularização fundiária, dando concretude a duas demandas dos ruralistas: a primeira demanda consiste na facilitação da transferência, para o mercado, do estoque de 88 milhões de hectares das terras da reforma agrária, que são públicas, e a segunda consistia em “passar a régua” nas ocupações de terras da União, até o limite de 2,5 mil hectares, em todo o País, a partir do processo de autodeclaração de ocupações com áreas equivalentes a até 15 módulos fiscais (https://www.cartacapital.com.br/economia/bolsonaro-age-para-sufocar-agricultura-familiar-e-pequenos-produtores/).
Conforme apontado anteriormente, o direito à alimentação foi institucionalizado no Estado brasileiro a partir do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, tendo como órgão central o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), responsável por pensar políticas públicas de realização do DHAA para os nacionais. Ocorre que, em 2019 ao promover alterações na estrutura governamental, o presidente Bolsonaro, através da MP 870/2019, extinguiu o referido órgão, o que foi mantido mesmo após a perda de validade da MP (BRASIL, 2019).
Por outro lado, considerando a dimensão ambiental do conceito de Soberania Alimentar, cumpre apontar retrocessos no âmbito do Estado brasileiro relacionados ao uso de agrotóxicos - na contramão das práticas agroecológicas - e os atos políticos do governo Bolsonaro relacionados ao meio ambiente, que interferem diretamente na garantia de Soberania Alimentar.
Em maio de 2019 o governo brasileiro, através do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), autorizou o uso de mais trinta e um agrotóxicos no país. Destes, vinte e nove são tidos como produtos técnicos equivalentes, isto é, reproduções de princípios ativos já autorizados no Brasil. E, em 2020, em que pese o cenário da pandemia, até o mês de maio, o governo deu cento e cinquenta novas autorizações para agrotóxicos, dentre os quais, vários são proibidos na União Europeia (https://www.brasildefato.com.br/2020/05/13/mesmo-com-pandemia-governo-bolsonaro-ja-liberou-150-novos-agrotoxicos-este-ano).
Não bastasse a já comprovada destruição dos ecossistemas advinda do agronegócio, com o governo Bolsonaro o Brasil assiste à “desestruturação de políticas ambientais e o esvaziamento de preceitos legais” (MPF, 2020). Tal desestruturação é objeto de Ação Civil Pública por Ato de Improbidade Administrativa com pedido de afastamento cautelar do cargo, apresentada pelo Ministério Público Federal (MPF), em julho de 2020, em face do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A referida ação tem por base os (muitos) retrocessos que vêm ocorrendo no sentido de flexibilização das normas de proteção ambiental e que, por isso, representam retrocessos à garantia de Soberania Alimentar.
Diante do exposto, não há dúvidas de que o Brasil, na luta pela soberania alimentar, se depara com várias limitações e impedimentos, tanto no campo econômico quanto (geo)político, dado o contexto no qual está imerso - isto é, o capitalismo rentista - na condição de país subdesenvolvido e em franco retrocesso. Nesse sentido, cabe verificar os limites jurídicos à garantia da Soberania Alimentar, partindo-se da concepção do direito como uma forma social específica do capitalismo.
Cabe considerar que, nos termos que do se apresentou quanto à garantia de Soberania Alimentar no Brasil, não se tem estabelecido o “direito à soberania alimentar”, mas sim, a previsão constitucional da alimentação como um direito humano e social, bem como normas infraconstitucionais e políticas públicas relacionadas com a realização da Soberania Alimentar
Entretanto, é chegado o momento de refletir sobre o papel do Direito frente ao tema, questionando: Por que tais normas jurídicas não garantem, efetivamente, a Soberania Alimentar?
Em busca de respostas a esta pergunta mostra-se necessário retomar a crítica marxiana ao Direito, para compreender em que medida a gênese do fenômeno jurídico está atrelada aos ditames do capital.
Inicialmente, deve-se considerar que, ao conceber a categoria “mercadoria” como o centro da teoria de Marx (2011), constituindo-se como o núcleo do capitalismo, Evguiéni B. Pachukanis (2017), adota a categoria “sujeito de direito” como o átomo da teoria jurídica, partindo da premissa de que a sociedade capitalista é uma sociedade de proprietários de mercadorias (2017, p. 119).
Nesse sentido, as relações capitalistas se pautam numa espécie de contrato entre sujeitos livres. Por isso é que a vontade do sujeito de direito, entendida aqui no sentido jurídico, se funda no real desejo de alienar ao adquirir e adquirir ao alienar (PACHUKANIS, 2017, p. 127).
O direito, na teoria marxiana, se apresenta como relação jurídica intrínseca ao processo de circulação de mercadorias, ao qual pode se associar à concepção de sujeito de direitos. Daí emerge, segundo Pachukanis, a compreensão de que a referida relação é produto do desenvolvimento da sociedade (PACHUKANIS, 2017, p. 83-85).
Ainda, em se tratando da sociedade capitalista, o professor Alysson Mascaro adverte: “O núcleo da forma jurídica, o sujeito de direito, não advém do Estado. Seu surgimento, historicamente, não está na sua chancela pelo Estado. A dinâmica do surgimento do sujeito de direito guarda vínculo, necessário e direto, com as relações de produção capitalistas” (MASCARO, 2013, p. 40).
No entanto, se o direito é “a forma jurídica do capitalismo”, como ensina Pachukanis, também é em nome dele que os povos se levantam. Como foi referido anteriormente, a luta por soberania alimentar - reflexo da luta dos movimentos sociais - emerge como luta por um direito na realidade concreta justamente em oposição ao agronegócio e ao modelo hegemônico de agricultura no capitalismo.
Contudo, esse direito, que emerge das lutas nas entranhas do capital, não é realizado de forma absoluta considerando os limites econômicos e geopolíticos já apontados, bem como as limitações do próprio fenômeno jurídico.
Neste sentido, ao se considerar os estudos de Ricardo Prestes Pazello (2018), quanto a uma proposta transitória para outra sociabilidade, apresenta-se o uso tático do Direito como uma possibilidade de diálogo entre o Direito e a luta dos movimentos sociais.
Para Pazello (2018, p. 14), é na relação jurídica que se realiza o movimento real do Direito, pois as normas jurídicas são consideradas, a partir das percepções de Marx, como a aparência do fenômeno jurídico, que pode ser visualizada pelo exposto na primeira seção (item 1.2), quanto à legislação relativa à garantia de Soberania Alimentar.
Assim, ao se perguntar que fim dar às normas jurídicas existentes, o autor aponta que Marx não desprezou tais aspectos e deu destaque a eles na medida do seu interesse pela regulamentação da jornada de trabalho (PAZELLO, 2018, p. 14-19).
Pazello destaca o protagonismo dos movimentos sociais na conformação dos direitos, bem como, a importância de se estabelecer um diálogo entre o Direito (enquanto forma específica do capitalismo) e os movimentos populares, pautado, substancialmente, em sua forma abstrata, a fim de oferecer a insurgência como uma nova tentativa de convergência (PAZELLO, 2018, p. 1559).
Entretanto, a luta por direitos, no âmbito do capitalismo, não é suficiente, pois conforme Pazello, ao retomar a colocação de Marx, “cura a febre”, mas “não ataca a infecção mais profunda”, considerando que as revoluções não são feitas por meio de leis (PAZELLO, 2014, p. 165, 186).
Nesse sentido, o autor se refere ao “uso tático do direito”, que, é o formato básico do uso político do direito3, que se coaduna com o marxismo:
[...] E a problemática do direito, neste contexto, aparece como algo a contribuir politicamente no processo revolucionário socialista. Não só porque chegou a defender a legalização do movimento operário para aproveitar-se dos potenciais que a legalidade proporciona, mas também na discussão organizativa, em que o direito pode desempenhar um papel intraorganizativo positivo de esfera normativa (PAZELLO, 2018, p. 1574).
Na tentativa de mediar a relação entre o Direito e os movimentos populares, Ricardo P. Pazello propõe o direito insurgente como uma alternativa para se evitar uma visão fechada (forma aparente de norma jurídica) ou a rejeição completa do fenômeno (a essência como forma jurídica do capital). Para o autor, o direito insurgente seria “um conjunto de relações jurídicas que envolvem, por sua vez, as relações dos movimentos populares, no capitalismo dependente, e que fazem um uso tático do direito, com o horizonte de sua extinção” (PAZELLO, 2014, p. 19, 24).
Como se viu, é a luta por direitos, no plano concreto, que acaba por dar forma às reivindicações dos movimentos populares fazendo com que, por meio do uso tático do Direito, construam-se caminhos e possibilidades para a concretização da Soberania Alimentar.
Buscando elaborar uma síntese do que foi apresentado nesta pesquisa, pode-se afirmar que, se de um lado a Soberania Alimentar pressupõe o direito dos povos a escolher a forma como organizarão os meios de acesso, produção e consumo de alimentos, de outro, o modo de produção capitalista impõe um modelo hegemônico voltado ao lucro que impossibilita tal escolha. Ou seja, os limites são postos pelo próprio sistema e, dando razão a Marx, a produção capitalista se dá a partir da exploração das fontes originais de toda a riqueza, isto é, a natureza e o trabalhador.
Portanto, as iniciativas no campo político e jurídico visando à garantia da Soberania Alimentar são extremamente válidas taticamente falando, no entanto, são inviáveis de se completarem nos marcos do sistema cuja tendência é a do aprofundamento da fratura metabólica, bem como, de um notório processo acelerado de “mercadorização” da natureza e, consequentemente dos alimentos, em países periféricos, como é o caso do Brasil.
A história nos mostra que nos momentos de crise as balizas jurídicas, criadas nos marcos do sistema, são derrubadas para atender aos interesses do capital. E vive-se uma crise sem precedentes, visto que, à crise econômica e ecológica veio somar-se a crise sanitária da Covid-19.
No Brasil, os avanços (mesmo que parciais) conquistados no campo jurídico-político desde o processo de redemocratização do país dão lugar a um retrocesso jamais visto em tão curto período, conforme anteriormente mencionado.
Inclusive, há que se considerar que o povo brasileiro, para além dos desafios impostos pela crise sanitária, ainda convive com uma severa crise alimentar, que se manifesta nos altos preços dos alimentos básicos e, consequentemente, com o aumento dos índices de fome, em meio à pandemia.
Entretanto, na luta insurgente, que se dá também pela via do Direito, ao se voltar o olhar para a América Latina, evidenciam-se sinais de resistência, mesmo durante a pandemia, como nos casos emblemáticos da Bolívia4 e do Chile5, o que ainda não se faz sentir no Brasil.
No âmbito nacional, os movimentos sociais e as lideranças nacionais do campo popular encontram-se desarticuladas e na defensiva. No entanto, o caminho para reconstrução do país só poderá ser pavimentado coletivamente, na luta concreta, e com a articulação dessas forças. Esse caminho passa por 2022 (ano de eleições no Brasil), mas demanda, para além disso, um projeto de reconstrução do país, com o resgate da democracia e da soberania, especialmente da soberania alimentar.
Por fim, cabe assinalar que, mesmo diante de todos os desmontes e retrocessos, as possibilidades que um país que é “gigante pela própria natureza” oferece para assegurar Soberania Alimentar são imensas, mas não dentro de um sistema que mercadoriza (ou commoditiza) a natureza e os alimentos e que, como diz o poeta, “faz arroz virar fome” 6.