Resenhas
MAUÉS Antônio Moreira. O desenho constitucional da desigualdade. 2023. São Paulo. Tirant lo Blanch |
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Received: 30 October 2023
Accepted: 26 November 2023
1. Introdução
Em 2023, Antônio Moreira Maués publicou, pela Editora Tirant lo Blanch, o livro “O desenho constitucional da desigualdade”. Professor Titular do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Maués se dedica a compreender a forma pela qual a Constituição de 1988 articula os conflitos distributivos presentes na sociedade brasileira.
Conforme o autor, o livro possui uma história, a qual remonta ao mês de abril de 2016, após a Câmara dos Deputados autorizar o Senado Federal a instaurar processo de impeachment contra a Presidenta Dilma Rousseff. A partir daquele momento, “o regime democrático no Brasil atravessava uma crise que poderia levá-lo a sucumbir”. Da sua perspectiva, “essa crise não decorria apenas dos embates entre situação e oposição, mas de conflitos mais profundos presentes na sociedade brasileira”. Esses conflitos tornaram-se objeto da pesquisa do autor, que se alimentava “da ideia de que as estruturas desiguais do país impõem limites a seu processo de democratização” (MAUÉS, 2023, p. 7).
O livro é produto dos estudos realizados por Antônio Moreira Maués junto ao Watson Institute for International and Public Affairs da Brown University, nos Estados Unidos da América, durante os anos de 2019, 2020 e 2022, bem como diante do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA. Além disso, conta com trechos de textos de autoria do autor publicados em periódicos especializados (MAUÉS, 2023, p. 7-8).
Estruturado em cinco capítulos, mais a introdução e as considerações finais, o livro está construído sob a premissa segundo a qual a Constituição de 1988 possui duas histórias. Uma contada por conservadores, outra por progressistas. Essa disputa teria origens na transição da ditadura civil-militar para a democracia, prolongar-se-ia aos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte, arrastando-se até os dias atuais. Seu cerne seria o embate em torno da manutenção ou da transformação da estrutura socioeconômica do país.
Cada lado dessa disputa teria uma história a contar. Por isso, para Antônio Moreira Maués, “o papel da Constituição de 1988 na história brasileira ainda está por ser construído”. O autor esclarece que não “pretende decifrar esse enigma, mas contribuir para uma melhor compreensão dos elementos que o produziram”. O livro é, assim, um estudo sobre “a maneira como a ordem constitucional inaugurada em 1988 lidou com as desigualdades da sociedade brasileira”, ao pressuposto de que esta “é uma das chaves para entender os limites impostos ao processo de democratização do país” (MAUÉS, 2023, p. 42).
Com a obra, o autor pretende demonstrar que “a Constituição estruturou os conflitos distributivos da sociedade brasileira de maneira que tanto permitiu quanto dificultou a implementação de políticas redistributivas”. Nesse sentido, “embora o texto constitucional contivesse elementos para a adoção de um reformismo forte, outras características do desenho constitucional de 1988 impediram seu desenvolvimento”. Nesses termos, “compreender esses vários movimentos é fundamental para saber se é possível reformar a Constituição, a fim de que ela contribua para destravar o processo de democratização do país” (MAUÉS, 2023, p. 43).
2. O desenho constitucional da desigualdade
Para Antônio Moreira Maués, a forma como se deu a transição do regime autocrático da ditadura civil-militar para a democracia já evidenciava as tensões que permaneceriam durante a vigência do novo marco constitucional do país. Da sua perspectiva, “os elementos progressistas da nova Carta são constantemente contrabalançados por disposições de cunho conservador” (MAUÉS, 2023, p. 16-17).
Assim, “a conjunção híbrida de disposições progressistas e conservadoras indica que o regime constitucional inaugurado em 1988 tem uma dupla face”. Isso autorizaria a leitura segundo a qual “a história das últimas décadas pode ser contada tanto do ponto de vista das mudanças trazidas pela Constituição quanto do ponto de vista de seu papel na manutenção das estruturas desiguais da sociedade brasileira” (MAUÉS, 2023, p. 17).
O autor, então, analisa o desempenho da democracia brasileira desde 1988. Com relação ao IDH, entre 1988 e 2019, “houve uma melhora que fez o Brasil passar a ser classificado como país de alto desenvolvimento humano”, mas não houve “mudança significativa na última década: em 2010, o Brasil ocupava a 88ª posição no ranking do IDH e, [em] 2019, encontrava-se na posição 84ª” (MAUÉS, 2023, p. 18). Já “em relação ao PIB, o desempenho da economia brasileira sob o regime da Constituição de 1988 foi irregular”. Isso porque, “de 1991 a 2000, o PIB cresceu a uma taxa média anual de 1,57% e, embora no período 2001 na 2010 esse crescimento tenha alcançado 3,86%, na década seguinte a média anual foi de apenas 0,25%” (MAUÉS, 2023, p. 18).
Importante consideração é feita sobre a redução em aproximadamente 14% da taxa de pobreza no Brasil entre os anos de 2004 e 2014. No mesmo período, a taxa de extrema pobreza no país caiu para apenas 2,51% da população. O índice Gini, por sua vez, foi de 0,588 em 2003 para 0,517 em 2015. Por outro lado, “a concentração de renda continua alta no país [...] e dados mais recentes mostram um aumento da desigualdade a partir de 2015” (MAUÉS, 2023, p. 112).
Quanto à democracia, com base em dados da Freedom House, o autor destaca que, a partir de 2003, o país manteve “a classificação como país ‘livre’, porém, a partir de 2019, o Brasil vem perdendo pontos” (MAUÉS, 2023, p. 18). Com base em dados do Varieties of Democracy (V-DEM), o diagnóstico é de que, “em 2018, o Brasil manteve sua classificação como democracia eleitoral, mas passou a fazer parte da lista dos países com maiores retrocessos democráticos” (MAUÉS, 2023, p. 19).
A queda do desempenho democrático do país possui uma razão: o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, classificado como “golpe parlamentar” (MAUÉS, 2023, p. 19).1 Uma “tão grave violação das normas democráticas não deixaria de acarretar muitas consequências negativas para o sistema político” (MAUÉS, 2023, p. 20), dentre elas, a eleição de Jair Bolsonaro à presidência da República (MAUÉS, 2023, p. 21).2
O objetivo do autor não é, contudo, analisar “os danos causados pelo governo Bolsonaro à democracia”, mas os “obstáculos ao processo de democratização do país criados pela ordem constitucional, com ênfase nos limites impostos à democracia pela persistência das desigualdades da sociedade brasileira” (MAUÉS, 2023, p. 22). Nesse sentido, conforme Antônio Moreira Maués, “para compreender mais as dificuldades enfrentadas pela ordem constitucional inaugurada em 1988, nosso caminho irá explorar as relações entre desigualdade e democracia”. Isso porque, “no Brasil, os avanços e recuos em um desses campos contribuem para os avanços e recuos no outro campo e a análise da Constituição de 1988 deve dar conta dos movimentos de progresso e retrocesso que compõem os dois lados de sua história” (MAUÉS, 2023, p. 23).
Antônio Moreira Maués constata que, “em algumas regiões do planeta, as três décadas posteriores à II Guerra Mundial assistiram à redução das desigualdades em vários setores”. Contudo, “as políticas redistributivas que foram levadas a cabo, especialmente nos países capitalistas democrático-liberais, passaram a enfrentar retrocessos a partir da década de 1980” (MAUÉS, 2023, p. 27).
Considerando que “o aumento da desigualdade tende a enfraquecer a própria democracia” (MAUÉS, 2023, p. 30), o autor analisa a relação entre desigualdade e democracia a partir da chave de leitura de Charles Tilly (MAUÉS, 2023, p. 35-37). Sua conclusão é no sentido de que “a democratização se torna mais provável quando há uma diminuição da influência das desigualdades categóricas sobre a esfera política” (MAUÉS, 2023, p. 37).
Da sua perspectiva, a “Constituição de 1988 contém um conjunto hábil de instrumentos jurídicos para a redução da desigualdade, que favorecem a sinergia entre políticas de inclusão e de redistribuição” (MAUÉS, 2023, p. 73-74). No entanto, o mesmo texto constitucional permite “a resistência de classes e grupos sociais à implementação de políticas de igualdade, a qual encontra suporte na Constituição de 1988, cujas normas de proteção do status quo também criam pontos de veto no sistema constitucional” (MAUÉS, 2023, p. 74).
Haveria, assim, uma situação de confronto, no interior da própria Constituição de 1988, entre as normas de inclusão e redistribuição e as normas de manutenção do status quo, que se deixaria entrever pelo choque entre “as disposições constitucionais sobre políticas sociais” e as “normas constitucionais sobre política fiscal, as quais irão constranger os gastos sociais” (MAUÉS, 2023, p. 74-75). Outro campo no qual seria possível vislumbrar “disputas em torno da manutenção ou reforma do status quo [...] dentro da ordem constitucional” seria o da reforma agrária (MAUÉS, 2023, p. 75-76). Consequentemente, no Brasil, “demandas pró e contra a redistribuição serão canalizadas por meio de normas constitucionais, tornando a Constituição o locus onde esses conflitos serão processados” (MAUÉS, 2023, p. 76).
Valendo-se da conceituação de Cláudio Couto e Rogério Arantes, Antônio Moreira Maués compreende as três primeiras décadas de vigência da Constituição de 1988 como “uma ‘dinâmica constituinte permanente’”. Grande parte das inovações constitucionais do período disse respeito a “políticas públicas (policy)”. Assim, “compreender o alto número de emendas à Constituição de 1988” exigiria “investigar quais conflitos políticos levam à aprovação de reformas constitucionais” (MAUÉS, 2023, p. 77).
Um olhar retrospectivo sobre todo o período de vigência da Constituição de 1988 permitiria constatar que as controvérsias que opunham progressistas e conservadores durante os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte permaneceram latentes na sociedade brasileira. Isso teria motivado esses mesmos grupos a tentar vitórias parciais no decorrer das últimas três décadas por meio da promulgação de emendas constitucionais. Nas suas palavras: “as várias emendas aprovadas à Constituição de 1988 comprovam que muitas dessas divergências permaneceram e que as maiorias políticas buscaram constantemente alterar as normas constitucionais para favorecer os interesses por elas representados” (MAUÉS, 2023, p. 89).
Na sequência, Antônio Moreira Maués (2023, p. 99-105) analisa as cento e vinte e oito emendas promulgadas à Constituição de 1988 no período 1992-2022, classificando-as em grupos temáticos. De acordo com o autor, é “possível observar o domínio significativo das emendas sobre tributação e orçamento, em contraste com a relativa estabilidade das demais áreas da Constituição” (MAUÉS, 2023, p. 105). Da sua perspectiva, “apesar do seu grande número, é possível identificar dois temas recorrentes nesse conjunto de emendas, os quais dizem respeito ao financiamento de políticas sociais e ao controle dos gastos públicos” (MAUÉS, 2023, p. 106). Isso autorizaria a conclusão segundo a qual os “conflitos distributivos centrais da sociedade brasileira foram constitucionalizados como uma disputa entre o aumento de recursos para políticas sociais e a contenção dos gastos públicos” (MAUÉS, 2023, p. 107).
Dessa forma, “tanto os avanços quanto os limites na redução das desigualdades no Brasil nas últimas décadas devem ser analisados com base na Constituição de 1988. Nela se organizam os mecanismos de redistribuição que sustentam a implementação de políticas públicas pelo Estado” (MAUÉS, 2023, p. 112).
Ao analisar o contexto político que levou ao impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, o autor constata que a elevação da promulgação de emendas constitucionais em matéria de tributação e orçamento no período 2016-2022 decorre do “acirramento dos conflitos distributivos no Brasil” (MAUÉS, 2023, p. 146). Segundo o autor, “o consenso interpartidário sobre políticas sociais que emergiu durante a ‘era Cardoso-Lula’ [...] era, na verdade, dependente do equilíbrio fiscal” (MAUÉS, 2023, p. 147). Assim, “quando o gasto social colocou em risco esse equilíbrio, os partidos de direita e centro-direita deixaram de apoiar a expansão das políticas sociais, e o consenso social-democrático entrou em colapso” (MAUÉS, 2023, p. 147).
Por isso, para Antônio Moreira Maués (2023, p. 160), “a maneira como as instituições constitucionais operaram nas três últimas décadas permite caracterizar a Constituição de 1988 como uma Constituição anti-pobreza”. Uma constituição anti-pobreza “se caracteriza pela presença de disposições que asseguram direitos sociais e econômicos mínimos”, os quais estariam subordinados “ao princípio da realização progressiva” e cuja proteção jurisdicional estaria limitada pela garantia “do ‘minimum core’”. De acordo com o autor, “essa abordagem minimalista, característica da segunda metade do século XX, além de ser consistente com os direitos do liberalismo, não enfrenta o problema da desigualdade, mas somente da pobreza, e tampouco modifica as estruturas de poder” (MAUÉS, 2023, p. 156). Por essa razão, “a aprovação de reformas constitucionais é necessária para que a Constituição brasileira possa evoluir em direção a um modelo redistributivo” (MAUÉS, 2023, p. 160).
Antônio Moreira Maués (2023, p. 161) também destaca “as disputas em torno da reforma agrária” como um dos campos nos quais “os conflitos distributivos da sociedade brasileira tiveram [assento] na Assembleia Constituinte”. Contudo, “a política agrária implantada a partir de 1988 não conseguiu alterar de modo estrutural o quadro de concentração fundiária no Brasil” (MAUÉS, 2023, p. 162).
Para o autor, “ao regular a propriedade e outros bens de caráter econômico, a Constituição assume para si a distribuição de recursos de poder nesse campo das relações sociais”. Sendo assim, “a Constituição se torna alvo de ações que visam estruturar os conflitos existentes em torno do acesso a determinados bens”. Logo, “os movimentos sociais do campo compreenderam que a aprovação de normas constitucionais favoráveis à reforma seria um meio eficaz para eliminar as barreiras legais existentes”, ao mesmo tempo em que “os grandes proprietários rurais também se organizaram para evitar que o arcabouço legal herdado da ditadura fosse alterado” (MAUÉS, 2023, p. 165).
No centro dessa disputa, a Constituição de 1988 assegurou “a reforma agrária como uma política pública que impõe deveres ao Estado e criou os instrumentos para a sua consecução”, mas também garantiu “o direito de propriedade”, o qual “recebeu novas garantias no texto constitucional” (MAUÉS, 2023, p. 168). As limitações constitucionais “à regulamentação da reforma agrária não apenas restringem as opções de que o legislador dispõe para executar sua tarefa como também abrem a possibilidade de o poder judiciário controlar a constitucionalidade das decisões do Congresso Nacional”. Consequentemente, “setores contrários à reforma agrária podem utilizar os tribunais como ponto de veto para dificultar sua implementação, alegando que a legislação não respeitou os ditames constitucionais” (MAUÉS, 2023, p. 172). Ao final, Antônio Moreira Maués (2023, p. 186) não hesita em afirmar: “o STF operou como um ponto de veto à reforma agrária e se tornou uma arena de disputas políticas que foi utilizada pelos interesses contrários à redistribuição da propriedade rural no Brasil” (MAUÉS, 2023, p. 186).
3. Considerações finais
A título de contribuições ao debate, nestas considerações finais, algumas observações críticas serão formuladas. Em primeiro lugar, a leitura de Antônio Moreira Maués sobre o processo transicional brasileiro sugere uma certa continuidade entre a atual ordem constitucional e a ordem autoritária anterior. Assim, corre-se o risco de involuntariamente legitimar práticas e posturas criticadas pelo próprio autor ao longo do livro, como as tentativas de restrição das políticas sociais em nome da responsabilidade fiscal, ou a ascensão de figuras políticas de perfil autoritário, como Jair Bolsonaro.
No decorrer da obra, o autor aposta na tese de que interpretações conservadoras e até mesmo reacionárias da Constituição de 1988 seriam possíveis tão somente porque as forças do regime autoritário anterior tentaram controlar a transição da ditadura para a democracia. Como forças políticas identificadas com a ditadura-civil militar fizeram-se presentes na cena política nacional após a elaboração da Constituição de 1988, dever-se-ia aceitar como inevitáveis interpretações constitucionais imantadas por essa visão. Assim, as três primeiras décadas de vigência da Constituição de 1988 reproduziriam as disputas havidas na Assembleia Nacional Constituinte entre progressistas e conservadores.
Ora, se em alguma medida a Constituição de 1988 fosse mera continuidade do regime imposto pelo golpe civil-militar de 1964, então, por que a eleição de uma figura como a de Jair Bolsonaro à presidência da República seria um problema? Por que a persistência de desigualdades estruturais na sociedade brasileira seria problemática? Ambas as coisas não seriam mera decorrência da tese da suposta continuidade entre as ordens constitucionais pré e pós-1988?
Mantendo-se fiel à sua interpretação do processo transicional brasileiro, Antônio Moreira Maués precisaria justificar como a por ele alegada necessidade de reforma da Constituição de 1988 para transformá-la em uma constituição redistributiva seria capaz de escapar da disputa interpretativa por ele mesmo narrada entre progressistas e conservadores que se fez presente durante os trabalhos constituintes e as três primeiras décadas de vigência da Constituição. Contudo, o autor não o faz.
Como seria possível evitar que forças identificadas com o regime autocrático anterior participem do processo de reforma constitucional para tornar a Constituição de 1988 uma constituição redistributiva? Como seria possível evitar o aparecimento de interpretações conservadoras e reacionárias de um texto constitucional não mais anti-pobreza, mas redistributivo?
A proposta teórica de Antônio Moreira Maués, ela mesma, não escapa desse círculo vicioso. E não escapa, porque apegada a uma leitura “originalista” da transição política brasileira, muito embora o autor não mencione no decorrer de toda a obra que adota o “originalismo”. No fundo, o problema está na compreensão do autor acerca do fundamento de legitimidade do projeto constituinte de um Estado Democrático de Direito, ainda demasiadamente presa ao ato fundador e à textualidade constitucional.
Em segundo lugar, a relação desigualdade-democracia defendida pelo autor não se sustenta à luz dos próprios eventos narrados no decorrer da obra. Três décadas de expansão dos gastos sociais no pós-Segunda Guerra não foram capazes de impedir o nascimento de políticas de austeridade fiscal. No Brasil, no momento em que se vivenciou melhores índices de inclusão social, redução da pobreza, da marginalização e da concentração de renda, bem como de ampliação das políticas sociais, houve um retrocesso autoritário. Logo, nem sempre, a redução das desigualdades sociais resultará no aprofundamento do processo democrático. Sendo assim, é muito provável que exista outro elemento que interfira na relação desigualdade-democracia, o qual, contudo, permanece oculto na análise de Antônio Moreira Maués.
Nas trilhas do projeto teórico de David F. L. Gomes (2022), acredita-se que esse elemento é o modo de produção capitalista e suas relações internas com o próprio conceito de constituição moderna, ainda que distintas em países centrais e periféricos. Isso ajudaria a explicar por que, em determinados momentos, um período de redução das desigualdades sociais não conduz inexoravelmente a um aprofundamento do processo democrático e as distintas manifestações desse fenômeno nas diversas partes do globo.
O ocultamento da relação interna entre constituição moderna e capitalismo também impacta o argumento do autor na passagem em que classifica a Constituição de 1988 como uma constituição anti-pobreza. Nesse sentido, o ainda limitado alcance das normas voltadas ao combate das desigualdades estruturais da sociedade brasileira não pode ser atribuído exclusivamente ao seu texto (CATTONI DE OLIVEIRA, 2023). Afinal, qual garantia Antônio Moreira Maués possui de que uma vez emendada a ponto de se tornar redistributiva, a Constituição de 1988 logrará reduzir de imediato as desigualdades sociais estruturais que assolam a sociedade brasileira?
Não custa lembrar, com Gilberto Bercovici (2019, p. 671-678), a persistência do discurso das normas constitucionais programáticas, sobretudo daquelas voltadas a transformar a estrutura socioeconômica do país, na tradição do direito constitucional brasileiro. Também com apoio em Gilberto Bercovici (2007, p. 459-461), vale destacar a presença, no Brasil, de uma postura que procura rebaixar o status dos direitos sociais, econômicos e culturais de direitos fundamentais para meras prestações estatais, ao argumento de que esses direitos assegurariam apenas o mínimo existencial, identificado com as liberdades fundamentais em uma perspectiva tipicamente liberal e individualista.
Essas críticas podem ser estendidas à classificação da Constituição de 1988 como uma constituição anti-pobreza, na medida em que Antônio Moreira Maués adota uma leitura minimalista do potencial emancipatório das suas disposições de caráter compromissório e socioeconômico. Isso fica evidente quando o autor afirma que as determinações constitucionais que asseguram direitos culturais, econômicos e sociais da Constituição de 1988, na verdade, garantiriam apenas um minimum core, consistente com os direitos do liberalismo.
Em terceiro lugar, a explicação dada por Antônio Moreira Maués para compreender o constante apego a reformas constitucionais no Brasil pós-1988 não parece ser adequadamente satisfatória. Embora a princípio reconheça que a alta frequência de promulgação de emendas constitucionais no Brasil não decorre exclusivamente da extensão textual da Constituição de 1988, em outras passagens, o autor transfere a responsabilidade desse fenômeno para o caráter analítico da Constituição.
Além dessa contradição interna, ao que parece, o próprio objetivo geral da obra é negado à medida que o autor avança na recuperação das disputas políticas em torno da Constituição de 1988. Ora, Antônio Moreira Maués (2023, p. 43) afirma que, com o livro, seu objetivo é investigar “se é possível reformar a Constituição, a fim de que ela contribua para destravar o processo de democratização do país”. Acontece que, conforme por ele mesmo demonstrado, parte da história da Constituição de 1988 pode ser contada pelo entrincheiramento constitucional de políticas sociais de redução das desigualdades. Portanto, desde a sua vigência, já era possível emendar a Constituição nesse sentido. Tanto que de fato ela o foi. A questão, então, não seria exatamente essa.
Há, ainda, uma ausência digna de nota no argumento de Antônio Moreira Maués. Trata-se da ausência de uma explicação do porquê com relação à reforma agrária não houve tantas emendas constitucionais promulgadas à Constituição de 1988, como no caso da implementação das políticas sociais e fiscais. Se ambos os campos são fundamentais para compreender os conflitos distributivos da sociedade brasileira e se esses conflitos se deixam entrever pelo entrincheiramento constitucional, então, é preciso explicar por que a disputa constitucional em torno das políticas sociais e fiscais e da reforma agrária se manifestou de forma distinta.
Outra ausência que não pode permanecer encoberta se se pretende compreender a razão pela qual no Brasil pós-1988 tanto se emenda a Constituição, refere-se à falta de uma explicação do porquê o constante apego à reforma constitucional se traduz como forma de fazer política apta a congregar favoráveis e contrários às normas de conteúdo compromissório e socioeconômico do seu texto. Dessa maneira, algumas questões permanecem sem resposta.
Por qual razão liberais, para os quais uma constituição deveria garantir apenas direitos civis e políticos e dispor sobre a estrutura e a organização dos poderes do Estado, apostariam na constitucionalização de políticas de austeridade fiscal e de liberalização da economia? Por que progressistas, que historicamente nunca formaram sequer maioria simples no Congresso Nacional, envidariam esforços para constitucionalizar políticas sociais de redução da desigualdade? Qual seria a expectativa normativa subjacente ao constante apelo à reforma constitucional no debate constitucional brasileiro pós-1988?
São perguntas que permanecem sem resposta, mas que devem ser levadas a sério para compreender o papel desempenhado pela Constituição de 1988 nas suas três primeiras décadas de vigência. Assim como Antônio Moreira Maués, ao levantar essas questões, não tenho a pretensão de decifrar o enigma da Constituição de 1988. Afinal, um enigma, por definição, não possui solução. O que almejo é apenas levantar possíveis caminhos para melhor compreender o modo de atuação do próprio enigma e, por conseguinte, da Constituição de 1988, para, assim, abrir novas chaves de leitura que permitam vislumbrar os elementos constitutivos da prática constitucional brasileira do pós-1988.
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Notes