Resumo: O objetivo deste estudo é analisar as opiniões da próxima geração de médicos sobre a eutanásia e o suicídio medicamente assistido. Os estudantes de todas as faculdades de medicina portuguesas que frequentaram o último ano do curso e os que o concluíram no ano letivo 2015/2016 foram convidados a preencher um inquérito. Para avaliar a existência de associação com crenças religiosas foi utilizado o teste Qui-quadrado ou o teste Fisher. Das 405 respostas válidas, a maioria dos respondentes era do sexo feminino, solteira, e a média de idade foi de 24 anos. A maioria referiu ter crenças religiosas. Mais de metade lidou com pacientes em estado terminal. Em relação à legalização da eutanásia e do suicídio medicamente assistido, 73% e 56%, respetivamente, foram a favor. Os futuros médicos portugueses são claramente a favor da eutanásia e do suicídio assistido por médico, ao contrário de estudos semelhantes em outros países europeus.
Palavras-chave: EutanásiaEutanásia,Suicídio assistidoSuicídio assistido,Estudantes de medicinaEstudantes de medicina.
Abstract: This study analyzes the opinions of medical students about euthanasia and physician-assisted suicide. Students from all Portuguese medical schools who attended the last year of the course and those who completed it in 2015/2016 were invited to the survey. To assess the association with religious beliefs, the Chi-square or the Fisher’s exact test was used. Of the 405 valid answers, most respondents were female, single, and with an average age of 24 years. Most reported religious beliefs and more than half had treated terminally ill patients. Regarding the legalization of euthanasia and assisted suicide, 73% and 56%, respectively, were in favor of these practices. Future Portuguese doctors are clearly in favor of euthanasia and physician-assisted suicide, unlike similar studies in other European countries.
Keywords: Euthanasia, Assisted suicide, Students medical.
Resumen: Este estudio analiza las opiniones de estudiantes de medicina sobre la eutanasia y el suicidio asistido por un médico. Los estudiantes que asistieron al último año del curso y los que lo completaron en 2015/2016 de todas las escuelas de medicina portuguesas fueron invitados a recopilar datos. Para evaluar la asociación con creencias religiosas, se utilizó la prueba de Chi-cuadrado o la prueba exacta de Fisher. La mayoría de los encuestados eran mujeres, solteras y con una edad media de 24 años. La mayoría reportó creencias religiosas y más de la mitad trató a pacientes terminales. En cuanto a la legalización de la eutanasia y el suicidio asistido, el 73% y el 56%, respectivamente, estaban a favor de esas prácticas. Los futuros médicos portugueses están claramente a favor de la eutanasia y el suicidio asistido por un médico, a diferencia de estudios similares realizados en otros países europeos.
Palabras clave: Eutanasia, Muerte asistida, Medicina, Estudiantes de medicina.
Pesquisa
Atitudes de estudantes de medicina portugueses em relação à eutanásia
Attitudes of Portuguese medical students towards euthanasia
Actitudes de los estudiantes de medicina portugueses hacia la eutanasia
Recepção: 18 Maio 2020
Revised document received: 4 Outubro 2021
Aprovação: 5 Outubro 2021
Profissionais da saúde têm contato constante com pacientes em final de vida em muitas especialidades médicas. Esses médicos têm o poder de decidir e melhorar a qualidade de vida de seus pacientes frequentemente. Sendo assim, a eutanásia, o suicídio assistido por médico e outras decisões de fim de vida se encontram no centro das discussões médicas recentes 1 . A eutanásia pode ser definida como a ação ou omissão que visa causar a morte de um ser humano para colocar um fim do sofrimento. A discussão sobre a legalização da eutanásia é hoje uma questão social. Uma petição foi apresentada em abril de 2016 ao Parlamento Português para descriminalizar a eutanásia e práticas afins, como o suicídio assistido por médico. Atualmente, tais procedimentos são legais na Bélgica, em Luxemburgo e nos Países Baixos. Por outro lado, Canadá, Finlândia, Alemanha, Suíça e Estados Unidos (Oregon, Washington, Montana, Vermont e Califórnia) legalizaram apenas o suicídio assistido por médico, e a Colômbia e o Uruguai, apenas a eutanásia 2 .
Em relação a médicos, estudantes de medicina e outros profissionais de saúde de Portugal, apenas um estudo de 2016 com oncologistas revelou que a maioria deles se opõe à legalização da eutanásia 3 , 4 . Estudos com estudantes de medicina de outros países europeus encontraram taxas de aceitação consideráveis (30%) 5 , 6 , no entanto, esse tema ainda não foi totalmente discutido na realidade portuguesa. A maioria dos estudos sobre aceitação do suicídio assistido por médico conduzidos com estudantes de medicina apresenta uma proporção crescente de estudantes que aceitam a eutanásia como possível solução em condições terminais, embora a maioria continue se posicionando contra a prática 7 , 8 . Além disso, muitos argumentam que o suicídio assistido por médico está em desacordo com princípios éticos fundamentais e que os cuidados paliativos poderiam ser uma solução para lidar com esses pacientes 9 .
Novas gerações de médicos podem trazer novas opiniões, embora a opinião desses profissionais possa mudar no futuro com a experiência na profissão, uma vez que valores podem se modificar ao longo do tempo 10 . Jovens estudantes tendem a sofrer a influência de novos paradigmas sociais e valores éticos, como o respeito à autodeterminação do paciente e autonomia pessoal, temas bastante difundidos na sociedade. No entanto, a experiência clínica e a influência dos pares podem modificar opiniões e crenças, bem como a influência de valores mais tradicionais sobre a identidade profissional.
Este estudo analisou as opiniões de estudantes de medicina portugueses do último ano e de médicos portugueses no primeiro ano de prática clínica sobre decisões de fim de vida, especificamente a eutanásia e o suicídio assistido por médico.
Dois grupos diferentes foram convidados para a pesquisa: a) alunos que durante o estudo (novembro de 2016 a janeiro de 2017) estavam no 6º ano (último ano); e b) ex-alunos (que concluíram o curso no ano anterior) e que, na data do estudo, estavam em seu primeiro ano de prática clínica. A pesquisa baseou-se em um questionário utilizado por Ferraz Gonçalves para entrevistar alunos do último ano 3 . O questionário original foi desenvolvido a partir da análise de questionários usados em outros países como a Austrália, Suíça e Estados Unidos (Michigan), sendo validado por 15 médicos 4 .
Foi solicitado a todas as faculdades de medicina de Portugal que enviassem um e-mail com um link para o questionário a seus alunos do último ano e a seus ex-alunos que concluíram o curso no ano anterior. Os pesquisadores receberam as respostas de 21 de novembro de 2016 a 2 de janeiro de 2017. O consentimento foi considerado implícito no preenchimento do questionário, sendo solicitada a anuência de todas as faculdades envolvidas na pesquisa. Uma vez que este estudo não foi realizado em uma instituição específica, foi aprovado pela Comissão de Ética da Associação Portuguesa de Bioética.
A pesquisa foi dividida em oito categorias: dados demográficos, eutanásia, suicídio assistido, pacientes cognitivamente incompetentes, suspensão do tratamento, controle de sintomas, cuidados paliativos e extensão do conceito de eutanásia e cuidados paliativos. Utilizamos questões de múltipla escolha (Sim/Não/Não tenho opinião), exceto quanto à idade. Em cada categoria, definições e informações adicionais de conceitos-chave foram adicionadas para ajudar os participantes a responder às perguntas sem dificuldades de entendimento. Eutanásia: “Proporcionar deliberadamente o fim da vida de alguém, um paciente que sofre de uma doença incurável e progressiva que inevitavelmente levará à morte, com o pedido explícito, repetido, informado e bem ponderado do paciente, administrando doses letais de medicamentos”; Suicídio Assistido: “Auxiliar o suicídio de paciente terminal com doença incurável, avançada e progressiva, a pedido explícito, repetido, informado e bem pensado do paciente, prescrevendo medicamentos e dando as instruções necessárias para seu uso”. Também adicionamos a seguinte definição da Organização Mundial da Saúde para Cuidados Paliativos: assistência promovida por uma equipe multidisciplinar, que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares, diante de uma doença que ameace a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento, por meio de identificação precoce, avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais11 . Ao analisar a confiabilidade da consistência do questionário, obteve-se α=0,78. Todos os itens foram válidos ( p <0,001), e o item “Você acredita que os cuidados paliativos podem prevenir pedidos de eutanásia e suicídio assistido?” atingiu os seguintes valores: r=−0,83, n=401, p =0,09.
Os pesquisadores enfatizaram a possível relação entre suicídio assistido por médico/eutanásia por médico e as crenças religiosas dos entrevistados por diferentes motivos. Portugal, como outros países europeus, tem uma influência de longa data da Igreja Católica Romana, e uma enorme mudança sociológica no que diz respeito à influência da religião nas questões morais tem sido observada nas últimas décadas – a sociedade portuguesa se tornou muito menos conservadora em questões como o aborto, direitos reprodutivos de mulheres solteiras e direitos de adoção de casais homoafetivos, e até mesmo a aceitação geral do testamento em vida. Além disso, existem diferenças geográficas significativas no país em relação às convicções religiosas: a população do Norte é muito mais propensa a seguir a doutrina Católica Romana do que a do Sul, onde a maioria é agnóstica.
Para a análise dos dados foi utilizado o software SPSS (versão 24). As respostas foram descritas estatisticamente por meio de frequências relativas e absolutas. Para avaliar a correlação entre ter ou não convicções religiosas e as respostas dadas, foram utilizados o teste exato de Fisher e o qui-quadrado. Nas perguntas em que diferenças significativas entre os respondentes religiosos e não religiosos foram encontradas, uma regressão logística foi aplicada para o ajuste das variáveis demográficas que apresentaram frequência diferente entre os dois grupos. Foi adotado nível de significância de 5%.
No total, 428 questionários foram preenchidos, mas 23 foram desconsiderados, uma vez que respondentes não estavam no público-alvo da pesquisa, ou seja, eles não eram estudantes do último ano nem haviam se formado em 2015/2016. A maioria das perguntas era obrigatória e apenas algumas não foram respondidas. A cada ano, 1800 estudantes se formam em faculdades de medicina em Portugal; isto significa que quase 3600 pessoas poderiam ter participado da pesquisa. Considerando que um e-mail com um link para o questionário foi enviado pelas faculdades de medicina a cada aluno inscrito, presumimos que todos receberam o documento. Considerando o número potencial de respondentes, 11,88% do número total de estudantes participaram do estudo (428/3.600). Além disso, quando o questionário foi enviado, a eutanásia aparecia como um tema de controvérsia social e discussão pública em Portugal, ou seja, na mídia. Uma vez que os estudantes de medicina estavam profundamente envolvidos nesta discussão, esperávamos que os respondentes apresentassem opiniões diferentes em nosso estudo.
Os autores acreditam que essa amostra representa a população porque reflete com exatidão o sentimento da população geral de estudantes. As variáveis chaves em exame estavam no mesmo nível – idade, gênero ou escolaridade – o que poderia reduzir o número de respostas enviesadas. Por exemplo, o fato de que 74% dos entrevistados eram mulheres está de acordo com a evolução demográfica da prática e do ensino de medicina em Portugal. Além disso, o fato de haver apenas seis respondentes de uma das faculdades de medicina não alterou o objetivo geral de nosso estudo. Finalmente, o estudo incluiu toda a população alvo, o método de coleta de dados atingiu todos os indivíduos da população alvo e o viés de não resposta foi residual devido ao método de distribuição adequado.
A maioria dos entrevistados eram mulheres (74%) solteiras ou morando sozinhas (92%). A média de idade foi de 24 anos, sendo a menor idade 22 anos e a maior 40. Um aluno não respondeu à questão da idade. Dos 405 alunos, 286 (71%) eram religiosos: 90% católicos, 8% cristãos e apenas 2% declararam outras religiões.
Apenas 9% dos entrevistados responderam “nenhuma” à questão sobre quantas pessoas com doença incurável e progressiva trataram no último ano. A maioria (56%) respondeu entre 1 e 5 pacientes em estado terminal e 25% entre 16 e 30 ( Tabela 1 ).
Em relação à eutanásia, 36% responderam que a praticariam apesar de proibida pela legislação portuguesa e 47% não a fariam nestas circunstâncias. O número de alunos sem opinião formada sobre o assunto é alto (71 ou 17%). Se a legislação permitisse, o percentual de futuros médicos praticando a eutanásia aumentaria em 35% (para 71%) e o percentual dos que não praticariam cairia de 47% para 21%, sem alteração no número daqueles sem opinião formada. Apenas 13% e 6% tomaram conhecimento de um pedido ou prática de eutanásia durante a experiência clínica, respectivamente.
A maioria dos estudantes afirmou que a eutanásia deveria ser permitida pela lei portuguesa (73%), e apenas 11% tinham uma opinião contrária. O percentual dos que não tinham opinião formada permaneceu quase inalterado: 16%. Colocando-se na situação de pacientes com doença terminal, 66% disseram que optariam pela eutanásia, 12% não a fariam e 22% não tinham opinião formada.
Em relação à eutanásia, foram verificadas diferenças significativas entre os respondentes que tinham religião e os que não tinham nas questões sobre a possibilidade de praticar a eutanásia caso permitida ( p =0,042), sobre se deveria ser permitida no ordenamento jurídico português ( p =0,008) e se o participante gostaria de optar pela eutanásia em caso de doença terminal ( p =0,04): os entrevistados que não tinham religião eram mais propensos a alegar que realizariam a eutanásia se fosse permitido por lei em comparação àqueles com religião, mesmo após ajuste para gênero (OR=1,858, p =0,01).
Estudantes sem religião são mais propensos a afirmar que a eutanásia deve ser permitida pelo ordenamento jurídico português do que aqueles com religião, mesmo após ajuste por gênero (OR=2,187, p =0,005). As mulheres também são mais propensas a afirmar que a eutanásia deve ser permitida por lei do que os homens (OR=1,661, p =0,048). Estudantes não religiosos são significativamente mais propensos a dizer que gostariam de optar pela eutanásia se tivessem uma doença terminal do que aqueles que declararam religião, mesmo após ajuste por gênero (OR=1,762, p =0,023) ( Tabela 2 ).
Em relação ao suicídio assistido, a tendência geral é semelhante à da eutanásia: se fosse ilegal, 28% o praticariam e 54% se recusariam a fazê-lo. Se legalizado, esses percentuais mudariam para 52% e 28%, respectivamente. O número de pessoas sem opinião formada manteve-se próximo ao grupo anterior: 18 e 20% na primeira e na segunda questão, respectivamente. Da mesma forma que as respostas para a eutanásia, apenas um valor residual tomou conhecimento de uma solicitação (8) ou prática de suicídio assistido (2) durante o período de prática clínica. Quanto à legalização, a maioria (56%) é favorável, 21% é contra e cerca de um quarto não tem opinião formada. Se estivessem em estado terminal, 51% optariam por suicídio assistido, 21% não o fariam e muitos não tinham opinião formada.
Entrevistados não religiosos são significativamente mais propensos a afirmar que participariam de suicídio assistido se a lei permitisse do que aqueles que praticam uma religião, mesmo após o ajuste por gênero (OR=2,101, p =0,001). Estudantes não religiosos são mais propensos a dizer que o suicídio assistido deve ser permitido por lei do que aqueles que praticam uma religião, mesmo após o ajuste por gênero (OR=2,032, p =0,002) ( Tabela 3 ).
Quando questionados se, a pedido de um parente ou pessoa próxima, dariam um ou mais medicamentos em doses letais a alguém com doença terminal e que não pode tomar decisões devido a seu estado, a maioria respondeu negativamente (67%), e apenas 10% responderam “sim”. Além disso, 23% deles não tinham opinião formada. Apenas 41 (10%) alunos tinham conhecimento de tal solicitação e 9 (2%) tinham conhecimento de que ela estava sendo realizada. Quanto à legalização dessa prática, cerca de metade (49%) é contra, e o restante se divide em 21% a favor e 30% sem opinião formada. Se tivessem uma doença terminal e não pudessem tomar decisões, 41% não gostariam que um médico terminasse suas vidas a pedido de um parente ou pessoa próxima, 30% consideraram esta hipótese favorável e 29% não tinham opinião formada.
Sobre administrar medicamentos em doses letais – por iniciativa do próprio médico e não a pedido de parente ou pessoa próxima – as respostas foram bem diferentes: o dobro (81%) dos respondentes não o fariam, 12% não tinham opinião formada e apenas 6% admitiam essa possibilidade. Voltando à situação de enfrentar uma doença terminal, 74% não gostariam que o médico lhes aplicasse medicamentos em doses letais apenas com base no seu entendimento, 16% não tinham opinião formada e 10% concordaram.
Comparando as respostas dos participantes religiosos com não religiosos, verificamos que os primeiros deram respostas mais negativas (“não”), embora a diferença não seja significativa.
A maioria dos entrevistados, quando questionada se seria legítimo suspender as medidas de apoio à vida a pedido dos pacientes, respondeu positivamente: “sim” (79%) e “sim, mas sob determinadas circunstâncias” (5%), e mais entrevistados sem opinião formada (9%) do que respostas negativas (7%). Em seguida foi perguntado se suspenderiam medidas como nutrição ou hidratação e, nesse ponto, as respostas se inverteram: 71% responderam “não”, 18% “sim” e 11% que não tinham opinião formada. Quanto à suspensão das medidas de apoio solicitada por familiar ou pessoa próxima, 43% afirmaram que não seria legítima, 23% concordaram (“sim”) e 12% responderam “sim, mas sob determinadas circunstâncias”. Os que responderam “sim” tiveram percentual semelhante aos que “não tinham opinião formada” (23%). A pergunta sobre o encerramento das medidas de suporte como nutrição ou hidratação foi repetida e o padrão anterior se manteve: 79% responderam “não”, 12% “não tinham opinião formada” e apenas 9% responderam “sim”. Quanto à decisão de interromper o atendimento em fim de vida de modo unilateral pelo médico ou da equipe de saúde, a maioria considerou que seria ilegítima (66%); 15% “não formaram opinião a respeito”, 13% disseram que seria legítimo e 6% concordaram apenas sob certas circunstâncias. Novamente, a maioria dos entrevistados não interromperia as medidas de hidratação (82%).
Ao comparar o número de respondentes religiosos com os que não são religiosos, descobrimos que ambos eram muito semelhantes.
A maioria dos entrevistados admitiu que aplicaria drogas para controlar o sofrimento, embora pudessem encurtar a vida do paciente (93% responderam “sim”, 3% responderam “sim, sob certas circunstâncias”). No papel de pacientes, os futuros médicos gostariam de receber o mesmo tratamento que seus pacientes (96%). Nessa categoria, o número de participantes sem opinião foi reduzido (3% e 2%) e as diferenças entre entrevistados religiosos e não religiosos foram residuais.
Comparando os valores de respostas para respondentes religiosos com não religiosos, os resultados se mostraram muito semelhantes.
No total, 65% dos futuros médicos pesquisados entendem que o conceito de eutanásia não deve ser estendido a pessoas sem doenças terminais ou somáticas, doentes crônicos, doentes mentais e pessoas cansadas de viver devido à idade avançada, deterioração física, solidão ou dependência. Cerca de um quinto não tem opinião sobre o assunto e apenas 16% concordam com a medida. Mais uma vez, aqueles sem religião foram ligeiramente mais favoráveis à extensão do conceito de eutanásia do que aqueles que seguem uma religião: 19% contra 15% – resultados consistentes com os desfavoráveis, 62% e 66%, respectivamente (sem significância estatística).
Sobre a questão de saber se os cuidados paliativos poderiam reduzir os pedidos de eutanásia, 50% dos que têm religião e 41% dos não religiosos consideram que “muitos” podem ser evitados. O padrão de respostas em relação à opção “alguns” foi o oposto, apresentando maior percentual (52%) de não religiosos e menor (44%) de religiosos (sem significância estatística)
A eutanásia está sendo debatida em todo o mundo atualmente e é de particular interesse para aqueles que se formam nas faculdades de medicina. Apesar dos avanços na discussão da eutanásia, suicídio assistido por médico e outras decisões de fim de vida, a ética médica permaneceu relativamente estável ao longo dos anos 12 , 13 . Assim, não há razão para supor que aqueles que se posicionam a favor da descriminalização das decisões de fim de vida tenham respondido em maior porcentagem do que aqueles que concordam com o atual arcabouço jurídico.
Das oito faculdades de medicina em Portugal, o número de respostas obtidas pode ser considerado proporcional ao número de alunos que as frequentam. Além disso, o conjunto de respostas é uma amostra representativa, pois corresponde a aproximadamente 10% do total de alunos nos anos curriculares analisados. Por esses motivos, os resultados podem representar a opinião de estudantes de medicina que tratam de pacientes há mais anos, mas que ainda não iniciaram sua carreira profissional.
Com relação à eutanásia e ao suicídio assistido por médico especificamente, a maioria dos alunos não praticaria nenhum deles sob o quadro jurídico atual. No entanto, há um percentual considerável – cerca de um terço – que admite a possibilidade de agir em desacordo com a lei. Se a eutanásia e o suicídio assistido fossem descriminalizados, a porcentagem de futuros médicos que os praticariam aumentaria significativamente (para 71% e 52%, respectivamente). É significativo o índice elevado de estudantes – quase três quartos – que são favoráveis à eutanásia no ordenamento jurídico português e ao suicídio assistido (mais de metade).
A aceitação da eutanásia e do suicídio assistido por médico por estudantes de medicina está fortemente relacionada à sua legalização. Essa associação pode estar ligada a diferentes fatores. Em primeiro lugar, ao fato de que, apesar de uma forte base ética, as práticas médicas devem estar de acordo com o estado de direito, exceto em circunstâncias específicas, ou seja, quando a lei e a ética se opõem claramente – por exemplo, a participação de médicos em tortura e outras práticas desumanas. Além disso, a própria lei tem um importante simbolismo ético e é geralmente aceito que leis – sobretudo as constitucionais – devem abraçar os valores fundamentais de uma determinada sociedade. Não é surpreendente que os alunos estejam mais dispostos a praticar a eutanásia voluntária ou suicídio assistido por médico se tais práticas estiverem de acordo com a lei e com as orientações profissionais que evitariam abusos como a eutanásia involuntária.
Embora os resultados estejam de acordo com os desenvolvimentos recentes em alguns países europeus 14 , eles levantam questões importantes sobre o futuro da educação médica 15 . Se os médicos, incluindo os jovens residentes, terão a responsabilidade de realizar a eutanásia e o suicídio assistido por médico, é necessário promover um debate objetivo sobre essas práticas 16 . Outra questão a se considerar é se o ensino da ética médica evoluirá considerando os valores fundamentais da profissão, principalmente o respeito à vida humana 15 .
Isso é especialmente importante porque há evidências crescentes de que, em alguns casos, a eutanásia se torna uma prática não voluntária ou involuntária. Estudos recentes na Bélgica, onde a eutanásia foi legalizada em 2002, mostram que quase 5% de todas as mortes relatadas são devidas à eutanásia 17 e o ensino e o treinamento médico devem ser realçados para evitar práticas que possam comprometer a autonomia do paciente.
Conforme sugerido pelos resultados deste estudo, embora os estudantes de medicina pareçam progressivamente aceitar a prática da eutanásia voluntária, a maioria deles não aceita a eutanásia não voluntária ou involuntária (pacientes deprimidos, por exemplo) ou mesmo a eutanásia em pacientes com autonomia reduzida, como crianças ou pessoas com deficiência.
Se tivessem doença terminal, a percentagem de respondentes que optaria pela eutanásia ou suicídio assistido é inferior à dos que são a favor da eutanásia, o que nos leva a concluir que dariam aos doentes o mesmo tratamento que gostariam eles mesmos.
Um levantamento de dados semelhante ao de nosso estudo foi realizado na Alemanha em 2007, em um momento de grande discussão pública com a legalização da eutanásia nos Países Baixos 18 , na Bélgica 19 e em alguns estados dos Estados Unidos 20 - 21 , com uma taxa de aprovação geral da população variando de 42% a 73%. Nessa pesquisa, foi realizado um levantamento de dados com estudantes de medicina de duas universidades alemãs, com questões muito semelhantes às utilizadas em nosso questionário 7 . As seguintes diferenças foram identificadas nas respostas obtidas: apenas cerca de 30% dos alunos do 6º ano foram a favor de descriminalizar a eutanásia; se fosse legalizada, cerca de 25% a praticariam e cerca de 50% gostariam optariam por ela no futuro. Para além de uma proporção muito maior de estudantes alemães que rejeitam a legalização da eutanásia, verifica-se uma tendência oposta à dos portugueses: a percentagem dos que gostariam de optar pela eutanásia como doentes é superior à dos partidários da legalização. Dados mais recentes, de 2015 do mesmo país (mas de alunos do 4º ano da Universidade de Munique), mostraram que apenas 19,2% veem a eutanásia como um procedimento eticamente aceitável 6 .
Na Suécia, um estudo realizado entre 2001 e 2003 com alunos no início e no final do curso de medicina, revelou que 34% tinham opinião positiva sobre a legalização da eutanásia e 52% opinião negativa 5 . Um estudo com estudantes do terceiro ano de medicina da Universidade de Poznan, majoritariamente católicos, mostrou que 48% estariam dispostos a praticar a eutanásia ou o suicídio assistido, embora apenas 26% fossem favoráveis à sua legalização 22 . Na Áustria (Universidade de Graz) um estudo realizado entre 2001 e 2009 identificou que 31% dos alunos concordaram com a eutanásia 23 .
No que diz respeito ao contexto português, e embora estudos mostrem que os alunos têm uma atitude mais positiva face à eutanásia e ao suicídio assistido, o estudo de Ferraz Gonçalves concluiu que esmagadora maioria dos médicos questionados rejeitou a eutanásia, mesmo se fosse legalmente permitida, fato com o qual também não concordaram 3 ; uma versão preliminar do questionário utilizado no presente estudo foi utilizada, porém aplicada apenas a oncologistas. Nesse estudo, os católicos corresponderam a 90% daqueles que afirmavam seguir religião.
Apesar desses resultados, deve ficar claro que as diferenças nas respostas entre estudantes religiosos e não religiosos são meramente uma correlação e que não há causalidade demonstrável. Vários fatores contribuíram para esses resultados, como educação e formação cultural e ideológica. Essa correlação pode ser responsável pelos diferentes resultados relativos a suicídio assistido versus eutanásia, embora Curlin e colaboradores 24 tenham sugerido que médicos altamente religiosos são mais propensos do que aqueles com baixa religiosidade a se opor ao suicídio assistido por médico.
Quase todas as respostas à administração de drogas em doses letais relativas a ambos os procedimentos em pacientes cognitivamente incompetentes foram negativas: não o fariam a pedido de um familiar ou por iniciativa própria, além de não concordarem com sua legalização. Ou seja, os estudantes de medicina reconhecem que embora seja legítimo discutir o exercício da autonomia em pessoas incompetentes, por meio de um testamento relacionado em vida 25 , “a morte misericordiosa” (eutanásia involuntária), ao contrário da eutanásia voluntária 26 , evoca questões éticas de enorme magnitude, principalmente para populações vulneráveis 27 .
Em caso de inversão de papéis, de médico para paciente, eles tinham a mesma opinião: nenhuma droga administrada em doses letais, seja a pedido de um membro da família, seja de uma pessoa próxima ou por iniciativa do médico. Comparado ao estudo realizado em 2006 por Gonçalves 3 a maioria das respostas são semelhantes às obtidas em nosso estudo, exceto pela legalização da eutanásia: 92% dos oncologistas protestaram contra ela, mas apenas 49% dos alunos têm a mesma opinião. Nesse grupo houve consenso entre participantes religiosos e não religiosos.
Em relação à suspensão ou suspensão do tratamento no caso de pacientes em fase terminal, a maioria dos entrevistados considerou legítimo suspender as medidas de suporte desde que o paciente tenha expressamente manifestado essa vontade, o que está de acordo com as recomendações no tópico. Eles entendem que se o pedido de retirada dessas medidas vier de um familiar ou pessoa próxima, não deve ser acatado e que o médico/equipe médica não deve ter participação na decisão. Essas questões deixam claro que os futuros médicos consideram que somente o paciente deve decidir sobre a suspensão do tratamento, não permitindo que outros interfiram nesse ponto. Houve também rejeição à retirada de outras medidas, como nutrição ou hidratação, seja a pedido do paciente ou de pessoa próxima ou parente, seja por decisão do médico ou de equipes médicas. Os oncologistas portugueses mostraram a mesma tendência em suas respostas 3 . Nesse grupo de questões também houve proximidade entre as respostas dadas pelos entrevistados religiosos e não religiosos.
No que diz respeito ao controle de sintomas, quase todos (93%) futuros médicos administrariam medicamentos a pacientes em estado terminal para reduzir o sofrimento, mesmo que isso encurtasse a vida, e um número ainda maior gostaria de ter essa prática aplicada a si próprios se estivessem no lugar dos pacientes. A religião mostrou ser um fator que diferencia as respostas de controle de sintomas. A sedação paliativa, entre outras, parece ser uma prática aceitável mesmo que, segundo consenso internacional, a sedação não deva antecipar o processo natural da morte 28 . Ainda nos cuidados paliativos, o número de entrevistados que responderam “alguns” e “muitos” a respeito de saber se os cuidados paliativos poderiam evitar os pedidos de eutanásia era praticamente igual. No entanto, há mais respondentes com convicções religiosas que consideraram que os cuidados paliativos podem evitar “muitos” pedidos, comparativamente a evitar “alguns”, mas para aqueles não religiosos, o oposto é verdadeiro. É legítimo concluir que participantes religiosos associam pedidos de eutanásia e suicídio assistido com cuidados paliativos insuficientes? Os oncologistas portugueses, na sua maioria, acreditam que os cuidados paliativos podem prevenir “muitos” pedidos de procedimentos em fim de vida 3 .
Na verdade, uma rede de cuidados paliativos é um imperativo para qualquer sistema de saúde. Além disso, apoio e orientação espiritual adequadas, juntamente com as medidas assistenciais de medicina paliativa, são, hoje, as melhores práticas para o cuidado aos doentes terminais 29 . Estudos futuros devem, portanto, analisar o fato de que a maioria dos entrevistados não considera aceitável um pedido de eutanásia por pacientes com doenças crônicas e mentais, pessoas cansadas de viver, ou com deterioração física, solidão ou dependência.
Em suma, os resultados deste estudo parecem mostrar que os futuros médicos são claramente a favor da legalização da eutanásia e do suicídio assistido por médico, ao contrário dos estudos realizados em outros países europeus e do estudo com médicos portugueses. Apesar de ser um país com população católica (81%), a sociedade portuguesa tem sido mais liberal em relação a alguns dogmas tradicionais, como mostrou o resultado do referendo de 2007 sobre a descriminalização do aborto. Resultados semelhantes foram obtidos quando comparamos as respostas de entrevistados religiosos e não religiosos: embora sejam menos favoráveis à legalização da eutanásia e do suicídio assistido, as diferenças não são significativas. Isso levanta questões sobre a definição dos limites da autonomia pessoal 30 , o papel do médico nesse contexto 31 , 32 e até mesmo como garantir que a aplicação da eutanásia e do suicídio assistido por médico não seja apenas atraente, isto é, que não haja transtorno tratável subjacente, como depressão 33 .
Em relação à suspensão ou remoção de tratamentos, isso deve acontecer exclusivamente quando o paciente decidir de forma autônoma e deixar claro que essa é sua vontade. Essa posição majoritária dos respondentes também está de acordo com a perspectiva mais consensual sobre o papel da família e, especialmente do substituto de saúde (procuração/procuração durável) na defesa do melhor interesse do paciente 34 . Mesmo se essa fosse a vontade do paciente, a maioria dos entrevistados não admitiu a retirada da hidratação e nutrição. O maior consenso foi encontrado para o controle de sintomas, tendo como prioridade a atenuação ou extinção do sofrimento do paciente, mesmo que isso implicasse a redução do tempo de sua vida.
Por fim, nunca se chegará a um consenso sobre essas questões por conta da polêmica sobre o assunto, que é alimentada por uma aceitação cada vez maior de diferentes profissionais da saúde, mesmo em nível de graduação, em diferentes experiências. De fato, um estudo realizado em um país muçulmano por Hosseinzadeh e Rafiei 35 mostrou que a maioria dos estudantes de enfermagem com experiência clínica concordou com a eutanásia ativa, uma evolução ética em linha com o nosso estudo. No entanto, a eutanásia e o suicídio assistido por médico sempre serão uma importante fonte de debate social 36 , sendo que mais estudos são necessários para avaliar as consequências dessa prática para pacientes, familiares 37 , a medicina e a sociedade.
suppl1.pdf (pdf) Questionário
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Rui Nunes – Doutor – ruinunes@med.up.pt
Os autores participaram conjuntamente na elaboração do artigo.
Correspondência: Rui Nunes – Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Alameda Prof. Hernâni Monteiro 4200-319. Porto, Portugal.