DOSSIÊ: FORMAS TEXTUAIS, IMAGINAÇÃO E HISTORICIDADE
Received: 1 May 2024
Revised document received: 22 October 2024
Accepted: 14 October 2024
DOI: https://doi.org/10.1590/0104-87752025v41e25018
Funding
Funding source: CNPq
Contract number: 09/2022-PQ
Funding statement: FINANCIAMENTO: Pesquisa desenvolvida com auxílio da Bolsa de Produtividade Científica do CNPq – chamada nº 09/2022-PQ.
RESUMO: No presente trabalho, analisamos como a obra literária “Os que bebem como os cães”, de autoria de Francisco de Assis Almeida Brasil, contribui para o entendimento da história brasileira no recorte temporal em que foi publicada. A publicação ocorreu no ano de 1975, visando discutir a configuração histórica vivida no Brasil no período, submetido a uma rigorosa ditadura, cujos desdobramentos atingiram os direitos e as liberdades individuais – temas nevrálgicos que afetaram a história e a memória social do país. Pretendemos discutir, também, como essa obra, que adota o tempo psicológico, tem a capacidade de suscitar a sensibilização e a consciência histórica nos leitores de diferentes contextos históricos e geográficos, pela contemporaneidade dos temas nela abordados, em especial os referentes às práticas de tortura e seus efeitos sobre o apagamento das memórias e das identidades individuais e coletivas nos sujeitos subjugados. Nessa pesquisa, entendemos a obra literária em sua interface com a história, como uma linguagem-testemunha contemporânea dos temas abordados no romance, mas também como um registro histórico para as gerações futuras, principalmente por discutir temas como memória e identidade em sua interconexão com os desafios históricos. Adotamos como fonte de pesquisa a referida obra e as produções historiográficas e literárias sobre o tema ou o tempo em apreço.
Palavras chave: História, literatura, política.
ABSTRACT: In this paper, we analyze how the literary work “Os que bebem como os cães” (Those who drink like dogs), by Francisco de Assis Almeida Brasil, contributes to understanding Brazilian history in the period in which it was published, 1975, in order to discuss the historical configuration experienced in Brazil during that period, which was subject to a strict dictatorship, the consequences of which affected individual rights and freedoms - neuralgic issues that affected the country’s history and social memory. We also intend to discuss how this work, which adopts psychological time, has the capacity to raise awareness and historical consciousness in readers from different historical and geographical contexts, due to the contemporaneity of the themes it addresses, especially those relating to torture practices and their effects on the erasure of memories and individual and collective identities in the subjugated subjects. In this research, we understand the literary work in its interface with history, as a contemporary language-witness to the themes addressed in the novel, but also as a historical record for future generations, especially by discussing themes such as memory and identity in their interconnection with historical challenges. We used the aforementioned work and historiographical and literary productions on the theme or time in question as a source of research.
Keywords: History, literature, politics.
“Mas ainda estava com os lábios livres.
E pensou em gritar.
E pensou no grito de esperança.”
(Brasil, 2010, p. 33)
[...] Sou um professor, falo sobre arte, sobre a utilidade da arte num mundo de inúteis.
[...]
O real da vida de um homem não está onde ele está, encontra-se em outras vidas,
que dão forma à sua,
isso foi o que disse um filósofo.
(Brasil, 2010, p. 140)
“A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro.”
(Le Goff, 1984, p. 47)
INTRODUÇÃO: UM PASSADO QUE INSISTE EM PERMANECER
2024: sessenta anos do golpe civil-militar que impôs uma ditadura sangrenta ao Brasil; quarenta anos do movimento das “Diretas-já”, evento que mobilizou forças em defesa da redemocratização do Brasil e exigiu o retorno ao voto direto para presidente da República e, mesmo sem conseguir seu intento, contribuiu para pôr fim na ditadura civil-militar iniciada em 1964; um ano da tentativa de um novo golpe, ocorrido em 2023, no qual diferentes autoridades políticas, civis e militares brasileiras, empresários e membros da sociedade civil, respondem a processos judiciais impetrados no Supremo Tribunal Federal (STF) por atentarem contra a democracia no país1.
Qual a relação da obra “Os que bebem como os cães”, do escritor piauiense Francisco de Assis Almeida Brasil, com isso? Foi escrita no ano de 1975 - no ápice das denúncias de tortura e de truculência realizadas por agentes do estado contra membros da sociedade brasileira, seja no campo das liberdades coletivas ou individuais, principalmente após a implantação do Ato Institucional nº 5, de 1968, e do Decreto-lei nº 1.077,2 de 1970. Os efeitos dessa normatização sobre a produção artístico-cultural do país foram devastadores, pois, na prática, impuseram uma censura prévia ao país. A obra aborda questões referentes às mordaças geradas pelo autoritarismo, suas práticas de repressão e de silenciamento forçado imposto aos brasileiros considerados adversários do governo ditatorial, assim como as formas de resistência a essas práticas.
COMO LIBÉLULAS SOBRE BAIONETAS: LITERATURA COMO DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
Em 21 de maio de 1966, durante o governo do marechal Humberto Castello Branco, montou-se uma exposição com as armas e munições usadas na Guerra do Paraguai, apresentada no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra, no Rio de Janeiro. O fotojornalista Evandro Teixeira fez a fotografia das libélulas posando sobre as baionetas em exposição:

A referida foto ilustrou a capa do Jornal do Brasil em 22 de maio daquele ano (CCBB Educativo, 2023)4, rendendo a seu autor a prisão por uma noite: “Eu fiquei lá preso, tomando café”, ironiza Evandro Teixeira em declaração feita durante a VII Semana de Comunicação, em Londrina. Fora preso com a acusação de ter desrespeitado as autoridades. Segundo ele, o presidente quis castigá-lo por ter dado maior destaque a libélulas posando sobre as armas que à imagem do marechal-presidente. Declarou ainda ter levado alguns tapas, mas nada tão grave quando comparado ao sofrimento de outros jornalistas presos e torturados pela ditadura (Miyuki, Bruna. Alma Londrina, 2019).5
Como no icônico registro feito por Teixeira, defendemos, neste trabalho, que a obra literária – em lato sensu – e o livro “Os que bebem como os cães” – em stricto sensu – funcionam como libélulas no combate às “baionetas do autoritarismo”, que insistem em se munir contra a sociedade brasileira em diferentes temporalidades, até mesmo porque, embora a obra tenha sido publicada no ano de 1975, ela não explicita o tempo cronológico nem o espaço geográfico ao qual se refere, adotando um tempo psicológico. Para desenvolver esta pesquisa, adotamos como corpus documental a referida obra literária, a bibliografia que discute a intersecção entre História e Literatura e textos historiográficos sobre o período da última ditadura no Brasil, além das fontes jornalísticas disponíveis em plataformas de comunicação digital, com matérias que apresentam as apologias a essas práticas no presente. Nesse sentido, procuramos entender a pertinência e contribuição dessa obra literária para a formação do senso crítico e para o desenvolvimento da consciência histórica sobre os temas abordados no romance.
Esse processo, no entanto, é algo que requer tempo e condições propícias, uma vez que a condição a que muitos estão submetidos assemelha-se ao que Assis Brasil denomina de um “não-tempo”, “uma não-vida”, demarcados no texto com muita sensibilidade como o lugar da falta de consciência de si e de sua história:
Mais do que nunca teria de esperar, beber aquela sopa, esperar, sorver como um cão o alimento, caminhar pela cela, esperar pelo ratinho, medir o tamanho das paredes – não veria mais a luz do pátio? Não sentiria na pele o ar fresco? A água enganadora e reconfortante?
Mas não podia ficar sem tomar banho, sem fazer suas necessidades no pátio, e mais cedo ou mais tarde os guardas apareceriam.
Quando? Em que dia? Em que horas?
Não podia saber porque ainda não conseguira medir o seu tempo, ou seu não-tempo, a sua não-vida (Brasil, 2010, p. 76).
Ao prosseguir a discussão sobre os danos promovidos pela perda da percepção sobre a passagem do tempo em sua condição de prisioneiro, devido aos entorpecentes postos na água, os prisioneiros passaram a agir como “mortos-vivos” e a confundir o real e o irreal. A perda da consciência do tempo e da memória é tratada como o principal dano causado a Jeremias, o protagonista do romance. Os “hiatos de sua memória” (Brasil, 20210, p. 60), marcados por vazios, impediam-no de saber quem era e o que fizera para ser posto naquela condição desumana. Ao tomar consciência de sua condição, percebia que “estava vivo, ou semivivo, ou semimorto” (Brasil, 2010, p. 40). O grau de consciência era conquistado à medida que ele recuperava fragmentos de sua memória e, com ela, de sua história. A Literatura de Assis Brasil exclama sobre a importância da História e da memória: “Mas o grito dos outros abrira alguma coisa em seu cérebro: ele tinha um passado, mas não podia se lembrar de nada” (Brasil, 2010, p. 18).
HISTÓRIA E LITERATURA: ENTRE ENCONTROS E PROVOCAÇÕES
A história e a literatura são companheiras desde a gestação de ambas, ora se complementando; ora se contrapondo. Sobre ambas, todavia, paira também uma desconfiança constante: não teriam elas objetos e problemas de estudos originários que fossem específicos de sua formulação. Contra a literatura há a suspeição de ela não dispor de um objeto próprio. Sobre isso, William Marx enuncia que “a filosofia busca a sabedoria, a ciência a verdade na natureza, a teologia o conhecimento de Deus etc. Só a literatura não tem objeto próprio: na verdade tinha, mas foi subtraído dela” (Marx, 2019, p. 8).
Sobre a história, instaura-se a mesma desconfiança:
Todas as outras disciplinas se definem pelo tema, pelo campo ou pelos objetos de seus estudos (como a antropologia, a crítica literária, a biologia), ou, ainda, por perseguir princípios mediante rigorosos procedimentos mentais internos para criar um mundo de sentido (filosofia, matemática). Não é o que acontece com a história. Ela não tem campo nem princípios próprios. Os historiadores podem escolher seu assunto em qualquer domínio da experiência humana (Schorske, 2000, p. 248).
Carl Schorske (2000, p. 242-243) vai além: afirma que a musa da história (Clio) é “boa em encontros” com as outras disciplinas, num constante “jogo de encontros” por meio dos quais procura localizar a autoridade e força explicativa num processo ou numa configuração temporal. Na tentativa de explicar o passado, a história relaciona os particulares aos conceitos e às categorias analíticas, conforme sua ordenação em temporalidades, em que Clio tece seu fio com materiais que escolheu, mas não plantou, e com conceitos que adotou, mas não criou. Essa sua habilidade foi apreciada – adverte o autor - “às vezes para ser cortejada, às vezes, escravizada” (Schorske, 2000, p. 243).
Essas advertências acentuam-se sobremaneira quando as inter-relações existentes entre história e literatura são propostas, visto que, a priori, atribuir-se-ia à primeira a responsabilidade e o compromisso em produzir uma narrativa referenciada em corpus documentais. À segunda, caberiam as esferas da invenção e da criação na emergência da narrativa ficcional, naquilo que Walter Benjamin (1996, p. 209) advertira ao afirmar que “o historiador é obrigado a explicar de uma ou outra maneira os episódios com que lida, e não pode absolutamente contentar-se em representá-los como modelos da história do mundo”. Dessa forma, o historiador não pode prescindir do quadro de referencialidade que seu ofício exige.
Segundo Roger Chartier, todo documento, literário ou não, é uma representação do real e está relacionado à sua realidade de texto elaborado pelas regras próprias da produção de cada gênero da escrita, assumindo a condição de testemunho que cria “um real” na “historicidade de sua produção e na intencionalidade da sua escrita” (Chartier, 1990, p. 62-63). Chartier (2009) adverte, contudo, que a literatura é um discurso que informa do “real”, mas não tem por objetivo abonar-se nele.
Assim, neste trabalho, a literatura é tratada na perspectiva proposta por Alfredo Bosi, quando afirma que, mesmo que o quantum de real histórico seja ponderável, o modo de trabalhar é ficcional. Segundo o autor, “o romancista não mente nunca porque ele efetivamente está mexendo com representações da imaginação que podem, ou não, ter um conteúdo empírico historicamente atestado” (Bosi, 2015, p. 224). Assim, o cenário histórico é considerado pela força simbólica que produz no autor e que o inspira a escrever.
Em Os que bebem como os cães, Assis Brasil – a pretexto de descrever a luta do personagem central para recuperar a memória depois das torturas e violências provocadas pelo encarceramento, ao qual desconhece os motivos – enuncia, em letras garrafais, que “A OBRA DE ARTE NÃO DEVE SE SUBMETER AO REAL”, mas logo acrescenta na mesma página, também em letras garrafais, que “A ARTE TAMBÉM NÃO DEVE FUGIR AO REAL” (Brasil, 2010, p. 132, grifo do autor). Assim, Assis Brasil reconhece que sua narrativa não está subordinada ao “real” que as experiências históricas vividas no período remetem, mas ratifica que também não pode fugir às influências que essas experiências têm sobre sua escrita, em franca alusão à interação entre literatura e história na obra em análise.
A declaração de Assis Brasil assemelha-se à advertência feita por Nicolau Sevcenko (2003), quando destaca que todo escritor possui uma liberdade “condicionada”, ao lembrar que este é influenciado por seu tempo e por seu espaço, e esses elementos reverberam em sua produção artístico-literária. O pesquisador lembra, ainda, que, caso não fosse assim, a legibilidade textual ficaria ameaçada, uma vez que são os referentes que possibilitam ao leitor ler, compreender e interpretar o texto.
Os desafios aos campos da história e da literatura permanecem, sobretudo quando as duas áreas são provocadas, simultaneamente, a oferecer subsídios para entender as ações humanas no tempo. Isso ocorre especialmente quando se trata de um tempo de torturas e de violência institucionalizada, como quando se analisa um romance como Os que bebem como os cães.
O despertar da consciência de si e da história: os combates ao não-tempo. A obra Os que bebem como os cães ganhou o reconhecimento da crítica literária e venceu o Prêmio Nacional Walmap de 1975 – dez anos após Assis Brasil vencer o mesmo prêmio com a obra Beira Rio Beira Vida, em 1965. Em 1975, a obra também venceu o Prêmio Joaquim Manuel de Macedo, em expresso reconhecimento da relevância do romance.
Vivia-se sob o julgo do Ato Institucional nº 5, o AI-5, que fora aprovado na gestão de Artur Costa e Silva, e previa, em descumprimento aos preceitos constitucionais vigentes, ser prerrogativa do presidente da República: a cassação dos mandatos de deputados, senadores e vereadores; a suspensão dos direitos políticos dos brasileiros; o fechamento do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas dos estados e das Câmaras de Vereadores nos municípios; a intervenção do Governo Federal nos municípios e estados e a nomeação de interventores; a implantação de estado de sítio sem a prévia autorização do Poder Legislativo; a proibição de habeas corpus, entre tantas outras arbitrariedades. Isso explicitava a face repressiva, violenta e autoritária dos governos militares, e contou com apoio de parcela civil da sociedade numa ditadura civil-militar (Aarão Reis, 2010; Motta, 2013).
O Ato abusivo continuava em vigência durante os mandatos dos presidentes-generais que se seguiram: Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel – que governava o país quando Assis Brasil publicara o livro, em 1975 (Ferreira; Gomes, 2014; Napolitano, 2002; Ridenti, 2014). Embora a obra literária em apreço não especifique o tempo e o espaço geográfico em que a trama ocorre - pois trabalha com uma temporalidade psicológica -, podendo ser relacionada a qualquer evento/época que remeta a práticas autoritárias, no Brasil ou no mundo, aborda questões fundamentais referentes à configuração histórica enfrentada no Brasil no tempo em que foi publicada: uma ditadura controlada por militares, que reprimiam e violentavam sua população, como fizeram com Jeremias, o professor protagonista da trama.
Assis Brasil, utilizando os artifícios de uma escrita densa e envolvente, trata temas como liberdade individual e sua privação e as diferentes formas de violência e de humilhação física e psicológica, que ameaçavam a vida, as liberdades individuais e a dignidade humana dos personagens retratados no texto. Também aborda o significado dessas questões para a vida social do país para além dos sujeitos retratados em seu texto, pois, pela não especificação tempo-espacial de onde/quando o enredo ocorre, a obra permite que sua validade extrapole os domínios temporais em que foi publicada e alcance outros tempos e diferentes sujeitos que defendam ou combatam o uso/abuso de violências e torturas por agentes estatais contra os adversários políticos ou contra quaisquer pessoas consideradas como tal. O texto também discute a importância da memória e da identidade para o enfrentamento de qualquer forma de opressão a que alguém ou um grupo social esteja submetido.
Nesse sentido, a obra aborda temas universais, que podem ser entendidos na perspectiva que Henry Rousso denominou de “um passado que não passa” (Delacroix, 2018; Arend; Macedo, 2009), por continuarem a despertar o interesse no presente, a partir das polêmicas e disputas que geram. Entre as disputas, destacamos as geradas a partir das medidas de exceção tomadas pelos agentes públicos durante a ditadura civil-militar, que estava em vigência no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980, mas que ecoaram e ecoam na sociedade brasileira até os dias hodiernos, como será abordado neste texto.
Essa associação entre a obra literária e a configuração histórica vivida no Brasil durante sua publicação, no ano de 1975, é feita por nós – não é explicitada pelo autor, nem tampouco pela obra, que, como dissemos, não precisa nem o tempo, nem o espaço do enredo. Nós é que, na condição de leitores, produzimos a “operação de caça” que a leitura nos possibilita, e assim, decidimos, arbitrariamente, estabelecer essa relação (Certeau, 1996).
Relacionamo-nos com a obra literária na perspectiva indicada por Costa Lima, segundo o qual os historiadores organizam “os restos do passado, tal como presentes ou inferidos de documentos, em um todo cujo sentido centralmente não é da ordem do imaginário” (Lima, 1989, p. 102).6 Ainda que, como ele esclarece, “os discursos do historiador e do ficcionista se diferenciam tanto pela maneira como suas narrativas se relacionam com o mundo quanto pelo modo como neles atua o narrador” (Lima, 1989, p. 102).
No presente texto, trabalhamos a obra de Assis Brasil pelos temas nevrálgicos que ela oferece, visando entender a história brasileira no recorte temporal em que foi escrita e publicada. Também a escolhemos pela capacidade que acreditamos que ela tenha de suscitar a sensibilização e a consciência histórica nos leitores pós-escrito e pós-publicação pela relevância e atualidade dos temas nela tratados, por continuar a ser, em grande medida, nossa contemporânea (Agamben, 2009). Dessa forma, entendemos a obra como uma linguagem-testemunha, contemporânea dos temas abordados no romance, mas também como um registro histórico para as gerações futuras que mantiverem contato com o texto literário, dada a contemporaneidade e pertinência do que aborda.
Sob essa perspectiva, analisamos o livro como uma fonte histórica que desperta o interesse sobre o período histórico de sua produção, ao mesmo tempo que oferece provocações aos leitores sobre a gravidade do risco da imersão em um contexto autoritário em outras temporalidades. Por isso, neste trabalho, analisamos a obra como uma linguagem artística. Ou seja, reconhecemos que ela carrega consigo as singularidades de não pretender e nem ser uma obra historiográfica, que não assume, portanto, os rigores exigidos à produção do conhecimento histórico-acadêmico, mas sim como um texto literário que aborda as manifestações do autoritarismo de agentes estatais sobre os corpos, tentando entender os danos que isso pode gerar em relação ao contexto de suas práticas, tanto entre as pessoas como entre as instituições. O professor Jeremias – o personagem central do romance – não está somente em sua condição degradante, como também vive subjugado pelas diferentes formas de opressão e violência, entre as quais se sobressaem a perda da consciência de si e de sua memória, de onde está e por que foi posto naquela condição.
O enredo pauta-se, sobretudo, na tentativa de recuperação da identidade de Jeremias por meio dos resíduos de memória para reconstituir seu passado, mas de forma incompleta, fragmentada e muito lenta. Neste estudo, analisamos memória a partir da perspectiva de Jacques Le Goff, que enuncia que “tornar-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos grupos, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas” (Le Goff, 1984, p. 13), haja vista a imbricação existente entre memória e identidade. Para Le Goff, “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (Le Goff, 1984, p. 46).
O romance aborda, ainda, múltiplas práticas de agressões e de violações exercidas contra os corpos dos detentos por “homens de botas” ou “guardas em suas fardas amarelas” (Brasil, 2010, p. 40) – em franca alusão às forças de segurança do Estado, entre as quais podem estar inseridos quaisquer agentes do aparato estatal de segurança do Brasil, em diferentes esferas da federação, ou até mesmo civis fardados, como o autor cogita em algumas passagens da obra. Por meio de seu texto, o autor adverte sobre os riscos da atuação de sujeitos autoritários no processo de degradação dos direitos civis no país (incluindo aí os direitos humanos, políticos e sociais, uma vez que os consideramos indissociáveis), seja durante o período ditatorial ou mesmo após a redemocratização (Schwarcz, 2019; Schwarcz; Starling, 2015).
Visamos, então, discutir o papel que o texto de Assis Brasil pode desempenhar no despertar da consciência histórica para combater a condição de “não-tempo” e de “não-vida” gerada por governos autoritários sobre os corpos, assim como no relato angustiante do protagonista do romance. A obra associa, na perspectiva defendida por Paul Ricoeur, o “não-tempo” e a “não-vida” à experiência de perda da consciência de si e de sua memória pelo personagem central, em que a memória é vista como a “ausência da coisa lembrada e sua presença na forma de representação” (Ricoeur, 2007, p. 72).
O combate à amnésia absoluta ocorre à medida que ele consegue, com muito esforço e persistência, lenta e dolorosamente, atribuir significado às palavras. Com isso, o personagem começa a recuperar resíduos de sua identidade e de sua história pessoal, de maneira muito esparsa diante dos “hiatos de memória” a que estava subjugado. Aos poucos, reflete sobre o que dá sentido à sua existência, mas também o que lhe provoca revolta:
Sim, havia esta luta: de um lado as palavras cunhadas pelos homens: esperança, liberdade, amor, Deus. Do outro, a recusa em aceitar pacificamente a sua harmonia, o seu equilíbrio. A mente queria ir mais além: o que dava esperança, o que era a liberdade, por que o homem sentia amor? Por que a palavra Deus, misteriosa e iluminada, por acalmar os corações, mas não destruía o sentimento de revolta? (Brasil, 2010, p. 50).
Nessa reflexão, reconhece que a tortura o embrutecera e, junto com a droga que era posta em sua água e em sua comida, o fizera perder a memória. Tortura, embrutecimento: essa é uma relação biunívoca exposta no texto. Há uma luta constante de Jeremias, no romance, em busca de recuperar o sentido das palavras, da memória, de sua história, mas tudo vinha muito fragmentado e aos poucos, após muitas experiências de violência ou de atitudes de coragem que presenciava entre os prisioneiros ou a que era submetido. A cada avanço rumo à consciência de si, mais coragem para gritar, para reagir, para indignar-se:
Estava preso também por dentro, não apenas seus passos e corpo tinham limitados espaços. E sua mente seria a chave da cela maior: a que trancava seu coração, a sua pequenina revolta incipiente, o seu pequeno ódio aflorado – a sensação de poder também atingir aqueles guardas, para massacrá-los (Brasil, 2010, p. 6, grifo nosso).
A chave para combater a “prisão por dentro” era sua mente. No entanto, isso ainda não lhe bastava, porque sentia que “as botas pisavam o seu corpo, machucavam os seus ouvidos” e o transformavam em “um trapo” que se agita. A consciência não ocorria espontaneamente, nem sem dor. Quanto mais violência, mais embrutecido ficava e mais se distanciava de sua própria história, como se quisesse expressar que as práticas autoritárias e violentas dificultam a formação de consciências livres e de identidades históricas, seja como indivíduo ou como coletividade (Brasil, 2010, p. 55).
Aos poucos Jeremias adquire consciência, revoltando-se por ser violentado “pelo próprio homem – a revolta maior estava nesse fato” (Brasil, 2010, p. 50). Como uma libélula sobre as baionetas, Assis Brasil, no contexto do período mais arbitrário da ditadura, escreve um romance. A obra atribui às palavras e aos sentimentos mais genuínos da simplicidade humana a capacidade de revigorar os sentidos da vida, de recuperar as lembranças necessárias para acionar sua memória, mas também de remeter à ação: a expressão do grito como resistência às mordaças, ao cárcere e às torturas que pretendiam desumanizá-lo e a seus companheiros do cárcere, todos desconhecidos para ele ou sobre quem também apagaram-lhe a memória:
Liberdade. Mais uma palavra que atraía o pensamento ou vinha de região onde a linguagem lógica não alcançava. Liberdade. Mas liberdade era o pátio, o banho, e o grito era a esperança, e um nome de mulher era o amor [Dulce – acréscimo nosso]. Ia construindo seu vocabulário – e já de posse dessa trilogia sensível, dispôs-se a tecer a teia de sua vida ali (Brasil, 2010, p. 37).
Liberdade, esperança e amor formavam a “trilogia sensível” e davam propulsão ao tecer a teia da vida e seguir vivendo, mas era preciso atribuir sentido às palavras. Cada uma delas tinha seus referentes: pátio: liberdade; grito: esperança; amor: Dulce. Sobre a palavra esperança, o autor afirma que, por meio dela, “a eternidade poderia escorrer, se esvair, pelos meandros mágicos” (Brasil, 2010, p. 33). Esperança escrita com letras em caixa alta, como exclamando por sua importância para continuar atribuindo sentido à vida e à resistência contra a opressão. Não uma esperança passiva, mas derivada do grito de resistência contra a mordaça e contra a tortura, contra todos os tipos de privações, uma esperança que move à ação, não à apatia: “[...] o grito, o grito dos homens tristes, os berros, não de desespero, mas de esperança. Sim, ESPERANÇA – [...] um possível final para a tortura [...] O grito, a esperança” (Brasil, 2010, p. 31 - grifo do autor).
À trilogia do sensível, Assis Brasil acrescenta algumas outras palavras: Deus, revolta. O significado de Deus, para o autor, não era de passividade, mas de ação. A consciência de aviltamento à sua condição humana movia-o à revolta, não ao comodismo. A consciência que se recuperava de forma fragmentada e nebulosa o impulsionava à vida e à admiração dos que reagiam contra a indignidade que estavam submetidos. Isso o alimentava e fortalecia, à medida que também o impulsionava à ação, nem que fosse em forma de grito. O grito, mais que um clamor, é tratado na obra como um despertar e uma convocação de outros espíritos adormecidos. Foi pelo grito de outros que Jeremias foi tomando consciência de si. Ele também queria gritar, pois isso simbolizava a resistência e a esperança.
A CONSCIÊNCIA DE SI E A RESISTÊNCIA: ENTRE A CELA, O GRITO E O MURO
O romance, cujo texto é composto por três títulos que se repetem e intercalam em capítulos distintos, A Cela, O Pátio e O Grito, envolve o leitor com a história de um homem sem memória nenhuma sobre seu passado, aprisionado em um cárcere, sem consciência de quem é (nome, idade, profissão, família etc.), onde estava, tampouco o motivo de sua prisão. Aos poucos, muito lentamente e de maneira fragmentada, ele recupera lampejos de sua memória. Em cada capítulo, um despertar. Seu nome: Jeremias; sua profissão: professor de Literatura e de Artes. Com muita dificuldade, recorda-se de outros resíduos de seu passado, de forma desordenada e desorientada.
Os capítulos são intercalados com a sucessão de capítulos curtos, com uma linguagem concisa e direta, que revela as condições angustiantes que os homens aprisionados são submetidos. No texto, há uma densa descrição da condição de isolamento dos prisioneiros, onde ocorrem variadas ações de violência contra o indivíduo (cela), intercalados com o contato do personagem com outros prisioneiros (pátio). Isso permite visualizarmos que as violações e agressões não eram praticadas tão somente contra um indivíduo específico, mas contra um coletivo de pessoas aprisionadas, algo que leva algum tempo – como todo o processo de construção da consciência do personagem - para ser percebido por ele: “Abriu os olhos e pôde [sic] ver em frente: uma fila de homens, todos amordaçados como ele. Eram o seu espelho: estavam ali para as mesmas coisas” (Brasil, 2010, p. 16).
O romance enfatiza: homens algemados, amordaçados, a quem era negado qualquer direito à dignidade. Agredidos, cabeças raspadas para serem homogeneizados em um processo de coisificação e de apagamento de sua singularidade como indivíduo possuidor de uma história. Negado o direito de se alimentarem ou de beberem, tinham de curvar-se, com as mãos algemadas para trás, para beber como os cães; percorriam as etapas “da dor, da imundície, da humilhação” (Brasil, 2010, p. 114). A descrição de diferentes formas de tortura vai se avolumando pelo romance e desperta a atenção do leitor para a dor enfrentada no cárcere por aqueles homens que sequer sabiam por que eram torturados:
Um murmúrio, vozes, depois alguns gritos. O seu vizinho estava sendo açoitado: berrava, gritava por Deus, pela mãe – me matem logo, dizia [...]. Seu corpo era jogado de encontro à parede – podia sentir o choque da carne macerada, o grito mais cortante. O homem estava sendo castigado [...] (Brasil, 2010, p. 116).
O castigo supostamente derivava do descumprimento pelo detento de uma regra da prisão: não se poderia gritar, contestar as violências sofridas, ou seriam alvos de mais violência ou até da pena capital, como descreve Jeremias sobre as torturas que seu vizinho de cela estava submetido:
O seu vizinho continuava a apanhar – debatia-se, era atirado de encontro à parede de sua cela [...]
Os gritos do preso diminuíam, mas eram mais dolorosos e, quando o ouviu dizer novamente, me matem logo, me matem logo, o ar abafado da cela foi quebrado, como estilhaçado pelo matraquear de uma arma. Conhecia bem, de algum lugar, aqueles sons. A metralhadora acabara de rasgar o companheiro, e o silêncio voltou, cortante e hostil (Brasil, 2010, p. 116, grifo nosso).
A cena dolorosa de tortura e assassinato é descrita ao longo do desenvolvimento do romance, que desde o início é provocativo e cortante, com o parágrafo inaugural iniciando com a seguinte frase: “A escuridão é ampla e envolvente”. Essa expressão se repete durante o livro (Brasil, 2010, p. 13). O prisioneiro, contudo, mantém a dignidade e, mesmo diante da tortura, é quem propõe o desfecho, não em tom de súplica, mas de força, ou assim prefere descrever Assis Brasil.
Por não declarar o tempo e espaço específico em que ocorre a trama, o romance pode se relacionar com qualquer contexto em que a opressão e a violência campeiam contra as liberdades individuais ou coletivas. A obra também não oferece uma identificação individual, embora o enredo descreva o sofrimento e a tomada lenta, dolorosa e fragmentada de consciência de si e de seu contexto pelo personagem central, em um processo de despertar, entrecortado por esquecimentos e lacunas, como se o autor quisesse instigar o leitor para a importância do despertar da memória em tempos traumáticos e ainda em disputa (Thompson, 2002). Com isso, Assis Brasil universaliza o sofrimento de Jeremias e a trama que o envolve, podendo referir-se a toda experiência de autoritarismo e violência contra a dignidade humana.
Assim, o texto cria a possibilidade da identificação da personagem retratada na urdidura de Os que bebem como os cães a qualquer ser humano violentado. O tempo impreciso no texto, além de um recurso estilístico, enuncia uma astúcia do autor para tornar seu texto universal e atemporal, ao mesmo que aborda temas de horrores vivenciados no Brasil durante o contexto da escrita, sem necessariamente fornecer quaisquer elementos materiais que pudessem despertar os arroubos autoritários sobre si e sobre sua obra. O recurso adotado por Assis Brasil assemelha-se àquilo que Michel de Certeau denominou de “táticas do fraco” (Certeau, 1996, p. 101).
O ritmo da narrativa é desenvolvido em um espiral massacrante, como se quisesse que o leitor sentisse a angústia do personagem - que ignorava onde estava, quem era, de onde vinha e o que o levara àquela condição, um desconhecimento completo de sua condição histórico-social -, para a recuperação parcial e fragmentária de seu nome e de onde estava. Não necessariamente conseguia identificar os motivos que o levaram àquele contexto de terror, como se o autor quisesse afirmar que nada justificava tamanho quadro de violência e de depreciação da condição humana sofrida pelos personagens do livro, que os equiparara inicialmente aos cães. Essa comparação ocorria pela forma com que se alimentavam - com as mãos amarradas para trás - de uma refeição fulcral, que os envenenava e comprometia sua saúde, cujos efeitos mais deletérios manifestavam-se no apagamento de sua memória.
A escolha entre comer/beber e manter-se lúcido, mesmo estando com fome, remete a tantas questões relacionadas às sociedades humanas, especialmente no período de escrita da obra: o Brasil dos anos pós-AI-5. Naquilo que ficou conhecido pela historiografia brasileira como “anos de chumbo”, em referência à violência praticada por agentes públicos, a serviço do Estado Brasileiro, contra cidadãos do país, violência agravada e generalizada após 1968, ano de aprovação da referida norma jurídica (Ferreira; Aarão Reis, 2007; Ferreira; Delgado, 2007; Fico, 2007; Napolitano, 2016). A difícil decisão parece remeter a outras dimensões simbólicas que não tão somente as circunscritas no romance. Decidir entre suprir as necessidades elementares da vida material e manter a consciência de si e a dignidade de pensar e agir livremente remete às ameaças vividas durante governos de exceção, em que nenhuma liberdade é preservada.
Entre os agentes estatais enunciados no texto, é possível inferir que se tratava de agentes das forças de segurança, civis e militares – militares principalmente. Assis Brasil enfatiza isso quando apresenta que os praticantes das formas de opressão, de violências (empurrões, amordaçamentos, aprisionamentos etc.) e responsáveis pela imposição às condições degradantes aos prisioneiros eram os “homens de botas”, também denominados de “guardas” de “farda amarela”. Aludia à militarização dos agentes praticantes das medidas de exceção e de violência contra os prisioneiros: “Mas por que o esparadrapo na boca dos presos? Os guardas têm medo de nossas queixas ou de nossas próprias vozes” (Brasil, 2010, p. 17, grifo nosso). Era necessário amordaçar para não ouvir as vozes e os protestos dos prisioneiros, algo temido pelos “homens de botas”, aludindo à prática de violência realizadas por agentes públicos contra quem ousasse se expressar.
A obra conduz o leitor a uma série de reflexões sobre a condição de subjugação à qual os presos eram submetidos, com recorrentes questionamentos sobre a importância da vida e da dignidade. Estão presentes, também, questionamentos sobre a liberdade, esperança, coragem por meio do grito e a importância do convívio com outros prisioneiros no pátio para a formação de consciência de si e de sua situação, como quando Assis Brasil questiona o uso da mordaça e da algema e denuncia a prática da tortura, mesmo em situações aparentemente sob controle e que não requeriam tanta truculência:
Por que a mordaça no pequeno intervalo no pátio? Por que as algemas dentro da cadeia?
Sim, era apenas uma tortura, pois não havia possibilidade de fuga para ninguém. E mais uma vez ouviu o barulho sólido das botas no chão. A marcha militar – cadência dentro da cadência de seu corpo, de seu coração (Brasil, 2010, p. 19, grifo nosso).
A explícita referência aos militares e sua associação à tortura, na obra, enuncia a eminente coragem do autor, que vivia em um Brasil amordaçado por uma ditadura violenta. Apesar da censura, não conseguia abafar as denúncias de tortura em prisões brasileiras (Fico, 2007; Miranda; Tibúrcio, 1999). No período histórico em questão, as denúncias de tortura contra presos políticos ou presos comuns repercutiam país afora e pelo exterior provocando polêmicas, entre as quais se destacaram as que contestavam os governos apoiadores e financiadores da ditadura em nosso país (Fico, 2008). A violência expressa no romance, porém, pode transpor temporalidades e enraizar-se em tempos vários. A denúncia refere-se à banalização da tortura entre nós.
Em um período em que raras eram as pessoas que ousavam denunciar a prática de tortura promovida pela ditadura, e as que ousavam corriam risco de ser duramente reprimidas e perseguidas pelos agentes da repressão, Assis Brasil - que carregava no próprio nome o nome do país -, contemporâneo do tempo das práticas de repressão, de violências e de arbitrariedades, ousa denunciar, em 1975, em seu livro, essas práticas. Além disso, denomina os torturadores de “vermes fardados que tinham o poder”, que dominavam os outros “esfarrapados como um bando de mendigos” (Brasil, 2010, p. 48). Sentencia, por meio da consciência que Jeremias vai formando lentamente:
Os homens de farda não querem que os homens de farrapos se levantem – o retorno a seu caminho, a seu destino de homens. Por isso têm tanto medo do grito e os amordaçam. O grito traz lembranças, os mantém de pé, olhando para a frente. O grito é o esteio, o apoio. Ninguém pode renunciar ao grito (Brasil, 2010, p. 61, grifo nosso).
O texto denuncia que cada indivíduo era descaracterizado para ser dominado. O autoritarismo pretendia retirar dos “homens esfarrapados” toda memória e história, para que não “se levantem” e recuperem “seu destino de homens”. Queriam restringi-los não somente de liberdade física, mas de dignidade humana; fazê-los constranger-se pelos resíduos expelidos, que sujavam suas roupas; aniquilar qualquer idiossincrasia, numa homogeneização embrutecedora aos raspar-lhes a cabeça de forma compulsória junto a outros detentos; dopá-los para tentar esvaziá-los de passados e de qualquer identificação com os semelhantes; fazê-los perder o domínio da palavra, da linguagem e de seus ideais; fazê-los desistir de viver e, principalmente, de sonhar, de ter esperança e de reagir.
Era necessário impedir que reconhecessem sua dignidade humana, evitar que se manifestassem e reagissem contra a opressão e qualquer injustiça. Era preciso proibi-los de emitir o grito que representava a liberdade, a memória, a conexão entre o passado, a consciência de si no presente e a expectativa de futuro. Por isso, o autor enuncia que “ninguém pode renunciar ao grito”, pois é o grito que faz lembrar, que promove elos entre os tempos e as experiências do ser, que constrói significados e dá sentido à experiência humana. Sem memória e sem história, o humano coisifica-se e perde a compreensão sobre sua importância e a importância de sua liberdade.
A liberdade era encarada pelos defensores do autoritarismo como um perigo, assim como o domínio das lembranças do passado. Por meio do passado havia a transformação, o estímulo da construção de espíritos livres que não se deixavam morrer, que não se calavam diante da opressão e da violência:
O confinamento, a escuridão aos poucos revelada, a tênue lembrança de um passado havia feito a grande transformação – eles se revoltavam porque tinham um espírito livre, imorredouro, mas não trocariam a liberdade pelo assassínio (Brasil, 2010, p. 49, grifo nosso).
É interessante notar a semelhança entre a escolha do personagem que representa a opressão no romance de Assis Brasil, o “homem de botas” - também denominado de “guarda” de “farda amarela” -, responsável pelas violências contra Jeremias e contra os demais prisioneiros, com o “soldado amarelo” do romance “Vidas Secas”, de Graciliano Ramos, obra de 1938. A última foi escrita quando o Brasil enfrentava outra ditadura, a do Estado Novo – após o golpe de 1937, que perseguiu e aprisionou Graciliano Ramos, entre tantos outros críticos do governo varguista. Obra na qual o autor retratara as arbitrariedades praticadas contra um sertanejo analfabeto, Fabiano, por alguns sujeitos, inclusive por um militar:
Em um dia Fabiano foi até a cidade comprar o que faltava em casa, antes de ir embora resolveu tomar um copo de cachaça, se sentia por todos enganado acreditando que sempre lhe cobravam mais do que era certo, assim como o patrão que sempre lhe pagava menos com a história dos juros. Foi aí que um soldado amarelo apareceu e o chamou para um jogo de cartas, como o homem era autoridade, aceitou, mas logo após a primeira rodada foi embora. O soldado lhe seguiu o perturbando até que Fabiano enraivecido xingou a mãe dele. Com isso foi para cadeia. A ignorância que a pobreza lhe causara não permitiu que ele se explicasse e assim ganhou uma surra e uma noite na prisão (Ramos, 2014, p. 57, grifo nosso).
A denúncia acerca da injustiça sofrida pelo personagem Fabiano é agravada pela incapacidade no domínio da linguagem, que o impedia de se manifestar contra isso, pelas limitações que isso lhe impingia. Graciliano Ramos também salienta as agressões sofridas por sua personagem na cadeia:
caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueu-se atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando (Ramos, 2014, p. 31).
Além da descrição das arbitrariedades provocadas por agentes do Estado, os romances Os que bebem como os cães e Vidas secas relatam o processo de desenvolvimento da consciência sobre a exploração sofrida pelos personagens Jeremias e Fabiano, respectivamente. No decorrer dos capítulos da obra de Assis Brasil, o professor Jeremias vai gradualmente tomando consciência de si, de onde estava e das agressões sofridas, mas sempre de forma fragmentada e incompleta: “O certo era que urinava e defecava na própria calça – as algemas, que prendiam os pulsos nas costas não deixavam qualquer possibilidade de uma conduta mais higiênica, mais humana” (Brasil, 2010, p. 93). O prejuízo à sua condição humana é recorrentemente destacado pelo autor. Ao permitir que seu protagonista recupere fragmentos da memória e da consciência sobre si e de sua história, o escritor sensibiliza o leitor para acompanhá-lo no processo e – quiçá – levá-lo a indignar-se contra isso e contra tudo que viola a dignidade humana.
O processo fragmentado e incompleto de recuperação da consciência pelo personagem Jeremias remete à luta e ao direito de memória dos indivíduos e dos grupos violentados por governos autoritários. Essa luta pela recuperação da consciência sobre sua identidade o impulsionava a tentar descobrir o que o fizera ser aprisionado e aviltado na prisão, sem êxito: “Onde está o meu passado?” (Brasil, 2010, p. 78). A aflição sobre o “comprido corredor da memória” que se “embranquecia” o atormentava. Aos poucos a memória era ativada pelo contato de Jeremias com outros prisioneiros. Estes ousavam expressar suas emoções por meio de gritos – que simbolizavam a consciência e a contestação da condição de degradação humana a que eram submetidos – e por isso eram violentamente reprimidos pelos homens de farda amarela.
Enquanto a cela era retratada como o ambiente da solidão, o pátio era o ambiente da liberação dos excrementos do corpo, da higienização pelo banho coletivo; era o local de uma breve e fugaz sociabilidade entre os prisioneiros que, mesmo impossibilitados de conversar entre si, comunicavam-se pelos gestos e expressões. Era no pátio que desfrutavam de “sua falsa liberdade” (Brasil, 2010, p. 1000) e onde tinham a possibilidade de gritar. O grito era a expressão da consciência sobre as violências e injustiças sofridas na prisão, ao mesmo tempo que os conectava e os mobilizava a novas reações: “lembrou-se do grito como a realidade maior, que impulsiona, leva à frente” (Brasil, 2010, p. 85), por meio do qual “todos venceriam pela resistência, pela repetição do grito” (Brasil, 2010, p. 76).
No romance, Assis Brasil apresenta que essa consciência de si não era automática, era despertada, gradualmente, com muita angústia, a partir das experiências vividas junto ao coletivo de aprisionados: “Por que não posso recordar? Por quê?”. O contato com outros prisioneiros no pátio contribuiu para acionar sua memória, algo que não se apresenta na integralidade, mas com muitas lacunas. Mesmo assim, também não está totalmente perdida, assim como ocorre com toda memória, como adverte Paul Thompson (2002). Aos poucos, o prisioneiro recupera a memória: “o passado que vinha em retalhos, peças de um quebra-cabeça, de um jogo que não queria se completar. Que mão poderosa o afastava de seu tempo interior? (Brasil, 2010, p. 131, grifo do autor). Para o autor, a consciência de si necessariamente passa pela consciência do tempo. Essa é uma analogia constante no romance: “Tenho que medir o meu tempo e só então poderei compreender o que acontece, por que estou aqui, por que não me lembro do passado. Tenho que medir o meu tempo” (Brasil, 2010, p. 55).
A luta pela consciência de si, de sua memória, de seu tempo e de sua história é travada em todo o romance. Se o domínio da linguagem humaniza e conecta Jeremias ao mundo, é a consciência do passado que o impulsiona a não desistir e a defender o direito ao grito, mesmo diante de agressões. Antes pensara “que a liberdade era fruto do poder”. Estava enganado: “A liberdade era algo interior, individual, intransferível” (Brasil, 2010, p. 48). A linguagem e a memória conectam Jeremias a si mesmo e ao mundo, humanizando-o e atribuindo sentido à sua existência. É pela linguagem que ele passa a construir os sentidos de seu mundo fragmentado, com lapsos de memória marcado por ocasos e interrogações.
Os grifos do autor, ao questionar que poder tinha interesse em promover o seu esquecimento, problematizam como os silenciamentos e apagamentos de memória são produzidos em tempos de autoritarismo e como podem afetar diferentes indivíduos e projetos sociais.
A tomada de consciência por Jeremias, mesmo quando ocorria, dava-se através de “fiapos do passado”, por onde recuperava lampejos da memória e conseguiria construir a consciência histórica. Para o autor, até mesmo a busca por desvendar o passado também gerava entorpecimentos. A recuperação gradual e fragmentada da memória por Jeremias é indispensável para a consciência sobre sua condição de aprisionado e violentado, bem como para sua reação contra isso, manifestada pela recusa do consumo da sopa ou da água do tanque – responsáveis por promover seu esquecimento –, ou quando ousa repetir o gesto dos outros prisioneiros e passa também a gritar.
Várias são as formas de tomada de consciência de si presentes no romance, entre as quais se sobressaem a consciência sobre seu nome e sobre sua profissão: Jeremias, um professor, recordação feita apenas no penúltimo capítulo do livro, de forma oscilante, em que o tempo é impreciso – como se quisesse esclarecer as perguntas feitas ao longo do romance, principalmente sobre os motivos da prisão. Lembrança essa que aparece em frases repetidas, como num sonho; não parece ser contemporânea do tempo da prisão, mas talvez apresente alguns elementos que sugerem os motivos que o levaram àquela condição desumanizada em que vivia:
Hoje é dia de meu aniversário, tenho quarenta e dois anos, me chamo Jeremias, sou professor de literatura, tenho uma mulher e uma filha, minha mãe ainda está viva, a casa em que moramos é alugada, tem um jardim onde cultivo flores, hortênsias, margaridas, tem um quintal cheio de mangueiras, todo dia saio de casa pela manhã e vou para a escola, não tenho carro, pego o ônibus das noves horas (Brasil, 2010, p. 139).
Esse enunciado se repete dez vezes, consecutivamente, mantendo o mesmo início, como uma reminiscência que relampeja diante do perigo, como advertira Walter Benjamin (1996). “Hoje é dia de meu aniversário [...]”, modificando a parte final do parágrafo, na qual acrescenta algumas informações e dados sobre si: era professor de literatura, que ensinava sobre a “utilidade da arte num mundo de inúteis” (Brasil, 2010, p. 140), num mundo de tecnocratas, em que se valoriza áreas como economia. Era casado, tinha uma filha e mãe – mulheres fundamentais na recuperação parcial de sua memória ao longo do romance. A mãe é por quem ele e os outros prisioneiros gritavam diante das torturas; fora sua primeira referência e a primeira palavra recuperada. Também fora seu primeiro elo com o passado.
Lembrou que estava escrevendo um livro, uma obra que pretendia despertar os “distraídos” para a importância da arte. Interessa-se pela vida de Sócrates e pela forma em que fora condenado à morte: “agitou ou não os estudantes?” (Brasil, 2010, p. 140). Essas lembranças parecem sugerir o motivo pelo qual fora preso. Ele próprio também seria um filósofo? Ou também teria “agitado” seus estudantes? Por isso, deveria ele também ser condenado à morte? Não, Assis Brasil não explicita essa pergunta, mas a deixa implícita no texto.
Os parágrafos sucedem-se embaçados, como lembranças confusas, até explicitar a lembrança de Jeremias de ser chamado ao gabinete do diretor. Nesse momento, volta a enunciar a frase que inicia o romance: “a escuridão é ampla e envolvente” (Brasil, 2010, p. 141), de onde vêm lembranças confusas, que remetem ao início de sua detenção, e parece ouvir os comandos: “Deixa as mãos dele algemadas” (Brasil, 2010, p. 141). A partir de então, as lembranças parecem remeter-se ao cárcere, mais uma vez sem precisar o tempo transcorrido entre a data do aniversário, da prisão e do início da recuperação dos fragmentos das lembranças:
aos poucos ia apalpando o escuro da cela, o silêncio da escuridão, o zumbido do próprio corpo, estava no chão frio, os braços para trás das costas, aos poucos ia apalpando o chão com o corpo, de bruços, o rosto quase a tocar a areia: sentia o cheiro da terra – uma terra vermelha e usada, o mofo no ar, o cheiro de urina – sentia as paredes, mesmo sem vê-las na escuridão: a opressão do cubículo estava em seu corpo, em seus poros (Brasil, 2010, p. 141).
Jeremias, um professor de literatura, apreciador de artes e de filosofia, escritor, sem muitas posses materiais, com uma rotina simples entre a casa, o ônibus, a escola e um pequeno clube. Foi aprisionado no ambiente de trabalho sem reconhecer o motivo da prisão, ao que parece foi denunciado, por razões desconhecidas, como o filósofo grego ao qual apreciava, talvez por ser também considerado um “agitador” de ideias entre os jovens, o que nem ele próprio conseguira lembrar.
O que é possível inferir é que a situação do protagonista do romance de Assis Brasil faz lembrar de muitos outros brasileiros denunciados, perseguidos, processados ou aprisionados durante a ditadura civil-militar instaurada no pós-golpe de 1964, como indicam as pesquisas históricas. Estas informam que “a repressão que se seguiu ao golpe não pôde [sic] calar setores da classe média, principalmente no meio intelectual e artístico”. Isso porque, segundo prossegue a explicação de Marcos Napolitano, “estudantes e jovens intelectuais também seriam os principais integrantes dos grupos de oposição clandestina à ditadura” (Napolitano, 2007, p. 188).
Jeremias, sendo personagem de uma obra literária, pode representar qualquer pessoa ou grupo social violentado pelo arbítrio de um poder autoritário em qualquer lugar ou temporalidade, mas preferimos ler o texto e vinculá-lo ao tempo e lugar de sua produção: o Brasil da década de 1970. Durante uma violenta ditadura que subjugou o país por mais de vinte anos e que reverbera até os dias atuais, consideramos que Jeremias poderia representar um dos vários professores ou intelectuais presos durante essa ditadura civil-militar em vigência no Brasil à época, ou mesmo os muitos estudantes, artistas ou pensadores detidos ou processados nesse período, uma vez que:
esse meio estudantil insubordinado constituía o público principal do teatro, do cinema, das artes plásticas, da literatura, das canções, dos ensaios, das revistas e jornais, enfim, da produção artística e intelectual mais expressiva do período – quando não era mesmo o produtor (Napolitano, 2007, p. 190).
Muitas outras são as humilhações e horrores narrados na obra, a ponto de Jeremias lutar por sua lucidez e pela vida, até encontrar, como modalidade central de resistência, a adoção da mesma forma de luta de seus colegas: esfregar os pulsos contra o muro, até o jorrar terminal de seu sangue encerrar as angústias e aflições enfrentadas no cárcere. A medida extrema acompanha o processo de desespero de alguém que se vê impotente diante da humilhação e do martírio. A mutilação, mais que uma fuga, é tratada como uma forma de luta. A princípio ele tenta evitar que seus companheiros de prisão atentem contra a própria vida: “Vivam, homens!”. À medida que o tempo transcorre e agravam-se as torturas e violências, o esfregar os pulsos no muro é visto como a reação possível contra a opressão.
Assim como o filósofo grego, a quem o romance faz referências, Jeremias opta por não deixar que seus ideais sejam aprisionados e sufocados em nome de uma existência esvaziada por contínuas violências que o impeçam de viver em liberdade, com amor e esperança, expressando os princípios e ideias que moviam sua existência e resistência. O muro não era a desistência, era mais uma forma de resistência contra toda forma de opressão e violência contra a dignidade humana e as liberdades individuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Talvez a última reação de Jeremias ante a impotência de presenciar e ser submetido à truculência dos agentes do autoritarismo seja mais uma tentativa de promover a reflexão sobre o papel dos perseguidos e condenados por lutarem por liberdade de pensamento, de expressão, pela arte, pela filosofia, pela liberdade de cátedra e tantas outras lutas expressadas no romance de Assis Brasil. Como se pretendesse escrever uma analogia ao mito da caverna, de autoria de Platão, Jeremias iniciara o romance na escuridão; aos poucos foi conseguindo vislumbrar “sombras” de seu passado, que se transformaram em memórias esparsas sobre quem era, sua família, seu ofício. Relampejos de luz possibilitaram visualizar fragmentos incompletos e difusos de seu passado. A escuridão impedia-o de conhecer quase tudo sobre si e sobre sua história: o que fizera para justificar sua prisão e tanta violação contra sua condição humana? Haveria algo que justificasse tamanha arbitrariedade e violência contra os humanos, ainda mais decorrentes de ações de seus semelhantes?
À medida que relembrava de maneira cotejada e incompleta, era como se saísse da escuridão que lhe assolava e passasse a criar conexões com a vida e com sua humanidade, cujos traços lhe eram negados a todo instante e de todas as formas. A violência mais efetiva não se dava na dimensão dos castigos físicos, mas no apagamento de sua memória e de sua história, inserindo-o num mundo objetificado. No convívio com outros presos, Jeremias tomou, aos poucos, consciência de si, de sua história, numa defesa das experiências coletivas para o despertar da consciência histórica: O grito dos outros ativou sua memória.
A cada lembrança, um estímulo à reação e ao grito, que aprendera ser sinônimo de liberdade e de esperança. A principal marca da opressão foi contra sua memória: os algozes violentaram-na tanto quanto ao seu corpo. Tudo o que Jeremias relembra é de maneira incompleta e demarcado por restrições. Desconhece muitas de suas reações diante de algumas situações, como quando se lembrara clamando pelo colo da mãe e por justiça, sem saber o motivo do choro ou sequer sobre quem era sua mãe. O processo de amnésia ao qual fora submetido foi devastador. No desenvolvimento do texto, o personagem central recupera fragmentos de suas lembranças e se compraz com a alegria de lembrar. Um pouco de consciência sobre sua condição o fizera a “ter a necessidade de dar uma ordem à sua pequena fatia de vida, ao seu resumo de existência” (Brasil, 2010, p. 26).
Relembra as violências sofridas na prisão, evita alimentar-se e beber, por receio de ser envenenado com substâncias que o faziam se esquecer quem era. O veneno apaga sua memória, sua história; declara desconfiar das botas e dos desfiles militares; não consegue desenvolver diálogo com outros prisioneiros; passa a criar um laço de carinho com dois ratinhos de sua cela: César e Julieta (alusivos ao rei e à personagem shakespeariana). Aos nomeá-los, procura humanizá-los, enquanto se refere aos homens que o encarceravam como vermes. Mais uma vez, assim como Graciliano Ramos já fizera, os animais ganham características humanas enquanto os homens se embrutecem e se desumanizam. No texto do autor piauiense, os ratos são seus companheiros, por quem sente compaixão e carinho, enquanto os humanos que o agridem vão evidenciando sua desumanidade ao reprimirem e oprimirem seus semelhantes, portando-se como vermes. No processo de recuperação de alguns lampejos da memória sobre seu passado, Jeremias não localizara nenhuma prática de crime em sua história que justificasse sua prisão e as violências sofridas, exceto o fato de valorizar a liberdade de pensamento e de procurar ensinar isso a seus estudantes, seja em suas aulas ou no livro que estava escrevendo. A escrita parecia ter sido interrompida pelo aprisionamento. Seu grande crime parece ser a defesa da liberdade e da dignidade humana por meio da literatura, das artes e do amor ao conhecimento crítico. Lembra-se remotamente – como toda lembrança que recuperava – que fora preso no ambiente escolar, no dia de seu aniversário.
No entanto, até isso mostrava-se como uma reminiscência permeada de incertezas, não sabia se realmente tinha ocorrido ou se estivera sonhando ou em processo de alucinação, pois suas lembranças estavam comprometidas, irrompiam de maneira nebulosa e imprecisa. Essas incertezas eram também uma forma de tortura. A luta por recuperar sua memória era dolorida, difícil e obstruída pelos “homens de botas” e as circunstâncias da prisão. Sua perspectiva de tempo também tinha sido abalada, era imprecisa e o remetia a angústias, violências e repressão, que ele tinha certeza de que inviabilizaram sua condição humana e o oprimiam – como faziam com tantos outros homens aprisionados e desumanizados. Sabia disso pelas cenas que presenciara no pátio, não pelo diálogo, pois estivera impedido de se comunicar além dos gemidos, olhares e expressão de gritos e de gestos de desespero ou de resistência de cada um.
Mais uma vez o acesso à linguagem e à comunicação é interrompido pelas forças autoritárias. Foi assim que Jeremias acompanhou sucessivas mortes de outros prisioneiros, que ou eram violentados e mortos nas celas, como descrito anteriormente, ou lançavam seus pulsos contra o muro, na tentativa de interromper o ciclo de horror ao qual estavam submetidos. Entre suas dores estava a de ser impedido de ter consciência sobre seu passado, naquilo que, aos poucos, foi identificando como uma das principais estratégias para tentar dominá-lo e a todos os outros detentos. Ter conhecimento de si e de sua história era uma ameaça ao poder constituído que os aprisionara e os oprimia, mas ele continuava a desconhecer os motivos do ocorrido.
O autor enuncia que a consciência de sua história era tão poderosa que era preciso drogar a todos os presos para esquecerem seu passado e se descaracterizarem. Isso, porém, não fora suficiente para dominá-lo por completo. Aos poucos, ao presenciar a coragem dos outros que ousavam gritar, sua memória foi acionada – de forma parcial, restrita – e ele se via também como capaz de reagir, com pequenos atos ou gestos, até conseguir gritar ou quando fez o ato mais extremo, direcionando-se contra o muro para interromper o ciclo de terror ao qual fora submetido.
Para Assis Brasil, a consciência da importância do grito e da luta fortalecera o personagem-professor, o impulsionara a descobrir mais e a reagir contra aquela condição degradante de “não-vida”. A cada resíduo de memória recuperado, um pouco de si era reencontrado e ele obtinha mais consciência sobre a condição indigna vivida. Descobria a importância de sua vida e dos seus “companheiros” – termo que pode ter sido usado para fazer referência à conotação política das formas de tratamento entre militantes de esquerda que lutavam contra o regime autoritário brasileiro dos anos de 1970 ou contra qualquer outro tempo que valoriza as formas de opressão.
Os que bebem como os cães continua nosso contemporâneo pela atualidade das questões suscitadas e pelas reflexões que provoca, assumindo-se como atual pela pertinência das temáticas tratadas e pela qualidade das discussões que ele, tenazmente, promove. No presente texto, ao analisarmos a obra, interessou-nos tratá-la como uma linguagem adotada para despertar a consciência brasileira no leitor, para que este entenda e se sensibilize e, então, possa combater as opressões que afligiram a sociedade brasileira no tempo da escrita e de sua publicação. Assis Brasil foi muito além, transformou o tempo, o espaço e a problemática do texto em universais, fazendo de seu texto uma defesa dos direitos humanos e da dignidade humana como direitos inalienáveis.
Se o romance pode ser considerado contemporâneo, universal e sem fronteiras históricas ou geográficas, e a temática pode ser associada a qualquer circunstância em que a dignidade humana é ameaçada, consideramos que Jeremias é um personagem que homenageia a todo aquele que toma consciência de si e defende a importância da liberdade ou se insurge contra as formas de opressão e de abuso contra a dignidade humana, tornando-se um “homem em luta”. Entre tantas lições contidas na obra, destacam-se: a defesa da memória como elemento imprescindível à formação identitária; a resistência contra toda forma de opressão e de violência contra a dignidade humana; a defesa da liberdade que o conhecimento pode promover e o temor que isso desperta entre os aliados da opressão; e, com um audaz fervor, a lição que aparece no fim e que continua a ecoar em nossos ouvidos, a coragem de Jeremias em combater a opressão e em escrever seu próprio destino/história o liberta de toda e qualquer cela e mordaça.
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