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Inleiarsi História, ficção e formação na escrita de Annie Ernaux e Elena Ferrante
LUIZA LARANGEIRA DA SILVA MELLO
LUIZA LARANGEIRA DA SILVA MELLO
Inleiarsi História, ficção e formação na escrita de Annie Ernaux e Elena Ferrante
Inleiarsi History, Fiction, and Bildung in the Writing of Annie Ernaux and Elena Ferrante
Varia Historia, vol. 41, e25020, 2025
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais
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RESUMO: Desde as décadas de 1970 e 1980, teóricos da história e historiadores têm-se interessado pelos aspectos formais dos textos historiográficos, problematizando a separação entre história e ficção e focalizando o que esses gêneros discursivos têm em comum: são construtos linguísticos convencionalizados, intertextuais, que mobilizam dispositivos poéticos e retóricos em suas representações da realidade. Neste artigo pretendo refletir sobre os modos como duas escritoras contemporâneas, Annie Ernaux e Elena Ferrante, figuram as relações entre história e ficção e, para tanto, parodiam gêneros literários tradicionais, como o romance de formação e a autobiografia. A princípio, parecem seguir direções opostas: enquanto Ernaux integra uma certa virada objetivista, que marca a literatura definida por Ivan Jablonka (2020) como pós-realista, Ferrante mobiliza formas, motivos e gêneros tradicionalmente associados ao romance realista moderno. Por outro lado, ambas se apropriam de topoi do romance de formação clássico ao mesmo tempo em que os deformam e atualizam, submetendo-os à pressão das questões que marcam as narrativas literárias do final do século XX e do início do XXI, na medida em que estão interessadas em investigar, narrativamente, as articulações entre escrita (feminina) e formação, e entre as ficções do eu e as ficções da história do século XX.

Palavras chave: Annie Ernaux, Elena Ferrante, romance de formação.

ABSTRACT: Since the 1970s and 1980s, history theorists and historians have been interested in the formal aspects of historiographical texts, problematizing the separation between history and fiction and focusing on what these discursive genres have in common: they are conventionalized, intertextual linguistic constructs, which use poetic and rhetorical devices in their representations of reality. In this article I intend to reflect on the ways in which two contemporary writers, Annie Ernaux and Elena Ferrante, figure out the relations between history and fiction and, to this end, parody traditional literary genres, such as the Bildungsroman and the autobiography. At first, they seem to follow opposite directions: while Ernaux integrates a certain objectivist turn, which marks the literature defined by Ivan Jablonka (2020) as post-realist, Ferrante mobilizes forms, motifs and genres traditionally associated with the modern realistic novel. On the other hand, both appropriate the topoi of the classic Bildungsroman and, at the same time, deform and update them, subjecting them to the pressure of issues that characterize literary narratives at the end of the 20th century and the beginning of the 21st, in order to narratively investigate the articulations between (female) writing and formation, and between the fictions of the self and the fictions of 20th century history.

Keywords: Annie Ernaux, Elena Ferrante, Bildungsroman.

Carátula del artículo

DOSSIÊ: FORMAS TEXTUAIS, IMAGINAÇÃO E HISTORICIDADE

Inleiarsi História, ficção e formação na escrita de Annie Ernaux e Elena Ferrante

Inleiarsi History, Fiction, and Bildung in the Writing of Annie Ernaux and Elena Ferrante

LUIZA LARANGEIRA DA SILVA MELLO
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil
Varia Historia, vol. 41, e25020, 2025
Pós-Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais

Received: 30 April 2024

Revised document received: 14 January 2025

Accepted: 23 October 2024

Este texto situa-se no contexto das discussões contemporâneas sobre as relações entre história e ficção. Meu objetivo principal é compreender o modo como as obras literárias produzidas na virada do século XX para o século XXI tensionam os limites entre o discurso histórico e o discurso ficcional. Para tanto, pretendo refletir sobre os modos como Annie Ernaux e Elena Ferrante abordam as relações entre história e ficção, reconfigurando gêneros literários tradicionais, como o romance de formação e a autobiografia, a partir de procedimentos que têm se tornado recorrentes na literatura contemporânea.

Desde a década de 1970, historiadores e teóricos da história têm-se interessado pelos aspectos formais dos textos historiográficos, problematizando a separação entre história e ficção, e focalizando o que esses gêneros discursivos têm em comum: são construtos linguísticos convencionalizados, intertextuais, que mobilizam dispositivos poéticos e retóricos em suas representações da realidade. Essa problematização é resultado de um movimento da história intelectual das décadas de 1960 e 1970, que ficou conhecido como a “virada linguística”, cujo marco fundador no campo da teoria da história é, de modo geral, associado ao livro Meta-história, de Hayden White, publicado em 1973. O livro inicia um debate envolvendo autores como Carlo Ginzburg, Paul Ricoeur, Dominick LaCapra, entre outros, acerca das dimensões retórica, poética, ética e mesmo ideológica da historiografia.

De outro lado, tanto a teoria da história quanto a teoria literária vêm se dedicando, recentemente, a uma reflexão sobre as reconfigurações da narrativa de ficção nos séculos XX e XXI. A questão dos limites da ficção – e, consequentemente, da forma do romance como gênero literário –, fundamental para uma reflexão sobre a literatura de ficção contemporânea, tem sido abordada, desde a década de 1960, pelas próprias obras literárias. Linda Hutcheon mobiliza a categoria de “metaficção historiográfica” para referir-se a obras literárias pós-modernas (e pós-modernistas) que refletem explicitamente sobre seus próprios procedimentos de ficcionalização e sobre os limites e as porosidades entre os campos da ficção e da historiografia. Questões como a referencialidade dos textos históricos e literários, o papel da subjetividade do autor na reconstituição dos acontecimentos passados, o caráter intertextual dos textos históricos e a dimensão ideológica de qualquer texto que pretenda reconstituir linguisticamente o passado, seja ele ficcional ou historiográfico, tornam-se reflexivamente problemáticas nessa modalidade de romance: Ver: Hutcheon (1991, p. 141).

Mais recentemente, na virada do século XX para o XXI, historiadores têm-se perguntado sobre o potencial cognitivo da literatura e da ficção, como no caso do dossiê Saberes da Literatura, publicado, em 2010, pela revista dos Annales, ou nas investigações de um autor como Ivan Jablonka, que busca mapear aquilo que ele denomina de “terceiro continente”. Ou seja, territórios de aproximação e, por vezes, até mesmo de indistinção, entre historiografia e literatura, propondo-se a “inventar novas formas literárias para as ciências sociais [...], sem regredir às belas letras nem derreter no banho ácido da virada linguística” (Jablonka, 2020, p. 282), definindo a história como literatura, mas a distinguindo da ficção.

Nesse sentido, a própria produção literária contemporânea tem contribuído ativamente para uma reflexão acerca das relações entre os discursos histórico e ficcional. Nas últimas décadas, produziu-se uma série de obras que, recorrendo a dispositivos autoficcionais e ao hibridismo entre os gêneros do romance, da historiografia, da (auto)biografia, do diário íntimo e do ensaio, operam uma espécie de “desficcionalização” do romance, tornando mais porosas as fronteiras entre história e ficção. Romances como Austerliz, de W. G. Sebald, a hexalogia intitulada Minha luta, de Karl Ove Knausgård, Estação Atocha e 10:04, de Ben Lerner, O impostor, de Javier Cercas, El material humano, de Rodrigo Rey Rosa, Uma exposição, de Ieda Magri, Saia da frente do meu sol, de Felipe Charbel, não apenas problematizam os limites e características do discurso sobre o real, como faz a metaficção historiográfica, como também produzem uma nova reflexão sobre o estatuto da ficção, que faz com que as narrativas se tornem verdadeiros laboratórios de escrita.

Como argumenta Luciene Azevedo, esses procedimentos promovem uma redefinição da noção de ficção, que implica a relação com uma verdade que não é apenas a da verossimilhança realista, mas a da presença do real no texto: Ver: Azevedo (2019, p. 335). O contexto dessa mudança é um mundo em que as fronteiras entre ficção, verdade e mentira se tornaram mais porosas. De um lado, essa porosidade abre espaço para a autopoiese nas redes sociais, para o interesse renovado pelo real cotidiano, para o gênero do true crime e para fenômenos como os reality shows e as fake news. De outro lado, abrem-se possibilidades, tanto no que diz respeito à historiografia e à teoria da história quanto à ficção contemporânea, para uma “guinada ética” (Charbel, 2016, p. 63). Nesse contexto, as narrativas não são mais percebidas como meio de construção de um processo histórico teleológico, mas como possibilidade de produzir um conhecimento verdadeiro sobre experiências culturais traumáticas: experiências de genocídio, de catástrofe, das várias formas de violência e opressão.

O ato de borrar as fronteiras entre os gêneros ficcionais e não ficcionais certamente não é um privilégio exclusivo da literatura do final do século XX e do início do século XXI. No momento da ascensão do romance moderno, no século XVIII, essa forma literária disputa com a historiografia o lugar de gênero capaz de melhor representar de forma verdadeira a realidade, ver: Maioli (2014); Duarte (2016) e, como nota Luciene Azevedo,

Paradoxalmente, no início, para afirmar-se no terreno da ficção, o romance optava por flertar com a referencialidade a fim de vencer a timidez e alcançar o reconhecimento como forma discursiva.

Renegando a si mesmo, apropriando-se de gêneros não ficcionais, o romance fundava as bases de sua legitimidade ficcional (Azevedo, 2016, p. 20).

No entanto, no século XVIII, o hibridismo entre o romance e gêneros não ficcionais, como a correspondência, a historiografia, o ensaio e a (auto)biografia, foram parte fundamental do processo de construção do significado moderno de ficção, distinto da mentira e da mera fantasia, ver: Gallagher (2009, p. 631). Enquanto isso, na literatura do século XXI o hibridismo formal, o caráter inespecífico quanto ao gênero literário e a dissolução dos limites entre romance e historiografia parecem integrar não um processo de estabilização de uma noção tácita de ficção, mas, inversamente, de desestabilização do moderno estatuto da ficção.

As obras de Annie Ernaux e Elena Ferrante integram esse movimento da literatura do século XXI, que incita à reflexão sobre as relações entre história e ficção. Desde seu primeiro livro, Les Armoires Vides, publicado em 1974, Ernaux entrelaça o tempo da trajetória vital da personagem ao tempo histórico. O mesmo ocorre na obra de Ferrante, em especial na série de romances iniciados com a publicação de A amiga genial [L’amica geniale, 2011] e que ficou conhecida como a Tetralogia napolitana. Ambas as escritoras figuram a “tragicidade do cotidiano” (Auerbach, 2004, p. 440), embora, a princípio, pareçam seguir direções opostas.

Em obras como O lugar [La Place, 1983], A vergonha [La Honte, 1997], O acontecimento [L’Évenement, 2000] e Os anos [Les Annés, 2008], Ernaux lança mão de procedimentos associados à “desficcionalização” do romance, típicos da literatura produzida nas últimas décadas, escrevendo romances autobiográficos, autobiografias histórico-sociais, “diários do exterior” e “romances laboratórios”, em que investiga o processo de escrita. Ferrante, ao contrário, em narrativas como as de Um amor incômodo [L’amore molesto de 1992], seguido por Dias de abandono [I giorni dell’abbandono, 2002], A filha perdida [La figlia oscura, 2006], a Tetralogia napolitana (2011-2014) e A vida mentirosa dos adultos [La vita bugiarda degli adulti, 2019], mobiliza formas, motivos e procedimentos tradicionalmente associados ao romance realista moderno, gênero que se define, antes de tudo, por seu estatuto ficcional, em oposição à historiografia e à autobiografia.

Na primeira parte do texto, tentarei argumentar que as narrativas de Ferrante e Ernaux reconfiguram uma modalidade específica do romance moderno, o romance de formação, submetendo-o à pressão das questões que marcam as narrativas literárias do final do século XX e do início do XXI. Nessa primeira parte, minha análise construirá certo paralelismo entre as narrativas das duas escritoras, nas quais não apenas a formação das protagonistas é frustrada como se desenvolve o tema central da desintegração do eu, da constante ameaça de dissolução da personalidade. Em seguida, buscarei mostrar como essa ameaça entra em relação dialética com o lugar reflexivo que a escrita assume no texto. A escrita de si como uma outra contrabalança a constante ameaça de dissolução da personalidade: é apenas pela e na escrita que é possível dar uma forma, ainda que precária, ao eu. Aqui, a análise produzirá um encontro transversal da obra das duas escritoras, na medida em que argumentarei como a ideia que Ferrante apresenta em seus ensaios de uma escrita feminina – uma escrita que se coloca, ao mesmo tempo, dentro e fora das margens do cânone masculino – está presente nas narrativas de Ernaux, especialmente em O acontecimento e Os anos. Finalmente, na última parte deste artigo, pretendo investigar de que modo Ernaux e Ferrante, caminhando em sentidos opostos, reconfiguram a escrita autobiográfica e integram o movimento de redefinição estatuto da ficção.

(DE)FORMAÇÃO

Na coletânea de ensaios intitulada As margens e o ditado, Elena Ferrante escreve: “O romance de formação me parece estar no caminho certo quando fica claro que ninguém vai se formar” (Ferrante, 2023, p. 39). Esse princípio parece ter orientado a escrita dos volumes da Tetralogia napolitana, narrativa que pode ser associada ao gênero do romance de formação, embora não se conclua com personagens formadas. A associação de Os anos, de Annie Ernaux, ao romance de formação é menos explícita, embora não seja difícil encontrar em seu título uma alusão pouco velada à obra Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, de J. W. Goethe, que se converteu no paradigma do gênero. Ademais, assim como a Tetralogia, Os anos mobiliza alguns motivos fundamentais do gênero.

“Romance de formação” é, na língua portuguesa, a tradução mais recorrente da expressão alemã Bildungsroman, cunhada pelo filólogo alemão Karl Morgenstern, em 1813, para designar uma modalidade romanesca que tem a obra de Goethe como modelo. Como nota Marcos Vinicius Mazzari, “no mesmo processo em que a teoria sobre o ‘romance de formação’ começa a se constituir, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister vão também se impondo enquanto paradigma desse tipo narrativo” (Mazzari, 2010, p. 102), atrelando a constituição do gênero, bem como o significado do moderno conceito de Bildung, a condições históricas específicas da ascensão da burguesia nos territórios que, mais tarde, viriam a constituir a Alemanha.

Sem negligenciar a circunscrição histórica dos conceitos de Bildung e Bildungsroman, bem como as pesquisas sobre o cânone do gênero e a cultura histórica em que foram produzidas suas obras paradigmáticas, mobilizo, aqui, uma noção mais flexível de romance de formação, tomando-o como um gênero historicamente dinâmico e aberto. Apenas desse modo é possível avançar com a hipótese de que duas narrativas produzidas no século XXI, como Os anos e a Tetralogia napolitana, podem ser associadas ao gênero. Nesse sentido, pode ser interessante nos referirmos à definição bakhtiniana de romance de formação como modalidade do gênero romanesco, em que a “mudança do próprio herói ganha significado de enredo” (Bakhtin, 2003, p. 219, e, mais especificamente, à definição do teórico russo do que ele classifica como o quinto tipo de romance de formação, no qual a obra de Goethe assume o protagonismo e em que a formação do personagem “efetua-se no tempo histórico real” (Bakhtin, 2003, p. 221).

Por outro lado, parece-me produtivo seguir os passos de Mazzari e tomar o romance de Goethe como uma espécie de cânone mínimo – na expressão de Wilma Patrícia Maas (2000) – para, a partir de alguns aspectos fundamentais de sua estrutura, traçar as subversões e reconfigurações do gênero nas obras de Ferrante e Ernaux. Segundo Mazzari, o Wilhelm Meister é estruturalmente dividido em duas grandes partes, que correspondem aos dois princípios estruturantes do romance. Os cinco primeiros livros são dedicados à narrativa do processo de individualização do protagonista, que se afasta de sua situação adventícia, a situação de um membro de uma família burguesa destinado a assumir os negócios do pai, para formar sua personalidade. O princípio que orienta essa primeira parte do romance “consiste no conceito teleológico do desdobramento gradativo das potencialidades do indivíduo, no sentido de uma enteléquia humana” (Mazzari, 2010, p. 108). Após o interregno do livro VI, intitulado “As confissões de uma bela alma”, em que Goethe narra uma história modelar de formação pietista, os dois últimos livros do romance são dedicados a uma “espécie de ‘teoria da socialização’, preconizando a necessidade de interação estreita entre indivíduo e sociedade, ‘eu’ e mundo” (Mazzari, 2010, p. 108). Isso implica o desenvolvimento de uma atitude de responsabilização perante o mundo e contrabalança seu processo de individualização.

Em seu já clássico livro O romance de formação, Franco Moretti chega a conclusões bastante semelhantes às de Mazzari. De acordo com Moretti (2020), no Bildungsroman clássico, os polos opostos da autodeterminação e da socialização do protagonista, embora se encontrem em tensão ao longo do enredo, apresentam um espaço de interseção (quase) pleno ao final do romance: “A formação do indivíduo como indivíduo em si e para si coincide sem rupturas com sua integração social na qualidade de simples parte de um todo” (Moretti, 2020, p. 43). Para além da tensão entre esses dois princípios, Moretti chama a atenção para um aspecto importante do paradigma do gênero do Bildungsroman: a relação dialética entre individualização e autodeterminação, de um lado, e socialização, de outro, desenrola-se num movimento de desenvolvimento da interioridade do personagem que é, simultaneamente, um movimento de mobilidade social ascendente, concluído com uma mésalliance, o casamento com uma pessoa de classe social superior:

os novos desequilíbrios e as novas leis do mundo capitalista tornaram aleatória a continuidade entre as gerações e impõem uma mobilidade antes desconhecida. Exploração necessária: porque aquele mesmo processo gera esperanças inesperadas e alimenta, assim, uma interioridade não somente mais ampla do que já fora no passado, mas sobretudo – como viu Hegel, que aliás condenou tal desenvolvimento – perenemente insatisfeita e irrequieta (Moretti, 2020, p. 28-29).

Dos motivos típicos do romance de formação, que Ernaux e Ferrante reconfiguram, destacam-se três: a dialética entre autodeterminação e socialização, a mobilidade social ascendente e articulação entre trajetória vital da protagonista e processo histórico. Como acontece no cânone do romance de formação, tanto a protagonista de Os anos, de Ernaux, quanto as protagonistas da Tetralogia napolitana, de Ferrante, formam a sua personalidade na temporalidade do enredo. De modo análogo ao Wilhelm Meister, em que o enredo se inicia com o afastamento do protagonista de sua situação burguesa originária, através da recusa da profissão paterna e da busca de sua própria vocação, o arco do enredo das narrativas de Ernaux e Ferrante segue o movimento de afastamento das personagens de sua situação adventícia, a infância e adolescência em uma família pobre. Esse afastamento marca um processo de individualização e autodeterminação.

Esse processo só se completa, entretanto, com um movimento de integração em um novo mundo social através da formação escolar e acadêmica1, caminho socialmente ascendente percorrido pelas protagonistas, que inclui uma mésalliance. No que diz respeito à obra de Ferrante, especialmente à Tetralogia Napolitana, Stephanie Love argumenta que a ascensão social é figurada a partir de um conjunto de pares antitéticos como “rico/pobre, progressista/atrasado, nacional/local, Norte/Sul, cosmopolita/provinciano, italiano/dialeto, pacífico/violento, professora/mãe e civilizado/primitivo”, no centro do qual está a antítese entre “escola” e “bairro”, que “opera como uma metonímia e uma metáfora” (Love, 2016, p. 72) para as outras oposições.

Algo semelhante pode ser dito a respeito da obra de Ernaux. Nela, a escola e a escolaridade, a distinção que a personagem adquire como estudante é, em grande medida, o caminho da ascensão social. Tanto em Ferrante como em Ernaux, motivos como as tensões geracionais, as infâncias marcadas pela violência, a pobreza e o abuso, e a educação como meio de ascensão social figuram uma cisão fundamental do eu: a separação radical entre, de um lado, o mundo da infância e da família de origem, do dialeto napolitano ou do patoá, do pertencimento às classes trabalhadoras, e, de outro, o mundo burguês da vida adulta, do casamento, da profissão, da língua culta, da escrita. As narrativas de ambas são marcadas pela substituição do dialeto pela língua nacional culta – o francês ou o italiano –, e de modos de vida das classes trabalhadoras por um habitus e um ethos tipicamente burgueses. Trata-se de um processo associado ao que Ernaux alude, na conferência que proferiu ao receber o Prêmio Nobel de literatura, em 2022, como a condição de “trânsfuga social de classe social” (Ernaux, 2023, p. 15).

As narrativas de Ernaux e Ferrante seguem a definição de Bakhtin do romance de formação como a modalidade romanesca em que a formação do protagonista “se apresenta em indissolúvel relação com a formação histórica”. A formação das protagonistas “efetua-se no tempo histórico real, com sua necessidade, com sua plenitude, com seu futuro, com seu caráter profundamente cronotópico” (Bakhtin, 2003, p. 221). A Tetralogia figura as trajetórias de duas2personagens, Elena Greco (Lenu) e Raffaella Cerullo (Lila), da infância à velhice, entrelaçando os acontecimentos que formam suas trajetórias vitais àqueles que formam as narrativas da história da Itália, do pós-guerra à primeira década do século XXI. Em Os Anos, Ernaux narra sua vida desde a primeira infância ao momento da escrita, atando sua existência aos acontecimentos políticos, sociais e culturais que marcaram a história da França e do mundo, desde o final da Segunda Guerra mundial à primeira década do século XXI.

No entanto, ao contrário do que acontece no romance de formação clássico, as narrativas de Ernaux e Ferrante não têm como télos a formação harmônica, orgânica e totalizante3da personalidade das protagonistas. E não apenas porque, como preconizou Ferrante, nas narrativas das duas autoras “fica claro que ninguém vai se formar”. Isso, aliás, não seria uma novidade da literatura da virada do século XX para o XXI. Como argumenta Moretti, desde, pelo menos, O vermelho e o negro, de Stendhal, passando pelas Ilusões Perdidas, de Balzac, Educação sentimental, de Flaubert, até os romances alemães do entreguerras, os romances de formação são, em sua maioria, caracterizados por finais infelizes e inconclusos, e personagens que não conseguem formar suas personalidades.4Os anos e a Tetralogia napolitana não representam, contudo, apenas formações frustradas e inconclusas. Nessas narrativas, a própria ideia de formação, embora virtualmente presente, é esvaziada no texto. O eu representado nas obras de Ernaux e Ferrante não pode ser definido apenas como o eu cindido das narrativas de ascensão social, cultural e linguística. Ele é um eu marcado pelo impulso da desintegração. As duas escritoras, ainda que por caminhos muito diversos, parecem tematizar a desconstrução tanto do personagem do romance de formação, cuja personalidade se forma ao longo do enredo, quanto da consciência unificada (ainda que formada por diversas camadas temporais), associada ao foco narrativo da literatura modernista.

Ferrante mobiliza metáforas diversas para figurar a dissolução da subjetividade. Talvez as mais conhecidas sejam a frantumaglia e a desmarginação [smarginatura]. Na Tetralogia Napolitana, a narradora conta a experiência de desmarginação de Lila, sua melhor amiga:

Por exemplo, já tinha experimentado várias vezes a sensação de transferir-se, por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos. E no dia em que seu pai a jogara da janela tivera a absoluta certeza, justo enquanto voava rumo ao asfalto, de que pequenos animais avermelhados, muito simpáticos, estivessem dissolvendo a composição da rua transformando-a numa matéria lisa e macia (Ferrante, 2015, p. 83).

A smarginatura é a experiência da destruição dos limites físicos e psíquicos do eu, a destruição dos contornos do corpo e da identidade pessoal. Mas é, também, a diluição dos contornos e da identidade dos outros, dos objetos, do mundo em geral, como aparece na seguinte passagem:

uma coisa se desmarginava e se precipitava sobre outra, era tudo uma dissolução de matérias heterogêneas, uma confusão, uma mistura. [...] se ela não estivesse atenta, se não cuidasse das margens, tudo se desfazia em grumos sanguíneos de menstruação, em pólipos sarcomatosos, em fragmentos de fibra amarelada (Ferrante, 2017, p. 168).

O tema da desintegração do eu aparece em uma outra metáfora, a “frantumaglia”, termo que a mãe da escritora usava para dar sentido à experiência da perda da unidade do eu: “A frantumaglia é uma paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se revelam ao eu, brutalmente, como sua verdadeira e única interioridade. A frantumaglia é o depósito do tempo sem a ordem de uma história, de uma narrativa” (Ferrante, 2017, p. 106). Em Ferrante, a ameaça de desintegração do eu é também a ameaça de desintegração do tempo da narrativa. Se, no romance de formação clássico, a personalidade do herói era formada na temporalidade do enredo, ver Bakhtin (2003, p. 219), e o final feliz, a mésalliance, punha fim a essa temporalidade, transfigurando o tempo “pelo sentido que tornou possível sua instauração” (Moretti, 2020, p. 188), a experiência da frantumaglia impossibilita uma experiência linear do tempo. Por conseguinte, impossibilita a construção de um enredo em que o fim seja capaz de dar sentido ao todo da narrativa, ou seja, em que o tempo seja depositado com a ordem de uma narrativa.

Essa articulação entre o risco de desintegração do eu e do tempo também está presente na obra de Annie Errnaux. Em Os anos, a narradora fala da “sensação palimpsesto”, a sensação de “Uma temporalidade de natureza desconhecida [que] se apropria de sua consciência e também do seu corpo e, nela, presente e passado se sobrepõem sem se misturarem. Outra vez sente que integra todas as formas do ser que já foi um dia” (Ernaux, 2021, p. 185). Em Ernaux, essa ameaça de desintegração do eu e do tempo (especialmente da temporalidade da bios da narradora) é, acima de tudo, consequência da presença latente da morte na vida, sobretudo na forma de ruína: as ruínas das guerras, da velhice, da memória. Os anos é escrito à sombra dessa ameaça de dissolução, mesmo de extinção, e a própria escrita assume, por vezes, a forma de ruína, de um amontoado de destroços e fragmentos.

Já no momento em que abrimos o livro, em uma das epígrafes, retirada da peça As três irmãs, de Tchekov, lemos: “Sim. Seremos esquecidos. É a vida, nada podemos fazer” (Ernaux, 2021, p. 5). E, na página seguinte, a narrativa é aberta com fragmentos que se iniciam com a frase: “Todas as imagens vão desaparecer” (Ernaux, 2021, p. 7), seguida por uma série de imagens, trechos de canções, cenas de filmes, lembranças, até que surge, novamente, a ameaça de extinção: “Milhares de palavras vão sumir de repente, palavras que serviam para nomear coisas, rostos de pessoas, ações e sentimentos. Palavras que serviam para organizar o mundo, disparar o coração e umedecer o sexo” (Ernaux, 2021, p. 11). E, mais adiante: “Tudo vai se apagar em um segundo. O vocabulário acumulado, do berço ao leito final, será eliminado. Restará somente o silêncio, sem palavra alguma para nomeá-lo. Da boca aberta não vai sair mais nada. Nem eu, nem meu” (Ernaux, 2021, p. 14, grifo nosso).

A dissolução da existência é, nesse trecho, associada à extinção das imagens retidas pela memória e pela linguagem, a extinção da própria linguagem: como se um eu fosse formado de imagens e palavras. À presença latente da morte na vida, agrega-se, portanto, a incapacidade da memória de reconstituir de forma perfeita, absoluta, o passado no presente. No final do livro, Ernaux retoma o tema da dissolução a partir da qualidade frágil, precária, da memória: “Um sentimento de urgência substitui o sentimento de futuro e é ele que a atormenta agora. Ela teme que o envelhecimento faça a sua memória voltar a ser nublada e silenciosa, como a que tinha quando era bem criança – momento que nunca voltará a se lembrar” (Ernaux, 2021, p. 215). A memória é nublada tanto para o início da trajetória vital – o nascimento e a primeira infância – quanto para seu fim – a velhice e a morte. Esse caráter opaco da memória nos extremos da trajetória vital está relacionado à extinção da vida individual.

Em Os anos, especificamente, a desintegração do eu é figurada também em outro aspecto da forma da narrativa: a recusa do eu psicológico que protagonizou a maior parte da história do romance realista europeu. No final do livro, a narradora declara: “Não haverá ‘eu’ neste livro que ela considera uma autobiografia impessoal – apenas pronomes impessoais e o uso de ‘nós’ – como se estivesse narrando os dias passados” (Ernaux, 2021, p. 217). Uma “autobiografia impessoal”. A desintegração do eu é, neste livro de Ernaux, figurada também nesse adjetivo, “impessoal”, que orienta a narrativa para um movimento de “dessubjetivação” e de “despsicologização” do eu.

Esse movimento se faz presente através do uso de alguns dispositivos. O primeiro é a produção de uma escrita de si associada ao foco narrativo em terceira pessoa: o uso do pronome ela, em lugar do pronome eu. O segundo, que reforça o primeiro, consiste na descrição de fotografias antigas. Como nota Fabien Arribert-Narce a respeito do uso da ekphrasis fotográfica na obra de Ernaux5, “do mesmo modo que outros arquivos pessoais, tais como as agendas, os diários íntimos e a correspondência, as fotografias oferecem ao mesmo tempo à escritora um ponto de apoio mnemônico e uma ancoragem na realidade passada” (Arribert-Narce, 2020, p. 2). Mas creio que esse dispositivo, que a autora já havia utilizado em livros como O lugar, A vergonha e que depois veio a utilizar em A outra filha, permite também ver a si mesma nas fotografias como uma outra e, portanto, narrar a si mesma sempre como outra ao longo do tempo de sua trajetória vital. Em ambos os procedimentos, Ernaux figura a desintegração do eu como subjetividade, como psicologia, por meio da transformação do eu em um ela. O que está em jogo, aqui, é a subversão de um dos temas que Moretti considera centrais para o romance de formação: a interioridade. Falo em subversão, não em eliminação ou anulação, porque a interioridade continua a ser narrada, mas não a partir do movimento reflexivo de um eu que se dobra sobre si mesmo, e sim como um dado objetivo, exterior ao eu. Enquanto, em Ferrante, a “verdadeira e única interioridade” do eu converte-se em frantumaglia, “uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos” (Ferrante, 2017, p. 106), a interioridade é narrada impessoalmente em Ernaux: um eu dissolvido em um ela.

INLEIARSI

Em As margens e o ditado, Ferrante diz que sua escrita é marcada por dois movimentos, um de desintegração, de desmarginação, talvez mesmo de destruição – um movimento, em certa medida, “antinarrativo” – e outro, contrário, de delimitação, de ordenação, de narração. “De modo geral”, diz Ferrante, “acho que a minha ideia de escrita – e também todas as dificuldades que arrasto comigo – está relacionada à satisfação de ficar plenamente dentro das margens, e, ao mesmo tempo, à impressão de uma perda, de um desperdício, por ter conseguido” (Ferrante, 2023, p. 17-18). Mais adiante, Ferrante refere-se a uma “escrita aquiescente”, que se mantém dentro do cânone dos gêneros, das técnicas, das convenções, da tradição, e uma escrita impetuosa, que extravasa ou destrói as margens da tradição, da bela escrita:

Sinto-me oprimida, desconfortável, na escrita bem calibrada, tranquila e aquiescente que me fez pensar que eu sabia escrever. [...] Então procuro outra escrita, impetuosa, mas não tem jeito, ela raramente dispara. Aparece, sei lá, nas primeiras linhas, mas não consigo retê-la, ela desaparece. Ou irrompe depois de páginas e mais páginas e avança insolente, sem se cansar, sem se deter, sem dar atenção sequer à pontuação, valendo-se apenas do próprio ímpeto. Depois, de repente, me abandona. Durante boa parte da minha vida, escrevi páginas lentas com a única esperança de que fossem preliminares, de que logo chegaria o momento daquele impulso irrefreável, quando o eu que escreve a partir do seu fragmento de cérebro, se apodera de todos os eus possíveis, de toda a cabeça, do corpo inteiro, e potencializado dessa maneira começa a correr recolhendo para a sua rede o mundo que lhe serve. São belos momentos (Ferrante, 2023, p. 27-28).

Esse trecho é bastante significativo. Nele, Ferrante caracteriza sua escrita como duas escritas: uma aquiescente, tranquila, bem calibrada, mas também lenta, opressora, desconfortável, porque se mantém dentro das margens; e outra, impetuosa, insolente, que dispara, que irrompe, que é impulso irrefreável, mas, também, que desaparece e a abandona, que não se detém, uma espécie de escrita sem forma, sem as formas convencionais da tradição, dos paradigmas, do cânone dos gêneros. O trecho diz mais: ele nos informa que, da relação dialética entre as duas escritas, resulta uma transformação: o eu, que é apenas um fragmento, transmuta-se em “todos os eus possíveis”. Assim com o eu de Lila, na Tetralogia napolitana, desmargina-se e transfere-se, “por frações de segundo, a uma pessoa ou uma coisa ou um número ou uma sílaba, violando-lhe os contornos” (Ferrante, 2015, p. 83), o eu da autora-narradora Elena Ferrante desintegra-se e dissolve-se em outros eus, os eus-personagens de Delia, em Um amor incômodo, de Olga, em Dias de abandono, de Elena Greco e de Lila, na Tetralogia napolitana.

Esse duplo e paradoxal movimento também está presente nas obras de Ernaux: uma espécie de dialética entre a construção de um eu em narrativas autobiográficas, que costuram fragmentos de tempo e de memória no fio de uma história cronologicamente ordenada e, de outro lado, um movimento que dissolve o eu narrado na impessoalidade da terceira pessoa, na distância temporal e na descrição também impessoal das fotografias antigas; que dissolve o eu na História. Se a memória não é capaz de unir o início e o fim da trajetória vital da autora-narradora-personagem, a escrita deve assumir essa função. Essa ideia me remete ao argumento do crítico literário inglês Frank Kermode, na série de palestras publicadas sob o título O sentido de um fim, em que estabelece analogias entre as narrativas apocalípticas e as ficções literárias. Para Kermode, o fim das narrativas é necessário para conferir sentido à vida das pessoas:

O médico Alcmeão observou, com a concordância de Aristóteles, que os homens morrem porque não conseguem juntar o princípio ao fim. O que eles, homens agonizantes sabem fazer é imaginar uma significação para si em acontecimentos que não podem ser lembrados, mas que podem ser imaginados. Uma das maneiras pela qual o fazem é criar objetos em que tudo o que existe está em concórdia com todo resto e nada mais há, o que implica um arranjo que espelha as disposições de um criador, real ou possível (Kermode, 2023, p. 14).

Esses objetos, continua Kermode, são narrativas em que o fim, em consonância o início, busca dar forma ao conjunto de experiências que constituem uma trajetória vital. As narrativas literárias buscam dar uma forma coesa e coerente a um eu. Em Ernaux, a incapacidade de unir, pela memória, o início e o final da vida está relacionada à extinção da vida individual de que fala Kermode. “Ela precisa”, diz a narradora, “dar agora mesmo uma forma por escrito para esta ausência de futuro, precisa escrever este livro [...] que duplica a sua existência há mais de vinte anos e que pretende cobrir, de uma vez só, uma duração cada vez mais longa” (Ernaux, 2021, p. 215).

Se é pela escrita que Ernaux reconstitui seu eu, é na escrita que esse eu se dissolve. Em O acontecimento, publicado em 2000, oito anos antes de Os anos, em que Ernaux narra o aborto clandestino que fez aos 23 anos, no início da década de 1960, essa ideia é articulada explicitamente. Eu cito uma passagem do final do livro:

Eliminei a única culpa que senti a respeito desse acontecimento – que ele tenha acontecido comigo e que eu não tenha feito nada com ele. Como um dom recebido e desperdiçado. Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. O verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita, isto é, algo inteligível e geral, minha existência completamente dissolvida na cabeça e na vida dos outros (Ernaux, 2022, p. 71, grifos nossos).

É a escrita que forma um eu, com contornos narrativos bem definidos; mas é também a escrita que dissolve o eu “na cabeça e na vida dos outros”. Gostaria, agora, justamente de me deter nesse duplo e paradoxal movimento da escrita: a constituição narrativa do eu e sua dissolução por meio do procedimento da impessoalização, da transformação de eu em um ela, que podemos observar em Os anos.

Essa dissolução, a transmutação de um eu em um ela por meio das descrições de fotografias antigas ou do uso da terceira pessoa, que encontramos nas narrativas de Ernaux, é descrita por Ferrante em um ensaio intitulado “A costela de Dante” (2023), o último dos ensaios de As margens e o ditado. Segundo Ferrante, Dante opera com sua escrita um movimento que a autora chama de “identificação”. Identificação é a capacidade de construir personagens que são mais do que a descrição de caracteres particulares, que são a transposição do eu do poeta em um outro. O fundamento da escrita de Dante é a sua “capacidade [...] de se deslocar para o outro, mesmo baseando-se no eu autobiográfico com os seus limites estruturais” (Ferrante, 2023, p. 112):

Para expressar esse impulso extremo rumo à identificação, ele nos deixou – no canto IX da parte em que conjectura a felicidade celeste dos intercâmbios silenciosos, um fundir-se e confundir-se na luz mística – palavras como inluiarsi, intuiarsi, inmiarsi (tornar-se ele, tornar-se você, tornar-se eu). Foram verbos extremamente audazes e, por isso, malfadados. No entanto, naquelas palavras, vi e ainda vejo o maior desejo de qualquer um que escreve e narra: a ânsia de se desprender de si mesmo; o sonho de se tornar o outro sem obstáculos; um ser você ao mesmo tempo que você sou eu; um fluir da língua e da escrita sem mais sentir a alteridade como um estorvo.

Chamou minha atenção, porém, que Dante nunca tenha inventado um inleiarsi, um tornar-se ela (Ferrante, 2023, p. 115).

Nesse trecho, Ferrante argumenta que os personagens da Divina Comédia, todos eles, são criados a partir de um movimento de identificação do eu (do autor-narrador) com um ele, esse outro que é o personagem. E isso acontece, sem dúvida, no caso de Dante-personagem, caso de uma identificação evidente entre autor e personagem, identificação mediada pela figura do Dante-narrador, mas também em relação a todos os personagens da obra. Esse movimento da escrita, da criação narrativa, que Ferrante chama de “identificação”, é nomeado pelo próprio Dante por meio de três neologismos: inluiarsi (tornar-se ele), intuiarsi (tornar-se você) e inmiarsi (tornar-se eu). Ferrante, entretanto, sente falta de um quarto verbo: inleiarsi, tornar-se ela.

Inleiarsi, tornar-se ela, é, para Ferrante, o resultado da dialética entre a escrita aquiescente, dentro das margens, e a escrita impetuosa, que desmargina, quando se trata especificamente da escrita feminina. Dante, um homem, cria seu dolce stil novo, incorporando e desmarginando o cânone de sua época, transformando profundamente a matéria da tradição. E nisso consiste sua genialidade. Mas, no caso da escrita feminina, é necessária uma “outra volta no parafuso”, que consiste na desmarginação da escrita masculina:

Àquela altura – creio que por volta dos vinte anos – estava impresso em minha mente, com clareza, um tipo de círculo vicioso: se eu queria ter a impressão de escrever bem, devia escrever como um homem, mantendo-me firmemente dentro da tradição masculina; mas, sendo mulher, eu só podia escrever como mulher, se violasse o que estava procurando diligentemente aprender da tradição masculina (Ferrante, 2023, p. 25-26).

Aqui, escrever dentro das margens significa escrever dentro de um cânone masculino. À escrita feminina é imposto que conheça o cânone, que domine suas regras, mapeie seus limites, mas também que seja impetuosa, que desmargine, que faça o movimento dantesco de identificação, destruindo as margens do eu, tornando-se ela. A meu ver, é exatamente esse procedimento que Ernaux utiliza em suas narrativas, o inleiarsi. Em O acontecimento, o movimento de inleiarsi está evidente e estreitamente associado à quebra ou desmarginação do cânone masculino:

Pode ser que um acontecimento como este cause irritação, ou repulsa, ou seja considerado de mal gosto. Ter vivido uma coisa, qualquer que seja, dá o direito imprescritível de escrevê-la. Não existe verdade inferior. E eu, se não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo (Ernaux, 2022, p. 35).

Nesse trecho, o “mau gosto” de um texto que causa “irritação” ou “repulsa” indica um movimento de desmarginação de um cânone que é evidentemente masculino: tornar-se ela significa afirmar que “não existe verdade inferior” à verdade masculina.

FICÇÕES

A passagem de Ernaux, analisada no final da seção anterior, contém, entretanto, mais do que a desmarginação do cânone masculino. Ela coloca em cena o problema da presença do real no texto, ou seja, o problema de sua dimensão autobiográfica e da busca por eliminar o fictício. Nela, o inleiarsi efetua-se por meio de um duplo e paradoxal movimento: a legitimação da escrita feminina acontece, num primeiro momento, pela afirmação de seu caráter autobiográfico; o direito de escrever fundamenta-se no “ter vivido uma coisa” (Ernaux, 2022, p. 35). Nesse primeiro momento, a identidade entre autora, narradora e personagem, que, segundo Philippe Lejeune (2014), caracteriza a autobiografia, é fonte de autoridade narrativa. Contudo, em um segundo momento, Ernaux dissolve o caráter autobiográfico da narrativa na “realidade das mulheres”. Aqui, o eu converte-se no elas e no nós.

Ambos os movimentos caracterizam o inleirasi na maior parte das narrativas de Ernaux, pelo menos desde a publicação de O lugar, em 1983. Ao dessubjetivar, ao despsicoligizar, ao descrever a si mesma como uma outra em fotografias antigas, usando o pronome em terceira pessoa ao invés do pronome em primeira pessoa, o eu da narradora torna-se o ela da personagem narrada. Em A escrita como uma faca [L’écriture comme un couteau], texto que é um híbrido de entrevista e ensaio, Ernaux retoma esse ponto ao afirmar que “o ‘eu’ do texto e o nome inscrito na capa do livro remetem à mesma pessoa” (Ernaux, 2023, p. 36), mas que classificar seus livros como “narrativas autobiográficas” “impõe uma imagem redutora: ‘a autora fala de si mesma’” (Ernaux, 2023, p. 36). E continua:

Bem, O lugar, Une femme [Uma mulher], A vergonha e O acontecimento em parte são menos autobiográficos do que autossociobiográficos. E Paixão Simples, L’Ocuppation [A Ocupação] são análises da impessoalidade das paixões pessoais. De um modo geral, os textos deste segundo período são, antes de tudo, “explorações”, em que se trata menos de afirmar o “eu” ou de “encontrá-lo” e mais de perdê-lo em uma realidade mais ampla, uma cultura, uma situação, uma dor etc. (Ernaux, 2023, p. 36).

No caso de Os anos, essa “realidade maior” na qual o eu se perde é a História, na medida em que a autora subordina a narrativa autobiográfica à narrativa da História (no sentido de historiografia). Se, no romance realista moderno, o tempo do personagem é articulado à temporalidade dos acontecimentos históricos6,que serve como pano de fundo para o desenvolvimento da interioridade de um eu, a narrativa de Os anos parece produzir uma inversão, trazendo para o primeiro plano a narrativa histórica e subordinando a ela os acontecimentos que marcam a trajetória vital da personagem. Esse ponto é tornado explícito pela própria narradora, no final do livro:

Aquilo que este mundo inscreveu nela e em seus contemporâneos lhe servirá para reconstituir um tempo comum – aquele que transcorreu de muito tempo atrás até hoje – para, encontrando a memória da memória coletiva a partir de uma memória individual, apresentar a dimensão vivida da História.

Não se trata de um trabalho de rememoração, tal como se entende normalmente, que busca narrar uma vida, dar uma explicação de si. Ela só vai olhar para si própria buscando encontrar o mundo, a memória e o imaginário dos dias passados no mundo, e capturar as mudanças no pensamento, nas crenças e na sensibilidade geral [...] (Ernaux, 2021, p. 216-217).

O propósito da escrita, aqui, não é produzir uma “escrita de si”, mas, pelo contrário, escrever a si mesma como uma outra, escrever as memórias dessa outra, produzir História e dissolver o eu na História. Meu ponto é que a construção da narrativa autobiográfica a partir e por meio da História provoca uma espécie de “desmarginação” do eu, cuja substância, em forma de fragmentos impessoais (fragmentos de memória, fragmentos de fotografias antigas), é dissolvida na História e na memória coletiva.

Se Ernaux se recusa a classificar seus livros como autobiografias, recusa, de modo ainda mais enfático, classificá-los como romances, ou seja, como ficção. Em A escrita como uma faca, afirma que, com a exceção de seus três primeiros livros, em toda sua obra ela “afasta” a ficção e narra acontecimentos “verídicos”, ver: Ernaux (2023, p. 36). Ernaux lança mão, em suas narrativas, de dispositivos formais que buscam expurgar a ficção da escrita. A escrita torna-se uma espécie de imperativo, uma necessidade absoluta de dar forma a um eu; uma necessidade que deriva da ameaça de desintegração que a morte e a precariedade da memória representam. Em sua obra, é pela escrita que a autora-narradora enfrenta a ameaça de desintegração do eu que narra e do eu que é narrado. Esse enfrentamento surge, antes de tudo, na afirmação da realidade daquilo que é narrado e na recusa da ficção. Em O acontecimento, usa apenas as iniciais de nomes para designar personagens que classifica como “reais”:

Não me permito escrever esses nomes aqui porque não são personagens fictícios, mas seres reais. No entanto não consigo acreditar que existam em algum lugar. Num certo sentido, seguramente tenho razão: a forma que têm hoje – seus corpos, suas ideias, sua conta bancária – não guarda nenhuma relação com a forma que tinham nos anos 1960, essa que vejo quando escrevo. Quando sinto vontade de procurar esses nomes na lista telefônica, logo me dou conta do erro (Ernaux, 2022, p. 34).

Há, aqui, um duplo movimento: ao mesmo tempo que declara que seus personagens não são fictícios, a distância temporal faz com que não existam mais, estabelecendo também uma distância entre as pessoas inscritas no texto e as pessoas reais. Em Os anos, essa distância temporal, que é também a distância entre a realidade transposta no texto e a realidade fora dele, é formalmente construída através do uso de dispositivos como a substituição da primeira pessoa do singular pela terceira do singular e pela segunda do plural e pelas descrições de fotografias antigas. É justamente essa distância que abre uma brecha para o ficcional.

Como nota Pedro Dias Brito, em sua meticulosa e muito bem construída análise do uso do “ela”, do “a gente” e do “nós” em Os anos, “a ficção – entendida como ‘invenção’ – é abolida em benefício de um compromisso com a realidade e a verdade” (Brito, 2023, p. 329). Por outro lado, Brito argumenta que o próprio uso do ela em lugar do eu seria uma “ficção metodológica”, expressão cunhada por Ivan Jablonka para designar o ferramental das ciências sociais para produzir o distanciamento dos fatos necessário à produção de conhecimento, como as hipóteses, o “tipo ideal” weberiano, a contrafactualidade e anacronismos como “‘proletariado romano’, ‘intelectuais’ na Idade Média, os ‘desenhos animados’ que compunham a tapeçaria de Bayeux, os ‘fãs’ de celebridades no século XVIII, os ‘sem-documentos’ dos anos 1930” (Jablonka, 2022, p, 13). Para Brito, o uso do ela, em Ernaux é uma dessas lentes ficcionais criadoras de distância. Embora eu esteja de acordo com esse argumento, creio que a dimensão ficcional, na obra de Ernaux, não se resume a uma “ficção metodológica”, senão é, também, uma consequência inevitável do movimento de dissolução do eu, associada à precariedade da memória. Em O acontecimento, a impossibilidade de reter no presente a experiência passada encontra-se atrelada ao imperativo da escrita:

Ver pela imaginação ou rever pela memória é a parte que cabe à escrita. Mas “eu revejo” serve para registrar o momento em que tenho a sensação de alcançar outra vida, a vida passada e perdida, sensação que a expressão “é como se eu ainda estivesse lá” traduz espontaneamente de modo tão preciso (Ernaux, 2022, p. 37).

Nesse trecho, podemos perceber que a reconstituição pela memória e pela escrita estão associadas ao sentido da visão. Ao mesmo tempo em que a escrita aparece como possibilidade de rever e de reviver o acontecimento pela imaginação e pela memória, ela também se mostra insuficiente e precária em sua capacidade de restaurar a experiência passada – a experiência da realidade passada –, de restaurar aquilo que a narradora chama de “a visão estarrecedora do real” (Ernaux, 2022, p. 37). Essa precariedade provém do caráter ficcional de toda escrita: a escrita é sempre um como se – “como se eu ainda estivesse lá” (Ernaux, 2022, p. 37). Assim, a escrita, uma escrita não ficcional, uma escrita do real, uma escrita da História, busca deter a dissolução do eu, eliminando a ficção, e, paradoxalmente, modela o real, modela a História em um inevitável “como se”. A descrição de fotografias antigas também atribui à escrita a função de dar novamente a ver, de produzir imagens de pessoas e acontecimentos reais do passado. Como argumenta Susan Sontag, “fotos fornecem formas simuladas de posse: do passado, do presente e até do futuro” (Sontag, 2004, p. 160). A posse, de qualquer modo, continua a ser um como se. Se a escrita de Ernaux resiste à ficção, por outro lado, a escrita como ficção resiste ao real. A ausência do fictício, da pura invenção, não é capaz de eliminar o ficcional.

Ernaux reconfigura o gênero autobiográfico, ao dessubjetivar e despsicologizar o eu e ao dissolver o eu na História, ou, para usar o termo da autora, ao converter a autobiografia em “autossociobiografia”. Como consequência, Ernaux não apenas recusa a ficção, mas a ideia de uma “escrita de si”. No entanto, ao eludir à ficção, Ernaux inevitavelmente alude à dimensão ficcional de seus textos. Ela afirma que “afast[a] qualquer ficcionalização e, à exceção de erros da memória, os acontecimentos são verídicos em todos os seus detalhes” (Ernaux, 2023, p. 36). A frase “à exceção de erros da memória” abre uma brecha para que o “como se”, fundamento do ficcional, penetre no texto.

Nesse ponto, a comparação com Ferrante torna-se deveras complexa, na medida em que, ao assumir um pseudônimo, a autora parece eludir não à ficção, mas à dimensão autobiográfica de sua escrita. Ou melhor: o pseudônimo pretende impedir que se possa determinar com precisão seus elementos autobiográficos. Se Ernaux afirma que seus livros “são narrativas nas quais tudo que pudesse ser verificado por uma investigação policial ou biográfica — o que muitas vezes é a mesma coisa! — se revelaria correto” (Ernaux, 2023, p. 36), o pseudônimo “Elena Ferrante” mostra-se, a princípio, como uma tentativa de impedir qualquer verificação ou investigação dos referenciais biográficos da obra.7Quando perguntada, em uma entrevista, sobre o uso do pseudônimo e o ocultamento de sua verdadeira identidade de autora, Ferrante responde o seguinte:

o que escrevo é cheio de referências a situações e eventos que aconteceram, mas reorganizados e reinventados como jamais se deram. Portanto, quanto mais me distancio da minha escrita, mais ela se torna o que quer ser: uma invenção romanesca. Quanto mais me aproximo, quanto mais a adentro, mais o romanesco é sobrepujado pelos detalhes reais e o livro deixa de ser romance, corre o risco de ferir sobretudo a mim, como a narrativa malvada de uma ingrata sem qualquer respeito (Ferrante, 2017, p. 60).

Esse trecho é extremamente ambivalente. Por um lado, percebemos que Ferrante lança mão de procedimentos não muito diferentes daqueles mobilizados pela ficção realista: ela ficcionaliza sua experiência da realidade, ou seja, recria ficcionalmente acontecimentos e pessoas reais, recorrendo aos três atos de fingir que, segundo Wolfgang Iser, caracterizam a ficção. Iser propõe que, para trazer “à luz o fictício do texto ficcional” (Iser, 1996, p. 14), há que se substituir a oposição tácita entre ficção e realidade pela relação triádica entre o real, o fictício e o imaginário. Nessa relação triádica, os atos de fingir transgridem os limites do real, “irrealizando” a realidade de um lado, e realizando o imaginário de outro. O ato de fingir que corresponde à seleção retira elementos de sistemas contextuais de realidades sociais ou literárias e transmuta-os em signos no texto. É o que Ferrante diz fazer quando afirma que o que escreve “é cheio de referências a situações e eventos que aconteceram” (Ferrante, 2017, p. 60). Não se trata, aqui, da mera repetição da realidade no texto, senão da realidade transformada em signo. Por sua vez, esse ato de fingir conjuga-se a um outro, que consiste na reorganização e reinvenção de eventos “como jamais se deram” (Ferrante, 2017, p. 60). Iser chama esse ato de fingir de combinação, ou seja, a construção de relacionamentos intratextuais, “que abrange tanto a combinabilidade do significado verbal, o mundo introduzido no texto, quanto os esquemas responsáveis pela organização dos personagens e suas ações” (Iser, 1996, p. 18-19).

Como nota Brito, esses atos de fingir também estão presentes na escrita de Ernaux, ainda que o “jogo entre os campos referenciais e sua deformação no texto” (Brito, 2023, p. 330), de que trata Iser, seja controlado por Ernaux de modo a construir uma racionalidade que, “apesar de ser formalmente ficcional, permite, pragmaticamente, a produção de um texto cujo horizonte é a busca de veracidade” (Brito, 2023, p. 340). A meu ver, é justamente por isso que, embora Ernaux afirme que os acontecimentos que narra “são verídicos em todos os seus detalhes” (Ernaux, 2023, p. 36), sua escrita não consegue eliminar completamente o “como se”, na medida em que a memória inevitavelmente seleciona e rearranja os eventos verídicos.

Ferrante também alude aos “detalhes reais” (Ferrante, 2017, p. 60) de sua narrativa, contudo, à diferença de Ernaux, ela mobiliza um terceiro ato de fingir: o desnudamento, operado pelo texto, de sua própria ficcionalidade, ao afirmar que sua escrita quer ser “uma invenção romanesca” (Ferrante, 2017, p. 60). Segundo Iser, o desnudamento da ficcionalidade, que se dá por um repertório de signos que não se confunde com os signos linguísticos do texto, instaura um “como se”, que coloca a realidade repetida no texto “entre parênteses”, transformando o conjunto de detalhes selecionados e combinados em uma totalidade ficcional. Ao declarar que mobiliza esses três atos de fingir, Ferrante insere seus textos dentro dos limites da ficção. No entanto, sua ficcionalidade é apresentada como uma questão de perspectiva: quando se coloca na posição de leitora, distanciando-se de sua própria escrita, “ela [a escrita] se torna o que quer ser: uma invenção romanesca”; quando se aproxima do texto, ao contrário, a totalidade é esfacelada, e o que vê são os “detalhes reais” (Ferrante, 2017, p. 60). Há, aqui, uma clara sugestão, por Ferrante, da existência de uma dimensão autobiográfica em seus romances.

A ambivalência é intensificada, visto que o trecho em questão é retirado de uma das muitas situações em que Ferrante procura justificar o fato de recorrer a um pseudônimo e de manter oculta sua identidade. O uso do pseudônimo coloca a escrita em uma posição ambivalente tanto em relação à ficção quanto à autobiografia. Se, por um lado, o uso do pseudônimo elude a dimensão autobiográfica do texto, por outro lado, alude a essa mesma dimensão, na medida em que se converte em dispositivo que promove a identidade entre autora, narradora e protagonista na figura da protagonista-escritora. Isso é particularmente evidente nos romances da Tetralogia napolitana, em que a narradora-personagem se apresenta como a escritora do livro que estamos lendo, Elena Greco, e tem o mesmo prenome do pseudônimo adotado pela autora, Elena Ferrante.

A identidade entre autora, narradora e protagonista está também sugerida na coletânea Frantumaglia: os caminhos de uma escritora, de onde foi retirado o trecho que ora analisamos. Frantumaglia é híbrido de correspondências, entrevistas e ensaios, e saiu pela primeira vez em 2003, depois da publicação de seus dois primeiros livros, Um amor incômodo e Dias de Abandono. A obra é expandida e republicada em 2007 e 2016, depois das publicações de A filha perdida e dos romances da Tetralogia napolitana, respectivamente. O livro é uma espécie de colcha de retalhos feita de comentários de Ferrante sobre sua obra, seu processo criativo e sua vida. O fato mesmo de o livro tomar a forma de gêneros não-ficcionais, como o ensaio, a entrevista e o texto epistolar, sugere seu caráter autobiográfico. As correspondências e entrevistas, ainda que não revelem a identidade da escritora, nos deixam saber de vários de seus dados biográficos: que nasceu e foi criada em Nápoles, que sua mãe era uma costureira, que tinha duas irmãs, que fez estudos clássicos, que se casou, que teve filhos, que ascendeu socialmente. Desse modo, Frantumaglia não apenas desnuda sua dimensão autobiográfica, como impele o leitor a buscar a dimensão autobiográfica da ficção de Ferrante, uma vez que as protagonistas dos romances compartilham, com a autora das entrevistas, cartas e ensaios, dados biográficos muito semelhantes.

O pseudônimo “Elena Ferrante”, mobilizado pela autora tanto nos romances quanto em Frantumaglia, impede que esses dados sejam verificados por uma “investigação policial ou biográfica”, mas não impede que o livro desnude sua dimensão autobiográfica. Minha hipótese é que Ferrante constrói Frantumaglia como uma ficção de autobiografia. Eu digo ficção porque, em primeiro lugar, a impossibilidade de comprovação extratextual impede que o pacto autobiográfico, tal como descrito por Lejeune, estabeleça-se de forma plena. Em segundo lugar porque, através do pseudônimo usado tanto nos romances como em Frantumaglia e, depois, nos ensaios que compõem As margens e o ditado, Ferrante constrói uma ficção de autora.

Na correspondência com seus editores, afirma: “mentir sobre livros me faz sofrer muito. A ficção literária me parece ser feita justamente para dizer sempre a verdade” (Ferrante, 2017, p. 76). Aqui, Ferrante está falando da verdade da ficção, daquela natureza de discurso que é o outro da verdade historiográfica ou (auto)biográfica, mas é também o outro da mentira. Catherine Gallagher, em seu conhecido ensaio intitulado Ficção, argumenta que “a ficção foi descoberta como modalidade discursiva com estatuto próprio somente quando os leitores desenvolveram a capacidade de distingui-la tanto da realidade quanto – sobretudo – da mentira” (Gallagher, 2009, p. 631). Ao contrário de Ernaux, que recusa a ficção e busca estabelecer a verdade biográfica e histórica, Ferrante persegue a verdade da ficção a ponto de transformar o nome próprio que aparece nas capas de seus livros em uma ficção. Se, nos livros de Ernaux, o realismo da autobiografia e da historiografia ao mesmo tempo reconstituem pela escrita e dissolvem na escrita o eu narrado, na obra de Ferrante é uma espécie “autoficcionalização” radical, a ficcionalização de seu próprio eu autoral que permite dar uma forma narrativa coesa aos fragmentos de acontecimentos reais e, simultaneamente, dissolver a realidade de seu eu no banho ácido da ficção.

Supplementary material
REFERÊNCIAS
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Notes
Notes
1 Neste ponto, se seguirmos o argumento de Moretti, as narrativas de Ferrante e Ernaux subvertem o romance de formação clássico, cujo processo de formação do protagonista se dá de modo alheio (e mesmo em oposição) à formação escolar: “A crescente influência da escola, a consolidação dos laços internos das gerações, uma relação inteiramente nova com a natureza, a ‘espiritualização’ da juventude: eis algumas características igualmente importantes da sua [da juventude] ‘real’. E, no entanto, o romance de formação descarta-as como irrelevantes” (Moretti, 2020, p. 29).
2 Como nota Ana Lecticia Angelotti, a série de romances não trata de uma formação, mas de duas: a formação mútua das duas protagonistas, na qual a amizade é um elemento fundamental, ver: cf. Angelotti (2024, p. 28).
3 Referindo-se à famosa carta que Wilhelm Meister escreve a seu amigo e cunhado Werner, Mazzari argumenta que “essa longa carta, em que o protagonista explicita suas concepções e metas, pode ser vista como uma espécie de programa do “romance de formação”, uma vez que nela se formulam os motivos fundamentais de Autonomia (formar-se a si mesmo), Totalidade (formação plena) e, ainda, Harmonia (a ‘inclinação irresistível’ por formação harmônica)” (Mazzari, 2010, p. 113).
4 De acordo com Moretti (2020), nos romances de formação que surgem a partir do período da Restauração, a síntese entre autodeterminação e socialização não é mais possível. O conflito entre esses dois polos não é eliminado pela realização do sentido do enredo no fim do romance. Se essa espécie de fracasso da Bildung expressa na natureza infeliz ou inconclusa dos finais dos romances de formação, é marca das obras produzidas no contexto do realismo oitocentista, na virada do século XIX para o XX, o fracasso converte-se na própria crise ou tragédia da Bildung. Romances como A montanha mágica, de Thoman Mann, Os embaixadores, de Henry James, e O jovem Törless, de Robert Musil, dão notícia da crise do modelo de formação cultural que vigorou nas culturas ocidentais ao longo do século XIX.
5 Trad. livre da autora. “Au même titre que d’autres archives personnelles, tels les agendas, les journaux intimes et les lettres, les photographies offrent à la fois à l’écrivaine un point d’appui mémoriel et un ancrage dans la réalité passé”
6 Sigo, aqui, a clássica definição de Erich Auerbach no décimo oitavo capítulo de Mimesis: “O tratamento sério da realidade cotidiana, a ascensão de camadas humanas mais largas e socialmente inferiores à posição de objetos de representação problemático-existencial, por um lado – e, pelo outro, o esgarçamento de personagens e acontecimentos cotidianos quaisquer no decurso geral da história contemporânea, do pano de fundo historicamente agitado – estes são, segundo nos parece, os fundamentos do realismo moderno” (Auerbach, 2004, p. 440). Essa definição é, aliás, muito semelhante à que Bakhtin nos fornece do “tipo realista” (Bakhtin, 2003, p. 222) de romance de formação como aquele em que “a formação do homem se apresenta em indissolúvel relação com a formação histórica” (Bakhtin, 2003, p. 221).
7 Evidentemente, essa tentativa não impediu, de fato, investigações e especulações acerca da identidade biográfica de Ferrante, como de que Ferrante seria Ann Goldenstein, tradutora de sua obra para o inglês, ou como as do filólogo Marco Santagata que, a partir de uma análise linguística da obra, chegou à conclusão de que a autora da Tetralogia Napolitana é a professora de história contemporânea Marcella Marmo, e do jornalista Domenico Gatti, que aponta para a tradutora Anita Raja, ou ainda, seu marido, o escritor Domenico Starnone, ver: Gatti (2026, p. 1), como possíveis autores da obra ferrantiana, a partir de uma investigação das transações financeiras entre as Edizioni e/o e Raja. Tais especulações foram negadas pelos editores de Ferrante e geraram uma série de polêmicas na imprensa a respeito de seu caráter invasivo e mesmo sexista. Neste artigo interessa-me, entretanto, tratar do pseudônimo como dispositivo literário que permite desenvolver reflexões sobre os usos da ficção e as performances autobiográficas do texto.
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Editor responsável: Nathália Sanglard de Almeida Nogueira
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