RESUMO: Na economia da obra historiográfica de Jules Michelet, não há dúvida sobre a relevância de Histoire de la révolution française (1847-1855). Escrita e publicada em sete tomos, sua versão final acumulou vários paratextos, os quais representam espaços de expressão privilegiados da obra micheletiana, especialmente vocacionados a apresentar os fundamentos teórico-metodológicos de cada produção. Se esse caráter autorreflexivo atravessa os quatro prefácios, aquele intitulado “De la méthode et de l’esprit de ce livre” se destaca por ser um perfeito condensado dos traços estilísticos mais típicos e radicais da prosa micheletiana: o estilo vertical inflado de parataxes e tiranizado pelos predicados aqui se agudizam pelo recurso descomplexado a metáforas, provérbios e anedotas, configurando assim a língua desse “discurso do método” micheletiano. Minha hipótese inicial é que a explicitação dos fundamentos do debate filosófico-político do qual participa o texto micheletiano explica e, em boa medida, justifica os recursos estilísticos particulares ali exibidos. O artigo pretende explicitar a consonância entre as metáforas e as ideias, entre o espírito e a letra do historiador, buscando demonstrar como o que hoje resplandece sob o signo da literatura deve ser relido sob o signo de um projeto de história, epistemologicamente comprometido com a Revolução.
Palavras chave: Jules Michelet, teoria da história, método historiográficos.
ABSTRACT: The Histoire de la révolution française (1847-1855) is widely regarded as one of the most significant texts in Jules Michelet’s historiographical work. Written and published in seven volumes, with a final version accompanied by four paratexts which are privileged spaces of expression for Michelet’s thought, it aims to present the theoretical-methodological foundations of each production. While a self-reflective disposition does permeate all of the four prefaces, the one titled “De la méthode et de l’esprit de ce livre” stands out for being a perfect condensation of the most typical and radical stylistic traits of Micheletian prose: the vertical style inflated by parataxis and tyrannized by predicates is intensified here by the unapologetic deployment of metaphors, proverbs, and anecdotes, thus configuring the language of this Micheletian “discourse on the method” of sorts. My initial hypothesis is that the exposition of the philosophical-political debate in which Michele’s text takes part explains and, to a large extent, justifies its distinctive stylistic resources. The article seeks to explain the consonance between metaphors and ideas, between the spirit and the letter of the historian, seeking to demonstrate how what today strikes us as “literary” must be reread as a historiographical project, epistemologically committed to the Revolution.
Keywords: Jules Michelet, theory of history, historiographic method.
DOSSIÊ: FORMAS TEXTUAIS, IMAGINAÇÃO E HISTORICIDADE
Do método e do espírito da revolução historiográfica micheletiana
On the method and spirit of Michelet’s historiographical revolution
Received: 01 April 2024
Revised document received: 30 August 2024
Accepted: 24 September 2024
Para Paule Petitier
Histoire de la révolution française, se não é o maior projeto historiográfico de Jules Michelet, certamente é um dos que lhe foi mais caro.1 Dividido em sete volumes publicados entre 1847 e 1853, esse livro representa um dos pontos culminantes de sua trajetória e é considerado pela crítica especializada o “coração da obra, seja de um ponto de vista epistemológico, político ou cronológico” (Petitie, 2019, p. XIV).2 A versão final da obra acumulou uma quantidade expressiva de paratextos (Prefácios, Introdução e Conclusão), que, como assinalado por Claude Lefort em La cité des vivants et des morts, representam espaços privilegiados da obra micheletiana, porque são essencialmente vocacionados a apresentar os fundamentos teóricos e metodológicos de cada produção (Lefort, 2002, p. 5). Dentre eles, destaco um: “De la méthode et de l’esprit de ce livre”, originalmente composto como fecho metodológico para o tomo II de Histoire de la révolution. Lançado em 1847, realça essa dimensão autorreflexiva tão cara aos paratextos micheletianos.
Já notável por seu título mesmo, a importância desse paratexto não passou desapercebida entre os estudiosos do historiador.3 Assim, e apenas a título de exemplo, ambas as edições Pléiade de Histoire de la révolution française – a de 1952, capitaneada por Gérard Walter, assim como a 2019, comandada por Paule Petitier - a comentam com algum destaque. Ao passo que a última lhe dedica toda uma seção do capítulo Notice, intitulada “La méthode de l’historien en 1847” (Petitier, 2019, p. 1221-1226), a de Walter apresenta o paratexto em duas notas de rodapé específicas, a última das quais insistindo em que:
Dos vinte e um livros que compõem a História da Revolução francesa de Michelet, este é o único que dispõe de um preâmbulo destinado a explicar o método seguido em sua elaboração e o espírito que o anima” (Walter, 1952, p. 1381).4
De caráter estritamente historiográfico, o texto desenvolve-se em três passos: o primeiro e mais alentado é a explicitação do método e do espírito (ou seja, dos princípios epistemológicos) que sustentam essa produção. À explicitação do método segue-se um exercício de crítica, voltado a apontar os problemas da produção historiográfica então assente sobre a Revolução.5 A crítica historiográfica dá ensejo, a seguir, a uma visada crítica concernindo o próprio evento, exame histórico que, inclusive, extrapola a delimitação cronológica do volume em questão, apresentando-se, assim, como um diagnóstico crítico da Revolução como um todo.
“De la méthode et de l’esprit de ce livre” é, portanto, um texto metodológico, comprometido em expor e debater os princípios interpretativos que presidiram a leitura da Revolução proposta por Michelet. Mas ele é, também, um perfeito condensado dos traços estilísticos mais típicos e radicais da prosa micheletiana. O “estilo vertical”, nos termos de Sainte-Beuve (2004, p. 1209-1214), comandado pela primazia da parataxe e por um desenrolar por saltos em lugar de um desenvolvimento lógico comedido e processual; a “tirania dos predicados” (Barthes, 1984, p. 210-221), recobrindo e suplementando o que Gustave Lanson (1895, p. 1009) chamou de “subjetivismo lírico” característico da prosa romântica); o recurso sistemático a metáforas, provérbios e anedotas (Petitier, 1998, p. 65-79); enfim, a dominante dialógica que, seja por meio de interpelações diretas, seja pelo recurso à dramatização de debates, impõe ao leitor um papel ativo no ato da leitura tanto quanto destaca a presença do autor: todos esses recursos estilísticos configuram a língua do discurso do método micheletiano. O resultado da combinação entre método e estilo é a produção de um discurso “exaltante e exaltado”, para retomar o diagnóstico preciso de George Navet (1987, p. 19).
O objetivo deste texto será o de demonstrar a coerência entre o estilo e as ideias ali apresentados. Minha hipótese é a de que a explicitação dos fundamentos do debate filosófico- político do qual participa o texto micheletiano ajudam a melhor compreender e interpretar os recursos literários ali exibidos. De forma mais direta, interessa destacar como o estilo particular de Michelet recobre e duplica uma batalha epistêmica em torno da fundação da historiografia moderna, indissociável, para o historiador, do sentido da própria Revolução: esse “todo poderoso intérprete” “dos meus ensinamentos e da minha história” (Michelet, t. I, 2019, p. 5).6Isso significa que a posição epistemológica então defendida é coerente e concorde à posição política do historiador e que ambas se encarnam perfeitamente nos recursos estilísticos ali mobilizados. Em outros termos, este artigo pretende explicitar a consonância entre as metáforas e as ideias, entre o espírito e a letra do historiador, buscando demonstrar como o que hoje poderia resplandecer sob o signo exclusivo da literatura pode e deve ser relido como um projeto de história, epistemologicamente comprometido com a Revolução.
Se esse acordo entre método e espírito é coerente com os ares românticos do tempo, a particularidade desta leitura será a de demonstrar como a inscrição romântica de Michelet só teria sentido – e um sentido próprio, coerente com o seu projeto - se afastada das terras literárias onde, no geral, é recebida, ainda quando inscrita sob a etiqueta da historiografia romântica.7 Basicamente, esta leitura quer demonstrar como a chave de interpretação mais adequada para o colorido estilístico desse paratexto micheletiano deve ser buscada não exatamente no domínio literário, mas nos debates político-filosóficos em função dos quais exercita o seu “estilo”.8 Assim, a principal dificuldade encontra-se na abordagem do que Aurélien Aramini, um dos filósofos convocados nesta análise, chama de “continente esquecido da filosofia francesa, que é o da primeira metade do século XIX” (Aramini, 2016, p. 47). Esse continente tem pauta e vocabulário específicos, cujos pressupostos e decorrências não se encaixariam, de antemão, no que geralmente se desenha sob as hostes do Romantismo ou, para reduzirmos um pouco mais a questão, o romantismo francês ou a historiografia romântica.9
Para tanto, começarei a análise partindo do conjunto metafórico informado pelo sintagma nominal “Todo-mundo” e da pequena fábula que Michelet propõe em torno dessa personagem, cuja construção e desenvolvimento, encarnando simbolicamente a figura do povo, presidem tanto metafórica quanto teoricamente o texto em questão.
Nós não somos desses amigos do povo que desprezam a opinião do povo, sorriem ante ao preconceito popular, crentes de que são, modestamente, mais sábios do que Todo-Mundo. Todo-Mundo, para os hábeis e as gentes de espírito, é um pobre homem de bem, que é cego, tromba, tropeça, fala bobagens, sem saber bem o que diz. Rápido, um bastão para o cego, um guia, um apoio, alguém que fale por ele. Mas os simples, os que não têm espírito, como Dante, Shakespeare e Lutero, veem de modo muito distinto este simplório. Reverenciam-no, recolhem, escrevem suas palavras, mantêm-se de pé diante dele. É ele que o pequeno Shakespeare escutava, enquanto vigiava os cavalos na porta do espetáculo; ele que Dante vinha ouvir no mercado de Florença. O doutor Martinho Lutero, todo doutor como era, lhe dirigia a palavra com o chapéu na mão, tratando-o por mestre e senhor: “Herr omnes (Senhor Todo-Mundo)” Todo-Mundo, sem dúvida ignorante nas coisas da natureza (não vai ensinar física a Galileu, nem cálculo a Newton) nem por isso deixa de ser um juiz justo nas coisas do homem. Ele é o soberano mestre em direito. Quando se assenta em seu pretório e tribunal natural, seja nas esquinas das grandes cidades, num banco de igreja ou ainda numa pedra no cruzamento de quatro estradas, sob o olmeiro do julgamento, ali julga, sem recurso possível; não há como se dizer não. Os reis, as rainhas, os tribunos, os Mirabeau, os Robespierre, todos comparecem modestamente. Que digo? Mesmo o grande Napoleão faz como fazia Lutero; chapéu nas mãos...
Et nunc erudimini; qui judicatis terram! Sejam julgados, juízes do mundo! (Michelet, 2019, p. 588).10
Esse trecho apresenta-se como um condensado perfeito do que fez a fama literária, concomitante ao descrédito analítico do texto micheletiano. “Declamações e hipóteses” ao invés de dados; “notas e citações graves” substituídas por metáforas; “expressões exatas e calculadas” trocadas por referências bizarras a personagens desconexos entre si e, com a matéria, constituem – como poderia ter dito Taine – o exato oposto do que gera a crença em matéria de ciência.11
No entanto, como acontece frequentemente na obra desse autor, o colorido poético, quando cotejado com algum rigor à prova da bibliografia da época e dos debates em torno dos quais se construiu, ganha substância, revelando a coerência íntima entre o que é dito e o como é dito, entre o espírito e a letra do texto. Devolver-lhe a coerência argumentativa, relembrando o subtexto e o contexto que dá solo a esse trecho do posfácio micheletiano é, pois, meu primeiro objetivo. Em seu horizonte, está a possibilidade de, por meio dessa operação inicial, propor uma chave interpretativa para a aliança entre o método e o espírito dessa interpretação, sem desprezar, nessa fatura, a letra do texto micheletiano.
Para isso, é preciso indicar, ainda que de forma precária, o núcleo de sentido inicial do trecho destacado. Três argumentos estruturam os três parágrafos. O primeiro é apresentação, evidentemente irônica, de uma intelectualidade que, em nome do povo (“Amigos do povo”), outorga-se o direito de tutela sobre ele, supondo sua incompetência em responder por si próprio. O parágrafo seguinte estrutura-se como um contraponto do primeiro, relembrando, através das figuras de Dante, Shakespeare e Lutero (personagens amplamente reconhecidos e celebrados pela intelectualidade da época), encarnações de um gênio cuja singularidade seria – é o que propõe o extrato - a de, justamente, alimentarem-se na interação e na aprendizagem com a ordem popular. O terceiro parágrafo revela a verdadeira identidade desse Todo-Mundo: “justo juiz nas coisas do homem”, “soberano mestre em direito”, portanto, fundamento de autoridade que permite à História que o desposa ser não mais narrativa submissa à lógica dos grandes homens (reis, rainhas, tribunos, passim), mas exercício de juízo crítico de suas ações. Glosa que recupera àquela dimensão cardinal da Revolução para o pensamento micheletiano, referendando tanto seu valor como princípio epistemológico fundante de sua historiografia (“esse todo poderoso intérprete dos meus ensinamentos e da minha história”), quanto, e correlatamente, seu valor político, sua profissão de fé, assentada na defesa da soberania popular e, por conseguinte, da República democrática como legítimo horizonte aberto pela Revolução.
Explicitado os termos de base do trecho, a primeira pergunta a ser respondida diz respeito a quem ele visa, qual o horizonte de referencialidade dos “Amigos do povo”. Ora, naquele ano de 1847 e no contexto da Monarquia constitucional que, desde 1830, vigora na França, a identidade desses “mais sábios do que Todo-Mundo”, benévolos tutores das massas ignorantes, é segredo de polichinelo e poderia ser facilmente compreendida pelos leitores como um 3 por 4 do mainstream político e intelectual do período.
Assim, foi apresentada e concebida a monarquia constitucional de Luís Filipe d’Orléans (1830-1848), fundada em um regime que, assentado no que se considerava a principal conquista da Revolução, a equidade cívica12, explicitamente reservava às elites da nação, via direito de voto e de representação política censitários, os foros de participação ativa na vida do país. Oriundo de uma Revolução (a de 1830) e encerrado por outra (a de 1848), tal regime fora conscientemente pensado como uma resposta aos desafios lançados pela Revolução francesa, como uma maneira de terminá-la – encerrá-la – dentro de limites que, ao mesmo tempo, preservassem algumas de suas conquistas (a demanda por expansão de direitos para todo o corpo social, fundamento da nação), mas evitando seus excessos, no caso, a deriva democrática e sua forma histórica: a república terrorista de 1793.
Tratava-se, pois, menos de um regime de pura circunstância, do que de um construto político de forte ancoragem intelectual, concebido, legitimado e, em boa medida, operado pelo que então se considerava a nata da intelectualidade liberal da França da primeira metade dos Oitocentos. Insisto: não nos referimos, aqui, a um governo de perfil antirrevolucionário, saudoso do Antigo Regime, mas antes de herdeiros (quando não atores) da Revolução dessa antiga ordem, a exemplo de seu monarca, filho do regicida Philippe Égalité, membro dos jacobinos, lugar-tenente de destaque do exército revolucionário até sua fuga para o exílio em 1793, após uma tentativa fracassada de golpe contra a Convenção. Em resumo, um regime composto por adeptos sinceros das conquistas de 89, mas com fortes reservas quanto a 93. Em seu seio, o agrupamento conhecido como doutrinário – federando intelectuais com grande importância, principalmente nos então nascentes estudos modernos da história e da filosofia política – aliado à principal corrente filosófica da primeira metade dos Oitocentos francês, o Ecletismo. Exemplarmente representados por dois dos seus mais ilustres nomes – François Guizot (1787-1874) e Victor Cousin (1792-1867) - traziam em seus currículos, além de reconhecida produção acadêmica, o título de principal bastião contra as tentativas do regime pregresso, Restauração, em solapar as conquistas da Revolução de 89.
Uma análise detalhada do arranjo governamental então implementado, assim como o exame de seus atores e de seus pontos nevrálgicos ultrapassa os limites deste artigo e pode ser encontrada em excelentes estudos, como Le moment Guizot, de Pierre Rosanvallon (1985). Limito-me, aqui, a esboçar a apresentação de apenas um ponto: o da montagem teórica desse regime dito “capacitaire” em francês – em bom português, meritocrático, a partir do qual se acreditava responder ao que consideravam o principal erro da Revolução francesa: sua deriva terrorista, encarnada, aos olhos dessa elite intelectual, em uma assunção imediata do princípio da soberania popular.
A matéria é vasta; logo, o que trazemos agora é apenas uma brevíssima evocação de um dos fundamentos desse regime, que tanto demandou em esforço e páginas a intelectuais e políticos diversos. A legitimidade desse sistema apoiava-se na reprodução, dentro do corpo social, de uma distinção na ordem de conhecimento que estava no coração do Ecletismo: a distinção entre “filosofia espontânea” (também chamada de “síntese”) e a “filosofia reflexiva” (a dita “análise”). A primeira define a inteligência própria à massa da população, senso comum que preside uma inteligência primária do mundo e se expressa na construção fatual da história. A segunda diz respeito aos sistemas filosóficos, sistemas esses que o Ecletismo considera como depurações analíticas, reflexivas, do conjunto dos fatos históricos, ou seja, daquela “filosofia espontânea”. Há, portanto, necessária relação de espelhamento entre essas duas formas de pensamento (filosofia e história), mas também de superação da segunda pela primeira.
Mais do que simples princípio interpretativo, a relação entre a filosofia espontânea e a reflexiva é a base do sistema de representação considerado legítimo e posto em prática pelo regime em questão. Para exemplificar essa relação, recorro a um trecho de um artigo de jornal. O artigo foi escrito por Jean-Philibert Damiron (1794-1862), filósofo eclético, no intuito de vulgarizar, para o grande público da época, a relação entre o povo e a filosofia e, por derivação, entre o povo e seus eleitos.
o povo [...] tem filósofos que, em acordo com ele e se alimentando do mesmo fundo, refletem em seu proveito e analisam em sua direção. Explicam suas impressões e esclarecem seus sentimentos; sua teoria não é senão a consciência [popular] reduzida a uma expressão científica. Assim os filósofos fazem um com o povo. [...] É como a unidade que reina em política entre os eleitores e eleitos: eles detêm a alma de seus mandatários; tem suas ideias e só diferem pelo grau de inteligência. Assim também os filósofos têm o caráter de eleitos; eles são os representantes de uma opinião que tem como todo mundo, mas que eles compreendem melhor do que todo mundo. (Damiron, 1827, citado por Rosanvallon, 1985, p. 173).13
As linhas de Damiron, originalmente publicadas no periódico Le Globe, não poderiam explicitar melhor o fundamento da chamada “soberania da razão”, adotada pelo regime então vigente como justa depuração do que a inteligência primária dos homens concebeu sob a forma de soberania popular, cuja melhor (talvez fosse o caso de dizer pior) ilustração seria a sanguinária república terrorista. Esteio tanto programático quanto pragmático da Monarquia Constitucional de Luís Filipe, a teoria da soberania da razão funda-se sobre o preceito segundo o qual cabe às elites intelectuais o governo do povo, pois sua inteligência do mundo, abarcando a consciência popular, a depura e a completa: “eles compreendem melhor do que todo mundo”.14
Essa última frase me permite retomar o extrato micheletiano e o retrato irônico das “hábeis gentes de espírito” que, “amigas do povo”, prontificam-se a ver, conduzir, falar em seu nome. O evidente sarcasmo de Michelet visa, aqui, a tese da pretensa superioridade intelectual desses Amigos do Povo sobre Todo-Mundo: nada a sustentaria além de uma pura crença (“crentes de que são mais sábios do que Todo-Mundo”). Se a identidade dessas “gentes de espírito” é, como indiquei acima, a intelectualidade eclético-doutrinária então no poder, o vazio de sua superioridade intelectual – ironicamente evocada através do estereótipo “Todo-Mundo” , ao se fundar num preconceito, indicia um erro grave visando não apenas ao coração dessa epistemologia mas, e muito particularmente, à identidade do povo que ela supõe conhecer e, por isso, outorga-se no direito de guiar.15
Conforme mencionei anteriormente, o contexto de afirmação do Ecletismo – assim como o essencial do debate filosófico-político do período – associa-se de forma estrutural às interpretações sobre os eventos revolucionários e, em particular, à interpretação crítica da violência revolucionária tornada máquina de estado sob a I República e sua componente popular.
A posição de Michelet a esse respeito é mais complexa do que a simples denegação do problema. Longe de subscrever ou mesmo minimizar as críticas ao Terror– conforme já era nota dominante em certa historiografia socialista de então16, a afirmar que o sistema de Salvação Pública e seu mais eminentemente representante, Robespierre, encarnam o sentido da Revolução – , o historiador encara-o, antes, como a negação do sentido da Revolução, razão de seu “estrago”. O que não significa subscrever a tese – originalmente formulada, como ele próprio relembra, não exatamente pelos amigos do povo, mas pelos agressivos opositores da Revolução em sua dimensão popular e democrática– segundo a qual o Terror é obra popular. Tomando um rumo diverso, a tese de Michelet é a de que o regime republicano estabelecido pela Convenção, assim como o instituto da Salvação Pública que lhe deu sua forma cabal, são antes obras de Letrados e antiga herança erudita (ou seja, da razão reflexiva) do que expressões da predisposição natural do povo para violência, resultante imediata de uma razão supostamente deficitária.
Essa tese se apoia em dois elementos principais, explicitados de forma mais detalhada nos sete tomos de sua História da Revolução francesa, mas retomados e relembrados no capítulo metodológico aqui em questão. O primeiro implica a análise da origem dos atores principais e secundários do republicanismo revolucionário. Girondinos, Montanheses e Jacobinos não são homens do povo, não são representantes da filosofia espontânea, mas antes da elite letrada. “A esterilidade dos Girondinos não esteve, como se disse, em sua qualidade de burgueses, mas em sua fatuidade de advogados, de escribas.” (Michelet, 2019, p. 605).17 Quanto aos Jacobinos, “nenhum de seus líderes [...] saía do povo” (Michelet, 2019, p. 605).18 Ao contrário, eles “elevaram esse orgulho [o de constituir-se em aristocracia intelectual] a uma potência ainda superior” fazendo “frequentes apelos à violência do povo, à força de seus braços” (Michelet, 2019, p. 606)19 mas sem qualquer cuidado em consultar seus tutelados a respeito de suas próprias opiniões.
Esses doutores acreditaram, tal qual os da Idade Média, possuírem sozinhos a razão como bem seu, como seu patrimônio; também acreditaram que ela deveria vir do alto, do mais alto, ou seja de si mesmos; que ela caía sobre o povo simples vinda da cabeça do filósofo e do sábio. (Michelet, 2019, p. 606).20
O segundo elemento que permitiria referendar a origem letrada do sistema terrorista repousa na investigação de suas raízes dentro da história político-intelectual do Ocidente moderno, conforme já deixa entrever a passagem acima. Essa investigação, muito rapidamente evocada neste paratexto (melhor desenvolvida ao longo da obra e, em particular, em sua Introdução), permite indicar a antiguidade do sistema de salvação pública, principal instituto do Terror: remontando à Baixa Idade Média, sua história é a história da montagem do Estado francês e se confunde com a criação e instituição do princípio da razão de estado:
Aos homens da Revolução, extremamente corajosos e devotados, faltou, é preciso que se diga, esse heroísmo do espírito que os teria liberado da velha rotina da salvação pública, aplicada pelos teólogos, formulada e professada pelos juristas já desde o século XIII, em particular em 1300 com Nogaret, nesse nome romano de salvação pública, depois pelos ministros dos reis rebatizada como interesse e razão de Estado. (Michelet, 2019, p. 603).21
Ora, se o sistema da Salvação Pública não é novo, sua memória também reconta a história dessa rotina dos sábios em se acreditarem detentores do monopólio da razão. A repetição a que ficaram reféns os homens da Revolução – malgrado sua coragem e devoção – é a mesma, portanto, que segue mantendo aprisionados muitos de seus filhos, seus herdeiros-intérpretes, na rotina de se autoproclamarem salvadores da nação.
Salvadores da nação ou pretensos amigos do povo: não por acaso Michelet chamará o girondino Brissot de “doutrinário republicano” (Michelet, 2019, p. 606) e acusará Marat de uma “espécie de ecletismo” ((Michelet, 2019, p. 598), deixando explícito o fio de continuidade entre passado e presente.22 Mais do que um erro de interpretação da e na História, erro episódico e isolado, o problema que assim se desenha concerne, portanto, à própria natureza da razão letrada, à maneira como ela se estrutura e se define face ao mundo. Esse problema é explicitamente evocado no segundo parágrafo da longa citação com a qual abrimos este artigo, na evocação de três dos gênios tutelares da era moderna.
É preciso lembrar que Dante, Shakespeare e Lutero são unanimidades da inteligência letrada do XIX e, sobretudo, dessa intelectualidade “progressista, liberal, e pós-revolucionária” do período, se não por outra razão, por um traço comum que os perpassa: sua origem burguesa. Mas elegendo gênios celebrados por todos, não é o corte de classe que Michelet coloca em plena luz. Ao contrário, para ele, o que constitui o fundamento da genialidade dos três personagens advém do fato de ela se estruturar, antes, na incorporação do saber popular do que em sua domesticação letrada. Dante fundando uma língua a partir de dialetos populares, Shakespeare flanelinha de cavalos na porta do espetáculo, Lutero recusando a tutela da sapiência autorizada no acesso à Bíblia, os três desenham um horizonte de sentidos que desfaria o paradigma de uma filosofia reflexiva como depuração da filosofia espontânea, em favor de uma obra cujo “gênio” se encontra na interação entre essas duas instâncias de saber. Antes de ser ensinado, traduzido e, por conseguinte, guiado, é o povo quem ensina (Dante), é povo o autor (Shakespeare), é para o povo que se dirige a obra genial (Lutero).
Assim, a evocação de Dante, Lutero e Shakespeare funciona como um contraponto irônico voltado contra a (e a partir da) tradição letrada moderna. Esta então encarnada , mas não somente, naqueles “mais sábios do que Todo-Mundo”, visando o coração dessa suposta sapiência. Novamente, o alvo é prioritariamente eclético, embora possa ser estendido para além dessa matriz de conhecimento.
Herdeiro do ecletismo por contingência histórica, formação e afiliação liberal, Michelet lida com essas categorias, no entanto, deslocando seus componentes cada vez mais (Navet, 1987, p. 2). Esse deslocamento é explicado pela influência de um autor, essencial na formação e confecção dessa historiografia, estranho ao corpus filosófico sob o qual se sustenta o Ecletismo: Giambattista Vico, cuja obra Ciência Nova Michelet traduz e traz a público em 1827, e que não cessará de evocar ao longo de toda a carreira, como sua principal dívida intelectual.
De maneira simplificada, a diferença fundamental aqui relevante diz respeito à maneira como Ecletismo e Ciência Nova sustentam a fundação do conhecimento analítico. Para Cousin e seus adeptos, a filosofia nasce de si mesma e conquanto se apoie na observação crítica das ações das massas na história, não reconhece nela outro papel senão o de um teatro mudo. Com Vico, ao contrário, a filosofia nasce na praça pública, criada por aqueles que, assistindo às deliberações, buscaram analisá-las e convertê-las em método (Navet, 1987, p. 9). A consequência principal desse postulado viconiano para o entendimento das relações entre filosofia e história é oposta àquela que norteia a identidade e o papel que os ecléticos se atribuíam. Retomo, agora, trecho de um artigo de Georges Navet, que sintetiza perfeitamente a questão:
Nesse teatro que é a história para Cousin, as massas ‘não ocupam a cena [...] apenas ali figuram; seu papel é mudo e elas, por assim dizer, deixam o trabalho dos gestos e falas a alguns indivíduos eminentes, que as representam’. O filósofo, indivíduo eminente por excelência, é o único ativo e o povo é reduzido ao papel de auditório passivo.
Com Vico, as coisas se invertem: é o filósofo que se torna o observador e o povo que é ativo. A filosofia nasce não de uma reflexão sobre si, mas da reflexão sobre um ato coletivo que funda a democracia (Navet, 1987, p. 9).23
Um segundo aspecto fundamental da filosofia viconiana diz respeito à natureza da razão, que implica não apenas sua versão filosófica ou reflexiva, mas também a informa como senso comum ou em sua versão sintética (popular), para falar como os ecléticos. Sobre isso, recorro a um outro estudioso do napolitano, Alain Pons:
Entre a sabedoria “vulgar” dos povos e a sabedoria dos filósofos, não há diferença de natureza. São apenas expressões diversas de uma mesma sabedoria que se desenrola no tempo e que, sob todas as formas que toma, exprime sempre a mesma relação diante das exigências da vida social, relações com a verdade, a justiça e Deus (Pons, 1975, p. 47).24
A essa contiguidade entre a natureza dessas sabedorias, soma-se um outro elemento, também advindo da filosofia viconiana. Relembremos: no último trecho citado de Michelet, o historiador, após evocar a coragem e devoção dos revolucionários, afirma que lhes faltou um suposto “heroísmo do espírito”, único antídoto que poderia os salvar do recurso à salvação pública. Ora, Mens heroica é o título do oitavo dos discursos proferidos por Vico por ocasião do início do ano letivo da Universidade real de Nápoles,onde ocupava a cadeira de Retórica. Michelet conhecia esse discurso e, não por acaso, o incluíra em seu Oeuvres choisies de Vico, publicado em 1835.
A interpretação correta desse discurso, além de sua tensão quanto à obra magna de Vico, foi objeto de especialistas e merece um estudo à parte, que não poderia ser reduzido as poucas páginas de um artigo. A título de resumo, basta assinalar que, enquanto na Ciência Nova a humanidade parece condenada a “percorrer um círculo infernal” sempre encerrado por sua decadência, o discurso lança a promessa de um outro fim, cujo deslinde passa exatamente pelo que seu título anuncia: o heroísmo do espírito.Sem me deter na explicitação do argumento, fio-me em Georges Navet, prefaciando a edição desse texto, quando define esse heroísmo como “o ato de fazer, realmente, na história e o ato de refazer, ou se esforçar por refazer, mentalmente, na ciência”. Esses são os mesmos passos que fundam a humanidade do homem, a saber, o atravessamento entre sabedoria absconsa e sabedoria poética, o enlace entre o verdadeiro e o factual, ou, ainda, em termos mais micheletianos, entre a razão letrada e a inspiração popular; “é isto precisamente que Vico chama de heroísmo”. (Navet, 1988, 9).25
Ambos os elementos, incorporados plenamente pela historiografia micheletiana, combinam-se e talvez expliquem o sobrepeso interpretativo a partir do qual sua carreira propriamente historiadora (e não exclusivamente filosófica) é estruturada, contida no princípio viconiano basilar de sua obra magna – Ciência Nova. Para esse princípio, o mundo humano e a própria humanidade do homem são obras suas. Obras capciosas porque não autoconscientes, porque feitas pelo homem, mas apesar de si, aquém e além de sua consciência. O sobrepeso interpretativo de Michelet aparece justamente no curto-circuito entre esse princípio e o evento revolucionário, tomado como um momento em que a experiência de ser artífice de sua própria história, pela primeira vez, vem à tona coletivamente. Essa dissonância interpretativa, se não necessariamente parte da leitura do Mens heroica, certamente pode ter nela encontrado alimento para a sua afirmação.
Não por acaso, é em eco viconiano que o historiador principia o paratexto aqui em análise, quando, após relembrar a fuga do Rei, diz ter sido esse o momento em que a “crédula criança, o povo, enfim abandonado por seu tutor, que deserta e a trai, é forçada enfim a se tornar homem, quando faz sua primeira tentativa de um verdadeiro governo de homens: ser homem é se reger a si mesmo” (Michelet, 2019, p. 583).26 Mais uma vez chamo a atenção para o tom do historiador, nesse caso entre solene e melancólico, e que se explica por sua interpretação geral do evento revolucionário. Para Michelet, a Revolução, se foi o palco da fusão entre o princípio da história e sua realização, não foi capaz, no entanto, de comutar a experiência em consciência plena, ou seja, de fundá-lo como realidade estável e partilhada, não foi capaz de instituir-se senão como promessa de um mundo novo. Momento de iluminação da história, possibilidade aberta (mas não assentada) de um novo início. Faltou-lhe e ainda lhe falta saber o que ela foi e ainda pode ser: um novo começo, fundação de um laço novo a instituir a comunidade dos homens. Tarefa propriamente heroica, no sentido explícito do oitavo discurso de Vico que, se bem compreendida, deveria dotar esse saber de uma dimensão fundacional, desde que esse saber fosse, ele próprio, um exercício de heroísmo bem compreendido.
A meu ver, é exatamente isso o que justifica as lições propriamente metodológicas que esse posfácio encerra. A primeira lição é a seguinte: para se construir uma historiografia da revolução, não basta apenas ir às óbvias fontes secundárias – livros, memórias, jornais, tudo isso que não passa de memória interessada de um só homem. Tampouco é suficiente combiná-las à análise sistemática das fontes primárias - selo de qualidade desse historiador, então Chefe da Seção histórica dos Arquivos da França e reconhecidamente o primeiro a fundar sua historiografia no cotejo sistemático com os manuscritos, então não acessíveis a todos.27 Mas, e principalmente, é preciso redescobrir e se submeter ao que ele chama de “tradição oral”, “crença popular”, “lenda” e “catecismo histórico do povo” (Michelet, 2019, p. 584-585), todos esses termos se referindo a um mesmo objeto: aquilo que a memória popular reteve de um evento histórico, no caso, a Revolução Francesa. A associação entre essas três fontes não se dá, porém, por simples acúmulo. “Base que menos engana”, a memória popular fornece – sustenta Michelet - o núcleo de sentido, a diretiva de interpretação necessária para a Revolução. Conquanto tenda a aparecer “sobrecarregada nos detalhes por ornamentos lendários estranhos à história dos fatos” (Michelet, 2019, p. 584)28, cabe ao historiador saber operar com ela, retendo dessa memória, que testemunha de um juízo sintético popular e que exprime uma moral (política) fundada na experiência (na inteligência) popular do passado, o princípio e o sentido dessa interpretação.
A primeira lição metodológica de Michelet é, portanto, uma lição de humildade, de contenção e de limite do poder intelectual do intérprete face ao testemunho dos iletrados. Dirigindo-se a seus homólogos, sobretudo aos mais jovens, Michelet os convida a dar prosseguimento a essa que é, a seu ver, a primeira missão da história: “redescobrir, através de pesquisas conscienciosas, os grandes fatos da tradição nacional” (Michelet, 2019, p. 590).
Missão que impõe ao erudito não apenas renunciar à autonomia autoral própria aos letrados, mas também abrir mão de seu lugar de intérprete autônomo e produtor de saber. A lição é simples: para descobrir o que está “na boca do povo”, é preciso ir até o povo; é preciso que “entrem, de noite, na estalagem de uma vila”, ou que, “na estrada”, encontrando “um caminhante que descansa”, comecem uma conversa sobre:
a chuva e o tempo bom, depois sobre a carestia dos alimentos, depois sobre o tempo do Imperador, sobre o tempo a Revolução... Prestem bastante atenção em seus julgamentos; sobre as coisas, ele erra, no mais das vezes ignora. Mas sobre os homens, é preciso, muito raramente se engana” (Michelet, 2019, p. 585).29
Não deve, pois, o historiador, confiando em “sua cultura superior, em pesquisas de especialista, em descobertas sutis que acreditamos fazer [...] menosprezar a tradição nacional” (Michelet, 2019, p. 585).30 Não cabe a ele, então, “refazer a história, pois ela está feita em seus pontos essenciais, moralmente, os grandes resultados já inscritos na consciência do povo” (Michelet, 2019, p. 591)31. Mas cabe ao historiador, portanto, fazer como Dante, Lutero e Shakespeare, chapéu nas mãos, ouvido atento, indo aonde estiver Herr Omnes, soberano mestre em direito, a fim de apreender com o seu juízo o que de relevante a história deve preservar. Que se bem compreenda, então, a lição desses gênios para a história, seu heroísmo peculiar. Não significa, em hipótese alguma, pura substituição da história erudita pela memória popular – simples modelo às avessas do desafio representado pela tentação salvacionista própria a governos e intelectuais. Mas, antes, refere-se a uma versão mais bem compreendida do que pode a ciência: memento que exige outra longa citação:
Sem negar a potente influência do gênio individual, não há dúvidas de que, no campo das ações dos homens, a parte mais importante aparece na ação geral do povo, do tempo, do país. A França se reconhece na ação que foi a sua, tal como o criador em sua criatura. Devem a ela o que foram, com exceção de alguns pontos face aos quais ela se torna seu juiz, aprovando ou condenando e dizendo: “Nisto, vocês não são meus.” Todo estudo individual é acessório e secundário quando comparado a esse olhar profundo da França sobre si mesma, a essa consciência interior que registra seus feitos. A parte da ciência nem por isso diminui. Tão mais forte e profunda é essa consciência, tão mais se encontram apagados os motivos de seu julgamento, as peças do processo, os raciocínios frequentemente complicados através dos quais o espírito popular formula essas conclusões que chamamos simples e ingênuas. Eis o que nos exige a França, o que ela exige de nós, historiadores: não que refaçamos a história, pois ela está feita em seus pontos essenciais, moralmente, os grandes resultados já inscritos na consciência do povo; mas que restabeleçamos a cadeia dos fatos, das ideias, de onde saíram tais resultados. (Michelet, 2019, p. 590).32
Trata-se, portanto, de um exercício crítico que estabelece como seu limite e seu critério de juízo não o que se encontra na tradição de seus pares, mas antes num trabalho que, não se dissociando da consciência popular, toma-lhe como guia, segue seus passos, tentando devolver- lhe a sua voz. Escrita a partir do povo, essa história se escreve, portanto, também por e para ele, tentando, tanto quanto possível, deixar-lhe falar em nome próprio. E é nesse sentido que essa historiografia quis ser revolucionariamente democrática, respondendo ao desafio de formular não apenas teoricamente, mas formalmente, uma história que pertencesse e que falasse, de fato, a todo mundo.