Resumo: Este texto faz a análise comparativa sobre o sentido social das mudanças do trabalho de professores e professoras universitários no estado de São Paulo (Brasil) e na região metropolitana de Paris (França), considerando as formas que tais mudanças assumem na organização e nas condições de trabalho. Indaga sobre as formas precárias e flexíveis do trabalho e do emprego, sob diferentes aspectos, de professores em universidades públicas e sobre o papel do Estado e das políticas públicas na organização do trabalho docente e nas condições em que esse trabalho se concretiza. Finalmente, aponta que a precariedade no trabalho é fonte de insegurança, fragilidade e dependência e adquire diferentes contornos tanto no Brasil como na França.
Palavras-chave:ProfesoresProfesores, organização e condições de trabalho organização e condições de trabalho, universidades públicas universidades públicas, Brasil e França Brasil e França, relações de trabalho relações de trabalho.
Abstract: This study presents a comparative analysis of the social significance of changes in the work of university professors of both genders in the State of São Paulo (Brazil) and in the metropolitan region of Paris (France), considering the forms those changes have taken in the conditions and organization of their works. It is also an inquiry into the precarious and flexible forms of work and employment of public university professors, from different aspects, and into the role of the State and public policies in the organization of academic work and the conditions under which that work is realized. Finally, it identifies the precariousness nature of that work as a source of insecurity, fragility, and dependency that takes on different contours in the contexts of Brazil and France.
Keywords: Professors, working conditions and organization, public universities, Brazil and France, labor relations.
Dossier
Trabalho docente em Universidades Públicas - olhares cruzados: Brasil e França
Academic work at Public Universities – a comparative analyis: Brazil and France

Recepção: 14 Dezembro 2016
Aprovação: 20 Dezembro 2016
Este artigo pretende analisar comparativamente as condições nas quais o trabalho docente se concretiza nas universidades públicas no Brasil (estado de São Paulo) e na França[1]. O objetivo principal da pesquisa é analisar comparativamente o sentido social das mudanças no trabalho de professores e professoras universitá-rios, no estado de São Paulo (Brasil) e na França, considerando as formas que tais mudanças assumem na organização e nas condições de trabalho. Para tanto, metodologicamente, o artigo privilegia a análise comparativa internacional de políticas públicas e organização do trabalho entre os dois países com trajetórias históricas diferenciadas.
As análises comparativas constituem uma forma de conhecimento fundamental nas Ciências Sociais, seja para analisar os fatos sociais contingentes, seja para construir categorias sociológicas. Cada uma das universidades analisadas constitui uma configuração histórica e cultural (Elias, 1980). A comparabilidade não se aplica diretamente aos fenômenos ou aos seus objetos particulares comparados, ela se aplica ao conjunto dos fenômenos que constituem as “coerências” e as inter-relações entre os países, os professores e as universidades (Op.cit). Assim, a identificação dos processos que estruturam as relações de trabalho não pode ser reduzida aos particularismos de cada país e de cada universidade pesquisados, mas é remetida às dimensões históricas e sociais das transformações no mundo do trabalho.
Da perspectiva teórica e metodológica, trata-se da análise dos significados das noções de modernização, precariedade e precarização do trabalho no Brasil e na França. Tais noções questionam o papel das instituições políticas na estruturação das relações e na organização do trabalho. ¿Como compreender a precariedade – empregos precários – e as formas de precarização do trabalho docente – empregos estáveis – nas universidades nos dois países? Somos desafiados a compreender os modos de ser da precarização que, desde o século passado, o mundo do trabalho experimenta. A precarização como um processo de institucionalização da instabi-lidade pode ser vivenciada ora como trabalho temporário, eventual ou intermitente, ora como questionamento da qualificação e do reconhecimento social no trabalho (Bresson, 2012). Há uma pluralidade de conceitos e métodos de investigação sobre as mudanças no mundo de trabalho. Na pesquisa em desenvolvimento e neste arti-go tomo como referência quatro autores: Danièle Linhart (2007a, 2007b, 2008, 2009, 2015), Richard Sennet (2001), Robert Castel (1998) e Ulrich Beck (2001).
Beck (2001) argumenta que a modernização é acompanhada pela ampliação da intensidade dos processos de individualização no mercado de trabalho. Por esta interpretação, a instabilidade seria inerente à dinâmica social e política das socie-dades capitalistas contemporâneas. Sennet (2001) aborda os aspectos negativos das mudanças, que são responsáveis pela deterioração das situações de emprego e de trabalho; e opõe dois universos que coexistem: o trabalho estável protegido e o trabalho precário. Castel (1998) compreende que há uma multiplicação aleatória de formas de emprego desenvolvendo processos de vulnerabilidade social e ameaçando o fundamento da coesão social. Linhart (2008, 2009) discute a emergência de novo modo de ser da precarização, aquela que atinge também os trabalhadores com emprego estáveis. A precariedade do trabalho não é apenas a ausência de reconhecimento e de perspectiva de trabalho, mas o confronto com exigências cada vez maiores no trabalho e a preocupação permanente de estar em condições de atender às exigências.
Para Linhart (2009), estaríamos diante da “precariedade subjetiva”, pois professores estáveis não se sentiriam “verdadeiramente protegidos e seguros de poder conservar seu posto de trabalho”:
“À savoir, le sentiment de ne pas maîtriser son travail, de devoir sans cesse développer des efforts pour s’adapter, pour remplir les objectifs fixés, pour ne pas se mettre en danger ni physiquement, ni moralement (dans le cas d’interactions avec des usagers, des clients). C’est le sentiment de ne pas avoir de recours en cas de problèmes graves de travail, ni du côté de la hiérarchie (de plus en plus rare, de moins en moins disponible et pas toujours compétente en fonction d’une mobilité systématique), ni du côté des collectifs de travail qui se sont effilochés avec l’individualisation systématique des salariés et leur mise en concurrence. C’est aussi un sentiment d’isolement, d’abandon ou de solitude. C’est la perte de l’estime de soi en lien avec le sentiment de ne pas maîtriser son travail, de ne pas être à la hauteur, de faire du mauvais travail, de ne pas mériter son poste. C’est ainsi souvent la peur, l’anxiété, le sentiment d’insécurité que l’on nomme commodément le stress. La “précarité subjective” c’est le sentiment diffus d’être contraint, un jour ou l’autre de commettre, pour atteindre ses objectifs et pour faire correctement son travail, des erreurs qui pourraient justifier un licenciement. L’essor du licenciement pour motif personnel (sorte de négociation entre l’employeur et le salarié qui se traduit par un départ consenti de ce salarié sous forme de licenciement) est probablement paradigmatique : le salarié est acculé par ses supérieurs à déclarer forfait, parce qu’il ne se sent pas à sa place dans un travail qui repousse toujours les limites. De ce fait la « précarité subjective », ce sentiment de n’être jamais protégé d’une perte subite d’emploi, rejoint la précarité objective”. (p. 10)
Assim, a precariedade, nos termos de Danièle Linhart, é vivenciada como senti-mento difuso –de ser obrigado, em nome da autonomia e da responsabilização, a atingir objetivos e metas que intensificam de forma espetacular os ritmos de trabalho. Por vezes é traduzida, pelos professores, como ansiedade, medo, insegu-rança, sofrimento, mal-estar, que conduzem ao estresse e ao adoecimento, e se inscreve em relações de trabalho ditas modernas.
O campo empírico no Brasil é constituído pelas três universidades públicas estaduais em São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), criada em 1934[2]; Universidade Estadual Paulista (UNESP), criada em 1976 pela reunião dos Institutos isolados de ensino superior do estado de São Paulo, situados em diferentes cidades do interior[3]; e a Universidade de Campinas (UNICAMP), criada em 1966[4]. As três universidades estaduais são vinculadas à Secretaria de Estado de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia e possuem autonomia acadêmica e financeira. O campo empírico na França é constituído pelas universidades na região metropoli-tana de Paris, enfocando os professores da área de sociologia e ciências da educação.
O texto aqui apresentado desdobra-se em três eixos: (1) as formas que assume o trabalho de professores nas universidades públicas; (2) as formas precárias e flexíveis do trabalho e do emprego, sob diferentes aspectos, de professores nas universidades públicas; (3) o Estado e as políticas de emprego de professores nas universidades públicas: organização e condições de trabalho.
O processo de gerenciamento do trabalho, no que tange às suas orientações e práticas, é frequentemente expresso como inevitável e necessário à modernização para o bem comum (Tanguy, 2011). Assim, o conteúdo desse processo, bem como suas implicações nas relações de trabalho, é a centralidade desse item.
A reestruturação do capitalismo, nas três últimas décadas, privilegiou os merca-dos financeiros; e, nessa direção, as fusões, as incorporações ou as aquisições de grandes empresas multinacionais foram realizadas com o suporte legal das políticas –fiscais e sociais– dos Estados nacionais. Dentre essas políticas, destacam-se aquelas que possibilitam e incentivam a flexibilização do trabalho; isto é, aquelas que propiciaram as contratações temporárias e eventuais, as jornadas e os horários flexíveis. Nesse processo de reestruturação, a empresa capitalista pri-vilegia, ao menos no plano do discurso, o trabalhador que demonstra ser capaz de iniciativa, criatividade, reatividade e flexibilidade. Essas políticas não ficam restritas ao setor privado, pois atingem igualmente o setor público e o trabalho de professoras e professores nas universidades.
Assim, as orientações gerenciais se organizam fundamentadas na perspectiva da racionalização, das variáveis econômicas e do controle sobre os trabalhadores. Elas respondem às lógicas empregadas pelos produtores do pensamento gerencial elaborado pelos escritórios de especialistas (think-tanks) internacionais e nacionais e dos altos dirigentes das empresas (Boltanski & Chiapelo, 1999). A ideologia é elaborada segundo um modelo social próprio, de acordo com o qual os atores são envolvidos pelos riscos, pelas normas e pela qualidade do trabalho. Há um padrão de racionalização – movido pelas noções de eficácia, eficiência e produtividade que funcionam como técnicas de controle social (Ianni, 1997) –que contamina todas as relações, os grupos e as instituições sociais públicas e privadas.
O Estado tem papel relevante na elaboração de projetos políticos que implicam em mudanças nas relações e na gestão do trabalho, tanto no setor público como no privado. Nos dois países o Estado mantém um papel de regulação das relações econômicas.
O setor público, tanto no Brasil como na França, tem incorporado os princípios e os métodos de gestão desenvolvidos no setor privado. Autores como Danièle Linhart (2009), Jean Pierre Durand (2004), Marie-Anne Dujarier (2006), Vicent de Gaulejac (2014), na França; e Roberto Heloani (2003), no Brasil, têm estudado sociologicamente o fenômeno, colocando em evidência a ideologia “gerencial”, bem como suas práticas na organização do trabalho e na racionalização das subjetividades.
As novas formas de gerenciamento aparecem associadas, nos dois países, à modernização que designa um conjunto de mudanças em diferentes esferas da vida social, em especial nas relações de trabalho e na organização de trabalhadores (as). Nessa direção é possível colocar em perspectiva comparativa os sentidos das novas formas de gerenciamento do trabalho e, em última instância, o sentido social desse processo de modernização que, tal como descrito, foi impulsionado pela ação do Estado no Brasil. E as marcas da herança histórica colonial engendraram um movimento contraditório, observado pelo crescimento da produtividade, mas com a manutenção das desigualdades sociais. As relações de gênero permanecem também desiguais, apesar de conquistas recentes nas relações de trabalho por parte das mulheres.
Os novos métodos de gestão do trabalho elaboram o discurso centrado na valorização das qualidades, das competências e da capacidade de iniciativa, de forma a criar condições para o envolvimento, como mobilização da subjetividade dos trabalhadores (as) singularmente considerados (as), individualizando-os (as).
A modernização aparece associada à concepção do trabalho com maiores competências, com maior engajamento da subjetividade e da individualização e a espaços hierárquicos mais reduzidos. É possível inferir que se trata, atualmente, de mobilizar cada professor para “fazer uso de si mesmo” da forma mais eficaz possível, segundo critérios selecionados. O referido espaço de autonomia nos discursos de gestão é fechado por objetivos fixados e acordados, procedimentos e métodos estandardizados e metodologias impostas. Autonomia contraditória, pois permite o controle do trabalho docente de forma que os professores aceitem a instrumentalização de sua atividade e de sua subjetividade. Esse controle se dá por meio de uma ofensiva ideológica e ética destinada a realizar o consentimento; mas também por meio da “desconstrução” ou do “desarmamento”, que toma a forma de um ataque às regras dos ofícios, dos conhecimentos e da experiência docente mediante a mudança permanente que conduz à precarização subjetiva (Linhart, 2015).
Observam-se inúmeras contradições, nas quais os professores enfrentam a maior eficácia nas formas de controle; os tênues limites entre tempos e espaços públicos e privados; a flexibilização do emprego, da jornada e dos tempos de trabalho. No Brasil, as evidências empíricas apontam que as intervenções do Estado nas relações de trabalho se dão na definição de normas que enfatizam, contraditoriamente, a desregulamentação, tornando o direito do trabalho mais flexível. O sentido geral das políticas públicas aponta para as relações de dominação liberal conservadora, com implicações negativas no mercado de trabalho, tais como a predominância de contratos temporários.
Embora nas universidades públicas brasileiras (assim como nas francesas) os concursos devam ser a única forma de ingresso na carreira docente, elas não abandonaram a forma de ingresso por processos seletivos. Esses processos[5] têm sido utilizados para recrutar professores com contratos de curta duração, emergenciais ou temporários, para substituir professores afastados ou para suprir postos de trabalho vagos; portanto, são empregos temporários. Em geral, as atividades dos professores temporários são as mesmas dos docentes efetivos, ou seja, todos se ocupam de ensino, pesquisa e extensão. Não há dados disponíveis até o momento sobre o número de professores temporários nas três universidades públicas brasileiras[6]. As contratações temporárias são realizadas para uma jornada de trabalho de 12 horas semanais de trabalho, equivalente ao Regime de Trabalho Parcial (RTP). Embora os contratos por tempo determinado, como necessidade de trabalho temporário de interesse público, sejam uma exceção disposta na Constituição Brasileira de 1988, na prática eles permanecem como política de emprego para a reposição de professores nas três universidades públicas.
No momento atual, a gestão do trabalho enfatiza o consentimento dos professores por meio de práticas de individualização, engajamento e respon-sabilização. Entretanto, é possível observar que os conflitos continuam numerosos, ainda que permaneçam frequentemente localizados. Trata-se de movimentos sociais, em especial sindicais, que questionam o papel, não apenas, das instituições políticas na estruturação do mercado de trabalho, mas também, da universidade pública. Há fortes evidências, nas pesquisas realizadas por Souza (2013a, 2013b), de resistências ao processo de racionalização técnica, isto é, à individualização, à precariedade e à flexibilidade das relações de trabalho. Essas resistências podem ser observadas pelo número de greves, grevistas e de jornadas não trabalhadas, a partir de meados da primeira década dos anos 2000 (Souza & Trópia, 2015). Autores como Armando Boito e Paula Marcelino (2010) afirmam que haveria um novo ciclo de greves, indicando uma vitalidade do movimento sindical no Brasil.
As mudanças na organização e nas condições de trabalho dos professores, no Brasil, são informadas pelas alterações nas relações de trabalho no setor público, historicamente flexíveis; entretanto, nestas três últimas décadas, houve uma ampliação da flexibilidade que afetou, sobremaneira, o trabalho e o emprego de professores (Venco, 2014; Souza, 2013a, 2013b). De forma geral, as relações de trabalho no setor público se expressam no campo político e jurídico, reforçando disputas e relações políticas e ideológicas, produzindo configurações grevistas diferenciadas entre o setor público e o privado. Se comparado com o setor privado, podemos afirmar que há, inclusive, um baixo grau de institucionalização das relações de trabalho no setor público, pois, ainda que, no Brasil, a Constituição Federal (1988) garanta o direito à sindicalização dos funcionários públicos, os governos não têm a obrigação legal de negociação coletiva e não há, portanto, acordos ou dissídios como os praticados no setor privado. A contrapartida às reivindicações sindicais dos funcionários públicos depende de encaminhamentos, pelos governos, de projetos de lei, decretos e outros dispositivos legais para as Assembleias Legislativas estaduais ou para o Congresso Nacional; e, portanto, os governos podem conduzir as reformas trabalhistas sem levar em conta os sindicatos. Ainda que negociação coletiva e direito à sindicalização de funcionários públicos sejam questões distintas, estão articuladas. Se ainda falta o reconheci-mento dos processos de negociação e convenções coletivas, também não foi conquistado pelos funcionários públicos o direito à greve (Souza & Trópia, 2015).
Na França, durante os últimos 30 anos, a paisagem sindical tem vivenciado constantes mudanças: de um lado, diminui a sindicalização operária; de outro, amplia-se a sindicalização nos quadros profissionais, concentrando o sindicalismo no setor público. Há um movimento de recomposição dos sindicatos, com a criação de novas organizações sindicais, como Solidaires, Fédération Syndicale Unitaire, entre outras. Além disso, novos atores coletivos surgiram, como os observatórios sobre o estresse e a mobilidade forçada, e os movimentos associativos, que renovam as formas clássicas de militantismo, das quais se destacam, entre os professores e pesquisadores, os movimentos Sauvons la recherche e Science en Marche.
No Brasil, multiplicam-se os contratos flexíveis e precários, mediante bolsas e programas de estágio docente, contratos temporários para substituição de professores; o trabalho docente se intensifica não somente em decorrência da supressão de postos de trabalho após a aposentadoria de professores, mas também pelas políticas de avaliação, que impõem um “produtivismo” acadêmico. O debate estabelecido no âmbito sindical –associações sindicais da USP, da UNICAMP e da UNESP tem apontado que o movimento de precarização, flexibi-lização e intensificação do trabalho tem conduzido a processos de adoecimento dos docentes e/ou a aposentadorias[7]. Também a pesquisa realizada por Waldemar Sguissardi e João dos Reis Silva Junior (2009) evidencia o mesmo movimento nas instituições de ensino superior públicas federais. O trabalho se torna permeável à precariedade e ao sofrimento relacionado à desagregação das respostas coletivas às agressões que os professores sofrem no trabalho.
Os professores se mobilizam o tempo todo para dar conta do trabalho solicitado, para conciliar as inúmeras atividades –docência, pesquisa, publicações, orientações, administração, entre outros– com objetivos de produtividade e qualidade, que lhes são impostos e nem sempre são compatíveis (Sguissardi & Silva Junior, 2009). É preciso dar provas, o tempo todo, de que são competentes e produtivos, pois são também constantemente avaliados, comparados e julgados. Nessa direção, o sentimento de fracasso se traduz em adoecimento e evidencia as incertezas que pesam sobre os professores, fundamentos do sentimento de precariedade vivenciado pelos professores.
“Nas universidades públicas brasileiras, a aplicação de métodos empresariais de produção, os quais implicam controle do trabalho por meio de sucessivas avaliações do professor, sempre vinculadas a critérios quantitativos, e a sobrecarga laboral relacionada a obrigações de ordem burocrática (tais como produção de diversos relatórios e projetos) e maior número de alunos, tem produzido forte impacto na saúde física e mental dos docentes. Pesquisas associam o produtivismo acadêmico ao estresse laboral”. (Pita, 2010: 14)
Na França, a precariedade atinge também os professores e os pesquisadores que trabalham nas instituições de ensino e pesquisa no setor público[8]. Os professores estáveis (titulaires) se dividem em professeurs e maîtres de conférences e trabal-ham nas universidades e nas grandes escolas; e, embora haja ainda professores assistentes, eles estão em vias de extinção. Os diretores e os encarregados de pesquisa que trabalham nos centros de pesquisa[9] possuem estabilidade no empre-go. Entre os efetivos há também os professores do ensino secundário alocados para trabalhar no ensino superior e o pessoal não docente[10] nas universidades e nos centros de pesquisas.
Os contratos temporários –Attaché temporaire d´enseignement et de recherche (ATER) – estão presentes nas atividades de ensino e de pesquisa; de forma geral envolvem doutorandos e pós-doutorandos com contratos com duração de um ano, renováveis por mais um ano para as atividades de ensino. Mais da metade dos temporários é de contratados para trabalhar em tempo parcial, mas podem ser empregados em tempo completo (192 horas-aula anuais), e seu salário corres-ponde a 2/3 do salário de maître de conférences. Os doutorandos (allocataires) podem receber, também, uma bolsa/salário concedida pelo Estado, equivalente ao salário mínimo (SMIC), por um período de até três anos, para desenvolver suas pesquisas e tese de doutoramento; e, neste caso, trabalham 64 horas de aula por ano e participam de programas de formação para a docência no ensino superior no Centro de Iniciação ao Ensino Superior (CIES). Os doutorandos podem usufruir de bolsas de estudo do setor privado, concedidas por meio da Convention Industrielle de Formation para la Recherche (CIFRE), para pesquisas de interesse das empresas financiadoras. Finalmente, há os vacataires do ensino ou “responsáveis por curso”, remunerados por hora, que podem ministrar aulas, e os vacataires trabalhando em laboratórios ou grupos de pesquisa com atividades pontuais. Portanto, há uma miríade de empregos precários nas universidades públicas francesas (Geay, 2009, 2013; Musselin, 2008; P.È.C.R.E.S, 2011).
Desde 2007, há uma reforma universitária em curso na França. Iniciada no governo de Nicolas Sarkozy (de maio de 2007 a maio de 2012, do Partido União por um Movimento Popular/ UMP) e se manteve no governo de François Hollande (de 2012 até, do Partido Socialista/PS). Em 2007 foi aprovada a Loi Libertés et Responsabilités (LRU) que, segundo o sindicato majoritário da Educação Superior (SNESup-FSU), ao invés de assegurar autonomia e independência às univer-sidades, contraditoriamente reforçou sua dependência em relação ao governo, pois, por essa lei, elas são responsáveis pela gestão acadêmica e financeira (salários e patrimônio). Como não há vinculação de impostos para a organização dos orçamentos das universidades, e foi mantido o percentual de recursos já alocados no ano anterior, a lei obrigou-as a reduzir consideravelmente os postos de trabalho. Tal redução conduziu a uma crise do emprego “científico”, pois não foram repostos os postos de trabalho vagos decorrentes de aposentadorias e de transferências. A estimativa é de que mil e quinhentos postos tenham sido suprimidos (Geay, 2009). Simultaneamente, privilegiaram-se as avaliações de desempenho dos professores realizadas internamente pelos pares (op.cit). De janeiro a maio de 2009, os professores e os pesquisadores realizaram uma greve contra a reforma em curso e os decretos de “ajustamento da LRU” expressos na modularização do trabalho docente. Por essa lei, as universidades priorizariam a atividade de ensino em detrimento da atividade de pesquisa, o que, segundo os professores entrevistados, levou à supressão de postos de trabalho. Pela modularização, cada professor poderia trabalhar em tempo completo com atividades de ensino (192 horas-aula por ano). Os professores que eram avaliados por seus pares como “não publicantes” deveriam, pela modularização, trabalhar duas vezes mais em sala de aula que seus colegas “publicantes”. Segundo cálculos divulgados pelo jornal Le Monde (2 de dezembro de 2013), a atividade de ensino ocuparia 800 horas por ano (e não as 192 dispostas na modularização), pois cada aula envolve mais 4 horas para preparação, estudo, exames, correção, entre outras atividades. De um lado, a ministra da educação superior dizia que os “preguiçosos são incapazes e inaceitáveis”; por outro os sindicatos denunciavam a queda na qualidade do ensino e da pesquisa na universidade.
“Para o SNESup, ‘o risco é que se uma parte dos professores aceitam trabalhar mais horas na sala de aula. Se eles se afastam por muito tempo da pesquisa, será quase impossível retornar. Não se pode ensinar sem pesquisa, sem considerar o nível de ensino será um mau professor, simplesmente prolongamento do ensino médio.’ [destaques no original]. (Le Monde, 02 de dezembro de 2013).
A greve realizada em 2009 contou com a participação de vários sindicatos (FSU, Unsa, CGT, FO, Unef, FSE e SUD), numa coordenação nacional das universidades (CNU), dos dois movimentos –Sauvons l´université (SLU) e Savons la recherche (SLR)– e de associações científicas. Essa ampla participação levou autores como Geay (2009, 2013) a considerarem que esse movimento foi o de mais forte mobilização depois de maio de 1968.
Em 2013, com o governo socialista de François Hollande, o processo de reforma continuou: de um lado, LRU se manteve; e, de outro, novos dispositivos legais foram aprovados. As resistências, entretanto, continuaram, algumas ações coletivas foram realizadas em maio de 2013 contra a reforma preconizada pela ministra do ensino superior, Geneviève Fioraso[11]. Uma das reivindicações dos movimentos de 2013 era a efetivação de todos os professores precários, mas tal demanda não foi atendida. As reformas avançaram com a implementação, em 2013, das Communautés d´Universités et Établissement (COMUEs), que reagru-param estabelecimentos de ensino superior e pesquisa e substituíram os Pôles de Recherche et d´Enseignement Supérieur (PRES) criados em 2006. O objetivo das COMUEs é promover a constituição de estruturas de excelência, de acordo com a determinação do “Tratado de Lisboa”, elaborado em 2009. A implementação das COMUEs, ao reunir as universidades por “vocação científica” no ensino e na pesquisa, levou também à extinção de postos de trabalhos e ao fechamento de laboratórios de pesquisas que não tinham financiamento privado ou público.
Relevante indicar que as tradições universitárias em ambos os países também se diferenciam. No Brasil, poderíamos afirmar que predomina uma tradição humboldtiana, isto é, as universidades reúnem diferentes faculdades e institutos, distintos campos de conhecimento, e os professores desenvolvem simultane-amente atividades de ensino e pesquisa. Na França há um modelo diferente desse, denominado por Musselin (2008) como “napoleônico”, em que predominam as atividades concernentes ao ensino e à outorga de diplomas. É muito recente o processo de incorporação da pesquisa ao trabalho docente nas universidades, pois ele era desenvolvido prioritariamente nos centros de pesquisa. Mas os dois países estão transformando as formas de gestão, os estatutos profissionais, as atividades e as formas de avaliação dos docentes. Essas mudanças na França vêm sendo evidenciadas desde os anos 1980, com: (a) as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para o ensino superior; (b) o Acordo de Bologna (estabelecimento do espaço europeu do ensino superior); (c) a legislação do ministro Claude Allègre sobre inovação em 1998; (d) o estabelecimento do modelo Licence-Master-Doctorat (LDM); e, finalmente, (e) a reforma geral das políticas públicas[12].
Como observado nas páginas anteriores, a noção de precariedade remete aos empregos inseguros em razão da duração de contratos e da não garantia de direitos trabalhistas. Trata-se de contratos temporários, contratos de estágio, de bolsistas, de eventuais, entre outros, no Brasil e na França. Os professores que possuem empregos estáveis como funcionários do Estado vivenciam também a precariedade como sentimento de isolamento, de não atingir as metas e os objetivos exigidos pelas avaliações.
De um lado, os professores universitários –no Brasil e na França– são considerados, pela mídia e pela opinião pública, privilegiados, que trabalham pouco, com menor duração semanal do trabalho e com menores exigências trabalhistas. Por outro lado, os professores pesquisados apontam, cada vez mais, penosidades no trabalho docente; ou seja, dificuldades para fazer o ofício, para dominar ou domesticar as lógicas profissionais diferentes daquelas que inscrevem o trabalho intelectual, diferentes dos registros de valores e de sentidos da docência. Embora as penosidades sempre tenham feito parte do mundo do trabalho, atualmente adquirem novos contornos, pois atacam o sentido do oficio docente (Fortino & Linhart, 2011; Fortino, 2013).
No final de julho de 2011, um grupo de pesquisadores franceses lançou o movimento slow science, com a chamada “Apressemo-nos para diminuir a marcha!”. Slow science, em oposição à fast science, que privilegia a quantidade sobre a qualidade. O manifesto, assinado por Candau[13], conclamava os colegas para pararem a corrida. E chamava a atenção para o fato de que pesquisar, refletir, ler e escrever exige tempo, um tempo que vem sendo cada vez menor, pela pressão social que promove uma cultura do imediato e da urgência, com projetos desenvolvidos em ritmo cada vez mais rápido. E aqueles que não se submetem a esse ritmo são considerados preguiçosos, como pode ser observado no discurso da ministra do ensino superior. Pesquisa realizada por Sguissardi e Silva Junior (2009) evidencia o mesmo processo no Brasil nas universidades públicas federais.
As mudanças nas formas de emprego são um dos fenômenos observados juntamente com a intensificação e a complexificação das relações de trabalho, nas quais se evidencia um processo crescente de individualização do professor, fragilizando-o socialmente. Essas mudanças se manifestam, em particular, no que se refere à multiplicação das formas precárias de trabalho e emprego no setor público e privado. As modalidades contemporâneas da modernização do trabalho permitem indicar que o significado oculto do sofrimento dos professores pode estar contido ora nas formas de consentimento, ora nas formas de resistência às mudanças em curso nas condições de trabalho e na qualidade de vida.
Há similitudes e diferenças nas ações institucionais e políticas nos dois países (Brasil e França), no que se refere ao papel do Estado nas mudanças observadas nas relações de trabalho.
No contexto francês, tradicionalmente, o Estado esteve presente na vida política e econômica da nação, de forma a preservar os chamados valores republicanos. No entanto, no presente é possível observar mudanças de sentido nos processos de racionalização de sua ação (King & Le Galès, 2011). Exemplo relevante dessa dinâmica reside na racionalização da função pública, expressa na revisão geral das políticas públicas em 2007 –La révision génerale des politiques publiques (RGPP)–, instaurada com o objetivo de determinar as ações nomeadas “modernização” nas diversas áreas de intervenção do Estado e da economia. Dentre os objetivos da lei citada, foi proposta a diminuição do emprego de funcionários públicos (uma contratação a cada dois aposentados)[14]. Já antecipando o processo de reforma do Estado, foi elaborada, em 2001, a lei orgânica relativa às finanças –La Loi Organique relative à Loi de Finances (LOLF)–, que transformou radicalmente as regras sobre orçamentos e contabilidade do Estado, com o objetivo de implementar a cultura da produção por resultados considerados eficazes – “performances positivas” –nos serviços públicos. Vários dispositivos e repertórios da reforma foram colocados em prática com o propósito de instaurar o nomeado new management public (Bezès & Demazière, 2011; Dreyfus, 2010; Ferlie, Ashburner, Fitzgerald, & Pettigrew, 1996). As reformas indicam que há recom-posição e redirecionamento do Estado no financiamento de políticas públicas.
No campo da educação na França, as mudanças observadas nas diretrizes políticas do Estado aceleradas desde o começo deste século XXI foram implantadas por meio de medidas legislativas e financeiras. A lei orgânica relativa à lei de finanças (LOLF), que determina as responsabilidades políticas e administrativas do ensino e da pesquisa, se inspirou em grandes princípios da administração pública e na adoção do new management public.
Mais recentemente, esse movimento atingiu as universidades francesas com as duas grandes reformas: Loi Libertés et Responsabilités (LRU), de 2007, e as Communautés d´Universités et Établissement (COMUEs), de 2013. Ambas expressam, na mesma direção política, novos critérios orçamentários de transferência, para a universidade, da gestão dos salários e do patrimônio, o que a obrigou a reduzir o número de postos de trabalho.
Do processo de reforma da universidade emergiu a criação de duas agências francesas: a primeira para financiamento da pesquisa mediante editais -a Agence Nationale de la Recherche (ANR)– e a segunda para avaliar o trabalho de profe-ssores e pesquisadores: Agence d´Evaluation de la Recherche et l´Enseignement Supérieur (AERES). A reestruturação das universidades, tal como informada, expressa três eixos, todos eles convergentes no que tange à organização e às relações de trabalho sob a égide das novas formas de gestão: (1) os agrupamentos universitários como espaços de articulação da pesquisa e do ensino; (2) a avaliação e as decisões sobre a alocação de recursos financeiros que permitem diferenciar os níveis de excelência e expertise; (3) o papel estratégico do Estado, definindo orientações e objetivos para a pesquisa e a formação (Chevaillier & Musselin, 2014).
Esse conjunto de medidas suscitou resistências por parte de estudantes, professores e pesquisadores, que questionavam a perda de autonomia no exercício do trabalho docente, as avaliações nacionais quadrienais, as decisões locais quanto à forma modular de organização do trabalho e da avaliação da carreira.
O depoimento seguinte, de uma professora francesa de Sociologia da Educação, evidencia que o trabalho docente adquire novos contornos que atingem o sentido do oficio:
Eu me lembro que a primeira vez que enviamos nossa “maquete”, todas as “maquetes” de Ciências da Educação de ..., elas foram recusadas pelo Ministério devido ao fato de que não havíamos obtido bons resultados na graduação, etc. Eu me lembro que eu, verdadeiramente, entrei em pânico, eu havia passado todo o final de semana ... então o sistema vai e vem com o Ministério, devíamos responder às críticas. Eu me lembro que eu tinha respondido às críticas na sociologia da escola, eu havia mostrado que tínhamos um público muito desfavorecido, que em Ciências da Educação temos pessoas de meios muito populares, que por vezes retomavam os estudos, que não tinham tido uma escolarização normal, eu havia mostrado mediante números para argumentar que tínhamos boas taxas de sucesso considerando o público com o qual trabalhávamos. Eu passei um final de semana inteiro, eu estava inquieta. O reitor encontrou um responsável político, eu não sei quem, mas todos os mestrados foram aprovados. Tivemos a impressão que o reitor influiu na decisão por meio político, e que todos nós, que todo o trabalho que havíamos feito .... O processo de avaliação é muito custoso em tempo e energia e não serve para grande coisa. (28 de janeiro de 2015).
Nos contextos apresentados, observa-se que a nomeada modernização das diretrizes do Estado transformou as formas de organização do trabalho e suas relações, bem como a mobilização dos trabalhadores assalariados, notadamente no setor público (Durand, 2004; Fortino, 2013; Linhart, 2007a, 2007b, 2009).
O termo “modernização”, tanto no Brasil como na França, tem sido utilizado para designar um conjunto de mudanças nas relações de trabalho, na organização dos trabalhadores, bem como na ação pública do Estado. Nos dois países, a ação estatal foi relevante para impulsionar as políticas de emprego e trabalho nas universidades; entretanto, no Brasil esse processo é herdeiro da história colonial e das orientações de política dos organismos financeiros internacionais. Tal dinâmica apresenta características que adquirem sentido no movimento de mundialização e tem sido acompanhada de políticas públicas essencialmente focalizadas em demandas e na responsabilização individual. O papel do Estado na organização, na gestão e no financiamento das universidades tem sido confrontado com processos de privatização da esfera estatal para torná-la mais eficaz e eficiente como sinônimo de modernização.
Assim, tanto no Brasil como na França, instala-se a concepção gerencial de Estado, que pode ser observada nas formulações das políticas públicas referentes ao trabalho e à educação e nas intervenções nelas operadas. A reorganização dos marcos institucionais e das atividades do Estado brasileiro foi (e continua sendo) homogeneizada por um conjunto de práticas e ideias denominado gerencialismo ou new management public. A reforma do Estado, no Brasil, foi conduzida pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado (MARE), na gestão do então presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), tendo como ministro e condutor da Reforma o professor Luiz Carlos Bresser Pereira (1995-1999).
A reforma objetiva a construção de um modelo de Estado Social-Liberal que
“continuará a proteger os direitos sociais e prover o desenvolvimento econômico, porque o fará usando mais os controles do mercado e menos os controles administrativos, porque realizará seus serviços sociais e científicos principalmente através de organizações públicas não-estatais competitivas, por que tornará os mercados de trabalho mais flexíveis, porque promoverá a capacitação de seus recursos humanos e de suas empresas para a inovação e a competição internacional” (Bresser Pereira, 1998: 59-60).
A reforma do Estado brasileiro delimitava as novas funções e apontava para (a) a redução do seu tamanho –principalmente quanto ao número de funcionários públi-cos– em razão de programas de privatização, terceirização e “publicização”[15] ; (b) a redução do grau de interferência do Estado por meio de programas de desre-gulação que possibilitassem mecanismos de controle, via mercado; (c) o fortale-cimento da nomeada governança[16] do Estado decorrente de ajustes fiscais, admi-nistração pública gerencial (new management public), separação da formula-ção e execução de políticas e das atividades “exclusivas” de Estado[17]; (d) o fortaleci-mento do poder do governo, nomeado “governabilidade”[18], com a colaboração de instituições de intermediação de interesses.
Ao delimitar as áreas de atuação do Estado, a educação (escolas, universidades, centros de pesquisa científica e tecnológica) é considerada como “serviço” não exclusivo do Estado. Nessa direção, o “serviço” educacional poderia ser transferido para instituições não estatais, com ou sem subsídios públicos. A universidade, na concepção dos reformistas, desenvolve atividades consideradas competitivas, que podem ser controladas tanto pela administração pública gerencial (new management public) quanto pela constituição dos nomeados “quase-mercados”. A reforma do Estado implicou na transferência de serviços públicos para o chamado terceiro setor, que compreende diferentes figuras jurídicas: fundações, organizações não governamentais (ONG), organizações sociais (OS), organizações da sociedade civil de interesse social (OSCIP) e organizações voluntárias. No Brasil, as entidades públicas de direito privado realizam contratos de gestão com o Estado e podem ser financiadas parcial ou totalmente pelo poder público, frequentemente captando recursos por meio dos mecanismos jurídicos apoiados na renúncia fiscal. Assim, a Organização Social (OS) é considerada, pelos reformistas, mais eficaz para gerir
“entidades de serviço quase estatais ou públicas não estatais de um tipo especial, que farão parte do orçamento do Estado, mas não do aparelho do Estado, e, portanto, não empregarão servidores públicos estatutários” (Bresser Pereira, 1997: 317).
As mudanças nas relações de trabalho implicam, também, na não contratação de trabalhadores nas instituições públicas por meio do Estatuto do Funcionário Público, em nome da eficiência do Estado. As universidades públicas do estado de São Paulo, além de contratar professores pelo Estatuto, podem contratá-los também pelo código do trabalho do setor privado (Consolidação das Leis do Trabalho – CLT).
As relações de trabalho no setor público brasileiro se subdividem em dois regimes jurídicos: funcionários e empregados públicos, de acordo com a emenda constitucional n.o 19/1998. Os funcionários públicos estatutários são contratados mediante concurso público e possuem carreiras de Estado; os empregados públicos são contratados mediante seleção pública e submetidos ao código de trabalho, de forma semelhante à do setor privado. Essas mudanças são acompanhadas de forte e constante campanha midiática de desqualificação dos trabalhadores no setor público: “trabalha pouco, é ineficiente e tem direitos excessivos”.
Portanto, a reforma do Estado no Brasil apresenta similitudes com o processo de modernização do Estado francês. No entanto, há que se destacar que as diferenças são visíveis quando observamos a história da consolidação da democracia nos dois países. A sociedade brasileira tem vivenciado períodos demo-cráticos relativamente curtos, e, de forma geral, buscou-se estabilidade política por meio de métodos não democráticos e práticas de clientelismo político que recorrem frequentemente à corrupção, inclusive no presente momento histórico. O Brasil, historicamente, é caracterizado por um “hibridismo institucional”, na leitura de Wanderley Guilherme dos Santos (1992). A insuficiência de dispositivos legais dificulta (ou dificultou) o acesso aos direitos sociais, tal como o emprego protegido (formal) e a igualdade de renda. O Brasil é uma democracia recente, na qual o discurso da eficiência contamina diferentes dimensões da vida social, ocultando ideologicamente suas reais perspectivas, sintetizadas no enunciado new management public.
A pesquisa aponta que a precariedade no trabalho –professores estáveis e temporários– é fonte de insegurança, fragilidade e dependência e adquire diferentes contornos tanto no Brasil como na França. Portanto, é possível compreender a existência de um processo de precarização que coloca os professores diante de um eterno recomeço do ofício do processo de construção das “boas práticas e métodos de trabalho desejados” na universidade. O gerenciamento moderno do trabalho, no setor público e nas universidades, preconiza a mudança permanente para adaptar as estruturas e a organização da universidade à lógica de mercado e às formas de gestão do trabalho no setor privado. Essas mudanças levam os professores a se movimentar num relativo constrangimento, desconforto e inquietude, num quadro de individua-lização do trabalho e da carreira docente, de concorrência e competição por financiamentos de pesquisa, por meio de objetivos e avaliações personalizadas. Os professores não mais se beneficiam de sua experiência e conhecimento sobre seu trabalho –pesquisa e ensino. Parece haver, como na lenda de Sísifo, a eterna aprendizagem para enfrentar as provas às quais os docentes estão submetidos. Vivem a angústia de estar em falta, de ver degradar-se a sua imagem como profissionais que querem ser reconhecidos pelo trabalho que realizam.
Cómo citar: NERI DE SOUZA, A (2017) “Trabalho docente em Universidades Públicas -
olhares cruzados: Brasil e França”, en Espacios
en Blanco. Revista de Educación, núm. 27, junio 2017, pp. 63-85.
Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Buenos Aires,
Argentina