Resumo: Analisamos neste trabalho alguns pressupostos da pedagogia das aparências e da pedagogia científica a partir de obras de Bachelard (1996; 2001) e de alguns comentadores (Pêpe, 1985; Costa, 2012; Fonseca, 2008). Nossa intenção é abstrair de tal estudo teórico-bibliográfico algumas categorias que possam servir de referencial para a discussão de perspectivas quanto às políticas educacionais e as práticas educativas. Ao analisarmos a pedagogia das aparências e a pedagogia científica na perspectiva bachelardiana, acreditamos que seja possível abstrair elementos produtivos para os estudos epistemológicos das políticas educacionais. Dessa forma, compreendemos que a pedagogia científica de Bachelard coloca-se como suporte para que tais políticas sejam produzidas e compreendidas com maior clareza e dessa forma abrir novas perspectivas de discussão para discutir a docência em sua complexidade.
Palavras-chave:Pedagogia bachelardianaPedagogia bachelardiana, epistemología epistemología, política educacional política educacional.
Abstract: We analyzed in this paper some of the presuppositions of the pedagogy of appearances and the scientific pedagogy from works of Bachelard (1996; 2001) and some commentators (Pêpe, 1985; Costa, 2012; Fonseca, 2008). Our intention is to such theoretical and bibliographical study some categories that can serve as reference to discuss perspectives on the educational policies and the educational practices. When analyzing the pedagogy of appearances and the scientific pedagogy in Bachelard's perspective, we believe that it is possible to productive elements to the epistemological studies of educational policies. Thus, we understand that the scientific pedagogy Bachelard is placed as a support for such policies to be produced and understood more clearly and thus open up new perspectives for discussion to discuss teaching in its complexity
Keywords: Bachelardian pedagogy, epistemology, educational politics.
Artículos
Bachelard e a negação à pedagogia das aparências: proposições para a construção de uma pedagogia científica
Bachelard and the denial of appearances pedagogy: Propositions for the construction of a scientific pedagogy

Recepção: 15 Agosto 2016
Aprovação: 21 Setembro 2016
O campo da educação é constantemente permeado por receituários que ratificam a presença do senso comum na condução da atividade docente. É muito comum ouvirmos algo como “o problema da educação é a indisciplina” ou “o problema da educação é a falta de tecnologias”. Concordamos que tanto a disciplina como a presença das tecnologias nas escolas poderiam contribuir, de alguma forma, para a qualificação do processo educativo. Porém, escolas com alunos disciplinados e modernos laboratórios de informática não seriam o suficiente para dar conta de resolver todos os problemas da educação.
Em contraponto a esses problemas comuns, por vezes oriundos de um realismo ingênuo[1], encontramos na obra de Gaston Bachelard uma postura investigativa arraigada em uma filosofia pluralista das noções científicas. Como o próprio Bachelard (1996) esclarece, ensinar não é uma função monótona, que induz alunos e professores a aderirem às convicções rápidas, estáticas, cômodas e até engañadoras. Ensinar exige a adoção de uma pedagogia científica, problematizadora e esclarecedora.
A partir dessa compreensão, propomonos, neste trabalho, ancorados nas obras de Bachelard e alguns comentadores (Pêpe, 1985; Costa, 2012; Fonseca, 2008), a analisar as possibilidades de constituir uma “pedagogia científica” em detrimento de uma “ciência do senso comum” ou “pedagogia das aparências”. Nosso estudo orientar-se á na perspectiva de abstrair da oposição entre essas duas categorias elementos que possam abrir perspectivas de discussão e, com isso, contribuir para os estudos teórico epistemológicos da política educativa das práticas docentes.
Entendemos que a escolha do pensamento bachelardiano para amparar essa discussão é oportuna, pois o autor desenvolve uma reflexão muito diversificada sobre a ciência, que extrapola a forma como esta é tratada nos manuais de história e filosofia da ciência. Bachelard (1996) posiciona-se criticamente frente às concepções continuístas da história das ciências, pois, para ele, o desenvolvimento da ciência e o progresso científico não se dá de forma linear e sim por rupturas, ou seja, por um permanente processo de retificação dos conhecimentos anteriores. Dessa forma, compreende-se que a ciência não é, pois, um conhecimento absoluto, rígido, pré-formatado, portador de certezas; o acontecer da ciência se faz por um processo cada vez mais aproximado do sentido profundo da natureza.
O fazer científico, portanto, se dá num processo e a ciência tem possibilidade de progredir por meio de rupturas, essa talvez seja uma das principais ideias de Bachelard (1996). O conceito de “ruptura” implica afastar do processo investigativo a influência do senso comum, que conduz a uma compreensão ingênua, tanto quanto de práticas científicas centradas nos enfoques estritamente racionalistas positivistas. Assim, Bachelard propõe uma pedagogia do pensamento complexo, reafirmando a necessidade de sempre reler o simples sob o múltiplo e a partir de uma visão de complexidade.
Nesse sentido, na construção de objetos de pesquisa, há de se considerar que eles sempre se apresentam como um complexo tecido de relações e para apreendê-lo, tanto o pensamento quanto os métodos, necessitam exercitar processos dialéticos de aproximação. Para Bachelard (1996), o fazer científico apoia-se essencialmente na retificação do saber e nas categorias históricas críticas, apreendendo o mundo social e os objetos do conhecimento nas suas múltiplas relações, interações e complexidades.
Dessa forma, conduziremos nosso estudo tentando elucidar a oposição entre essas duas categorias identificadas na obra de Bachelard e, a partir desse confrontamento, abrir perspectivas para discutir tanto a pesquisa no âmbito das políticas educacionais quanto às práticas educativas. Acreditamos que os fundamentos epistemológicos centrados nos pressupostos da pedagogia científica inovam o fazer científico e o pensamento pedagógico, cooperando, dessa forma, para a construção de um novo espírito científico e para a negação à “pedagogia das aparências”.
O trabalho dos professores, como bem descreve Giroux (2001), enquanto trabalho intelectual, deve desenvolver um conhecimento sobre o ensino que reconheça e questione sua natureza socialmente construída e o modo pelo qual se relaciona com a ordem social. Além disso, deve proporcionar uma leitura de análises e possibilidades transformadoras, implícitas no contexto social das aulas e do ensino. Deve estar contextualizado social e historicamente.
Um discurso isolado de sua contextualização tende a transformar-se em um discurso de opinião. Um discurso de opinião, por sua vez, não passará de um discurso superficial. Bachelard (2001) é pontual em relação a essa postura pedagógica. Para ele, a opinião pensa mal, pois se atem a um “olhar de superfície”. Ao designar os objetos pela sua utilidade, coíbe-se de os conhecer. Dessa forma, a opinião coloca-se diante do professor/pesquisador como o primeiro obstáculo a ser superado, pois conduz à construção de um conhecimento falso, alicerçado em respostas e não em perguntas.
Sobre esse aspecto Bachelard (2001) apresenta a seguinte consideração:
Chega uma altura em que o espírito gosta mais daquilo que confirma o seu saber do que daquilo que o contradiz, prefere as respostas às perguntas. [...] É esse o risco de o professor ensinar sempre as respostas certas. Na pedagogia científica, o erro se instrui a partir de uma dinâmica pedagógica que coloque o conhecimento em permanente estado de crise, criando sempre a necessidade de retificar-se (p.167).
A afirmação é sustentada pelo fato de que a atividade intelectual se dá em ambiente de dúvida e inquietação. Sendo assim, todas as práticas científicas e pedagógicas devem estar lastreadas por essas características, pois, para ele, “o dogmatismo desconstrói toda criatividade e gera uma paralisia mental” (p.167). Dessa forma, o professor em sua prática pedagógica deve assumir o papel de alguém que menos ensina e mais desperta, estimula, provoca, questiona e, por sua vez, também se deixa questionar. Somente adotando essa postura, seria possível avançar na construção de um conhecimento científico.
Bachelard (1996) nos ajuda compreender que o processo de ruptura com as aparências não é feito de uma única vez, como um salto que nos permitisse passar do conhecimento comum ao conhecimento científico. O conhecimento comum, en-tendido como um primeiro obstáculo epistemológico, nunca será superado por completo. Por isso, faz-se necessária uma constante vigilância epistemológica[2] em contraponto às falsas “ideias claras” do realismo ingênuo do senso comum.
Podemos dizer que a indicação de Bachelard para que se faça presente a vigilância epistemológica frente ao conhecimento do senso comum e dos conhecimentos historicamente produzidos pela própria ciência, poderia estar associada à necessidade da presença da teoria no processo de análise dos estudos epistemológicos em política educacional. Sobre este aspecto, Fávero e Tonieto (2015), em um ensaio intitulado “O lugar da teoria nas pesquisas em política educacional”, indicaram os riscos e a fragilização das concepções de conhecimento decorrentes do recuo da teoria nos processos de formação de professores e pesquisadores em políticas educacionais. Na mesma direção, Shiroma (2003) ressalta que o recuo da teoria produz um visível fenômeno “da penetração do gerencialismo na educação”, uma “desintelectualização do professor” e uma “despolitização de sua formação” (p.71).
A atitude de “vigilância epistemológica” também defendida por Bachelard (1996), a denúncia do “recuo da teoria” feita por Moraes (2003) e “o lugar da teoria na pesquisa em política educacional” feita por Fávero e Tonieto (2015) justificam a constante necessidade da rejeição de certezas e de saberes já estabelecidos, inclusive aqueles que de tão instituídos já se tornaram irrecusáveis. Ao mesmo tempo, tais atitudes implicam o constante interrogar, o “direito à surpresa” em relação ao dado, de modo que a evidência empírica não seja suficiente para fixar postulados, tecer receituários e justificar os problemas da educação.
Para corroborar com a proposta bachelardiana de negação às aparências, consideramos importante destacar os estudos de Trevisan (2011), também em relação ao tencionamento entre a teoria e a prática. Para o autor, apesar de estarmos inseridos na complexidade de uma sociedade que escolheu viver a partir da modernidade, sob o primado da prática, a formação do professor não pode ficar refém de uma “pretensa teoria”. Menos ainda, atenta Trevisan, do lado da simples prática, o que seria apenas uma forma de tencionar o problema sem oferecer-lhe uma solução.
Isso não significa que devemos negar ou afastar a prática do processo investigativo, mas sim contextualiza-la, problematizando os resultados com suporte na teoria. Mais uma vez se faz necessário o conceito de vigilância epistemológica, ou seja, a necessidade de permanecer em estado constante de reflexão crítica sobre os obstáculos epistemológicos para não correr o risco de manter-se refém de crenças, ideologias, opiniões e seduzido por certezas superficiais.
Bachelard (1996) deixa claro sua preocupação com essas “seduções da facilidade”.
Há de fato um perigoso prazer intelectual na generalização apressada e fácil. A psicanálise do conhecimento objetivo deve examinar com cuidado todas as seduções da facilidade. Só com essa condição pode-se chegar a uma teoria da abstração científica verdadeiramente sadia e dinámica (p. 69).
A generalização apressada e fácil, conforme descreve o autor, coloca-se num plano associada a três distintos interesses, que sistematicamente agregam valor semân-tico à expressão pedagogia das aparências. O primeiro deles chamará de alma pueril ou mundana. Essa contempla os interesses pela curiosidade ingênua, “cheia de assombro diante do mínimo fenômeno instrumen-tado, brincando com a física para se distrair e conseguir um pretexto para uma atitude séria”. Bachelard considera essa postura passiva até na “felicidade de pensar”.
Em relação ao segundo interesse, tem-se a alma professoral.
Coisa de seu dogmatismo, imóvel na sua primeira abstração, fixada para sempre nos êxitos escolares da juventude, repetindo ano após ano o seu saber, impondo suas demonstrações, voltada para o interesse dedutivo, sustentáculo tão cômodo da autoridade, ensinando seu empregado como fazia Descartes, ou dando aula a qualquer burguês como faz o professor concursado (p.12).
Não menos importante está o terceiro interesse registrado por Bachelard, o que classifica como a alma com dificuldade de abstrair e de chegar à quintessência ou também como um conhecimento pré-científico. Sobre esse interesse, entre outras atribuições, vai chamar de “consciência científica dolorosa”.
Consciência científica dolorosa, entregue aos interesses dedutivos sempre imperfeitos, no ariscado jogo do pensamento sem suporte experimental estável; perturbada a todo momento pelas objeções da razão, pondo sempre em dúvida o direto particular da abstração, mas absolutamente segura de que a abstração é um dever, o dever científico, a posse enfim purificada do pensamento do mundo (p.13).
Dessa forma, o desafio que se coloca frente à filosofia científica é o de psicanalisar o interesse, derrubar qualquer utilitarismo por mais disfarçado que se constitua, por mais elevado que se julgue e por mais aceito que o seja. É preciso “voltar o espírito do real para o artificial, do natural para o humano, da representação para a abstração” (p.13).
Análogo a muitas dessas categorias do pensamento bachelardiano, Becker (1993) considera que pela ausência de reflexão epistemológica, o professor acaba assumindo as noções do senso comum. Sendo assim, o conhecimento acaba sendo concebido como um ajuste ou uma adaptação. Essa concepção, conforme o autor, é oriunda de uma vivência ou de uma experiência de vida.
Além disso, também ao encontro da alma professoral descrita por Bachelard, Becker considera que não é possível chegar até o aluno e intervir positivamente na sua capacidade de aprender, a partir de simples treinamentos, modificando téc-nicas ou propondo "macetes". A exemplo de Bachelard (1996), o autor atenta para a necessidade de se produzir um amplo processo de reflexão epistemológica no qual os "formadores" se deem conta de que nada de significativo acontecerá enquanto não romperem com as concepções imediatistas de conhecimento e de aprendizagem que vigoram em nossas escolas.
A crítica de Bachelard a essas concepções imediatistas de formação do conhe-cimento é tão grande e claramente estampada em sua obra. Ao longo de A formação do espírito científico, por exemplo, usa duras palavras para tecer sua crítica às “aparências científicas”. Muitas delas já resgatadas por Costa (2012), as quais também compartilhamos: “aspecto mundano da ciência”, “implantação de uma era da facilidade”, “preguiça intelectual”, “‘ciência fácil”, “afastada dos cálculos e dos teoremas”, “contradições empíricas”, “espetáculo de curiosidades”, “causar assombro”, “folclore”, “pitoresco”, “público frívolo”, “ficções científicas”, “regre-ssões infantis”, “imagens tão simplistas”, “falsos centros de interesse”, “raciona-lizações apressadas” (Bachelard, 1996: 36-52).
Ao introduzir o terceiro capítulo de A formação do espírito científico, Bachelard deixa clara a preocupação em combater a pedagogia das aparências.
Nada prejudicou tanto o progresso do conhecimento científico quanto a falsa doutrina do geral, que dominou de Aristóteles a Bacon, inclusive, e que continua sendo, para muitos, uma doutrina fundamental do saber. [...] Vamos tentar mostrar que a ciência do geral sempre é uma suspenção da experiência, um fracasso do empirismo inventivo. Conhecer o fenômeno geral, valer-se dele para tudo compreender, não será, semelhante à outra decadência, ‘gozar, como a multidão, do mito inerente a toda banalidade’? Há de fato um perigoso prazer intelectual na generalização apressada e fácil (P. 69).
A partir do pensamento bachelardiano a respeito da ciência e da pedagogia, pode-se atestar que um dos principais objetivos da pedagogia seria o de opor-se ao pensamento que se satisfaz com o “simples acordo verbal das definições”. Ou seja, o pensamento que se alimenta das concepções imediatistas sobre ciência e conhecimento. Um pensamento que nos dizeres de Boaventura de Souza Santos (2000), é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo coletivamente acredita. Dessa forma, em “sociedade de classes” como é em geral a sociedade conformada pela ciência moderna, tal vocação acaba por assumir um viés conservador e preconceituoso. Por sua vez, esse viés constitui-se como elemento reconciliador da consciência com a injustiça. Mais que isso, naturaliza as desigualdades e mistifica o desejo de transformação.
Para Bachelard (1996) não custa à Pedagogia mostrar que todos os fatos gerais isolados revelam-se inconsistentes. É nesse mesmo sentido que Freire (2011) tece sua crítica ao crescente distanciamento entre a prática educativa e o exercício da curiosidade epistemológica. Para o autor, a curiosidade alcançada por uma prática educativa reduzida à pura técnica corre o grande risco de ser uma curiosidade castrada, que não é capaz de alcançar uma posição crítica diante do mundo.
Assim, a pedagogia das aparências coloca-se como obstáculo a ser superado para consolidação da pedagogia científica. Isso não significa que devemos negá-la, mas sim contextualizá-la, integrá-la ao processo investigativo de modo que se possa elucidar o novo conhecimento. Etimologicamente, a palavra elucidar vem do latim lucere, cujo significado é trazer luz. Dessa forma, entende-se que conhecer significa trazer luz à realidade. De acordo com Luckesi (2011), somente com a construção do conhecimento é possível desvendar a verdade presente na realidade, tornando-a inteligível, transparente, clara, cristalina.
Ao abordar a pedagogia científica, Bachelard (1996) faz uma primeira reflexão sobre a filosofia da ciência e apresenta uma concepção de conhecimento científico como um processo contínuo de retificação movido pela superação dos obstáculos epistemológicos. No estado de pureza alcançado por uma psicanálise do conhecimento objetivo, considera a ciência como a estética da inteligência e à pedagogia, portanto, cabe a tarefa de instruir a prática e a cultura científica para a aquisição de uma forma de conhecimento e de pensamento que se traduza numa reforma de espírito.
Nesse sentido, a pedagogia científica de Bachelard (1996) pode ser conside-rada como uma pedagogia criativa, pois permite a constituição de novos saberes a partir de rupturas com os saberes estabelecidos, com o senso comum e com a epistemologia cartesiana. A pedagogia científica permite pensar numa pedagogia dialética no sentido mais amplo. De acordo com Fonseca (2008), pode ser considerada como uma pedagogia capaz de orientar os passos de educadores para se livrarem das visões estreitas e de todo o pragmatismo ingênuo.
Quando Bachelard (1996) propõe que ciência se transforme em uma grande pedagogia científica, defende a tese de que ela precisa ser esclarecedora e entendível. Para tal, considera que em primeiro lugar é preciso saber formular problemas, pois na vida científica os problemas não se formulam de modo espontâneo. E se não há pergunta, não pode haver conhecimento científico, pois na ciência nada é evidente, nada é gratuito e sim, tudo é construído.
Dessa forma, Bachelard acredita que o professor deva assumir o caráter de epistemólogo. Essa postura consiste no esforço de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já amontoados pela vida cotidiana, de propiciar rupturas com o senso comum, com um saber que se institui da opinião e com a “tradição empiricista das impressões primeiras”. Essa mesma postura é defendida por Fonseca (2008) quando afirma que “a transformação da prática docente implica em mudança de concepção do próprio trabalho pedagógico” (p.363). A seu entendimento, esse trabalho, muitas vezes, reveste-se de relações autoritárias e conservadoras, na reprodução e manutenção do conhecimento acrítico e deslocado da realidade.
No pensamento bachelardiano, a pedagogia científica se fortalece na medida em que a cultura científica se colocar diante de uma catarse intelectual e afetiva. Para Bachelard (1996), a tarefa mais difícil para se consolidar essa transformação é a de colocar a cultura científica em estado de mobilização permanente. A partir dessa postura, seria possível avançar o conhecimento científico de modo que se possa superar o saber fechado e estático por um conhecimento aberto e dinâmico. Além disso, seria possível encontrar as condições necessárias para dialetizar todas as variáveis experimentais e, assim, nas palavras do autor, “oferecer à razão razões para evoluir” (p. 24).
Essa marca dialética da pedagogia científica de Bachelard é elucidada nos estudos de Kuiava e Régnier (2012) com o enfoque na docência. Os autores se preocupam em contextualizar a postura docente a partir desse viés defendido por Bachelard.
“cabe ao professor adotar uma postura de diálogo permanente com seus alunos e questionar constantemente o conhecimento já adquirido, como forma de superação dos obstáculos existentes. A ruptura com o já cristalizado se faz necessária para a construção de um conhecimento novo. Educar-se não consiste na aquisição de conhecimentos novos, num processo de acúmulo, mas de um saber sempre novo, com um olhar crítico, dinâmico e reflexivo. O sujeito cognoscente não é um receptáculo do conhecimento já produzido e que é requentado na sala de aula” (p. 7).
A construção do conhecimento científico, desse modo, deve obedecer a uma ordem dialética, a qual na visão de Fonseca (2008) implica uma relação pedagógica de interações humanas e psicológicas, de confiança e de respeito intelectual. Assim, reafirmando o que já foi dito, entende-se que o professor, na prática pedagógico-científica, pode ser não somente alguém que ensina e mais alguém que desperta, estimula, provoca, questiona e se deixa questionar.
A pedagogia científica de matriz bachelardiana também poderia se somar ao postulado por Freire (2011) quando trata do papel do professor como protagonista da construção de um conhecimento científico e como promotor do desenvolvimento da curiosidade epistemológica. Freire considera que o papel do professor é o de propor aos seus alunos, por meio de contradições básicas decorrentes de suas situações existenciais e concretas, o incentivo de enfrentar o desafio para buscar respostas, não apenas no âmbito intelectual, mas principalmente no nível de uma ação transformadora.
Assim como Fonseca (2008), Freire (2011) tece duras críticas às práticas educativas que se reduzem unicamente a um ato mecânico de memorização de conteúdos narrados pelo professor, onde os alunos são transformados em recipientes a serem enchidos. O professor, quanto mais conseguir encher seus recipientes com seus depósitos, melhor educador será. Já os alunos, quanto mais se deixarem encher, melhores alunos serão.
Na pedagogia científica de Bachelard (1996), o aluno não pode ficar inerte ao processo educativo. A neutralidade discente reduz a educação a um ato mecânico e sistemático, desprovido de qualquer intenção humanizadora e transformadora da realidade social em que os alunos estão inseridos. A escola, portanto, deixa de ser um espaço de cooperação, de interação e criação, passando a ser apenas local de reprodução, onde o conhecimento científico e a curiosidade epistemológica não perpassam à materialidade das salas de aula.
A postura docente, de acordo com a pedagogia científica de Bachelard, deve orientar-se em uma dialética professor-aluno, sendo responsabilidade do professor levar o aluno à racionalidade científica, apresentando-se como “negador das aparências”, como freio a “convicções rápidas”. Essa postura permitiria estabelecer relações pedagógicas colaborativas, abertas e construtivas. Pêpe (1985) considera que as teses racionalistas de Bachelard preveem um ensino fecundo a partir de uma filosofia pluralista das noções científicas, pois o ensino científico tem, para ele, como uma de suas funções, a de suscitar dialéticas. Nessa perspectiva, a prática pedagógica deve colocar-se numa posição que possibilite refletir a prática científica e vice-versa.
Nas palavras de Fonseca (2008) “tornar o científico mais pedagógico e este mais científico” (p. 368) significa utilizar formas de pedagogia que situem os alunos como sujeitos críticos, que problematizem o conhecimento, que lancem novas questões, gerando novos desafios e novas questões-problema/soluções, “retificando”, permanentemente, a ciência e os métodos científicos. A pedagogia científica compreende o conhecimento como algo não estático e invariante. O conhecimento, lançado desse olhar, assume um caráter cambiante.
Para Bachelard (1996), a condição existencial do espírito científico é ao mesmo tempo dever formar-se enquanto se reforma. Assim, reforça a noção de que o conhecimento científico se constitui a partir de constantes retificações. Além disso, defende a razão aberta e evolutiva em oposição à razão sedimentada. Esse camin-ho apontado por Bachelard à construção do conhecimento científico, no entender de Pêpe (1985), vai sempre do racional para o real e não em sentido contrário. Trata-se, portanto, de um racionalismo que procura contemplar-se e dialetizar-se com as formas atuais do espírito científico, ou seja, um conhecimento em que sua atividade racional e técnica se dá a partir da reflexão entre a dialética do racional e o do experimental.
O conceito de formação presente na pedagogia científica de Bachelard com-prende professor e aluno como eternos aprendizes. A formação é, portanto, um processo contínuo que se faz e refaz com um espírito lúcido e inovador. O contexto histórico é sempre um pretexto para ser superado, um obstáculo epistemológico à formação do conhecimento. Nesse sentido, a epistemologia de Bachelard, explica Fonseca (2008), tem, pois, uma consequência na forma de produzir ciência e na construção epistemológica centrada na ideia do conhecimento construído historicamente e reconstruído a partir de retificações permanentes.
De acordo com Fonseca, “todas essas questões constituem um suporte para as discussões metodológicas e para uma prática científica aberta, crítica e reflexiva no campo da pedagogia e da formação docente” (p. 369). No mesmo sentido, Kuiava e Régnier (2012) consideram que, a pedagogia científica de Bachelard “deve proporcionar ao educando uma crítica de sua postura no mundo, de seus preconceitos e opiniões, assim como os saberes que estão constituindo a sua vida” (p.08). Do mesmo modo, os autores entendem que a formação do professor deve auxiliá-lo a tomar consciência dos pressupostos epistemológicos que fundamentam a sua ação.
Dessa forma, compreende-se que a pedagogia científica de Bachelard coloca-se como suporte para que a prática docente seja exercida com clareza, com lucidez e com o devido amparo teórico-científico. Que o docente possa desenvolver sua visão de mundo, de ser humano, dos processos de ensino-aprendizagem de modo integrado e integrador e, assim, aumentar as possibilidades de atingir uma educação verdadeiramente transformadora.
Após a análise das duas categorias presentes na obra de Bachelard, a pedagogia das aparências e a pedagogia científica, podemos tecer algumas considerações provisórias. Concordamos com Fonseca (2008) quando afirma que a transformação da prática docente implica em mudança de concepção do próprio trabalho pedagógico, o qual, segundo a autora, é muitas vezes “conservador, centrado em relações autoritárias, na reprodução e manutenção do conhecimento acrítico e deslocado da realidade e em métodos positivistas-racionalistas” (p. 363). Nas palavras do próprio Bachelard (1996) “o educador não tem o senso do fracasso justamente porque se acha um mestre” (p. 24).
Em oposição a esse pensamento característico da pedagogia das aparências, Bachelard (2001) apela por uma razão aberta; por uma nova comunicação pedagógica; por uma escola que deve ser contínua ao longo da vida; por uma educação permanente; e por uma pedagogia do descontínuo e da incerteza. Na prática educativa, o pensamento bachelardiano chama a atenção para dois aspectos pedagógicos, os quais são retomados por Fonseca (2008): O primeiro diz respeito ao mestre que, “em um processo contínuo de aprender, se converte em estudante, pois permanecer estudante deve ser o anseio secreto de todo mestre”. O segundo aspecto pedagógico reporta-se ao fato de que “aquele que aprende deve ensinar” (p. 369), consubstanciando, dessa forma, uma interpsicologia do ensino.
A apropriação do pensamento bachelardiano tem como prisma a constituição de uma ciência que constrói seus objetos articulando dados empíricos e teoria de modo a transpor obstáculos epistemológicos, evitando assim a integração das generalizações e das “ideias claras” do realismo ingênuo do senso comum. É nesse plano que a pedagogia científica de Bachelard coloca-se, como já mencionamos, como uma pedagogia criativa, pois permite a constituição de novos saberes a partir de rupturas com saberes estabelecidos, com o senso comum e com a epistemologia cartesiana.
No que tange à atividade docente, ela coloca-se como um caminho para que educadores livrem-se das visões estreitas e de todo o pragmatismo ingênuo da pedagogia das aparências. Além disso, consideramos a pedagogia científica de Bachelard como uma prática horizontal, em que alunos e professores podem dialetizar suas experiências, examinar seus constructos empíricos à luz da teoria e, assim, “trazer luz à realidade”. No dizer de Luckesi (2011) “desvendar a verdade presente na realidade” (137). O esforço do professor, por sua vez, “consiste em fazer com que os alunos se afastem da cultura científica adquirida e da percepção apreendida na vida cotidiana pelo senso comum” (Fonseca, 2008: 365).
As constantes rupturas com o conhecimento usual e a superação dos obstáculos epistemológicos que se colocam à produção do conhecimento são condições para a prática da pedagogia científica. Nesse sentido, Bachelard (1996) considera que o primeiro obstáculo que deve ser superado é o da experiência primeira, a experiência colocada antes e acima da crítica. A experiência arraigada em um dogmatismo que desconstrói toda criatividade, e como o próprio autor atesta, gera uma “paralisa mental”. Para Bachelard (1996), a pedagogia científica tem em sua essência a crítica como elemento integrante e necessário a toda produção de conhecimento. Tal crítica somente terá consistência se estiver ancorada em profundos e consistentes estudos epistemológicos.
Cómo citar: FAVERO, A. A. y
CONSALTER, E. (2017) “Bachelard e a negação à pedagogia das aparências:
proposições para a construção de uma pedagogia científica”, en Espacios en Blanco. Revista de
Educación, núm. 27, junio 2017, pp. 273-287.
Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires, Buenos
Aires, Argentina