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Entre o conhecimento e a verdade: o desafiador dilema da educação contemporânea
Pedro Goergen
Pedro Goergen
Entre o conhecimento e a verdade: o desafiador dilema da educação contemporânea
Between Knowledge and truth: the challenging dilemma of contemporary education
Espacios en Blanco. Revista de Educación, vol. 2, núm. 29, pp. 9-24, 2019
Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires
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Resumo: O ensaio analisa a relação hoje existente entre educação e mercado. Trata-se de uma realidade cada vez mais forte e evidente, com influência determinante sobre os rumos, os sentidos e as práticas pedagógicas. Cada vez mais a educação é funcionalizada no sentido de tornar-se uma prática voltada ao atendimento dos interesses e objetivos do mercado e não da formação das pessoas enquanto seres humanos autônomos e livres. O texto defende o ponto de vista de que a educação, muito embora deva preparar as pessoas para o exercício profissional, deve ter, como responsabilidade fundamental, a educação integral das pessoas, envolvendo as dimensões racional, ética e estética. O texto tem, portanto, o objetivo de chamar a atenção do leitor para o risco do reducionismo pedagógico que trata apenas de preparar os jovens para o mercado de trabalho, cujos interesses são permeados pelo produtivismo, competitividade, monetarismo e a concorrência generalizada entre as pessoas. Tal tendência reduz e desqualifica qualquer potência transcendente de natureza ética que valoriza o cenário de direitos e deveres entre os seres humanos focados no bem comum, objetivo maior da educação.

Palavras-chave:Educação e mercadoEducação e mercado, conhecimento e verdade conhecimento e verdade, formação humana formação humana.

Abstract: The essay analyses the relationship between education and the market today. It is a reality that is becoming stronger and more evident, with a decisive influence on directions, senses and pedagogical practices. Increasingly education is functionalized in the sense of becoming a practice aimed at meeting the interests and objectives of the market and not the training of people as autonomous and free human beings. The text defends the view that education, although it should prepare people for the professional exercise, should have, as fundamental responsibility, the integral education of the people, involving the rational, ethical and aesthetic dimensions. The aim of the text is therefore to draw the attention of the reader to the risk of pedagogical reductionism that is only concerned with preparing young people for the labor market, whose interests are permeated by productivism, competitiveness, monetarism and widespread competition between people. Such a tendency reduces and disqualifies any transcendent power of an ethical nature that values the setting of rights and duties among human beings focused on the common good, the highest goal of education.

Keywords: Education and market, knowledge and truth, human education.

Carátula del artículo

Dossier

Entre o conhecimento e a verdade: o desafiador dilema da educação contemporânea

Between Knowledge and truth: the challenging dilemma of contemporary education

Pedro Goergen
Universidade Estadual de Campinas, Brasil
Espacios en Blanco. Revista de Educación, vol. 2, núm. 29, pp. 9-24, 2019
Universidad Nacional del Centro de la Provincia de Buenos Aires

Recepção: 17 Dezembro 2018

Aprovação: 28 Dezembro 2018

Introdução

A educação em geral e a educação escolar em particular enfrentam hoje enormes desafios relacionados aos objetivos e sentidos da prática pedagógica. Trata-se de encontrar respostas adequadas para a pergunta a respeito da natureza e dos objetivos da educação no contexto do atual sistema político/econômico capitalista neoliberal, focado prioritariamente na eficácia econômica. Em outras palavras, trata-se do ideal, modelo ou imagem de ser humano que serve de paradigma para a orientação do processo educacional. A formação para o mercado e a formação humanista, são duas perspetivas que denotam desafiadora ambivalência pedagógica entre o que o sistema político/econômico impõe às pessoas como condição de sobrevivência material e o que se espera do ser humano enquanto sujeito livre e ético. Nas atuais condições sócio econômicas, a educação se vê desafiada por dois ideais distintos: a formação como sujeito ou a educação como con-formação à realidade sócio-econômica.

Sobre a teoria da educação encarregada de desvendar e resolver o dilema mencionado paira o presságio hegeliano[1], segundo o qual, a coruja só levanta voo ao entardecer, ou seja, nossas teorias nesse campo sempre se embasam em práticas já realizadas. Mesmo assim, como também nos ensina o filósofo (1990) não haveria novo amanhecer sem o voo da coruja ao entardecer. Apesar do amplo domínio da educação sistêmica, e talvez em razão disso, torna-se mais premente que nunca indagar pelo sentido da educação enquanto condição para a construção de uma sociedade mais humana, digna e justa. O estrito reconhecimento da inumanidade do real é condição para a construção de uma humanidade melhor (p. 16-17).

Desejo argumentar que o desafio de pensar a prática pedagógica implica sempre uma dinâmica crítica de dupla face, envolvendo, de um lado, a realidade educacional responsável pela preparação dos jovens para o mundo do trabalho e, de outro, a conscientização dos jovens visando sua formação para a responsabilidade ética e social. A face real da historicidade implica, portanto, pressupostos relacionados tanto ao preparo dos jovens para a vida profissional num contexto sócio/econômico dado e, de outro, à formação de jovens conscientes, dispostos a constituir sua subjetividade e autonomia indispensáveis para a construção de uma sociedade melhor e mais humana.

O que está em jogo com o capitalismo neoliberal é a forma de nossa existência humana, a maneira como nos relacionamos com o mundo, com o sistema econômico, com os outros e, em última análise, com nós mesmos. Vivemos numa engrenagem sistêmica movida pela competição generalizada, verdadeira luta de uns contra os outros, entre países, grupos sociais e indivíduos. As pessoas para ‘vencer na vida’ são instadas a se esmerar na arte da competição num ambiente de subserviência sistêmica que exige constante modelagem e adaptação. Neste contexto, a educação se torna a principal estratégia indutora de subserviência do ser humano às premissas e exigências do sistema econômico.

Meu propósito é argumentar em defesa da educação integral do ser humano, envolvendo as dimensões racional, ética, estética e biológica, como condição essencial de realização do humano, enquanto ser autônomo e livre. Defendo a ideia de que a educação pode (e deve) contribuir para estimular a consciência crítica da realidade, dos riscos e desafios que o ser humano enfrenta hoje para construir sua humanidade no interior do sistema capitalista neoliberal que reduz as pessoas a peças de sua engrenagem. Considero este o tema central e a tarefa primeira da política educacional, promotora da justiça social.

- I -

Inicialmente, convém esclarecer o sentido da palavra ‘dilema’, presente no título acima. Dilema se refere a uma situação problemática entre a possibilidade de duas alternativas contraditórias, porém, ambas aceitáveis a depender do ponto de vista assumido. Neste sentido, quando se diz que alguém ou uma realidade se encontra frente a um dilema, subentende-se que se trata de uma situação dúbia e de difícil solução. Desde o ponto de vista filosófico, o raciocínio que configura um dilema consiste de um argumento que apresenta duas alternativas ou cenários contrastantes, ambos não satisfatórios, mas eticamente correlacionados. Assim sendo, nenhuma das hipóteses é plena, visto que, se tomadas isoladamente, provocam sensação de desconhecimento ou mesmo de cegueira ideológica entre posturas que falam, mas não conversam; que ouvem, mas não escutam. No campo da educação, este dilema ocorre em função da complexidade e do envolvimento de perspectivas técnico/profissionais, de um lado, e ético/humanistas, de outro, que regem as condutas das pessoas em sociedade. Muitos veem as faces desse dilema como excludentes; pretendo argumentar, em sentido oposto, que tais horizontes não são alternativos, mas co-relativos. A meu juízo, não se trata simplesmente de contrapor um projeto educacional interessado no preparo das pessoas como ‘capital humano’ para o mercado a um modelo educacional que visa ao desenvolvimento da subjetividade e liberdade de sujeitos, comprometidos com um sistema social mais humano, igual e justo.

No entanto, a realidade educacional hoje vigente retrata precisamente uma realidade dividida em dois projetos pedagógicos dos quais um se orienta por princípios utilitaristas, visando ao preparo das pessoas para o mercado de trabalho, e outro que busca uma educação integral humanista. Efetivamente, o cenário pedagógico atual se encontra marcado por este dilema entre, de um lado, o aparelhamento das pessoas ao sistema econômico e, de outro, a promoção de uma educação libertadora de sujeitos livres e autônomos. O ponto fulcral desse embate é o crescente predomínio da correlação educação/mercado sobre o ideal da educação como formação humana e o desafio posto é o de encontrar caminhos que conduzam à integração equilibrada entre estas duas faces da praxis pedagógica das quais nenhuma pode ser descartada sob pena ou de tornar a educação alienada da realidade econômica ou de deixá-la desprovida de sentido humano.

Em termos provocativos, pode-se dizer que, nas condições atuais de centralidade do econômico, tendencialmente, o ser humano deixa de ser, enquanto tal, a referência central de seu próprio processo formativo. Ao contrário, as práticas educativas passam a priorizar o aparelhamento do ser humano às exigências e expectativas do sistema econômico ao invés de formá-lo enquanto ser humano. Neste sentido, pouco importa perder tempo com questões ético/filosóficas a respeito do que é o ser humano e quais são ou deveriam ser seus objetivos de vida. Tais questionamentos são tidos como inócuos visto que nada acrescentam de útil em termos de conhecimentos e habilidades requisitados pelo sistema econômico. Num contexto social em que o mercado dita os rumos e os caminhos do sucesso, em termos de trabalho e emprego, importa às novas gerações submeter-se e atender às suas exigências. São, pois, os ditames do econômico e não os nobres e altruístas ideais humanistas que ditam os procedimentos e conteúdos do processo educacional. A própria realização do ser humano e seu reconhecimento social se limitam ao sucesso econômico.

No contexto desta lógica sócio-econômico-cultural, com suas exigências e prerrogativas, impõe-se a performatização econômico/profissional como referência de qualidade educacional; numa palavra, a educação é tanto melhor quanto mais bem se ajusta e qualifica para o mercado. Nestes termos, produção e consumo se tornam os paradigmas comuns ao mundo econômico e pedagógico; economia e educação, portanto, partilham o ideal comum do bom funcionamento da grande máquina sistêmica cuja mecânica serve ao giro constante da produção e do consumo. Sobrevivem os que encontram lugar, ou seja, os que estão devidamente preparados, qualificados e, sobretudo, adaptados às expectativas e exigências do sistema econômico, enquanto os demais passam a vegetar nas margens do sistema como um peso que onera e dificulta a vida dos bem-sucedidos.

Nestes termos, cada vez menos importam preferências ou escolhas subjetivas relacionadas ao convívio e à justiça social e sempre mais a qualificação técnica para a otimização do processo produtivo, a integração e submissão ao sistema econômico, no qual, em razão da natureza do próprio capitalismo neoliberal, não há lugar para todos. Hardt e Negri (2016) lembram que

“a exclusão de grande parte da população global até mesmo desses circuitos de exploração [...] funcionam como um a priori. É difícil até reconhecer isso como violência, pois é tão normalizado e sua força é aplicada de maneira tão impessoal! O controle e a exploração capitalistas não repousam basicamente num saber soberano externo, mas em leis invisíveis e internalizadas” (p. 22).

Disso resulta a guerra competitiva levada a termo, tanto no nível individual entre pessoas na busca de emprego, quanto no nível coletivo da competição entre instituições no ranqueamento de melhor inserção econômica. Com isso, dilui-se o espaço da ‘esfera pública: o comum’, tão bem destacado por Arendt (1981)

“A presença dos outros que veem o que vemos e ouvem o que ouvimos garante-nos a realidade do mundo e de nós mesmos; e, embora a intimidade de uma vida privada plenamente desenvolvida, tal como jamais se conheceu antes do surgimento da era moderna e do concomitante declínio da esfera pública, sempre intensifica e enriquece grandemente toda a escala de emoções subjetivas e sentimentos privados, esta intensificação sempre ocorre às custas da garantia da realidade do mundo e dos homens” (p. 60)

O ‘bom’ funcionamento da máquina produtiva se torna o objetivo maior, o sentido último do labor humano, acima de quaisquer princípios éticos de convivialidade e justiça social. As expectativas individuais de empregabilidade, eficácia e eficiência, definidas a partir da racionalidade econômica representam o horizonte do processo formativo. Tal sina configura, cada vez mais, o novo sentido da vida humana, conforme mostram Dardot e Laval (2016). Os autores perguntam se o ser humano ainda tem condições efetivas de preservar sua liberdade e humanidade no contexto de um sistema econômico cada dia mais envolvente, determinante e individualizante. Trata-se, portanto, de um momento histórico de grave e profunda reorientação na história da cultura pedagógica e, por conseguinte, do próprio ser humano ocidental. Como destacam os referidos autores, ”a racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (p. 17).

Não é exagerado dizer que nos encontramos num momento de ruptura com a tradição antropológica e ético-política ocidental iniciada na Grécia antiga, de distanciamento do ideal da salvação da pessoa no universalismo religioso medieval e mesmo de negação da autonomia intelectual do racionalismo científico moderno. Na medida em que o ideal da autodeterminação do indivíduo ancorado no ideal, na fé ou razão cede lugar à subserviência ao sistema, o sujeito se submete e alinha seu processo formativo às regras da gramática econômica. Dois aspectos deste cenário histórico merecem especial consideração: de um lado, o ser humano moderno se torna mais empoderado e livre, porém, de outro, se submete aos parâmetros e exigências do sistema econômico. No dizer de Adorno e Horkheimer (1985),

“O processo técnico, no qual o sujeito se coisificou após sua eliminação da consciência, está livre da plurivocidade do pensamento mítico bem como de toda significação em geral, porque a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba” (p. 41-42).

Com a eliminação ou, pelo menos a relativização da consciência, o sujeito passa a ser envolvido e determinado pelo sistema do qual ele mesmo é autor. Este envolvimento se expressa hoje como relação mercantil, subvertendo o ideal da autonomia, vertente e utopia da própria modernidade. Desta maneira, inverte-se a relação entre sistema e sujeito, sendo que agora o sujeito deve submeter-se e amoldar-se ao sistema na ilusão de alcançar autonomia e liberdade. Na verdade, são os parâmetros do mercado como produtividade, eficiência técnica e competitividade que se impõem e se sobrepõem aos interesses humanos de autonomia e liberdade, engendrando no sujeito primazias cujo efeito disjuntivo põe em risco a integralidade subjetiva da pessoa. Tal inversão impacta a educação que se transforma num conjunto de estratégias de adaptação e funcionalização das pessoas ao sistema econômico. Neste sentido, quanto mais adaptado e ajustado ou, em outros termos, quanto mais útil ao sistema econômico for a pessoa, mais apreciada será, não pelo que ela é como sujeito, mas pela sua ajustada servidão ‘voluntária’ ao sistema[2]. Nestes termos, a tarefa e o sentido da educação tende a restringir-se ao papel de preparar mentes e corpos para o bom funcionamento do sistema econômico. Em ‘Vigiar e Punir’, lembrando a imagem do panótico de Geremias Bentham, Foucault (1977) prefigura esta realidade nos seguintes termos: “a economia, a eficácia dos movimentos [...] que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade” (p. 126).

No curso da emergente modernidade, os ideais iniciais de autonomia e liberdade, aos poucos, se reconfiguram em subserviência. As críticas de Adorno e Horkheimer, de 1947, representam algo como uma profecia do que viria acontecer com o fim do estado europeu de bem-estar-social e a imposição do regime político/econômico do neoliberalismo a partir da década de 1970. Não se tratava, então, apenas de uma nova forma de regência político/econômico/social, mas também e sobretudo, da performatização de um neosujeito que idealiza e internaliza a performance do novo modelo econômico como ideal de realização humana. Este novo sujeito encarna as esferas práticas do modelo das relações econômicas, manejadas pelos princípios de produtividade e eficácia econômicas.

- II -

O modelo de subserviência do humano ao sistema, delineado nas páginas anteriores, não tem apenas o efeito de submissão das pessoas ao sistema como um processo de constrangimento universal igualmente aplicável a todos. O avanço científico/tecnológico levou à produção de máquinas capazes de realizar com mais eficiência o trabalho humano, deixando um contingente cada vez maior de pessoas econômica e socialmente excluído[3]. Do ponto de vista sistêmico, a ênfase recai sobre a qualificação para o trabalho; pelo lado da educação, a prioridade se inverte do trabalhador con/formado ao sistema econômico para a formação do humano, sujeito autônomo e ético. Nesta nova perspectiva, o cuidado de si, na conhecida expressão da Hermenêutica do Sujeito de Foucault (2004), perde seu sentido ético/humanista, passando a significar a capacitação, em termos de conhecimentos e habilidades, para servir ao mercado. O sucesso no mercado traz recompensa e reconhecimento; o insucesso gera exclusão econômica e social. O que importa já não é a pessoa humana, mas o funcionamento do sistema econômico[4]. Este gap entre os interesses humanistas e os interesses sistêmico/econômicos certamente representa um dos maiores desafios antropológicos e sociais da contemporaneidade, com incidência direta sobre o processo educacional.

Esta nova tecnologia de poder tenta disfarçar, mediante o uso de discursos ideológicos, a estratégia cada vez mais eficaz de sujeição que constitui, como explicam Dardot e Laval, (2016), “a marca da mais inflexível e mais clássica das violências sociais típicas do capitalismo: a tendência a transformar o trabalhador em uma simples mercadoria” (p. 329). Neste mesmo sentido, o enfraquecimento dos sindicatos sela definitivamente a completa dependência individual dos trabalhadores em relação às empresas que podem exigir total disponibilidade e entrega por parte de seus, ironicamente, chamados ‘colaboradores’. É precisamente para este cenário que a educação deve preparar as pessoas, desde a infância e para o resto da vida. A nova educação se restringe à modelagem das pessoas, tornando-as competentes e aptas a suportar as condições impostas pelo sistema econômico. A mais impressionante ironia é que quanto mais competentes e bem preparadas as pessoas se tornam, tanto mais elas contribuem para o acirramento de suas próprias condições de dominação e dependência. Na formulação dos mesmos Dardot e Laval (2016),

“A gestão neoliberal de si mesmo consiste em fabricar para si mesmo um eu produtivo, que exige mais de si mesmo e cuja autoestima cresce, paradoxalmente, com a satisfação que se sente por desempenhos passados. [...] A coerção econômica e financeira transforma-se em auto coerção e ato de culpabilização, já que somos os únicos responsáveis por aquilo que nos acontece” (p. 344-345).

Para um melhor entendimento me permitam um breve desvio histórico. Foi sobretudo a partir da emergência do racionalismo cartesiano que se alcançou um novo fundamento para a verdade puramente racional, desconectada de qualquer sentido ético/humanista da verdade. A nova soberba epistêmica hegemônica se descola da verdade como conjunto espiritual de práticas e experiências, de asceses e renúncias, constituintes da verdade ética do mesmo ser sujeito. Nesse sentido, a questão socrática que recomendava às pessoas desconfiar de suas crenças infundadas e cuidar mais de sua formação humana, foi requalificada na modernidade pela valorização unilateral das certezas racionais, operacionalizadas no século XIX como ciência e tecnologia, em prejuízo das verdades humanas que fundamentam a subjetividade e a convivência ética. Hoje tangenciamos limites que ameaçam até mesmo a destruição da vida terrestre caso não mudarmos nossas posturas.

A espiritualidade não nega o conhecimento racional/científico, mas postula uma perspectiva mais plena, abrangente e profunda de verdade que transforma o humano em sua integralidade subjetiva e ética. Este é, no sentido de Foucault (2004), o trabalho do si para consigo, de elaboração do sujeito capaz de verdade, pois, “na verdade e no acesso à verdade, há alguma coisa que completa o próprio sujeito, que completa o ser mesmo do sujeito e que o transfigura” (p. 21). Isso quer dizer que não há verdade (embora possa haver conhecimento) sem conversão ou transformação, subjetiva e ética, insisto, do sujeito.

Encontramo-nos aqui no ponto divisor de águas, no momento tensional de fratura do conceito de verdade que, embora metafisicamente fundamentado na individualidade subjetiva, se restringe, progressiva e perigosamente, à correspondência entre pensamento e realidade. É em função deste estreitamento que o conceito de verdade se reduz à neutralidade e objetividade, desonerando-se de qualquer inferência espiritual ou ética. Esta visão objetiva, exata, científica e supostamente neutra tende a universalizar-se como critério exclusivo de validade epistêmica. Dito de outro modo, o conhecimento objetivo das coisas, da realidade e do sistema, se distancia do sentido abrangente de verdade que envolve a subjetividade, a liberdade e a eticidade (socialidade) humanas. Diria, então, que precisamos resgatar o conceito de verdade do estreitamento científico ou, dito de outro modo, precisamos romper o estreitamento científico, abrindo-o para a verdade humana.

Trata-se de uma questão central da filosofa da educação. Independente da admissão de ‘um corpo positivado preexistente’ ou de um excedente em seu objeto, entendo que a educabilidade do ser humano (aqui deveríamos dar a palavra a Rousseau) historicamente comprovada exige uma confluência ontológica, ou seja, uma congruência mínima como ancoragem da socialidade e da liberdade. A educação precisa ajudar os jovens a conquistar espaços de resistência contra a sua integração, contra a sua anulação pelos interesses e poderes do sistema econômico.

Neste sentido, o cuidado de si é o trabalho do sujeito de si para consigo, a elaboração de si mesmo, a transformação constante de si mesmo mediante um esforço próprio que podemos chamar de ascese do sujeito. Ao contrário do conhecimento que apenas se agrega ao sujeito, o acesso à verdade, em seu sentido mais comprometido e profundo, completa e transforma o próprio sujeito. Do ponto de vista da filosofia da educação, ou seja, desde a perspectiva da plenitude humanista, este me parece o maior desafio que enfrentamos na atualidade. Se, na belíssima imagem de Hegel, assumirmos o olhar da coruja que levanta voo ao entardecer e visualizarmos os caminhos percorridos, somos tomados, de forma cada vez mais pungente e preocupante, por uma sensação de mal-estar e sofrimento.

Em todos os lugares, embora em distintas intensidades, se acentua e expande a preocupação com a tensão entre a situação subjetiva e sistêmica do ser humano. As críticas que são formuladas, logo são absorvidas pelo sistema econômico, favorecendo uma sempre maior identificação entre sujeito e sistema. O funcionamento do sistema impõe-se como parâmetro de bem e a integração do sujeito no sistema como ideal de virtude. Trata-se, então de perguntar, na formulação de Zizek (2016) “como os indivíduos subjetivam ideologicamente sua condição” (p. 271). Encontramo-nos diante de uma situação aparentemente sem saída uma vez a que a subjetividade sempre se constitui a partir da ‘interpelação’ sistêmica, vale dizer que sempre somos constituídos a partir do sistema que deixa em nós marcas indeléveis.

Neste contexto, permito-me citar outra passagem de Zizek (Op. Cit.) em que o autor contrapõe argumentos de Habermas e Foucault a respeito dessa temática.

“O paradoxo em ação aqui é que o próprio fato de não haver um corpo positivado preexistente em que se possa fundamentar ontologicamente nossa resistência aos mecanismos disciplinadores do poder é que torna possível a efetiva resistência. Ou seja: o argumento habermasiano usado contra Foucault e os ‘pós-estruturalistas’ em geral é que, uma vez que negam a existência de qualquer padrão normativo isento em relação ao contexto histórico contingente, eles são incapazes de fundar uma resistência ao edifício do poder existente. O contra-argumento foucaultiano é que os próprios mecanismos disciplinadores ‘repressivos’ abrem espaço para a resistência, na medida em que geram um excedente em seu objetivo” (p. 272-273).

Para se transformar, o sujeito necessita, antes de tudo, saber o que ele é enquanto ser humano. Platão se refere a isto no seu famoso diálogo ‘Alcibíades’, o jovem belo e rico que pretendia ser político. A recomendação de Sócrates ao jovem foi que ele, antes de mais nada cuidasse de si mesmo. Cuidar de si mesmo, significa se aprimorar como pessoa humana. O intuito de Platão era alertar para uma questão primordial da educação, ou seja, que é impossível conduzir a formação do ser humano sem ter clareza sobre o que é o ser humano. Para Platão, estes princípios existiam no mundo luminoso das ideias, onde se poderia chegar pela filosofia, libertadora das amarras e da escuridão da matéria e do corpo. Oito séculos mais tarde, Agostinho ensinou a existência de um ser supremo que teria revelado aos homens os rumos a seguir. Com o início da modernidade, veio a convicção de que tais fundamentos poderiam ser encontrados pela razão. Hoje se considera que as diretivas do agir humano são culturais e, portanto, diferentes segundo o tempo e o lugar. Com isso, abre-se um novo, complexo e ambivalente cenário de transcendência e imanência, ou seja, de permanência e transitoriedade histórico/culturais, confluentes na constituição do humano. Dependemos da conversão do olhar sobre nós, enquanto subjetividades individuais, de um lado, e dos condicionantes históricos, enquanto seres sócio-culturais, de outro.

Hoje nos encontramos num momento histórico extremamente conflituoso entre a imanência e a transcendência, ou seja, num momento em que a razão científica, instrumental e integrativa, se dissemina e universaliza como o logos do conhecimento que bloqueia qualquer exercício ou esforço crítico que tenha como horizonte a subjetividade e o humanismo. Conhecimento e técnica se tornam os eixos estruturantes do pensar, impondo-lhe os princípios do produtivismo, da competitividade, da operacionalidade, da adaptabilidade e da flexibilidade no jogo da eugenia econômica. Por mais funesto e injusto que seja o sistema capitalista neoliberal, enquanto educadores não nos resta outra alternativa senão preparar os jovens para o mercado trabalho. Neste sentido, Laval et al. (2012) afirmam que, “o novo mundo do trabalho impõe novas condições ao mundo educativo” (p. 11).

- III -

Mas porque tanta insistência nesta triste e desalentadora realidade, exatamente num momento em que os jovens precisam de alento e esperança num mundo melhor e mais humano para o seu futuro e o futuro de toda a sociedade. A resposta, na verdade, é bastante óbvia, pois de nada valeria esconder a realidade ou desviar o olhar dos problemas; a melhor contribuição para um futuro mais auspicioso, é ajudar os jovens a superar a alienação e assumir a direção de seu próprio destino ou, em outros termos, despertar sua consciência crítica da realidade. Não se trata, portanto, de gerar desânimo ou resignação, mas de despertar a consciência crítica como condição e estratégia de superação da situação limite em que o ser humano se encontra. Na minha forma de ver, gerar consciência significa defender a aprendizagem do pensar como tarefa central do processo formativo, pois, a educação, sobretudo aquela que planejamos com cuidado e consciência na escola, não pode ser apenas um processo de aparelhamento dos jovens ao sistema econômico.

Se permitirmos isso e nós educadores assumirmos essa orientação em nossa prática educativa, segundo Baudrillard (2007) “nos tornamos funcionais” ao ponto de a capacidade de consumo se transformar em ideal e sentido de vida (p. 15). Na verdade, a contabilidade da vida contemporânea, mais e mais, é permeada por relações de consumo que, aos poucos, se transformam na essência não só das relações sociais, mas de todo o nosso ser. Na medida em que o consumo se torna o ideal de realização e felicidade humanas, a educação perde suas prerrogativas humanistas e se assume como estratégia transformar as pessoas em parte funcional do sistema econômico.

Não se trata aqui da construção de um cenário fictício, pois, basta lançar um olhar sobre as normas diretivas das políticas públicas e para as práticas pedagógicas para constatar que os alunos estão sendo estimulados a se envolverem, o mais eficaz e incondicionalmente possível, com as exigências do mercado, de modo que, assim integrados e feitos parte do sistema, cada qual se torne especialista de si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo e, sobretudo, empreendedor de si mesmo: “a racionalidade impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição” (Dardot e Laval, 2016:331). Neste sentido, o sujeito cuida de si mesmo, mas não para si mesmo; sacrifica sua autonomia e liberdade, ou seja, abre mão de sua identidade subjetiva em troca da sobrevivência no interior de um sistema que se torna a razão última de tudo, inclusive, do próprio ser humano. A educação leva os jovens a ‘consumir educação como requisito para a sua integração sistêmica e não para a sua formação enquanto sujeitos autônomos e livres.

Esta estreita e quase intrínseca relação entre sujeito e mundo econômico lança os fundamentos de uma nova educação ética, cuja norma suprema se resume ao seguinte princípio: o que é bom para o sistema deve ser considerado bom para o sujeito. O sistema, portanto, torna-se o padrão da eticidade das relações humanas. Neste sentido, a empresa não representa apenas um modelo geral a ser imitado, mas o próprio paradigma ético da educação dos jovens e dos alunos. No contexto desta nova razão, as crianças e os jovens precisam, desde cedo, acostumar-se não só a aceitar, mas também a assumir e incorporar a ideia de que o mais importante na vida é conquistar os conhecimentos e as habilidades esperadas pelo mercado. O mercado é a soberana e inquestionável realidade, o polo fixo sempre cambiante de princípios e valores ao qual convém reconhecimento e submissão incondicional.

Nestes termos, o sujeito é avaliado segundo seu valor de mercado, à semelhança de qualquer outro objeto; vale dizer que o sentido da pessoa é estabelecido, desde a infância, em função de uma instância externa, cujos critérios de valor se restringem à dimensão econômica, sendo, portanto, sempre da ordem do privado e não da ordem do comum. No contexto desta dinâmica, a educação passa a ser entendida e valorizada como importante estratégia de autogestão da pessoa como empresa útil, competente e competitiva. Dito de forma incisiva, a práxis educativa perde seu sentido de formação humanística para tornar-se um processo de aparelhamento, funcionalização e submissão de cada pessoa aos interesses, desígnios e expectativas do capital. Este é o sentido profundo disso que hoje se designa, superficial e sistemicamente, de ‘capital humano’.

Envolvido nesse processo e, portanto, assumindo como seus os mesmos critérios de sentido e valor da nova imanência sistêmica, o sujeito se torna parte da dinâmica econômica. Em suma, este novo sujeito nasce, vive e morre com e no sistema, sem outra perspectiva de transcendência, mesmo que puramente secular. Por conta disso, segundo se expressa Dufour (2005),

“De modo geral, toda a figura transcendente que vinha fundar o valor é doravante recusada, há apenas mercadorias que são trocadas em seu estrito valor de mercadorias. Hoje, os homens são solicitados a se livrar de todas as cargas simbólicas que garantiriam suas trocas. O valor simbólico e assim desmantelado, em proveito do simples e neutro valor monetário da mercadoria, de tal forma que nada mais, nenhuma outra consideração (moral, tradicional, transcendente, transcendental) possa entravar sua livre circulação. Os homens não devem mais entrar em acordo com os valores simbólicos transcendentes, simplesmente devem se dobrar ao jogo da circulação infinita e expandida da mercadoria” (p. 130).

Estaríamos, então, definitivamente presos na ‘jaula de aço’ (Weber) ou amarrados pelo cinturão de ferro (Arendt), jogados nos desígnios de forças sistêmicas inomináveis, uma espécie de biopoder (Foucault), sem esperança de salvação? Será que, como dizem Adoro e Horkheimer (1985) “a própria razão se tornou um mero adminículo da aparelhagem econômica que a tudo engloba” (p. 42). Apesar dos fortes interesses que insistem em disseminar o fatalismo inexcusável, é preciso resistir para que não se erradique do coração dos homens o amor à liberdade e a luta pelos direitos, individuais e coletivos. Ainda que a ameaça da escravidão e da opressão sistêmicos persista como estratégia da permanente luta pelo poder, também o desejo de autonomia e liberdade são a marca indelével do humano. Neste sentido, Arendt embora profundamente impressionada pelo terror e sem adotar posição salvacionista de superação definitiva do mal, segue confiante na capacidade humana de resistência à opressão pela vontade ontológica de liberdade do homem. Também Hardt e Negri, no recente livro Bem estar comum (2016), afirmam que

“a transição já está em curso: a produção capitalista contemporânea, ao atender a suas próprias necessidades, possibilita e cria as bases de uma ordem social e econômica alicerçada no comum. O cerne da produção biopolítica, podemos constatar retornando a um nível mais alto de abstração, não é a produção de objetos para sujeitos – como se costuma entender a produção de mercadorias – mas a produção da própria subjetividade. É este o terreno de onde deve partir nosso projeto ético e político” (p. 10).

Aqui chegamos ao ponto fulcral da importância da formação e conscientização das novas gerações no sentido de prepará-las para a ação. Nós, da geração mais antiga, já fracassamos![5]. Trata-se de despertar nos jovens o desejo humano de resistir e de agir contra o movimento que tende a preservar e a fortalecer a lei do sistema opressor que serviliza a absoluta maioria das pessoas em benefício de uma minoria com base na ideologia da competência, da produtividade, da utilidade, da eficiência.

O primeiro e fundamental desafio que se coloca agora, no sentido posto por Arendt (1981), é o de descobrir como resistir ao inescusável enquadramento imposto pelo sistema econômico (me refiro à preparação dos jovens para o acesso ao mercado de trabalho) fora do qual não há, pelo menos não a curto prazo, alternativa de sobrevivência. Os posicionamentos radicais, mesmo os bem fundamentados em discurso de respeitável e relevante rigor argumentativo, em defesa da formação da consciência crítica, não contornam a necessidade imediata das novas gerações de ingressar no mercado de trabalho.

Precisamos alimentar a esperança na possibilidade de conscientização e resistência contra a sua transformação dos jovens em meras empresas de si mesmos que colocam suas vidas, seus ideais, enfim, sua humanidade a serviço do sistema capitalista neoliberal. Para evitar tal catástrofe humana, o único caminho possível é oferecer aos jovens educação de qualidade humana, ou seja, uma educação que, além de prepará-los para o mercado de trabalho, também os conscientize da necessidade de sua formação subjetiva enquanto seres humanos críticos, autônomos e livres. Neste contexto, se pratica hoje uma perigosa confusão entre ‘conhecimento’ e ‘verdade’. Embora tais conceitos não sejam contraditórios, do ponto de vistas da educação, eles podem ter sentidos e conotações distintos no campo da filosofia da educação.

Do ponto de vista do sistema econômico, a principal tarefa da educação e, na perspectiva sistêmica, seu sentido próprio (e único), é preparar da forma mais eficiente e operacional possível os jovens, tornando-os competentes e competitivos portadores de conhecimentos e habilidades, adequados às expectativas do sistema econômico. Não se trata, portanto, de perguntar se tais procedimentos e seus resultados são bons ou maus, verdadeiros ou falsos, humanos ou operacionais do ponto de vista ético ou sociais, mas tão somente de garantir que sejam, pragmaticamente, adequados e úteis à eficácia produtiva do sistema econômico. Não parece exagerado dizer que esta forma de pensar representa hoje o eixo central, o fio condutor das práticas educativas levadas a termo, pelo menos predominantemente, nas nossas escolas e mesmo nas universidades. Confirmam-se as palavras de Adorno e Horkheimer (1985) escritas já em 1947: “o indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos” (p. 14).

O ser humano se torna parte enredada no todo funcional que atende aos interesses do dinheiro; para prosperar, deve se ajustar aos padrões prefixados e desconectados do que se poderia designar como a ‘essência formativa’ do ser humano. Este não mais se forma, mas se con-forma a uma realidade moldada, segundo interesses estritamente materiais e econômicos. Contrariando os mais elementares fundamentos da antropologia, os interesses sistêmicos são assumidos como interesses subjetivos e pessoais, reduzindo, assim, o homem a um corpo de influências e determinações a serviço de seu entorno sistêmico. Estas condições e exigências assumem o papel de paradigma indutor das políticas públicas no campo da educação. Não é este o momento de aprofundar esta temática; basta lembrar que as mais recentes reformas político/educacionais, levadas a termo pelo Conselho Nacional de Educação e pelo próprio Ministério da Educação, têm como critério prioritário de suas decisões as expectativas do sistema econômico e não o direito das crianças e jovens a uma formação integral enquanto seres humanos livres e autônomos.

Importa perguntar se há no horizonte histórico algum sinal efetivo que justifique a esperança no efeito positivo dessa resistência? Antes de responder, é preciso lembrar que nenhuma transformação ocorrerá em consequência de um inexcusável script histórico, mas que depende da própria sociedade ou, em termos concretos, do engajamento de cada um, de cada mãe/pai, de cada professor/a e, também, de cada jovem estudante lutar pela humanidade posta em risco pelo domínio irrestrito dos interesses econômicos. Há, inclusive, estudiosos que já detectam fissuras sistêmicas que permitem falar de uma crise não apenas restrita ao sistema econômico neoliberal, mas de uma crise mais profunda do próprio modo de governar as sociedades[6]. Mas como este modo geral de governo da sociedade passa obrigatoriamente pelo governo dos indivíduos, talvez estejamos frente a um germe de esperança que nasce no chão da formação das novas gerações.

Desta maneira, apesar do ímpar sucesso científico/tecnológico não se alcançou, um correspondente desenvolvimento integral do ser humano. Do controverso tecnicismo utilitarista da racionalidade moderna resulta um clamor por mais ética nos diferentes âmbitos sociais, em especial na política, na economia, na ciência/tecnologia, nos meios de comunicação. Basta abrir uma revista, um jornal, ligar a televisão, olhar a lista de filmes ou livros recentes ou mesmo entrar na Internet para constatar um quase clamor generalizado por mais ética. Ética significa mais reconhecimento mútuo, mais igualdade social, mais respeito racial, menos descriminação sexual, religiosa e cultural. Todos estes desideratos profundamente humanos vêm se tornando estranhos ao processo formativo, em flagrante contradição com o intenso debate ético-político que tanto preocupa a sociedade na atualidade. É um enorme desafio antropológico/cultural que a sociedade enfrenta para o qual não há solução sem um profundo repensar, em termos de valores, objetivos e procedimentos, da praxis pedagógica atualmente em curso.

Conclusão

Inicialmente, o texto trata de analisar a relação que hoje se estabelece entre educação para o mercado e educação humanista integral do sujeito humano. Para tanto, se inicia pela configuração de um cenário amplo que envolve o dilema da relação entre mercado e educação. Hoje cada vez mais se impõe o entendimento de que a educação deve estar a serviço do mercado, ou seja, ela deve preparar os jovens, em termos de conhecimentos e habilidades, para que eles possam servir às necessidades e interesses do sistema econômico. Ao contrário da tendência hoje cada vez mais hegemônica, defende-se aqui a ideia de que os dois lados desse dilema, ou seja, o mercado e a educação, embora sob muitos aspectos conflitantes, não podem ser considerados excludentes. Os seres humanos precisam trabalhar para viver e, portanto, não podem ficar alheios ao mercado que precisamente é o lugar onde se ganha o pão. Ainda que se defenda um ponto de vista crítico em relação ao modelo capitalista neoliberal, é preciso admitir que, enquanto ele não for superado por uma revolução radical, é incontornável a necessidade de preparar os jovens para que possam ganhar a vida integrando-se ao mercado, inclusive atendendo às suas exigências em termos de conhecimentos, habilidades e competências de modo geral. O risco a ser evitado é o da subserviência, transformando a educação num conjunto de estratégias pedagógicas que assumem a racionalidade econômico, colocando a educação a seu serviço, ou seja, fazendo da educação um modus operandi que prepara as pessoas para servir ao mercado.

Isto posto, há um outro fator inerente ao sistema capitalista neoliberal que vem sendo exposto e criticado por muitos autores desde o seu surgimento o século XIX. Trata-se do desenvolvimento da ciência e tecnologia que facultou a construção de máquinas que executam com mais rapidez e eficiência as tarefas antes realizados pelas pessoas. O resultado foi e continua sendo a exclusão de muitas pessoas do mercado de trabalho. Em consequência e apesar do discurso oficial, não basta mais que a educação cuide da formação profissional, tendo como suposto que pessoas bem formadas e treinadas irão conseguir emprego. As máquinas, mais eficientes e rápidas, tomaram o lugar das pessoas tornando-as economicamente supérfluas e desnecessárias. Disso decorre o cenário de luta entre competidores pelos escassos postos de trabalho, buscando aumentar seu potencial mediante a incorporação de conhecimentos e habilidades pela educação. Tal situação gera um novo e perverso efeito sobre o processo formativo que cada vez mais se foca na educação profissionalizante, valorizando os conhecimentos e habilidades que interessam ao mercado. É, portanto, o mercado que determina o que o ser humano deve saber, pensar e ser.

Esta é a realidade com a qual estamos hoje confrontados. Os jovens, pelo menos em sua grande maioria, internalizam este discurso sistêmico e tendem a não ver outro sentido na educação a não ser o de prepará-los para o mercado de trabalho. Este entendimento, cada dia mais, se naturaliza no contexto do sistema político/econômico/capitalista neoliberal regido pelo interesse de lucro, potencializado pela competitividade e luta de uns contra os outros por um lugar no mercado. A esta realidade, intrínseca ao capitalismo e extremada no neoliberalismo atual, se contrapõe, mesmo reconhecendo o caráter incontornável da preparação para o mercado, a perspectiva da formação humana integral que, além de atender aos requisitos da educação profissional, se preocupa com a essencial dimensão ética/subjetiva de cidadadania. O drama da razão não é propriamente sua racionalidade econômica, mas seu excesso excludente que marginaliza parcela crescente da humanidade. Esta é a razão da crise humanitária em que a sociedade humana está envolvida e da qual só poderá sair por uma revolução radical e profunda do sistema político/econômico. Concretamente, a melhor e mais urgente forma de caminharmos nesta direção é a conscientização e a formação de pessoas capazes de indignar-se frente ao cenário de horror humano que hoje vivemos.

Material suplementar
Referências
ADORNO, Th. y HORKHEIMER, M. (1985) Dialética do esclarecimento. Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro.
ARENDT, H. (1981) A condição humana. Editora Universidade de São Paulo, São Paulo.
BAUDRILLARD, J. (2007) A sociedade de consumo. Edições 70, Lisboa.
DE LA BOETIE, E. (2009) Discurso sobre a servidão voluntária. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo.
DARDOT, P. y LAVAL, Chr. (2016) A nova razão do mundo. Boitempo, São Paulo.
DARDOT, P. y LAVAL, Chr. (2017). Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. Boitempo Editorial, São Paulo.
DUFOUR, D. R. (2005) A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal. Companhia de Freud Editora, Rio de Janeiro.
FOUCAULT, M. (1977) Vigiar e punir. Editora Vozes, Petrópolis.
FOUCAULT, M. (2004) A hermenêutica do sujeito. Editora Martins Fontes, São Paulo.
HARDT, M. y NEGRI, A. (2016) Bem estar comum. Editora Record, Rio de Janeiro.
HEGEL, W. Fr. (1990) Princípios da filosofia do direito. Guimarães Editores, Lisboa.
LAVAL, CHR.; VERGNE, Fr.; CLÉMENT, P. y DREUX, G. (2012) La nouvelle école capitaliste. Editions La Découverte, Paris.
ZIZEK, Sl. (2016) O sujeito incômodo. Boitempo Editorial, São Paulo.
Notas
Notas
[1] É famosa a passagem de Hegel na Filosofia do Direito na qual se refere ao pássaro de Minerva como o símbolo da vigilância, do alerta permanente, da sabedoria intuitiva que permite dominar as trevas. Por isso, a coruja se tornou o símbolo da filosofia e da docência habilitada a integrar as diferentes formas de conhecimento com um olhar para a diversidade e a universalidade.
[2] Nova na forma, a servidão voluntária nao é propriamente algo novo na história como nos lembra De la Boétie (2009) já em meados do Séc XVI: “É inacreditável como o povo, desde que se sujeita, caia tão subitamente em tal e tão profundo esquecimento da Liberdade, que não é possível despertá-lo para libertá-la, servindo tão livremente e com tanta vontade, que se pode dizer, ao vê-lo, que não perdeu a liberdade, mas ganhou a servidão” (p. 43).
[3] Segundo estudos do Fórum Econômico Mundial, em 2025, robôs executarão 52% das tarefas profissionais correntes. Com isso, segundo o mesmo relatório, até 1922, 75 milhões de empregos em setores como contabilidade, secretariado, fábricas de montagem, centros de atendimento a clientes ou serviços postais poderão ser suprimidos.
[4] O passo decisivo nesta direção foi a transformação do próprio sujeito em empresa de si mesmo, designado ‘pessoa jurídica’, uma imagem que reflete a transformação do próprio sujeito em empresa. O ‘PJ’, como é conhecido, é o símbolo perfeito da precariedade e externalização do trabalhador na atualidade. Os trabalhadores, empregados nesta condição, destituídos de quaisquer direitos sociais, são ‘entidades’ performáticas em competição, visando otimizar sua performance produtiva, sem que a empresa possa ser responsabilizada por nada, em caso de fracasso. O insucesso do sujeito é naturalizado como seu próprio fracasso enquanto empresa de si mesmo, tendo, portanto, que assumir todas as consequências daí decorrentes. Além disso, o fracasso se torna não apenas natural, mas esperado no contexto de um sistema econômico em que, por definição, não há lugar para todos. O sistema Database aponta que a situação vem se agravando visto que os 10% mais ricos da população ficaram com 54,3% da renda gerada em 2001 e 55,3% em 2015. (Fonte: Folha de São Paulo, 2017, p. A2).
[5] Este reconhecimento foi assumido em manifestação histórica pelo astronaua alemão Alexander Gerst que, pouco antes de voltar à terra no dia 19/12/20018, mandou uma mensagem emocionante às futuras gerações pedindo desculpas pelo estado em que a sua (nossa) geração deixa o planeta para as futuras gerações.
[6] Uma visão mais radical de crítica ao capitalismo se encontra em: Dardot e Laval Comum. Ensaio sobre a revolução no século XXI. São Paulo, Boitempo, 2017.
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