Resumo: Entendendo a educação como um diálogo vivo entre gerações, a reflexão estabelece aproximações entre a educação escolar e a manutenção das conquistas civilizatórias, dentre as quais a democracia. Na esteira das modernas revoluções republicanas, as novas formas de governo se pautam na cidadania universal e no princípio de que é sempre razoável partilhar a responsabilidade das escolhas com todos os envolvidos. O desafio que se põe, portanto, é o de qualificar as opiniões de todos, na perspectiva de que o entendimento geral possa ser o mais qualificado possível. E é aí que entra a tarefa da escola como instituição produtora de pertencimento às novas formas de vida. Sua especificidade se revela, de modo especial, na natureza do conhecimento que veicula. Nesse sentido, a noção de uma racionalidade ampliada, orientada à construção de entendimentos intersubjetivos, oferece o horizonte que permite distinguir o tipo de conhecimento que cabe ser ministrado nas escolas.
Palavras-chave:EducaçãoEducação, humanização humanização, democracia democracia, pertencimento pertencimento, conhecimento escolar conhecimento escolar.
Abstract: Understanding education as a living dialogue between generations, reflection establishes approximations between school education and the maintenance of civilizational achievements, among which, democracy. In the wake of modern republican revolutions, new forms of government are based on universal citizenship and on the principle that it is always reasonable to share responsibility for choices with everyone involved. The challenge, then, is to qualify the opinions of all, with the view that the general understanding can be as qualified as possible. And that is where the task of the school as a producer of belonging to the new forms of life enters. Its specificity reveals itself, especially in the nature of the knowledge it conveys. In this sense, the notion of an expanded rationality, oriented to the construction of intersubjective understandings, offers the horizon that allows to distinguish the type of knowledge that is to be ministered in the schools.
Keywords: Education, humanization, democracy, belonging, school knowledge.
Dossier
A especificidade da educação escolar nas sociedades republicanas e democráticas
The specificity of school education in republican and democratic societies
Recepção: 06 Dezembro 2018
Aprovação: 13 Dezembro 2018
É de Cláudio Dalbosco (2009), professor e pesquisador da Universidade de Passo Fundo, no Brasil, a conceituação de educação como um “diálogo vivo entre gerações”. Trata-se de um conceito construído com base em eminentes pensadores da educação, como Rousseau, Kant e Hannah Arendt. Como se pode perceber, não há nessa conceituação algo como o enunciado de um conteúdo necessário que tivesse que compor a bagagem a ser transmitida, mas apenas o indicativo de uma forma procedural, no caso, a forma dialógica, como a educação devesse se realizar. Disso denota-se que a educação requer esse apreender com quem veio antes, no tempo e na cultura, ou seja, ela requer a mediação de quem já passou pela experiência de ter-se formado, ou, como se pode dizer, de quem já encarou o desafio de sua humanização.
O entendimento de educação como um diálogo vivo entre gerações foi engendrado, considerando os autores acima referidos, no espírito de uma modernidade revolucionária e iluminista que, por sua vez, fez suas apostas numa ordem política pautada nos ideais republicanos e democráticos. Fundada nos princípios da cidadania universal, a nova ordem estabeleceu uma ruptura com os regimes despóticos, autocráticos e aristocráticos anteriormente vigentes. Assim, com base no pressuposto de que ninguém sabe ao certo qual o melhor caminho a ser tomado, assume-se o princípio de que é sempre razoável compartilhar a responsabilidade das escolhas com todos os envolvidos.
Nesse mesmo contexto moderno, junto com a nova ordem política, é instituída a educação escolar como intimamente articulada ao projeto inclusivo, na perspectiva de que ela pudesse vir a contribuir para o aprimoramento, quiçá progressivo, desse novo modo de organizar e gestar a coisa pública. Sua tarefa política será a de qualificar as opiniões de todos com vistas a um entendimento geral igualmente qualificado. E é por isso, também, que é o Estado que assume a tutela da educação escolar, considerando-a como exercício de uma função pública. Conservar as conquistas políticas e oferecer as condições para o desenvolvimento social e cultural tornam-se, por assim dizer, a própria razão de ser da atividade escolar.
A questão da especificidade da educação escolar nas sociedades republicanas e democráticas, incluindo o que cabe nela ensinar, tem a ver com o modo como, nesse novo contexto, se acredita possam vir a serem estabelecidos os vínculos entre os indivíduos na perspectiva de uma coesão social. Conforme os ideais aí propugnados, essa coesão, ou sentimento de pertença a uma ordem coletiva, já não seria baseada em algum tipo de força heterônoma, mas se assentaria na autonomia e deliberação de sujeitos que, livremente, se vinculariam a uma ordem política e social, considerando-se, portanto, partícipes e cúmplices dos destinos da coletividade.
Antes de entrar na questão da especificidade da educação escolar em sociedades republicanas e democráticas, especialmente no que se refere à natureza do conheci-mento que aí cabe ser ensinado e aprendido, vamos encetar uma reflexão sobre o modo como humanos constroem mundo a partir do desenvolvimento da capacidade simbólica. Com base nessa reflexão, mais propriamente sobre a condição humana, acreditamos poder situar o tema da educação sob um horizonte mais vasto, em que o desafio que se põe para a formação das novas gerações pressupõe uma tarefa intergeracional.
Iniciamos com uma indicação do filósofo Ernst Tugendhat (2007), que defende a ideia de que todo o filosofar deveria começar com uma apreensão de nossa condição antropológica. Nesse sentido, ele nos faz pensar no fato de que para nós humanos os caminhos não são óbvios, ou seja, a direção a escolher não está inscrita em nós, como ocorre com as demais espécies animais[1]. Assim, não estão inscritos em nós, como modelos rígidos, os padrões de nossas interações com os outros e com o meio em que nos encontramos, nem o jeito humano de ser e de se expressar. Denota-se, com isso, uma abertura fundamental da condição humana para um horizonte de possibilidades, de invenção, de autocriação. E tudo o que realizamos sob esse horizonte de possibilidades chamamos de mundo humano, e que já não se confunde com o “espaço natural”.
Essa não obviedade de nossos caminhos se vincula àquilo que permitiu o surgimento de nossa humanidade, que foi exatamente a renúncia aos instintos como guias exclusivos de nossas vidas. Nesse sentido podemos nos referir ao humano como um animal que “saiu da verga”[2], saiu da “trilha”, do “leito natural” e que, por isso, já não encontra nos instintos referências suficientes para viver no mundo que criou ao “sair da verga”, ao dizer não aos instintos. Numa interpretação antropológica do mito da criação, constante do texto da Bíblia, trata-se da instauração do humano por um ato de desobediência, o de comer da fruta da árvore do conhecimento. Nessa perspectiva, o humano se inaugura com a expulsão do paraíso, ao passo que o relato anterior representa, ainda, a pura animalidade, ou seja, aquela condição em que os caminhos ainda são óbvios. O custo deste desprendimento do mundo instintivo é similar ao de ter comido “o fruto proibido”, “a maçã”[3].
A espécie humana revelou-se, assim, como uma espécie aberta, como já não mais acabada, mas com possibilidades de se fazer e refazer continuamente. Esse fazer-se e refazer-se se expressa como possibilidade de aprender, como possibilidade de transcender a determinação instintiva. Todo aprendizado humano configura, assim, expressão de uma diferenciação com relação ao que seria uma condição fechada, pré-determinada, tal como observamos nas demais espécies. Enfim, com o cometimento desse “pecado original”, dessa não mais obediência cega aos instintos, os humanos se inventaram e, com isso, necessitam continuar se inventando. O fruto dessa invenção, reiteramos, é o que chamamos de mundo humano.
O mundo humano resulta, portanto, dessa capacidade de transcender a determinação instintiva, de produzir modos de ser e de interagir “por sobre e em tensão” às inclinações biológicas. Um mundo que se constituiu exatamente porque essa relação com os outros e com as coisas deixou de ser meramente reflexa, de simples reação instintiva aos seus estímulos, tornando-se, por isso, intencional e deliberativa.
Essa forma de configurar mundo se assenta numa dimensão constitutiva do humano e que podemos explicitar como sendo sua condição hermenêutica, no sentido de que nosso estar no mundo já é sempre um “estar compreendendo”, possibilitado, por sua vez, por um “estar interpretando”. Dada essa condição, nós só temos mundo (humano) porque inventamos os signos (o simbólico) que funcionam ao modo de redes (de significados) que nos oferecem alguma visão das coisas à medida que operam como janelas para o mundo. Isso significa que o mundo não se nos dá, mas nós o interpretamos (com o que passamos a ter mundo) de acordo com o potencial de nossa rede de significados. O mundo, por isso, sempre está à mercê de nós. Não existe sem nós.
Isso que constitui o modo humano de ser e interagir se articula com uma perspectiva filosófica que entende que o “jogo da vida humana” se instaurou e se define fundamentalmente no âmbito da linguagem, podendo esta ser tomada como acontecimento humano primeiro, fundante de tudo o que possa ser considerado humano. Assim, é a linguagem ou, de modo mais amplo, o simbólico que permitiu ao humano transcender o comportamento reflexo, automático, instintivo, natural. Por isso, para esses seres que inventaram o simbólico, quando se encontram em uma determinada situação, o que seria o seu desfecho natural, instintivamente controlado, passa a ter um desfecho imprevisível, uma vez que se faz presente nessa situação, ou na cena em que se desenrola uma determinada ação, um componente simbólico. Componente esse que, na verdade, é uma criação imaginária, podendo ser um tabu, uma interdição, uma lei, uma regra, enfim, alguma categoria da ordem do imaginário que interrompe ou, de alguma forma, provoca um desvio em relação ao que seria o transcurso natural dessa cena. E é esse simbólico, portanto, que quebra a obviedade dos caminhos e instaura a possibilidade de padrões humanos no que se refere às interações com o meio e com os demais, bem como em relação aos modos de portar-se dos indivíduos.
Será a partir dessa compreensão do modo humano de ser e configurar mundo que vamos situar o tema da educação e, em seu âmbito, o desafio da formação das novas gerações. É isso que tematizaremos a seguir.
Tudo o que podemos considerar como conquistas civilizatórias, portanto, não deriva de uma natureza biológica, o que denota o seu caráter de artifício. O mundo humano, expressão dessas conquistas, é propriamente o resultado de uma tensão que a espécie foi capaz de estabelecer em relação a sua base animal, o que permitiu a produção de padrões sociais e culturais que já não são expressões naturais. O que é natural se reproduz dentro de uma lógica intrínseca, genética ou de manutenção da vida. Já os padrões sociais e culturais necessitam de um esforço intencional para serem aprendidos. Para todos os efeitos, as conquistas civilizatórias só se mantêm ou conseguem ser aprimoradas se forem objeto de aprendizagem e de cultivo por parte das novas gerações.
Processos de aprendizagem podem ser concebidos como processos de atualização do sentido do humano por meio dos indivíduos (Habermas, 1990)[4]. Assim, pode-se dizer que o que temos como humano necessita de atualização por parte de cada nova geração que vem ao mundo e, a rigor, por cada novo ser humano que nasce. Essa atualização, por óbvio, não significa a mera reprodução das conquistas civilizatórias das gerações precedentes, pois pressupõe o seu ajustamento às circunstâncias de cada novo tempo, incluindo aí as novas percepções que os sujeitos vão construindo entre si e em suas interações com o meio em que se encontram.
Entendemos oportuno, aqui, lembrar o que Kant (1996) nos deixou como reflexão acerca da dialética fundamental da educação, e que pode ser expressa em termos como: homens precisam educar homens em humanos, sendo que para isso não dispõem de orientação a não ser o seu próprio entendimento do que seja humano. Podemos referir esse entendimento como sendo a “equação impossível” que a educação nos apresenta. Impossível por incluir como que três variáveis: o educador, que ainda está se fazendo, o educando, que se encontra diante de inúmeras possibilidades de fazer-se, e o humano, como o sentido a ser buscado, em cada época e cada novo contexto, mas jamais definido de vez. Assim, quando falamos de humanização devemos buscar um entendimento sobre o que isso pode significar, digamos assim, aqui e agora. Obviamente que nunca começamos da estaca zero. Temos como que uma história do humano às nossas costas, ao modo de um aprendizado que fomos tendo ao longo dos tempos.
A orientação da educação para o que chamamos de humanização implica esse tensionamento entre o que a tradição nos legou e as circunstâncias e dinamismos do tempo presente. Usando a imagem da direção de um carro, significa a capacidade de olhar pelo retrovisor e ao mesmo tempo andar para a frente. A educação requer, portanto, essa lembrança dos caminhos andados e, inclusive, dos percalços que a humanidade teve. Adorno (1995), nesse sentido, sugere que a educação deva formar para que situações como a do genocídio de Auschwitz não se repitam.
Sob o ponto de vista da condição humana a educação se põe, portanto, como uma tarefa intergeracional. A humanidade é feita de gerações que se sucedem em sentido de continuidade e de mudança. Cada nova geração se faz com base na herança recebida da geração anterior e pela sua capacidade de criar o novo. Novo este que resulta da capacidade de transcender o dado em si mediante interpretação, configurando um mundo estruturado simbolicamente, coincidente com o que chamamos de mundo humano. Assim, o próprio da capacidade aprendente de nós humanos não é a mera repetição ou pactuação de sentidos já produzidos, mas a possibilidade de reconfigurar esses sentidos, atribuindo-lhes percepções novas, inéditas. O desafio intergeracional que a educação põe convoca educadores e educandos a comparecerem com as suas próprias experiências de se tornarem humanos.
Essa compreensão dos vínculos entre a condição humana e o caráter da nossa civilidade sugere pensar a educação, especialmente em sua forma escolar, sob essa perspectiva da manutenção e, quiçá, do aprimoramento das conquistas civilizatórias. Tudo o que podemos tomar como educação terá como objetivo, em última instância, a produção de vínculos entre as novas gerações com o que historicamente se construiu como mundo humano, de modo que elas possam se perceber como pertencentes a esse mundo. No caso da escola republicana, porém, há um modo específico de como se concebe a produção desse pertencimento, o que tem a ver com as expectativas de uma maior valorização do sujeito individual no processo de produção das formas de coesão social. É disso que vamos tratar no próximo tópico.
O descolamento do modo natural de ser e de interagir implicou a criação de padrões de expressão e de interação tipicamente humanos, simbolicamente estruturados, para a viabilização da vida coletiva. Imaginados e criados, ao modo de artifícios, o fundamento desses padrões só pode encontrar-se em algum tipo de pacto que os humanos foram capazes de estabelecer entre sí. Esses pactos, históricos e sempre passíveis de redefinição, passaram a pautar a vida social e as formas de expressão cultural.
Dado esse caráter produzido e, portanto, artificial do mundo, faz-se mister que as novas gerações venham a ser inseridas nesse patrimônio simbólico, cultural e social, que ao longo dos tempos a humanidade construiu e que, de alguma forma, e sempre numa determinada época, se considera como válido ou legítimo. A educação, a sua essência, como entende Arendt (2002), está no fato de que novos nascem para o mundo, demandando aos que já nele se encontram a tarefa de transmitir-lhes o modo humano de ser e de interagir, já que nada disso se encontra inscrito na genética daqueles que nascem[5]. Os adultos, cientes de que para os neófitos tudo é estranho, vão se empenhar para familiarizá-los com essa forma humana, artificial e inventada, de ser, de conviver e de interagir. Eles sabem que os novos, caso não conseguirem aprender o modo humano de viver, constituem uma ameaça ao mundo que está aí. Daí o desejo de quem educa de que os que chegam ao mundo venham a aprender como ele é, e, com isso, passem a compartilhar essas construções simbólicas que o estruturam, vindo, com isso, a acreditar nas crenças vigentes.
Dado o pressuposto hermenêutico acima indicado, de que o mundo percebido é aquele que se nos revela a partir de nossos esquemas interpretativos, tudo o que podemos entender por conhecimento, saber ou percepção é, num primeiro momento, de uma mesma natureza, já que se expressa ao modo de configurações simbólicas. Por isso podemos dizer, em sentido mais geral, que tudo não passa de crença, haja vista que as configurações simbólicas, inclusive as que nos oferecem uma imagem da materialidade do mundo, poderiam sempre serem outras, serem diferentes daquelas que temos estabelecido.
O êxito na transmissão das configurações simbólicas vigentes para as novas gerações significa, também, o êxito na produção do seu pertencimento ao mundo humano comum. Trata-se, por óbvio, de um tipo de coesão já não pautada em princípios coercitivos da natureza, como a força física e os instintos, mas nos princípios aglutinadores de forças simbólicas, que é o modo como humanos produzem pertencimento e coesão.
Esse desejo de compartilhamento de crenças, que de alguma forma sempre nos move quando educamos, tem uma razão de ser: queremos continuar vivendo com um mínimo de coesão social, num mundo em que todos possam se sentir partícipes, pertencentes[6]. Nesse sentido de construir pertencimento, coesão social e mundo comum, a humanidade tem uma larga tradição: criamos tabus, contamos mitos, inventamos deuses, atribuímos forças sobrenaturais a soberanos e estabelecemos formas de governo as mais diversas. Na mesma linha, desenvolvemos diferentes estratégias, ou lançamos mão de algum mote específico, como a língua, a raça, a religião e, até, mesmo o ódio a algum inimigo, para nos percebermos como um grupo humano específico, como uma tribo, como um povo, uma nação ou um país. Decorre desse entendimento que nossos deuses são tão “reais” como a nossa democracia, a nossa república, o nosso sistema jurídico, o nosso sistema científico.
Diante disso, como situar o modo específico de a escola republicana produzir coesão social? Que tipo de crença ou construção simbólica aí se transmite e se espera que venha a ser compartilhado com vistas à produção de pertencimento por parte das novas gerações? Pelo fato de a escola da qual estamos falando ter um qualificativo, que é o de ser republicana, a coesão a ser construída já indica para um sentido de “coisa pública”, e, por extensão, a algo compartilhado entre cidadãos capazes de pensamento próprio, de deliberação, de entendimento, haja vista ter sido forjada no espírito da modernidade iluminista. Se há inúmeras possibilidades de produzir pertencimento, como acima buscamos indicar, trata-se aqui, na escola republicana, da produção de pertencimento que não implique renúncia à liberdade, ao entendimento, à capacidade de deliberação, à inteligência, enfim, que não implique renúncia à subjetividade.
E é sob essa perspectiva que podemos situar a absoluta novidade trazida pelos modernos que, embalados pelo espírito da razão iluminista, fizeram sua aposta na possibilidade de poder vir a “fazer mundo comum” mediante processos de assentimento por parte das subjetividades individuais, no caso, aqui, mediante uma renúncia à como-da situação de menoridade. Na república, portanto, o que se espera que venha a produzir o pertencimento a um Estado já não é a fé, a raça, a condição social, a tradição, dentre outras possibilidades, mas o compartilhamento de crenças às quais seja possível assentir por convicção subjetiva, mediante, digamos assim, um exercício da razão, do entendimento, da compreensão, da percepção de um sentido lógico proveniente de um processo argumentativo. E é por esse caminho, ou com base nessa compreensão, que se chega à natureza do conhecimento a ser ministrado na instituição escolar republicana. Entendida a natureza do conhecimento escolar como sendo aquele conhecimento que é passível de ser submetido a procedimentos argumentativos com vistas à construção de entendimentos, podemos, aqui, fazer vínculos com o que Michael Young entende como sendo o específico do conhecimento escolar, e que se expressa no que ele propõe como um currículo baseado em disciplinas (Young, 2011). Em seu entender “[...] o conheci-mento incluído no currículo deve basear-se no conhecimento especializado desenvol-vido por comunidades de pesquisadores” (p. 614). Daí que, para o autor,
“as disciplinas também são comunidades de especialistas com histórias e tradições distintas. Por meio dessas comunidades, professores em diferentes escolas e faculdades estão ligados uns aos outros e àqueles que estão nas universidades produzindo novos conhecimentos. Cada vez mais, professores em países diferentes também se ligam por meio de periódicos, conferências e internet. (p. 616)
Assim, ainda conforme Young, “Ao adquirirem conhecimentos das disciplinas, eles [os alunos] estão ingressando naquelas ‘comunidades de especialistas’, cada uma com suas diferentes histórias, tradições e modos de trabalhar” (p. 617).
Ao vincular o conhecimento que se espera ser priorizado nas instituições escola-res com o que se produz nas comunidades científicas, Young (2011) explicita que esse é um “conhecimento poderoso” pelo fato de ser teórico e prospectivo, possibilitando a produção de novas soluções diante de novos problemas ou de contextos diferenciados. Mas há aí, também, esse sentido de um conhecimento sustentado em boas razões, haja vista ter sido produzido e avalizado em espaço argumentativo de uma comunidade de saber. Sua aprendizagem em contextos de ensino permite a recorrência e a apresentação dessas razões que constam como suporte de sua pretensa validade. Esse fato, por si só, pressupõe o reconhecimento dos aprendizes como capazes de compreender razões, isto é, de fazerem jus ao direito de um livre entendimento.
O que estamos sugerindo em relação a isso que podemos chamar de natureza do conhecimento escolar em sociedades republicanas e democráticas se aproxima com o que também Habermas entende como sendo o móvel das disciplinas no processo de formação. Referindo-se à aprendizagem em contexto universitário, no artigo “A Ideia da Universidade: Processos de Aprendizagem” (Habermas, 1993), ele remete a um texto de Schleiermacher que diz: “O princípio primeiro de todo o esforço voltado para o conhe-cimento é o da comunicação”. Na sequência, diz textualmente que “[...] são as formas comunicativas da argumentação científica que afinal permitem dar coesão e unidade aos processos de aprendizagem universitária nas suas diversas funções” (p. 128-129). Continuando, afirma que os “[...] processos de aprendizagem inserem-se inevita-velmente numa comunidade comunicativa e pública dos investigadores” (p. 129). Segue, ainda, com uma indicação muito específica acerca do caráter das disciplinas: “As disciplinas científicas constituíram-se em espaços públicos internos a cada uma delas, e só adentro destas estruturas elas poderão manter a sua vitalidade” (p. 129). Por fim, reconhece que os espaços de aprendizagem, embora distintos daqueles que configuram as comunidades científicas, “[...] participam de forma marcante daquela racionalidade comunicativa através de cujas formas as sociedades modernas —isto é, não cristalizadas e libertas de modelos dominantes— terão de ganhar consciência de si próprias” (p. 130). Entendemos que tudo isso, guardadas as devidas proporções em relação à aprendizagem escolar, também corrobora o que acima denominamos de natureza específica do conhecimento numa escola republicana.
É importante destacar que a perspectiva habermasiana, aqui sumariamente indicada, amplia a noção de conhecimento e de ciência para além do que costumei-ramente se tem entendido como o campo das ciências positivas, empiricamente contro-lável, orientado ao domínio cognitivo de alguma situação ou à algum tipo de intervenção instrumental ou estratégica. O campo do conhecimento legitimado se amplia para todos os domínios do saber que se orientam pelo entendimento compartilhado, isto é, que constroem a sua validade com base em bons argumentos no âmbito de uma comunidade científica. A certificação em espaços de entendimento intersubjetivo é o que confere, por sua vez, o caráter distintivo daquele conhecimento que cabe ser ministrado em espaços de educação que contam com a tutela da ordem republicana, como é o caso da escola.
Com base nessa linha de compreensão, exclui-se da escola todo e qualquer tipo de conhecimento que depende de mera adesão, de algum tipo de ato de fé que devesse ser feito e que, por isso, não se submete ao crivo da discutibilidade crítica. Entendemos que esse é o delimitador de “águas” que necessita ser muito bem sinalizado e que nos parece permitir uma espécie de atualização do espírito republicano com base num pensar pós-metafísico (todos os conhecimentos são criações simbólicas cujo funda-mento está nos próprios sujeitos que compartilham um horizonte comum de significados) e numa razão ampliada (mundos objetivo, social e subjetivo como passíveis de entendimento compartilhado), conforme propõe Habermas em sua Teoria do Agir Comunicativo (Habermas, 1987).
Assim, é essa noção ampliada do que podemos chamar de universo da “razoabilidade” (do campo do possível entendimento compartilhado) que demarca a pertinência de saberes a serem trabalhados na escola na perspectiva da construção de um pertencimento à coletividade humana, no caso, circunscrita pela ordem republicana. Por isso, temas de conhecimento que mesmo não podendo serem tratados ao modo de saberes verificáveis, nos moldes da ciência positiva, se transformam em conhecimento escolar pertinente à medida que são objeto de um conhecimento de possível entendimento, construído com base em bons argumentos, o que inclui, por exemplo, as questões de gênero, da vida política e da distribuição dos bens culturais, da moralidade dos costumes, etc.
Por fim, cabe observar que sempre foi e sempre será mais fácil “fazer mundo comum” e produzir pertencimento a partir de temas que são um convite ao exercício da menoridade, o que sempre fascina pela comodidade. Religião, tradição, passado (cujas tragédias tendemos a minimizar) podem operar como componentes simbólicos para a produção de pertencimento. Mas há, ainda, um patamar de apelo mais fácil, que é o da produção de pertencimento a partir do inimigo real ou imaginário, acerca do qual se pode alimentar o ódio, querer a sua exclusão, a sua aniquilação[7]. São os apelos simbólicos vinculados às inclinações humanas mais primárias, dentre as quais o instinto da preservação, que, inclusive, em tempos atuais têm produzindo um efeito de perten-cimento inimaginável. E quando o pertencimento se produz dessa forma configura-se um retrocesso civilizacional, uma espécie de “retorno às cavernas”, sinal evidente de que a educação já falhou. Por isso entendemos como fundamental e urgente construir categorias teóricas para iluminar esse debate sobre a especificidade da escola repu-blicana, incluída aí a especificidade da natureza do conhecimento a ser nela ministrado. Se não formos bem-sucedidos nessa empreitada, a escola republicana corre sérios riscos e, com ela, a nossa república.
Na formação das novas gerações está em jogo mais do que o mero aprender ou o simples adquirir conhecimento. O grande legado a ser transmitido, e que requer um diálogo vivo entre gerações, é o do mundo humano como um artifício sustentado numa cumplicidade recíproca. Conceituada como um diálogo vivo entre gerações cabe à educação fazer a acolhida das novas gerações ao mundo na perspectiva do reforço de uma cumplicidade para com o que entendemos serem as nossas melhores conquistas civilizatórias. Nesse sentido, ela pode ser entendida como inserção crítica e participativa num mundo ainda em construção ou em contínua renovação. De outra parte, cabe reiterar que o “saber do mundo”, que expressa a nossa humanidade, não nos vem de nascimento, não está inscrito em nossos genes. Mundo e humanidade são artifícios criados e, como todo artifício, necessitam ser aprendidos, sabendo-se que sempre poderiam ser diferentes.
Na educação escolar em sociedades republicanas e democráticas se espera uma experiência formativa em que se pressupõe que o mundo, ao ser “ensinado e apren-dido”, passe por um crivo argumentativo, já que o aprender sempre implica em compreender razões, e que necessitam ser oferecidas. Assim, a tematização de um conteúdo, seja ele um conhecimento científico, um valor humanitário ou uma conquista civilizacional, sempre requer a apresentação dos critérios de sua aceitabilidade, o que sugere a recorrência ao modo como esses conhecimentos se constituíram. Ou seja, requer a recorrência àquele discurso que resultou em sua validação, à luz do qual o educador deve extrair os motivos de sua aceitabilidade, apresentando-os aos seus educandos para que possam fazer a sua compreensão.
O discurso consiste num procedimento comunicativo que no âmbito das comuni-dades científicas e das organizações sociais e políticas opera como mecanismo de avaliação crítica da validade dos conteúdos culturais e das demais dimensões que são incorporadas no mundo comum. Conforme Habermas “Os discursos são como máqui-nas de lavar: filtram aquilo que é racionalmente aceitável para todos. Separam as crenças questionáveis daquelas que, por um certo tempo, recebem licença para voltar ao status de conhecimento não-problemático” (Habermas, 2004:63).
Sendo que a validade de um conhecimento, sua adequação ou pertinência, se sustenta num discurso sempre aberto no âmbito de uma comunidade científica ou num âmbito político-social, sua comunicação e aprendizagem implicam a reconstrução (desmontagem e remontagem) desse discurso. Ou seja, a aprendizagem de um conhe-cimento pressupõe de certo modo um ingresso na comunidade discursiva que sustenta a sua validade, o que abre, inclusive, a possibilidade de que novos pontos de vista sejam agregados nessa reconstrução.
Experiências formativas em escolas republicanas pressupõem, portanto, a necessidade absoluta de argumentar e de dispor-se às objeções, enfim, pressupõem a necessidade de um diálogo com aqueles que desejamos façam parte do mundo humano comum. Assim, as instituições que se ocupam da educação podem ser concebidas como espaços de “oxigenação” das tradições sociais e culturais, já que a sua validade só se mantém ao preço de entendimentos compartilhados com as novas gerações.
Pela realização de um “discurso pedagógico” no próprio processo de apresen-tação dos conhecimentos, a educação assume uma dimensão crítica da cultura e da sociedade. Tem-se, assim, um freio para o que seria uma mera reprodução da sociedade, já que os valores, os conhecimentos e as regras só se mantêm em função das razões que atestam a sua razoabilidade, a sua adequação, a sua pertinência. Vincula-se esse entendimento à convicção, e também experiência de cada um de nós, de que nós humanos aprendemos “teimosamente”, isto é, só com base em convencimento através de razões. É essa a condição que, por sua vez, se coloca para que haja algum tipo de êxito na mediação cultural, algum sucesso na empreitada educacional, uma vez que a aprendizagem, assim entendida, se realiza ao modo de uma convicção e não de mera adesão. É essa, também, a forma possível de vincular conhecimento com transformação que humanamente valha a pena. É assim, por fim, que se concebe uma formação escolar orientada para a autonomia e que, na perspectiva do pensamento moderno e iluminista, se torna fundamental para a vida numa sociedade democrática.