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O PAPEL DA FÉ NA PROMOÇÃO DA SAÚDE EM PACIENTES COM ESCLEROSE MÚLTIPLA
The role of faith in health promotion in patients with Multiple Sclerosis
El papel de la fe en la promoción de la salud de pacientes con Esclerosis Múltiple
Revista Brasileira em Promoção da Saúde, vol. 29, núm. 4, pp. 574-584, 2016
Universidade de Fortaleza

ARTIGOS ORIGINAIS


Recepção: 19 Setembro 2016

Revised document received: 04 Novembro 2016

Aprovação: 23 Novembro 2016

DOI: https://doi.org/10.5020/18061230.2016.p574

Resumo: Objetivo: Compreender a percepção que as pessoas com Esclerose Múltipla (EM) têm em relação ao seu sofrimento pessoal e se a fé é um recurso interno que utilizam para diminuir o sofrimento. Métodos: Estudo de abordagem qualitativa, centralizada nos temas sofrimento, fé e sentido de coerência (SOC), a partir de entrevista semiestruturada. Participaram do estudo 15 pacientes com EM pertencentes à uma associação de apoio ao doente com EM (Portugal). As entrevistas decorreram de setembro a outubro de 2015, em local previamente acordado com os entrevistados. Para a categorização dos dados que resultaram das entrevistas, partiu-se de temas estabelecidos a priori. Utilizou-se como fundamentação teórico-metodológica a hermenêutica na análise temática da fala dos participantes. Resultados: No tema sofrimento, as categorias permitem compreender o impacto do sofrimento nos doentes com EM. No tema fé, as categorias permitem compreender que, perante os eventos estressores da EM, as crenças, as práticas espirituais e religiosas podem auxiliar os pacientes a enfrentarem os desafios que se apresentam no seu continuum saúde-doença. No tema sentido de coerência (SOC), as categorias permitem perceber que o SOC nestes pacientes é adquirido quando desenvolvem a capacidade de identificar, mobilizar e utilizar recursos no enfrentamento e alívio do seu sofrimento, sendo a fé um deles. Conclusão: A fé enquanto recurso geral de resistência da pessoa com EM, quando mobilizada para enfrentar a doença, contribui para a aquisição de um SOC que permite ganhos em saúde para estes pacientes, devendo ser um recurso oferecido aos pacientes pelos profissionais de saúde.

Palavras-chave: Esclerose Múltipla, Cura pela Fé, Promoção da Saúde.

Abstract: Objective: To understand the perception that people with Multiple Sclerosis (MS) have of their personal suffering and to verify whether faith is an internal resource used by them to lessen their suffering. Methods: Study with qualitative approach, centered on the themes - suffering, faith and sense of coherence (SOC), by using semi-structured interview. The study included 15 patients with MS belonging to a support association for MS patients (Portugal). The interviews took place from September to October 2015, in a place previously agreed with the interviewees. For categorization of the data obtained through the interviews, themes previously established were adopted. Hermeneutics was used as theoretical and methodological basis in the thematic analysis of the participants’ discourse. Results: On the theme suffering, the categories allow to understand the impact of suffering on patients with MS. On the theme faith, the categories allow to understand that, in the presence of the MS stressor events, beliefs, spiritual and religious practices can help patients meet the challenges that arise in their health-disease continuum. On the theme sense of coherence (SOC), the categories allow to realize that the SOC in these patients is acquired when they develop the ability to identify, mobilize and use resources in the confrontation of and relief from their suffering, with faith representing one of those. Conclusion: Faith, as a general resistance resource for the person with MS, when mobilized to tackle the disease, provides the acquisition of a SOC that allows these patients to achieve positive health outcomes, and should be a resource offered by the health professionals.

Keywords: Multiple Sclerosis, Faith Healing, Health Promotion.

Resumen: Objetivo: Comprender la percepción de las personas con Esclerosis Múltiple (EM) respecto su sufrimiento personal y si la fe es un recurso interno utilizado para disminuir el sufrimiento. Métodos: Estudio de abordaje cualitativo centrado en los temas sufrimiento, fe y sentido de coherencia (SOC) a partir de la entrevista semiestructurada. Participaron del estudio 15 pacientes con EM de una asociación de apoyo al enfermo con EM (Portugal). Las entrevistas se dieron entre septiembre y octubre de 2015 en un sitio de acuerdo a los entrevistados. La categorización de los datos de las entrevistas se ha iniciado a partir de temas establecidos a priori. Se utilizó la hermenéutica como fundamentación teórico-metodológico para el análisis temático de las hablas de los participantes. Resultados: En el tema sufrimiento, las categorías permiten comprender el impacto del sufrimiento en los enfermos con EM. En el tema fe, las categorías permiten comprender que, mediante los eventos de estrés para la EM, las creencias, las prácticas espirituales y religiosas pueden auxiliar a los pacientes a afrontar los desafíos que se presentan en su continuum salud-enfermedad. En el tema sentido de coherencia (SOC) las categorías permiten percibir que el SOC en eses pacientes es adquirido cuando desarrollan la capacidad de identificar, movilizar y utilizar recursos para el afrontamiento y alivio de su sufrimiento, siendo la fe uno de ellos. Conclusión: La fe en cuanto un recurso general de resistencia de la persona con EM, cuando movilizada para afrontar la enfermedad contribuye para la adquisición de un SOC que permite ganancias en salud para eses pacientes y debe ser un recurso ofrecido a los pacientes por los profesionales sanitarios.

Palabras clave: Esclerosis Múltiple, Curación por la Fe, Promoción de la Salud.

INTRODUÇÃO

Vários autores têm referido que as crenças de âmbito espiritual/religioso constituem um fator de resistência (e não só de resiliência) à dor e/ou sofrimento humanos(1,2,3).

Num estudo anterior(4), procurou-se compreender os conceitos de sofrimento e fé em pessoas com esclerose múltipla (EM), nas várias etapas da doença, inclusive naqueles que se encontravam em unidades de cuidados paliativos. Foram encontradas associações que sugeriam que a fé funciona como um recurso interno de resistência da pessoa ao sofrimento, pois a capacita para a compreensão e gestão do sofrimento causado pela doença, bem como amplia o seu sentido interno de coerência, à medida que a pessoa consegue transcender, vivenciar e atribuir um significado menos negativo ao seu sofrimento.

No que concerne à definição de fé, as autoras recorreram à teologia filosófica(5) (orientação cristã), por contraposição à espiritualidade(6,7,8). Assim, a fé, sucintamente, refere-se à entrega confiante, aos desígnios de uma entidade transcendental, na qual se reconhece um profundo amor. Trata-se, pois, de uma experiência muito para além da racionalidade pura humana e que envolve holisticamente(9) o ser humano que a experiencia. A fé pode, ou não, vincular-se a experiências de vida religiosas, marcadas por rituais simbólicos. A espiritualidade, por seu lado, vincula-se a uma dimensão mais lata e difusa de crenças, geralmente definida em torno da capacidade de se atribuir um sentido ao mundo(10,11,12,13).

O conceito de sofrimento pode ser entendido como uma vivência multidimensional e dinâmica de estresse severo que ocorre perante eventos de ameaça à integridade da pessoa no seu todo, no qual os processos regulatórios, que normalmente levariam à adaptação, quando se tornam insuficientes, conduzem à exaustão do indivíduo(14,15). Por sua vez, o conceito de sentido de coerência (SOC)(1) contém três dimensões, que auxiliam o indivíduo a adaptar-se e a ultrapassar o seu sofrimento de uma forma mais saudável, na medida em que consegue compreender o sofrimento (dimensão: capacidade de compreensão - sense of comprehensibility); gerir e mobilizar os diferentes recursos de que dispõem (dimensão: capacidade de gestão - sense of manageability) e atribuir um novo sentido a esse sofrimento, tornando-o menos negativo (dimensão: capacidade de investimento - sense of meaningfulness).

Partindo desses pressupostos, as autoras analisaram numa etapa anterior a eventual relação entre a diminuição do sofrimento em pacientes crônicos com EM e a sua dimensão de fé, em sentido teológico. Na tentativa de se aferir a correlação (ou não) entre estas duas experiências tão profundamente subjetivas, complexas e simultaneamente tão humanas, construiu-se e validou-se um instrumento de medida que permite avaliar a influência da fé na gestão do sofrimento humano. Nesse instrumento, foram analisadas quatro categorias: o sofrimento intrapessoal; o sofrimento interpessoal; a consciência do sofrimento e o sofrimento espiritual(4).

Dada a natureza do fenómeno em estudo e para uma melhor compreensão do mesmo, as autoras, para além da metodologia quantitativa, recorreram à metodologia qualitativa, que privilegia a compreensão sobre os significados que os acontecimentos têm para os participantes da investigação(16) agora apresentada. Dessa forma, objetivou-se compreender a percepção que as pessoas com Esclerose Múltipla têm em relação ao seu sofrimento pessoal e se a fé é um recurso interno que utilizam para diminuir o sofrimento.

MÉTODOS

É um estudo de abordagem qualitativa, centralizado nos conceitos de sofrimento, fé e sentido de coerência. Tem como fundamentação teórico-metodológica a hermenêutica(17). O termo hermenêutica expressa a arte de interpretar(17,18,19), considerando como os conceitos interpretativos de distanciamento, apropriação, explicação e compreensão colocam-se entre a linguagem e a vida vivenciada. Tem como função inicial compreender como orientar numa situação. O entender não se relaciona à apresentação de fato, mas à probabilidade de ser. Não se deve esquecer, quando se tira as decorrências metodológicas dessa análise, este ponto: apreender um texto não é constatar um sentido inerte nele incluído, mas apresentar a possibilidade a ser apontada pelo texto(19).

Através de uma associação de apoio ao doente com esclerose múltipla, os pacientes com EM que já tinham participado previamente no estudo quantitativo da investigação principal Sofrimento e Fé em Pessoas com Esclerose Múltipla(4) em Portugual, foram convidados pela autora a integrar posteriormente este estudo qualitativo. Em estreita colaboração com a associação, foram selecionados para o estudo os pacientes que demonstravam manter a comunicação e cognição preservadas. Os participantes que aceitaram o convite escolheram o local onde gostariam de ser entrevistados, contabilizando um total de 15 pacientes com EM. Para delimitar o tamanho da amostra, adotou-se como critério a saturação do conteúdo da informação apresentada pelos participantes da pesquisa. Considera-se que a saturação teórica das categorias ocorre quando nenhum dado relevante ou novo emerge(16).

As entrevistas decorreram de setembro a outubro de 2015. Cada entrevista teve a duração média de 30 minutos. Foi utilizado um gravador de áudio, tipo iPod, para o registo das entrevistas.

A compreensão do texto e o processo interpretativo dos conteúdos temáticos das narrativas de vida dos participantes do estudo pôde ser representada através da entrevista, transcrita em textos, e interpretada pelo autor(20). As entrevistas são um dos métodos relevantes na investigação qualitativa de tipo hermenêutica, pois possibilitam coletar dados descritivos do discurso dos entrevistados, contribuindo com o pesquisador no desenvolvimento de ideias de como os participantes da pesquisa podem compreender o mundo(21). Tendo em conta a natureza subjetiva da investigação, utilizou-se como instrumento de colheita de informação a entrevista semiestruturada, sendo essa um dos métodos considerados mais adequados quando se pretende conhecer as experiências e percepções dos participantes(22).

As questões norteadoras da entrevista (Quadro I) tiveram por base os conceitos mencionados (sofrimento, fé e sentido de coerência), que resultaram em temas; e, das entrevistas, emergiram as categorias alicerçadas nos temas.

Quadro I
Temas, categorias e questões norteadoras. Portugal, 2015.

Para a análise temática das narrativas, buscou-se entender em um processo que envolve diversas etapas: a reprodução das entrevistas em texto, a compreensão superficial, a investigação estrutural e a apreensão abrangente do texto(20). Esse é um processo participativo, disposto em forma de espiral, uma vez que relaciona as partes do texto com o todo e reciprocamente(20).

O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), Universidade do Porto (UP), sob o parecer nº. 060/2014. Foi omitido qualquer elemento que permitisse identificar os participantes ou pessoas citadas e atribuída uma letra (p=participante) e um número para identificar cada entrevista. O consentimento informado foi preenchido por cada um dos participantes.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As entrevistas decorreram em locais de referência para os pacientes. Os 15 pacientes foram entrevistados (a pedido deles) em locais distintos: um foi entrevistado numa unidade de cuidados paliativos; dois foram entrevistados no seu local de trabalho; quatro foram entrevistados na sua residência e oito foram entrevistados no hospital durante os tratamentos para a EM.

Tendo esses 15 pacientes participado na primeira fase da investigação (estudo quantitativo)(4), as autoras já tinham obtido a sua caracterização sociodemográfica: a média de idade dos participantes é de 45,33 anos, mínimo 31 anos e máximo 60 anos. Seis participantes são homens e nove são mulheres. Dos 15 participantes, 7 (sete) tinham esclerose múltipla secundária progressiva (EMSP) (caraterizada inicialmente por períodos de surto-remissão, e, mais tardiamente, torna-se progressiva, instalando-se uma perda gradual das funções, sendo as recuperações frequentemente incompletas), 7 (sete) tinham esclerose múltipla recidivante remitente (EMRR) (caraterizada por surtos que duram dias, até semanas e em seguida desaparecem), e 1 (uma) participante tinha esclerose múltipla primária progressiva (EMPP) (caraterizada por crises lentas, mantendo o agravamento dos sintomas e envolvendo áreas do sistema nervoso central (SNC) sem remissão da crise inicial). A média de anos de diagnóstico é de 12,13 anos, com um mínimo de 1 ano e um máximo de 36 anos.

Serão apresentados os dados relacionados aos temas sofrimento, fé e sentido de soerência (SOC) a seguir:

O quadro II trata do tema sofrimento e das três categorias: aflição interior; cronicidade e ameaça à integridade da identidade pessoal.

Quadro II
Tema: Sofrimento. Portugual, 2015.

Quadro II (cont.1)
Tema: Sofrimento. Portugual, 2015.

Quadro II (cont. 2)
Tema: Sofrimento. Portugual, 2015.

Quadro II (cont. 3)
Tema: Sofrimento. Portugual, 2015.

A EM é uma doença que apresenta surtos e remissões, imprimindo no paciente uma falsa sensação de segurança e confiança na sua estabilização, levando-o a ponderar, por vezes, a possibilidade de poder vivenciar a cura. Esta incerteza(23) provoca sofrimento nas pessoas e famílias que vivenciam essas experiências com a doença. Nas diferentes categorias identificadas no tema do sofrimento – aflição interior; cronicidade e ameaça à integridade da pessoa – é possível identificar o impacto que esse sofrimento imprime nas suas vidas.

Na categoria aflição interior, foram identificados sentimentos de medo, associados à presença de surtos da doença, à perda de autonomia e ao grau de incapacidade que podem vir a experienciar num futuro próximo (P1, P7, P9, P13).

A EM, sendo uma doença crônica e altamente incapacitante(24), tem uma importante dimensão social, uma vez que a faixa etária para o diagnóstico se situa entre os 20 e os 40 anos de idade(25,26), ou seja, em jovens adultos, período que se revela crucial para o desenvolvimento acadêmico e/ou profissional. Pelo discurso dos participantes, identifica-se na categoria cronicidade o sofrimento causado pela incapacitação que a doença provoca ao nível do trabalho e empregabilidade (P4-5, P8-9, P13-15). Os participantes verbalizam sentirem-se capazes de trabalhar, de produzir, embora a ritmos diferentes (P3). O cansaço é um sintoma muito presente (P8-9, P12-14), levando-os a exprimir que vivenciaram sentimentos de marginalização social quando divulgaram para as entidades empregadoras a sua condição de saúde (P3). Apesar da situação de sofrimento em que se encontram pela cronicidade da doença, os participantes referem ‘ter aprendido’, ou seja, foram sujeitos da sua própria aprendizagem (P2, P5 P13-15), face a face com o sofrimento provocado pela doença(27).

Quanto à categoria ameaça à integridade da identidade pessoal, a origem do sofrimento nos participantes do estudo parece estar relacionada com sintomas ou processos (físicos ou de outra natureza) (P4, P8, P10-11, P13-14) que representam uma ameaça para a integridade da pessoa(28). Os participantes verbalizaram sentirem-se ameaçados no seu todo quando percebem a perda de vínculos (P1), experimentam sentimentos de discriminação social (P3, P7, P8), vivenciam sentimentos de desespero e angústia (P2, P4, P8, P14) e experienciam a perda de autonomia (P4, P7).

Em relação ao tema da fé perante os eventos estressores da EM, as crenças e práticas espirituais e religiosas podem auxiliar os pacientes a enfrentarem os desafios que se apresentam. Deus é o sentido último da existência de quem acredita. A fé cristã caracteriza a vida de quem acredita em Deus. Assim, a fé cristã traduz-se em acolher em sua vida o amor e a graça de Deus confessados em Jesus Cristo. A certeza do amor incondicional da parte de Deus e da justificação do pecado pela graça do Cristo provoca segurança interior em quem acredita, induzindo a se defrontar com qualquer obstáculo, preparando para o amor e a solidariedade(29).

Em relação ao tema fé (numa perspectiva teológica cristã), foram definidas, três categorias assim nomeadas: confiança, ser amado incondicionalmente e graça de Deus (Quadro III).

Quadro III
Tema: Fé. Portugal, 2015.

Quadro III (cont.)
Tema: Fé. Portugal, 2015.

Na categoria confiança, alguns participantes do estudo revelaram confiança num ser superior (P5, P11), que as transcende e confere significado às suas vidas e motiva a existência de cada um(10,11,12). No entanto, referem que esse ser superior poderia intervir de uma forma mais beneficente (P2, P8), ajudando-os a eliminar o sofrimento em vez de aliviá-lo, pois sentem que a confiança depositada n’Ele tem sido por Ele ignorada.

Quanto à categoria ser amado incondicionalmente, verifica-se que, perante a adversidade e a doença, o sentir-se amado incondicionalmente por Deus leva a que a pessoa vivencie uma experiência de libertação, ou seja, de pura graça, de gratuidade incondicional, a expressão desse sentimento aparece através da narrativa de um dos participantes (P8).

Pelo discurso dos participantes e numa perspectiva teológica (cristã), a fé numa entidade transcendente (considerada divina) garante, mesmo em momentos de grande sofrimento, ainda que se sofra intensamente ou se morra, o conforto da experiência vivenciada com Deus e de que tudo terminará bem (dada a crença na vida após a morte), ou seja, a crença na existência de um sentido para o sofrimento que não é construído por nós (daí não ser entendido como meramente psicológico pelos entrevistados), mas antes um sentido que é uma dádiva, uma graça de Deus (categoria) e que lhes confere paz (P5, P8, P15).

Em relação ao tema sentido de coerência (SOC), foram definidas, três categorias nomeadamente: capacidade de compreensão; capacidade de gestão e capacidade de investimento (Quadro IV).

Quadro IV
Tema: Sentido de coerência (SOC). Portugal, 2015.

Quadro IV (cont. 1)
Tema: Sentido de coerência (SOC). Portugal, 2015.

Quadro IV (cont. 2)
Tema: Sentido de coerência (SOC). Portugal, 2015.

Quando abordado o tema do sentido de coerência (SOC), a categoria capacidade de compreensão retrata o modo como a pessoa percebe os estímulos, do meio interno e externo, como referência sistemática, condensada, organizada e clara; o que não implica que a pessoa almeje os estímulos a que é submetida, mas sim que entende porque acontecem dessa maneira. Pelo discurso dos participantes, alguns demonstram ter essa capacidade desenvolvida através da utilização dos recursos materiais, otimismo, perspectiva positiva e suporte familiar (P4, P14). Outros, pelo contrário, verbalizaram sentimentos de revolta e inadaptação, demonstrando ainda não terem conseguido desenvolver esta capacidade ( P7, P9).

Quanto à categoria capacidade de gestão, pelo discurso dos participantes, quase todos (mesmo os pacientes que referem não compreender o seu sofrimento) demonstram ter desenvolvido a capacidade de gerenciamento, narrando como mobilizam e utilizam os recursos gerais de resistência, nomeadamente a arte, o desporto, o trabalho, o voluntariado, o contato com a natureza, o relaxamento e a fuga à realidade, o que os ajuda a ‘suportar’ esse sofrimento (P1-15).

Por último, na capacidade de investimento, pelo discurso dos participantes, alguns demonstram ter desenvolvido a capacidade de atribuir um novo significado à vida ao verbalizarem conseguir identificar os recursos de que dispõem e os conseguirem gerir para fazerem face à doença e ao sofrimento que ela lhes provoca (P4, P9, P10). No entanto, outros participantes expressam sentimentos de angústia, perda da perspectiva e de esperança de virem a ter um futuro, revelando terem optado por desistir e, no limite, quando já desesperados, terem tentado o suicídio, demonstrando, deste modo, ainda não terem conseguido desenvolver de forma eficaz esta capacidade (P1, P2, P6).

Assim, cabe discutir que a esperança refere-se a uma perspectiva positiva quanto ao porvir. Ela leva o indivíduo a agir, capacitando-o para enfrentar os problemas. É caracterizada como um conceito universal, que abrange a qualidade de vida e relaciona-se à condição de saúde. O indivíduo, ao vivenciar o adoecer, quando o enfrenta com esperança, deposita sua energia à expectativa de restituição da saúde e do bem-estar(30).

Assim, desenvolver a esperança é altamente relevante para os pacientes com EM e sua família, uma vez que os motiva a esperar por dias melhores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, diferentes cenários foram desvelados pelos pacientes com EM. Manifestam maior sofrimento ao nível familiar quando sentem que estão a perder a sua autonomia e sentem que sobrecarregam os seus entes queridos. Por outro lado, manifestam o desejo de ver “os filhos crescerem”, expressando sentimentos de medo e aflição por sentirem que podem perder essa possibilidade num futuro próximo. Este sofrimento deverá alertar os profissionais de saúde, bem como os membros das associações de apoio ao paciente com EM, da importância do papel das famílias na vida dos pacientes. Proporcionar suporte, informação e esclarecimento das dúvidas do paciente e de suas famílias pode vir a atenuar a angústia manifestada pelos participantes. Também a nível social, o sofrimento é expresso pelos participantes através da verbalização de sentimentos de tristeza e indignação, por se sentirem impedidos de ter um papel ativo na sociedade em que estão inseridos. Mais uma vez, aos profissionais e associações é exigido um papel de sensibilizar e informar a sociedade do valor e dignidade dessas pessoas, e da contribuição que cada uma pode dar socialmente.

Pôde-se compreender que a fé, enquanto recurso geral de resistência das pessoas com EM, quando mobilizado para enfrentar a doença, proporciona a “força” necessária e a motivação para manter a “luta” diária através da confiança num ser superior que está sempre presente e ama incondicionalmente cada um. Por último, o SOC nestes pacientes é adquirido quando desenvolvem a capacidade de identificar, mobilizar e utilizar, para além da fé, outros recursos no enfrentamento e alívio do seu sofrimento, ganhando uma nova compreensão e atribuindo um novo sentido à realidade. Apesar do sofrimento que experienciam, a aquisição do SOC promove a saúde destes pacientes. Esse fato deverá alertar os profissionais de saúde para a necessidade de criarem condições necessárias aos pacientes com EM para a prática da meditação, oração ou quaisquer outras práticas de expressão espiritual que tenham como fim último a promoção da fé, sempre direcionadas às crenças específicas de cada paciente.

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