Resumo: Objetivo: Discutir a concepção de autonomia circunscrita pelas políticas públicas de saúde no contexto brasileiro, privilegiando como cenário de análise a Política Nacional de Promoção de Saúde. Métodos: Pesquisa exploratória, realizada em maio de 2015, com análise documental dos textos oficiais articulados a literatura sobre o tema para problematizar os resultados encontrados. Resultados: A noção de autonomia é entendida como um aspecto inerente ao homem, adquirindo uma posição cognoscível no interior das políticas públicas. Isso indica que, atualmente, as práticas em saúde inspiradas por essa compreensão estão sendo pautadas por uma perspectiva reflexiva. Com a pesquisa na literatura foi possível ampliar essa concepção de autonomia, demonstrando que qualquer normatividade está encarnada e origina-se a partir do mundo. Conclusão: Entende-se que, com a ampliação do conceito, promove-se uma ruptura com as práticas vigentes, levando a pensar na possibilidade e, porque não dizer, na necessidade de um redimensionamento, no qual a vida e toda a sua especificidade se tornem tão importantes quanto as categorias do entendimento dela derivadas.
Palavras-chave:AutonomiaAutonomia,Políticas Públicas de SaúdePolíticas Públicas de Saúde,Promoção da SaúdePromoção da Saúde.
Abstract: Objective: To discuss the concept of autonomy circumscribed by public health policies in the Brazilian context privileging, as a scenario of analysis, the National Health Promotion Policy. Methods: Exploratory research conducted in May 2015 through a documentary analysis of official texts that were confronted with the literature on the subject in order to problematize the results found. Results: The concept of autonomy is understood as an inherent aspect of man that occupies a cognizable position within public policies. This indicates that the health practices currently inspired by this understanding have been guided by a reflective perspective. The literature search allowed to broaden this concept of autonomy, demonstrating that any normativity is incarnated in and originates from the world. Conclusion: It can be understood that broadening the concept allows to break free from current practices, which leads to think about the possibility and – not to say – the need for changes in which life and all its specificity become as important as the categories of understanding deriving from it.
Keywords: Autonomy, Public Health Policy, Health Promotion.
Resumen: Objetivo: Discutir la concepción de la autonomía circunscrita por las políticas públicas de salud en el contexto brasileño con privilegio para el análisis de la Política Nacional de Promoción de la Salud. Métodos: Investigación exploratoria realizada en mayo de 2015 con análisis documental de los textos oficiales juntamente con la literatura sobre el tema para problematizar los resultados encontrados. Resultados: La idea de autonomía es entendida como un aspecto inherente al hombre adquiriendo una posición cognoscible en el interior de las políticas públicas. Eso indica que actualmente las prácticas en salud que son inspiradas por esa comprensión están pautadas por una perspectiva reflexiva. A través de la investigación en la literatura fue posible ampliar esa concepción de autonomía demostrando que cualquier normatividad está insertada y se origina a partir del mundo. Conclusión: Se entiende que con la ampliación del concepto se promueve una ruptura de las prácticas vigentes llevando a pensar en la posibilidad y porque no decir, en la necesidad de un redimensionamiento en el cual la vida y toda su especificidad se haga tan importante cuanto las categorías del entendimiento de ella derivadas.
Palabras clave: Autonomía Personal, Políticas Públicas de Salud, Promoción de la Salud.
ARTIGOS DE REVISÃO
A AUTONOMIA NO ÂMBITO DA POLÍTICA NACIONAL DE PROMOÇÃO DE SAÚDE
Autonomy in the framework of the National Health Promotion Policy
La autonomía en el ámbito de la política nacional de promoción de la salud
Recepção: 18 Julho 2016
Revised document received: 05 Setembro 2016
Aprovação: 11 Outubro 2016
O conceito de autonomia, no campo da Saúde, vem sendo levado em consideração à medida que, nos últimos anos, tem ocorrido uma transição do modelo assistencial adotado pelo sistema de saúde brasileiro, sobretudo no que se refere aos seus pressupostos, distanciando-se de uma perspectiva curativa, amparada pela lógica biomédica e mecanicista do processo saúde-doença, para adotar uma perspectiva de controle de doenças, pautada na promoção de saúde. Essas alterações fizeram com que alguns aspectos até então não considerados, como determinantes sociais, condição de vida e principalmente o questionamento de “como viver uma vida saudável”, adentrassem na nova agenda de discussões a respeito da saúde.
Com a promulgação da Constituição Cidadã em 1988, a assistência à saúde no Brasil alcançou um novo patamar. Até então as Cartas Magnas brasileiras (1937, 1946, 1967 e a Emenda Constitucional de 1969) faziam menção apenas às atribuições que o poder legislativo tinha em relação a esse contexto(1). Dessa forma, não houve oficialmente, durante muitos anos, uma política nacional de saúde; o que havia eram políticas públicas altamente limitadas em suas ações, voltadas para necessidades pontuais, como o combate a endemias envolvendo doenças infectocontagiosas. Essas intervenções eram organizadas no formato de campanhas, as quais eram extintas assim que conseguiam controlar os surtos presentes na época(1).
Entretanto, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, houve uma modificação ao direito à saúde. Nesta carta, faz-se referência direta ao cidadão e à garantia aos seus direitos fundamentais, passando a saúde a ser qualificada como um direito social, de acesso universal e igualitário(2). Tal transformação na Constituição Brasileira sofreu forte influência da VIII Conferência Nacional de Saúde, evento inédito, realizado em 1986, na cidade de Brasília, que reuniu em torno de quatro mil pessoas para debater o direcionamento do sistema de saúde(3), das quais mil eram delegados com direito a voz e voto. Esse evento representou o auge do Movimento Sanitário Brasileiro, iniciado na década de 1970 e que, ao longo dos anos, foi reunindo cada vez mais colaboradores em prol de uma reestruturação do Sistema de Saúde Brasileiro e consequentemente na forma de atenção à saúde(3).
Seguindo o cenário internacional, essa conferência também apresentava, como uma de suas principais defesas, a necessidade de superar o modelo preventivo-curativo em prol de uma prática fundamentada na promoção de saúde(3). Nas últimas décadas, o modelo biomédico foi ficando obsoleto devido às inevitáveis transformações sociais, políticas, culturais e nos padrões de morte, morbidade e invalidez, tornando esse modelo insuficiente no combate aos novos desafios sanitários(4).
Essas transformações sociais suscitaram alterações fundamentais nos parâmetros da saúde em virtude da mudança do quadro das doenças transmissíveis por doenças não-transmissíveis e causas externas; substituição de morbimortalidade dos grupos mais jovens pelos grupos mais idosos; e alteração de uma situação em que dominava a mortalidade para outra na qual a morbidade é dominante(5). Com efeito, o conceito de saúde, concebido até então como simples ausência de doença, precisou ser revisto, sendo retomado a partir de uma visão positiva, que considerava também o bem-estar físico, mental e social do indivíduo(2).
Com base nessas influências, a Assembleia Constituinte pôde elaborar uma Constituição que legitimava a saúde como direitos de todos, bem como as diretrizes para um novo Sistema de Saúde pautado em princípios mais democráticos, tais como: universalidade, igualdade, equidade, integralidade, descentralização, regionalização e participação da comunidade, visando a constituição da solidariedade e da responsabilidade social do Estado através de um modelo de desenvolvimento socioeconômico legitimamente republicano(6).
Entretanto, apenas após dois anos, em 1990, houve a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da aprovação da Lei Orgânica da Saúde nº 8.080, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde(3). A regulamentação do SUS não garantiu suas ações na prática, sendo necessário traçar estratégias para operacionalizar esse novo sistema. Assim, criaram-se inicialmente as Normas Operacionais Básicas (NOB) e, em seguida, foram acrescidas as Normas Operacionais de Assistência à Saúde (NOAS). Em longo prazo, esses dispositivos apresentaram discordâncias, empenhando os gestores a considerarem outros métodos para a execução desse projeto(7).
Desse modo, numa tentativa de transpor os entraves existentes, o Governo Federal lançou um processo de revisão dos regimes normativos vigentes e, a partir das discussões entre as diversas instâncias (federal, estadual e municipal), constituiu um Pacto pela Saúde(8). Como resultado desse pacto, três grandes áreas de atuação foram definidas: Pacto pela Vida, Pacto em Defesa do SUS e o Pacto de Gestão(8,9).
Assim, diante de um contexto brasileiro de transição epidemiológica, os gestores têm buscado novas estratégias e intervenções dirigidas para a mudança de comportamentos e hábitos, por exemplo: a educação em saúde, que tem se destacado como um importante instrumento contra os ‘vilões’ do bem-estar(10), e a educação permanente em saúde, que surgiu sob o argumento de preparar o trabalhador para obter o cuidado em saúde conforme os princípios do SUS(11). Essas duas políticas de saúde convidam os atores envolvidos no processo saúde-doença a tornarem-se agentes ativos, no intuito de protagonizarem as mudanças colocadas por cada política.
Desse modo, considera-se que as novas tecnologias expressas em políticas públicas, muito mais do que higienistas, conformam-se atualmente como pedagógicas, ordenando também um novo tipo de usuário, cada vez mais apto a cuidar de si. Contudo, observa-se que essa possibilidade de autocuidado e seu possível êxito estão subordinados à prerrogativa inquestionável de que os usuários da saúde têm a capacidade de serem livres e autônomos para refletirem sobre as melhores escolhas em relação a sua própria saúde(12,13). Nesse sentido, a existência desses elementos torna-se condição sine qua non para a efetivação dessas novas práticas, adquirindo uma posição extremamente importante dentre as novas tecnologias político-pedagógicas.
Diante dessa atual conjuntura, este artigo tem como objetivo discutir a concepção de autonomia circunscrita pelas políticas públicas de saúde no contexto brasileiro, privilegiando como cenário de análise a Política Nacional de Promoção de Saúde.
A relevância do estudo está em compreender esse conceito extremamente utilizado na saúde brasileira, esmiuçando seus pressupostos filosóficos e epistemológicos na tentativa de ampliar ainda mais a sua compreensão, para dar maior clareza aos profissionais que embasam suas práticas a partir dele, identificando que tipos de referência foram empregadas para a sua construção e consequentemente o que ele propõe enquanto objetivo a ser alcançado.
Este artigo consiste em uma pesquisa exploratória, realizada durante o mês de maio de 2015, em que se utilizou como técnica para coleta de dados a análise documental, na qual se elegeu como fonte primária a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). Essa escolha justifica-se pela possibilidade de se valer dos arquivos institucionais escritos pelo Ministério da Saúde para obter um conhecimento mais objetivo dessa realidade, bem como observar os processos de mudança dos conceitos, das mentalidades e das práticas ocorridas no decorrer dos anos(14,15).
Inicialmente, a partir de uma leitura exaustiva dos documentos, procurou-se analisar o conceito de autonomia da PNPS, desde o documento inicial de discussão(16), passando pelo texto oficial(9), até chegar em sua última revisão, no ano de 2014, através da Portaria nº 2.446(17). Também foram considerados a Lei n. 8.080/90(18) e o Glossário Temático de Promoção de Saúde(19), em virtude da relevância e aproximação com a temática discutida.
Com o apreendido nos documentos oficiais e a discussão a partir da literatura que aborda o tema autonomia, buscou-se, além disso, problematizar quais os possíveis atravessamentos filosóficos envolvidos na construção do conceito de autonomia, suas implicações para a leitura atual desse conceito e a necessidade de ampliar a compreensão para além do que está posto dentro da PNPS.
Para a operacionalização da análise documental, foram utilizadas as etapas: apuração e organização do material (fundamentada em uma leitura empregando critérios da análise de conteúdo); e análise crítica do documento (caracterização, descrição e comentários, fichamento, levantamento de assuntos recorrentes, codificação, evidência do núcleo emergente, decodificação, interpretação e inferência sobre as informações contidas nas publicações), permitindo a preparação de novos agrupamentos(20). A partir daí, foram traçadas as categorias(21) que, de acordo com a temática, descreveram o tema pertinente ao estudo: autonomia. Esse processo, fundamentalmente indutivo, levou à construção de cinco categorias: expressões da autonomia na política de saúde brasileira, a concepção de autonomia circunscrita na Política Nacional de Promoção de Saúde, a compreensão filosófica da autonomia a partir da menção a Paulo Freire, a autonomia e o reconhecimento do pathos como instância moral, e a construção de uma autonomia encarnada para além da dicotomia logos e pathos.
Neste espaço serão apresentadas as categorias que emergiram do estudo.
Essa categoria trata da inclusão do termo autonomia no contexto da política de saúde, mencionada pela primeira vez na Lei nº 8.080/90, por meio dos princípios e diretrizes em seu art. 7º, inciso III, no qual se afirma que todas as ações e serviços de saúde deveriam compactuar com “a preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral”(18). Após essa publicação, ocorre uma lacuna em que o uso desse termo, no interior dos documentos oficiais, entra em desuso. Retorna oficialmente incorporada à PNPS, em 2002, quando é lançado o primeiro documento para discussão de algumas questões a respeito da implantação dessa política(16).
Na introdução do referido documento, o Ministério da Saúde aponta que, diante das inúmeras dificuldades encontradas, as parcerias revelam-se cada vez mais como uma estratégia importante para a superação de obstáculos, sendo por esta razão fundamental o trabalho embasado no princípio da autonomia dos indivíduos e das comunidades(16). Dessa forma, quando se fala de autonomia, não se alude unicamente a um processo de escolhas individuais. Ao contrário da independência, a autonomia é tomada, portanto, como um processo de “coconstituição”, de “coprodução”(22).
Ao ser contextualizada na realidade brasileira, a PNPS recorre às cartas e acordos internacionais como inspiração, alegando que o estímulo à autonomia faz parte da nova agenda das ações governamentais. No tópico Porque promover a saúde?, o Ministério da Saúde defende que “promover saúde é educar para a autonomia”(16). O documento explicita a importância da troca entre os saberes e com o outro, considerando as dimensões afetiva e amorosa, a capacidade criadora e a busca da felicidade como aspectos inseparáveis para a promoção de saúde.
No tópico seguinte da PNPS, intitulado Estratégias e linhas de ação, o documento aponta que os desafios da sociedade humana transitam por alguns elementos que precisam ser considerados, entre eles: a questão de “fortalecer o direito à autonomia que se expressa nas escolhas, no julgamento e nas resoluções de vida e de trabalho das pessoas, das famílias e das comunidades e tem uma dimensão valorativa-afetiva”(16). Para isso, estabelece-se que a atuação sobre os objetivos da PNPS se dará pelo estímulo, fortalecimento e consolidação de algumas estratégias; entre elas, o processo de reorientação do cuidado com reverência à autonomia e à cultura, numa interação do cuidar/ser cuidado, ensinar/aprender, aceitando outras práticas e racionalidades.
Além disso, o Ministério da Saúde também destaca que a operacionalização dessas estratégias poderá ser desenvolvida através de eixos de atuação, como mobilização de recursos da gestão, mobilização de recursos individuais e comunitários, estratégias de comunicação e educação para a promoção de saúde, e capacitação e qualificação de profissionais e gestores nos conteúdos. No eixo mobilização de recursos individuais e comunitários, acentua a necessidade de incitar a autonomia dos sujeitos e comunidades visando à promoção e proteção da saúde e o enfretamento dos agravos e enfermidades(16).
No entanto, apesar do documento fazer alusão ao termo autonomia em diversos pontos, no texto final, o termo autonomia está incorporado apenas em um tópico referente aos objetivos específicos, indicando que, para a concretização dessa política, torna-se previamente necessário “ampliar a autonomia e a co-responsabilidade de sujeitos e coletividades, inclusive o poder público, no cuidado integral à saúde e minimizar e/ou extinguir as desigualdades de toda e qualquer ordem (étnica, racial, social, regional, de gênero, de orientação/opção sexual, entre outras)”(9).
A partir de 2014, através da Portaria nº 2.446/2014(17), o governo federal decidiu, em virtude da necessidade de atualizar e incrementar certas ações, redefinir a PNPS. Neste documento, o conceito de autonomia adquire um novo lugar, pois, além de ser incorporado aos objetivos específicos, visando “promover o empoderamento e a capacidade para tomada de decisão e autonomia de sujeito e coletividades por meio do desenvolvimento de habilidades pessoais e de competências em promoção e defesa da saúde e da vida”(17), ele também foi adotado como um princípio, em seu art. 4º, inciso III, no qual a autonomia “se refere à identificação de potencialidades e ao desenvolvimento de capacidades, possibilitando escolhas conscientes de sujeitos e comunidades sobre suas ações e trajetórias”(17) .
Essa categoria ressalta, inicialmente, que as políticas públicas se referem a uma “intervenção do Estado no ordenamento da sociedade, por meio de ações jurídicas, sociais e administrativas”(23). São provenientes de “processos de lutas, de relações de poder, envolvendo diferentes atores sociais, que podem ter início, inclusive, fora do Estado, visando construir um aparato jurídico institucional que oriente a resolução de conflitos em relação aos bens públicos”(23) e refletem o nível de proteção social estabelecido pelo Estado, geralmente com o propósito de diminuir as desigualdades estruturais produzidas pelo próprio sistema.
Desde o processo de discussão até a aprovação da PNPS, o conceito de autonomia foi sendo empregado sem uma definição teórica clara. Apenas no primeiro esboço houve certa alusão ao teórico Paulo Freire para advertir o que poderia ser compreendido como autonomia. Somente seis anos após sua implantação como política, foi constituída uma definição oficial através do Glossário Temático de Promoção de Saúde(19), sendo compreendida como uma situação em que se constrói uma relação com o outro, na qual sujeitos individuais e coletivos alcançam ampla competência de apreender e agir de forma crítica, modificando a si mesmos e ao seu entorno social em um sentido emancipatório(19).
Refletindo sobre o contexto em que o termo autonomia está empregado, confere-se que a PNPS deixa algumas dúvidas em relação a sua proposição em diversos pontos do documento, identifica-se um apelo à responsabilização dos indivíduos e comunidades, ao mesmo tempo em que se percebe destaque à relevância do papel das políticas públicas no favorecimento da saúde e da vida(24). Com referência a essa questão, os enunciados de promoção de saúde caracterizam-se pela duplicidade de sentido de suas proposições. Seus alicerces principais condizem com o caráter progressista, democrático e humanitário dos movimentos sociais e, ao mesmo tempo, com os valores da democracia liberal das sociedades nas quais muitos destes movimentos surgiram(25).
Constata-se que, no decorrer das menções, a palavra autonomia vem precedida de verbos no infinitivo (preservar, estimular, fortalecer, respeitar, ampliar e promover), cujos significados remetem a uma noção de aprimoramento e intensificação de um objeto já existente, tendo a PNPS apenas a função de desenvolvê-la; mas, em nenhum momento, a competência necessária para criá-la. Tal formulação sucede, pois, com o passar do tempo, a autonomia passou a ser considerada como um aspecto inerente à espécie humana. Em contrapartida, alguns autores assinalam que esse pensamento corresponde a um equívoco, pois “o ser humano não nasce autônomo, na medida em que não pode governar-se por si mesmo quando nasce, ou desde o nascimento”(26). De fato, o ser humano torna-se autônomo à medida que vai se desenvolvendo e sofrendo influências diversas na vida que irão contribuir para o grau de autonomia que poderá ter.
Ao longo da PNPS, através de preceitos como o respeito à autonomia e o princípio da autonomia, verificam-se inúmeras formas que identificam a capacidade própria do indivíduo de ser autônomo. O primeiro, embasado na crença na dignidade da natureza humana, defende o respeito pelo ponto de vista do outro, tendo ele tem o livre-arbítrio para tomar atitudes e realizar escolhas baseado em suas afirmações individuais(27). No segundo, mais voltado para os pressupostos éticos da prática do profissional de saúde, dispõe que nenhum procedimento deve ser realizado sem o esclarecimento e o consentimento prévio do usuário ou de seu representante(28) .
O conceito de autonomia está intrinsecamente relacionado ao conceito legal de competência. No âmbito jurídico, competência alude à pertinência de determinado órgão jurisdicional, estipulando os limites de sua atuação, mas esse conceito converte-se para a lógica da capacidade quando pensado na esfera da pessoa natural, que compõe o grau no qual o sujeito cumpre seus direitos enquanto detentor de personalidade civi (29).
Infere-se que a compreensão de autonomia enredada nessa coerência privilegia a obtenção de conhecimento como uma forma de desenvolvê-la. Esta tendência também é seguida pelo Glossário Temático(19), que aprova, enquanto definição oficial, o valor do acesso à informação e ao conhecimento como instrumentos decisivos para o incremento de uma reflexão crítica sobre o modo de viver e o mundo em que se vive.
Essa categoria busca apontar algumas possíveis influências filosóficas que contribuíram para a constituição do conceito de autonomia. Nesse sentido, menos do que realizar uma exegese de sua obra, procura-se assinalar em que medida a construção desse conceito se aproxima de alguns filósofos que também pensaram esse termo, como Immanuel Kant (1724-1804), Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883).
A princípio, é interessante retomar a alusão feita a Freire no documento, a saber: “promover saúde é educar para a autonomia como construído por Paulo Freire”(16). Segundo esse autor(30), para tornar-se autônoma, é necessário que a pessoa adquira uma visão crítica do mundo, constituindo-se assim como ser histórico. Há uma grande relevância no processo educativo, demonstrando que o educador deve respeitar os saberes existentes do aluno, permitindo que ele construa novos conhecimentos a partir dos que já tem, distanciando-se da ideia de um aluno como mero receptáculo de conhecimento, para encará-lo como um sujeito ativo, capaz de transformar o meio em que vive(30).
Nesse sentido, verifica-se uma aproximação com a tradição kantiana(31) na formulação desse conceito, uma vez que o filósofo oferece sua crença na saída do homem de sua condição de menoridade, decidindo com competência sobre seus interesses sem interferência de outros(32).
Tanto Freire quanto Kant sustentavam que a função da educação era formar um sujeito crítico capaz de transcender sua condição de menoridade, defendendo para isso a íntima relação entre autonomia e liberdade, pois o homem é um construtor de si. O homem só pode ser livre, autônomo, se for preparado, espontaneamente não o será. A educação apreendida como processo de formação é imperativa para um homem alcançar sua autonomia(33).
Embora reconhecendo a necessidade da razão instrumental, os teóricos atribuíam uma importância auxiliar para o conhecimento técnico, pois acreditavam que a autonomia não poderia ser alcançada apenas por esse viés. Essa postura diferenciava-se da maioria dos pensadores iluministas, sendo em virtude dessa aproximação que se considera Paulo Freire um herdeiro indireto da tradição kantiana(33,34).
Contudo, Freire, diferentemente de Kant, não entende o sujeito enquanto uma categoria transcendental, mas como histórico e encarnado. A dialogicidade(35) toma um lugar central na teoria de Freire, pois ele advoga que o sujeito se constrói a partir da intersubjetividade, elegendo a pedagogia como um campo notável para essa experiência(33).
Sobre essa compreensão se destaca a inspiração na dialética de Hegel para a constituição da teoria freireana. A compreensão de sujeito em Hegel se desdobrou em uma ontologia do inacabamento em Freire:
“a passagem da simples materialidade para o inacabamento em Paulo Freire, na medida em que é um processo que, de antemão, não está dado além das suas condições ainda encobertas, é equiparável à passagem do em-si (a vida natural e biológica) ao para-si (a consciência de si humana)”(36, p.43)
Destarte, é admissível refletir que as condições de educabilidade e, por conseguinte a produção de autonomia em Freire, alude para o processo de concepção da consciência em Hegel, pois, para os dois, a subjetividade é construída dentro desse processo, concebida por um constante vir a ser.
Entretanto, a historicização da dialética hegeliana baliza o distanciamento do filósofo alemão predominantemente idealista e uma aproximação dos preceitos marxistas, em especial o materialismo histórico(37), dado que “o que era pensado via «dialética senhor-escravo» de Hegel, auxilia-se, em O capital, de Karl Marx(38), e aparece como «contexto político-educativo» em Freire”(39), que se utiliza da teoria marxista como princípio educativo para comprovar as relações existentes na sociedade capitalista, procurando confirmar suas próprias contradições(40). O homem possui uma vocação ontológica de interferir no mundo, sobrepujando os condicionamentos das dependências de determinismos sociais, ao mesmo tempo em que toma consciência do seu inacabamento, sendo por isso responsável eticamente por suas escolhas(30).
Diante disso, atenta-se para o fato de que a PNPS, apoiando-se no seu pensamento, acompanha determinada corrente filosófica que confere um caráter ontológico a certos atributos, considerando-os como constitutivos de todo o ser humano. A necessidade de desnaturalizar essa tese, colocando que a transmissão desses elementos se dá a partir de uma série de criações, aprendizados e procedimentos vigentes em cada tempo histórico, ou seja, “a matéria prima que compõe as subjetividades são variáveis e historicamente localizadas”(41), endossa a teoria que alega que esse processo constitui-se muito mais como uma construção coletiva viva, dinâmica e fluida.
Houve uma intensificação do processo de medicalização com a ascensão da vida como bem supremo, em que gradativamente a medicina invadiu a vida social(42). Com isso, o corpo tornou-se objeto privilegiado de intervenção, adquirindo uma autoreflexividade que, em outros tempos, correspondia à alma, fazendo com que as escolhas no tocante a esse corpo alcançasse uma nova marca, tornando-se um reflexo da própria maneira adotada pelo indivíduo. Logo, o olhar do outro se transformou em uma vigilância policialesca, em que qualquer desvio é objeto de uma avaliação muito mais moral do que técnica. Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, demonstra sua autonomia e se insere num mundo competitivo”(43).
Essa perspectiva defende um ideal de sujeito pleno que deve pautar suas ações segundo a razão, preconizando a reflexividade, bem como a capacidade de autocentramento, como base para qualquer atitude a ser tomada. Sustentada por uma racionalidade que advoga por uma subjetividade purificada, esse discurso recusa, ou até mesmo expurga, qualquer manifestação que possa ser mediada por outra influência que não a razão.
O homem enquanto grau zero do conhecimento, como promulga a dúvida cartesiana, devia purificar-se de qualquer elemento que revele sua mundaneidade, marcando, com isso, uma cisão “entre a mente, na sua suposta liberdade, e o corpo, na prisão dos seus determinismos naturais e condicionamentos sociais”(44).
Entretanto, ao mesmo tempo em que se endossava a confiança na razão humana, instalava-se uma atitude cautelosa em relação à percepção ingênua, pois a experiência sensorial passou a ser considerada duvidosa, suspeita, devido a sua suscetibilidade aos efeitos de uma “subjetividade insidiosa”(44,45).
Ao tentar situar histórica e epistemologicamente os possíveis filósofos que influenciaram Paulo Freire na formulação do conceito de autonomia, nota-se que, tanto Immanuel Kant (1724-1804) quanto Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883), correspondem a pensadores que, em maior ou menor grau, beberam dessa fonte, apresentando resquícios em suas teorias de um pensamento apontado anteriormente pelo filósofo Francis Bacon, no qual “atribui ao sujeito o status de senhor de direito da natureza, cabendo ao conhecimento transformá-lo em senhor de fato: Tantum possumus quantum scimus”(45).
Entende-se que a noção indicada por Freire também acompanha essa corrente, assim privilegiando uma posição cognoscível da autonomia, no qual o conhecimento torna-se ferramenta fundamental para alcançá-la, bem como parâmetro para indicar em que medida um indivíduo pode ser considerado como tal.
Essa categoria assinala que há a possibilidade de outro exemplo de ação moral, em que se avalia impulsos e sentimentos empíricos, apesar de entendidos como instáveis, privados e específicos. Uma mobilização que não vem infligida, mas de um impulso do corpo, de uma certa ansiedade física que pode ser denominada de compaixão(46).
Com isso, busca-se resgatar a importância do pathos como instância mobilizadora do homem, visto que atualmente esse conceito tem sido associado quase que exclusivamente a sua dimensão patológica, principalmente quando integrada ao campo médico atual(47).
O pathos passou a ser considerado “o outro da razão”, o responsável por intervir e em muitos momentos se opor aos processos racionais(48). Todavia, ao tentar recuperar a sua definição originária, “o pathos ficaria antes ligado a uma dis-posição”(47) que está situada em qualquer dimensão humana, compondo-se como um elemento propulsor da existência do homem a partir de uma vivência intersubjetiva de admitir afetar-se pelo outro e pelo mundo(48).
Nesse sentido, toda ação moral é um estimativa entre os impulsos e princípios que podem nos fornecer leis(46), um diálogo entre o logos e o pathos, que se desdobra em um modelo de liberdade que permite o distanciamento de uma perspectiva fundamentada na capacidade do homem reger-se por sua própria lei, para também reconhecer um sentido do que se manifesta como “não lei”.
Cada situação pode ser considerada, em sua especificidade, uma insegurança ontológica, na qual o homem desenvolve a angústia da responsabilização dos imagináveis efeitos que sua atitude pode acarretar, assim desnaturalizando uma pseudosegurança que o modelo eminentemente racionalista promove, retirando o indivíduo desse lugar de conforto, um falso aliviar garantido por um sistema social que classifica previamente determinado ato como correto. Nesse pensamento, o ser humano em relação seria tão importante quanto os princípios formais para a construção da moralidade e, portanto, da autonomia(46).
Essa categoria discute que, apesar de ocorrer uma demarcação, bem como um reconhecimento do pathos como um campo coerente em si mesmo, possuidor de princípios e, portanto, decifrável, verifica-se a dicotomização do indivíduo em logos e pathos. As duas dimensões adquirem uma conotação de autossuficiência, uma sensação de alheamento, que transmite certa desobrigação em referência a qualquer influência que o outro possa ter em seu processo de constituição.
A fim de discutir o pensamento dicotômico apela-se ao conhecimento fenomenológico, partindo-se da nova ontologia na qual o conceito de corpo é marca central. Ao discriminar a expressividade do corpo junto ao mundo e ao distinguir a capacidade do corpo próprio para desencadear totalidades, nenhuma das partes pode acabar com o valor ontológico da experiência vivenciada pelas pessoas. Mais precisamente, o filósofo Merleau-Ponty restitui à experiência humana o poder de “descobrir” fenômenos, sem com isso reduzi-la à condição de produto de existência humana(49).
O filósofo Merleau-Ponty retoma o interesse da filosofia por um aspecto até então desconsiderado por algumas filosofias, a nossa experiência de mundo. Ele buscava superar a dicotomia, principalmente cartesiana, que separava o sujeito do objeto, o expectador externo e o observador interno. Para o pensador, era preciso ultrapassar o que ele denominava de humanismo: o subjetivismo filosófico e o objetivismo científico, isto é, o conhecimento dualista entre o sensível e o inteligível(50). Porém, essa cisão não poderia ser compreendida em qualquer campo metafísico, era preciso voltar ao solo da existência. Esse retorno culminou no deslocamento do enfoque do sujeito para o mundo, para o vivido(51,52).
Foi nessa perspectiva que o pensador desenvolveu sua teoria. O mundo não é fechado em si, sendo o homem que dá sentido a ele, completa-o, e também é preenchido por ele, ou seja, o homem e o mundo estão imbricados em uma mútua constituição, pois “o homem está no mundo, é no mundo que ele se conhece”(52). O homem é constituído por uma ambiguidade, não se restringindo ao mundo físico-natural composto por terra, ar e água. Ele também está inserido num mundo humanizado, onde estão presentes estradas, plantações, ruas e igrejas(52).
É nesse comum pertencimento, ao mesmo tempo físico e cultural, que o homem pode reconhecer outrem. Nessa convergência entre atos, percepções, que fazem com que o que eu toco e vejo também seja tocado pelo outro. Existe um social em que já estamos implicados quando nascemos.
É a partir desta implicação que a gente se transforma em figura em um campo de possibilidades, sendo, deste modo, compreensível ao olhar do outro. Pensar a liberdade não como algo colocado ao absoluto, mas situado em uma sedimentação da vida. Trata-se da experiência entre a natureza e a consciência, que não vai para além do corpo, mas sim através dele(51).
Todavia, falar sobre ética não corresponde integralmente a discorrer sobre a liberdade, pois é preciso considerar um outro, que o circunvizinha e o limita. O homem não pode definir-se por qualificações, pois ele é um projeto global, anterior a estados de consciência. A consciência nunca pode objetivar-se como consciência-de-doente e, mesmo se o idoso se lamenta de sua idade avançada ou de sua doença, ele só pode fazê-lo quando se corelaciona aos outros ou quando se vê pelos olhos dos outros(52).
O que o homem é para si, também é para outrem. Diante disso, “mesmo se o ser humano me fosse imposto, apenas a maneira de ser sendo deixada à minha escolha, a se considerar esta própria escolha e sem distinção do pequeno número de possíveis, ela ainda seria uma escolha livre”(52).
Compreende-se a possibilidade de, a partir dos escritos de Merleau-Ponty, pensar uma ética “aquém da normatividade, não apriorística, e que se alarga, por assim dizer, para além do plano antropológico, levando a pensar a sua dimensão ontológica, originária”(53, p.5). Com isso, aponta-se a necessidade e relevância de uma reflexão ética sobre a discussão da noção de autonomia nos documentos utilizando uma lente merleau-pontyana.
O estudo aponta uma concepção de autonomia limitada nas políticas públicas de saúde no contexto brasileiro, privilegiando como cenário de análise a Política Nacional de Promoção de Saúde. Evidencia-se que, atualmente, as estratégias se sobrepõem às ações curativas e convidam os usuários e trabalhadores da saúde a apresentarem uma nova postura diante do processo saúde-doença, a fim de controlar as formas de adoecimento de origem crônica.
Essa mudança, influenciada por elementos tanto nacionais quanto internacionais, fez com que o conceito de autonomia ascendesse a um lugar de evidência e relevância, tornando-se condição de possibilidade para que esses novos dispositivos de natureza pedagógica se efetivassem, visto que esse novo modelo de usuário instituído pelos textos oficiais tem exibido como direito a capacidade do cidadão de ser livre, responsável e autônomo o suficiente para cuidar de si.
Nesse sentido, mediante a análise dessa política pública, tornou-se possível mapear a forma como este vocábulo autonomia se expressa oficialmente. Constata-se que essa política corrobora com uma perspectiva filosófica que considera o aspecto da autonomia como uma característica inerente ao sujeito. Além disso, o conceito de autonomia remete à tradição filosófica que imagina o sujeito como racionalista, que nomeia a razão como parâmetro para qualquer tipo de ação.
Com a ampliação da compreensão da ação humana transcendendo a lógica intelectiva, reconhece-se na dimensão páthica uma instância reguladora da moral. Com isso, tornou-se possível resgatar a mundaneidade do homem, corroborando que cada ato humano possui uma idiossincrasia que precisa ser levada em consideração, um atravessamento histórico-temporal que lança o sujeito na insegurança ontológica por toda atitude realizada.
A construção teórica de uma ética na qual as fragmentações são dissolvidas por um estatuto ontológico da corporeidade, imerso no solo da existência em sua radicalidade, com todo o potencial carregado no mundo vivido, comprovando que qualquer normatividade está encarnada e origina-se dele, requer uma ruptura com a lógica vigente, levando a pensar na necessidade de um redimensionamento no qual a vida e toda a sua especificidade se tornam tão importantes quanto as categorias do entendimento dela derivada.