Resumen: Los Derechos Humanos simbolizan un factor esencial en toda reflexión acerca de la historia de la humanidad. A su vez, la literatura es un importante instrumento de representación y reflexión sobre la sociedad y la historia. Con tales ideas en mente, basadas en interfaces entre literatura y Derechos Humanos, en el presente artículo analizamos las novelas La distancia que nos separa (2015), del peruano Renato Cisneros, y K.: relato de uma busca (2011), del brasileño Bernardo Kucinski, con el fin de reflexionar sobre temas relacionados con el miedo, la tortura física y psicológica y las formas de resistencia, considerando como trasfondo histórico las dictaduras militares en Perú (1968-1980) y en Brasil (1964-1985). Recurrimos a temas relacionados con el silencio político y las diversas políticas de silenciamiento implementadas en regímenes dictatoriales, demostrando cómo la literatura latinoamericana contemporánea rescata temas aún mal explicados en nuestra historia reciente.
Palabras clave: literatura, dictadura, América Latina, Derechos Humanos.
Resumo: Os Direitos Humanos simbolizam um fator essencial para reflexões acerca da história da humanidade. Por sua vez, a literatura é um instrumento significativo de representação e de reflexão sobre a sociedade e sobre a história. Pensando em tais apontamentos, a partir de interfaces entre literatura e Direitos Humanos, neste artigo realizamos uma análise dos romances La distancia que nos separa (2015), do peruano Renato Cisneros, e K.: relato de uma busca (2011), do brasileiro Bernardo Kucinski, no fito de refletir sobre questões referentes ao medo, às torturas físicas e psicológicas e às formas de resistência, tomando como pano de fundo histórico as ditaduras militares no Peru (1968-1980) e no Brasil (1964-1985). Recorremos questões relacionadas ao silêncio político e às diversas políticas de silenciamento implantadas em regimes ditatoriais, demonstrando como a literatura latino-americana contemporânea resgata questões ainda mal explicadas de nossa história recente.
Palavras-chave: literatura, ditadura, América Latina, Direitos Humanos.
Keywords: literature, dictatorship, Latin America, Human Rights
Representações sobre Direitos Humanos e ditaduras: interfaces literárias entre Peru e Brasil
Representations on Human Rights and Dictatorships: Literary Interfaces between Peru and Brazil

Recepción: 22 Septiembre 2021
Aprobación: 24 Noviembre 2021
Representations on Human Rights and Dictatorships: Literary Interfaces between Peru and Brazil
Introdução
Os romances contemporâneos La distancia que nos separa, de Renato Cisneros (2015), e K.: relato de uma busca, de Bernardo Kucinski (2016), tocam em feridas ainda não cicatrizadas da história dos respectivos países latino-americanos sob óticas contrastantes. Enquanto Cisneros apresenta, em seu romance, um narrador que foi general e ministro de guerra do regime ditatorial peruano, Kucinski conta a história de um pai à procura da filha, Ana, desaparecida pela ditadura militar do Brasil. Unidas pelo tema da busca, elemento essencial de aproximação entre os dois textos, pretendemos, ao analisar as duas obras, refletir sobre questões relacionadas ao medo, às torturas físicas e psicológicas, às formas de resistência, aos silêncios políticos e às políticas de silenciamento impostas por esses governos militares, no contexto histórico abordado nas narrativas.
Objetivamos, com esta comparação, demonstrar que esses momentos conturbados da história da América Latina necessitam de revisitação, para que as práticas comuns assumidas por sistemas políticos autoritários não sejam esquecidas, silenciadas ou repetidas. Nesse sentido, vemos na literatura uma via possível e fundamental de resgate de momentos marcantes da vida recente do Peru e do Brasil, por seu caráter resistente e político.
Notas sobre memória, história e testemunho
São latentes, nos meandros que compõem os caminhos da memória, o esquecimento e o silêncio enquanto elementos fundamentais para o entendimento dos mecanismos de seu funcionamento. Muitos são os sentidos que emergem de águas por vezes turvas, responsáveis por camuflar ditos e não ditos que, dependendo da circunstância, da necessidade e dos motivos, desnudam profundos silêncios para a possibilidade da lembrança.
No artigo intitulado “A imagem, uma arte de memória”, Jean Dovallon destaca que, “para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância” (Dovallon, 1999: 25). Ou seja, o que se desvela, a fim de que certas lembranças sejam evocadas, são aqueles acontecimentos que se fizeram presentes ao reencontrarem sua vivacidade, sendo “reconstruídos a partir de dados e noções comuns” (Dovallon, 1999: 25) a diferentes membros de determinada comunidade social, conservando sua “força a fim de poder posteriormente fazer impressão” (Dovallon, 1999: 25).
Esses apontamentos conduzem ao entendimento de que a memória é capaz de aflorar lembranças que estavam em estado latente de silêncio — ou silenciadas —, transmutando-se em linguagem passível de originar novas percepções sobre os fatos resgatados, haja vista o sujeito que os recorda estar em outro instante de consciência, diferente daquele do momento vivido. Trata-se, portanto, do passado representado e reconfigurado no presente, conforme observa Ecléa Bosi, em Memória e Sociedade: lembranças de velhos:
A memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações. Pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, “desloca” estas últimas, ocupando o espaço da consciência. A memória aparece como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora. (Bosi, 1994: 46-47)
A subjetividade, então, assume papel fundamental, pois atuará diretamente na percepção presente do fato pretérito. Mesmo que o passado seja conservado na memória, a sua reapropriação ocorre de forma heterogênea e está diretamente condicionada aos fatores do presente, uma vez que, ainda de acordo com Ecléa a partir de apontamentos de Maurice Halbwachs (1990) acerca da memória coletiva e de sua função social, “a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo” (Bosi, 1994: 54), ou seja, depende do meio no qual o sujeito está inserido.
Aliado a esses temas, o conceito de testemunho literário se faz pertinente, pois, de acordo com Valéria Ignácio e Vera Bastazin, “amparado na memória como matéria fundadora para a representação, conjuga tanto a recuperação de fatos da história como as formas de sua apropriação e reconstituição” (Ignácio e Bastazin, 2018: 47), e, referindo-se ao termo “teor testemunhal”, de Seligmann-Silva (2003), atentam para o fato de que o
conceito de testimonio presente nos estudos literários latino-americanos — significa a possibilidade de articular a dimensão histórica e a qualidade literária do texto, sem comprometer, contudo, certa referencialidade dos fatos, ou seja, uma visão que não reduza o real a sua ficção literária. Para o crítico, o termo pressupõe uma lacuna entre o evento e o discurso que irá se manifestar na escritura fragmentada, ou seja, em um percurso tanto de recordação como de esquecimento. (Ignácio e Bastazin, 2018: 47-48)
Nesse percurso, sobre as noções de testemunho e testemunha Wilberth Salgueiro observa que:
Testemunha é a pessoa. Testemunho é o relato, o depoimento, o documento, o registro (escrito, oral, pictórico, fílmico, em quadrinhos, etc.). A testemunha, por excelência, é aquela que viveu a experiência, é um supérstite (superstes) — sobrevivente. Há, naturalmente, outros graus de testemunha: há o testis, que se põe como terstis (terceiro) — que presenciou, que viu, que “testemunhou”. E há, como o alargamento dos estudos de testemunho, a consideração de testemunha solidária [...]. O testemunho, por excelência, é feito/dado/produzido/elaborado pelo sobrevivente. Há, igualmente, os testemunhos de terceiros e de solidários. (Salgueiro, 2012: 284-285)
Por sua vez, Jeanne Marie Gagnebin destaca:
Testemunha não é somente aquele que viu como seus próprios olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha é aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente. (Gagnebin, 2006: 57)
Logo, os romances que analisaremos neste artigo são obras que possuem características do testemunho literário a partir de representações e recuperações de fatos que fazem parte dos períodos de autoritarismos que marcaram as ditaduras militares no Peru (1968-1980) e no Brasil (1964-1985). Para tanto, apresentam, se apropriam, reconstituem e articulam aspectos importantes desse momento histórico a partir do elemento ficcional.
A literatura, então, seria uma via possível de reconstrução, revisitação e representação de episódios ocorridos nas duas ditaduras militares em questão, resgatando muito do que foi silenciado, haja vista que, como afirma Eurídice Figueiredo, em A literatura como arquivo da ditadura brasileira, “a literatura, pelo viés da subjetividade, mostra resíduos de experiências fraturadas pela experiência do vivido” (Figueiredo, 2017: 44).
Nesse ínterim, é importante ressaltar o fato de as obras em questão percorrerem, a partir do elemento ficcional, caminhos que abarcam a literatura de testemunho com características de autoficção ao se apropriarem da “experiência de vida” (Schøllhammer, 2011: 105) e se utilizarem da “ficção para penetrar no que aconteceu numa história que se constrói enquanto relato motivado pelo desafio de vida que essa experiência impõe” (Schøllhammer, 2011: 105-106).
Fixando as memórias das ditaduras militares do Peru e do Brasil em palavras, Renato Cisneros e Bernardo Kucinski apontam para processos de resgate de memórias por vias diferenciadas: no romance de Kucinski, K.: relato de uma busca, um pai procura sua filha desaparecida pelos órgãos de repressão brasileiros e, no romance de Cisneros, La distancia que nos separa, um filho resgata as memórias do pai, ex-comandante do exército, durante a ditadura peruana.
Uma busca inútil?
Em La distancia que nos separa, de Renato Cisneros, livro publicado em 2015 — com traços da literatura de testemunho e de autoficção — o narrador pode ser identificado como o próprio autor em busca de respostas sobre seu passado e o de sua família. Há o desejo de reduzir a distância que o afastava de seu pai, Luis Federico Cisneros Vizquerra — general do exército do Peru, Ministro do Interior (1976-1978) e Ministro da Guerra (1981-1983), durante a ditadura militar — que morreu em julho de 1995, quando o filho tinha dezoito anos. É notório o intuito do autor/narrador de indagar sobre o pai, procurando respostas para tentar entender e preencher as lacunas que permeiam sua existência. A narrativa se assemelha, assim, a um relato/biografia familiar, centrada na figura de um personagem controverso da história recente do Peru, El Gaucho.[3]
Cisneros parece tentar uma forma de expurgar e expor os “demônios” que sempre o atormentaram em sua relação com o pai. Nesse processo, o narrador, pouco a pouco, desvela seus sentimentos ao apresentar a figura do pai enquanto homem enigmático, ambíguo e sedutor, por um lado, e, por outro, como um “criminoso do povo”, em virtude de sua atuação no governo ditatorial no Peru. Progredindo de maneira diversa, a obra alterna relatos fragmentados, subjetivos e objetivos da família e da história, transitando entre questões pessoais e profissionais, entre memórias e silêncios.
Por sua vez, o romance do brasileiro Bernardo Kucinski, K.: relato de uma busca, publicado em 2011 — também com traços da literatura de testemunho e de autoficção —, converge em alguns pontos com a narrativa de Cisneros, principalmente no tocante à presença do pai e às interferências biográficas. Na trama de Kucinski temos um pai em busca de sua filha desaparecida e morta pelos órgãos de repressão da ditadura militar no Brasil. Alternando ficção e história, o narrador denuncia a violência sofrida por Ana Rosa Kucinski Silva, professora do Instituto de Química da USP (Universidade de São Paulo), e de seu marido, Wilson Silva. Ambos eram militantes políticos da Ação Libertadora Nacional (ALN), organização revolucionária que exercia resistência à ditadura militar instaurada pelo golpe de 1964 no Brasil. Presos pelo delegado Sérgio Fleury, em 22 de abril de 1974, e levados para a Casa da Morte, em Petrópolis-RJ, foram torturados e executados.
K., personagem principal, entra em uma busca labiríntica e incessante para descobrir o paradeiro da filha desaparecida. A procura é, no entanto, atravessada por outras descobertas e revelações, como o fato de Ana já ser casada e a família não saber. Verdades e mentiras se alternam no romance: por um lado pistas falsas são dadas a K. por agentes do governo para despistá-lo; por outro, chegam a ele informações concedidas por outras pessoas que realmente tinham alguma informação. A leitura envolvente é também resultado de o narrador assumir múltiplas vozes durante o texto — a do próprio autor, a do pai, a dos torturadores, entre outras —, expressando as angústias de um homem que se sente impotente perante um Estado de exceção opressor e brutalmente imposto à sociedade brasileira.
Pautados, portanto, pela temática da busca, os dois romances se enveredam por caminhos por vezes sinuosos e árduos, mas assumem perspectivas diferentes: enquanto no romance peruano o filho procura entendimento sobre si, a partir da história de sua família e da de seu pai, na narrativa brasileira o pai busca a filha desaparecida e morta, mas dela só encontra memórias desconhecidas ou forjadas. É importante frisar que nos dois textos há o desvelamento de memórias. O filho tem consciência desse fato, mas a procura pelo pai se torna necessária para um processo de autoconhecimento e — por que não? — de expurgação dos “pecados” históricos cometidos pelo pai, chamando atenção para uma possível reconciliação, mesmo que tardia, com a história peruana. Já o pai no romance de Kucinski vai, pouco a pouco, reconhecendo, nas pistas encontradas, que a filha já não está mais viva e seu objetivo passa, então, a ser o direito de enterrá-la.
Ademais, convém observar que os romances em análise associam, a partir de um discurso fragmentado, as dimensões históricas condizentes aos regimes ditatoriais dos dois países sul-americanos em debate. No entanto, a construção ficcional não reduz a realidade histórica e esta, no que lhe toca, não transforma o ficcional em documento em virtude das referências biográficas e históricas que retomam. Por sua vez, sem que haja comprometimento da referencialidade dos fatos (Seligmann-Silva, 2003), os testemunhos, em decorrência das lacunas que os demarcam, manifestam-se em um caminho assinalado por memórias e esquecimentos (Ignácio e Bastazin, 2018).
Para adentrar nessa leitura, nos reportamos ao romance peruano e àquilo que propõe o narrador quando se refere à escrita do livro:
Esta novela es acerca de mi padre, el general de División del Ejército del Perú Luis Federico Cisneros Vizquera, el Gaucho Cisneros, el tercer hijo de Fernán y Esperanza, nacido en Buenos Aires el 23 de enero de 1926, muerto en Lima el 15 de julio de 1995 a causa de un cáncer de próstata. Es una novela acerca de él o de alguien muy parecido a él, escrita por mí o por alguien muy parecido a mí. Una novela no biográfica. No histórica. No documental. Una novela consciente de que la realidad ocurre una sola vez y que cualquier reproducción que se haga de ella está condenada a la adulteración, a la distorsión, al simulacro. [...] De lo único que ahora estoy seguro es de que no escribiré una novela sobre la vida de mi padre, sino más bien sobre la muerte de mi padre: sobre lo que esa muerte desencadenó y puso en evidencia. (Cisneros, 2015: 4-5)
Ao atentar para a citação acima, é perceptível a postura dúbia do narrador ao apresentar ao leitor os porquês da escrita do livro. Não há uma clareza, haja vista as afirmações se desconstruírem quase que contraditoriamente: o livro é sobre o pai, mas, ao mesmo tempo, sobre alguém muito parecido com ele, é escrito pelo filho ou por alguém muito semelhante a ele, não é biográfico, nem histórico, nem documental. A postura assumida pelo narrador será, pois, pautada em elementos da memória desse filho que tentará, por vias diversas, entender não somente a vida do pai, mas os efeitos de sua morte.
A memória, crivada de subjetividade, se fixa de maneira dúbia na tentativa de resgatar quem foi esse pai e como o mesmo, após a morte, despertou no narrador a necessidade de autorreflexão sobre essa relação construída nas bases do medo — afirmação feita em vários momentos da narrativa —, mas que, naquele contexto, não se justificava mais, apesar de ainda existir. Por isso, a dubiedade pela memória, ao retomar os fatos de momentos passados — esquecidos, silenciados — e despertá-los sob outra perspectiva. Essa busca, mesmo que muitas vezes ocorra a partir de relatos, cartas, fotografias, depoimentos, documentos, entre outros, não poderá desencadear uma narrativa biográfica, histórica ou documental, justamente por ser uma escrita da memória, repleta de lacunas, ainda que retrate elementos vivos da história recente do Peru.
A busca, no entanto, não se limita apenas ao campo familiar. O narrador, em vários momentos, tentará compreender o papel social de seu pai. Para isso, além de tudo que vivenciou, pesquisa em outras fontes, como rádio e jornais, mas, distante dos fatos históricos e sociais, as informações que chegam até ele são sempre insuficientes e fragmentadas. O filho, então, investiga relatos de conhecidos e de documentos no próprio exército para conhecer a atuação do general Cisneros quando era ministro do governo militar do Peru. No trecho a seguir, o narrador se encontra com um antigo amigo de seu pai, Belisario Schwartz (ex-chefe do Serviço de Inteligência), já com 86 anos. O objetivo é descobrir se El Gaucho havia cometido alguma atrocidade e, durante um almoço, as declarações de Schwartz relatam prisões, torturas e mortes, supostamente com o conhecimento do então ministro:
Primero dejé que me contara sus peripecias de cuando era el mandamás de Inteligencia. “Yo me encargaba de todo” [...] “desde las operaciones psicológicas hasta el hostigamiento y a veces podía llegar hasta el final”. ¿El final?, pregunté con inmensa candidez. “La eliminación” [...]. Entonces me confesó, o hizo como que confesaba, que una vez descubrió en el cuartel de Locumba a dos espías chilenos —“dos tenientes de carácter”— que se habían infiltrado en el Ejército. Una vez identificados, los mandó detener y transportar a Lima, donde quedaron recluídos en el antiguo local del SIN en Chorrillos. ¿Qué pasó con ellos?, me interesé. “Nada, los desaparecimos” [...] “Cuando el presidente Morales Bermúdez me preguntó dónde estaban los chilenos, yo le contesté: tres metros bajo tierra, mi general”, añadió, con una sonrisa que revelaba una dentadura postiza.
—¿Mi papá sabía de eso?
—Sí, claro, él me dio la razón.
—¿Y sabes si él eliminó o mandó eliminar a alguien? —le consulté untando mantequilla en un pan de aceitunas, como para rebajar ante mí mismo la carga dramática de la pregunta. Su rosto se desacomodó. [...]
—No lo descartaría —me dijo, llevándose a la boca el último bocado de pulpo.
—¿Pero sabes si lo hizo o no? —persistí.
—Mira, hijo, si lo hizo, lo hizo tan bien que nadie se enteró. (Cisneros, 2015: 4-6)
O diálogo acima ultrapassa a esfera individual e adentra o campo social e histórico, em que a averiguação do narrador recai mais uma vez sobre a dúvida, pois seus questionamentos recebem uma resposta hipotética, “si lo hizo”, nem afirmativa nem negativa. Novamente aspectos condizentes à memória emergem — uma memória individual e coletiva referente às vítimas presas, torturadas e mortas pela ditadura peruana —. As respostas de Schwartz não esclarecem as incertezas do filho quanto à atuação do pai, mas retratam como eram as atividades do exército, responsável por silenciar sujeitos contrários à ditadura, desaparecendo com seus corpos e tentando apagar sua memória.
Acerca dessas questões referentes aos indivíduos contrários às imposições do estado ditatorial, Tzvi Tal destaca que o Estado utilizava “mecanismos de represión, intimidación, cooptación y eliminación física de la oposición” (Tal, 2000: 258). Nesse mesmo sentido, Jaime Ginzburg enfoca que “a eficiência da política autoritária depende de sua administração da violência física, da instalação do terror e medo...” (Ginzburg, 2001: 134).
O narrador, após esse encontro, ainda tenta manter uma imagem positiva do pai, iludindo-se de que ele não havia compactuado com os atos praticados pelos militares, mas essa possibilidade acaba por se revelar improvável. Frente aos fatos, relatórios da Comisión de la Verdad y Reconciliación (CVR) do Peru, fotos do General Cisneros com Augusto Pinochet, Juan María Bordaberry, Henry Alfred Kissinger, Jorge Rafael Videla e os artigos escritos por El Gaucho se solidarizando com a ditadura argentina e chilena, suas dúvidas se clareavam e se diluíam, efetivando a certeza de que ele compactuava com as ações violentas e repressoras dos regimes militares, tanto no Peru quanto em outros países da América Latina.
Um exemplo elucidativo disso, refere-se ao sequestro, à prisão e ao desaparecimento de um argentino que, a pedido do governo da Argentina, foi capturado pelo General Cisneros por ser considerado muito perigoso. Outro episódio é relativo à sua postura repressiva contra trabalhadores em uma greve geral. Diante desses fatos, o narrador reflete sobre as características de alguns membros da ditadura argentina, amigos de seu pai; imagina no que ele teria se transformado caso tivesse continuado naquele exército e, ao pensar sobre isso, descreve atrocidades que provavelmente cometeu, como a tortura, prática comum nos regimes militares e que fere veementemente os preceitos básicos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que preconiza o respeito à dignidade humana, à vida, à liberdade e à segurança pessoal, pois como determinado no Artigo 5º: “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”, no Artigo 9º: “Ninguém pode ser arbitrariamente preso, detido ou exilado” e no Artigo 12º: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação” (Comissão de Direitos Humanos, 2021).
A postura assumida por El Gaucho é uma descrição do que ocorria em outros países também sob governos militares. As políticas impostas pelo Estado, com o discurso de manter a “ordem” e a tranquilidade social, são claramente acompanhadas pela violação dos Direitos Humanos. Proibir a circulação de pessoas, prendê-las, fechar periódicos, por exemplo, são apenas medidas iniciais para que outras práticas mais violentas ocorram, como torturas, assassinatos, desaparecimentos e ocultação de corpos daqueles que fossem contrários ao regime, impondo assim o silenciamento e o medo à população como forma de controle.
É importante frisar que esse tema da busca, além de ser atravessado por memórias, também carrega a marca de silêncios que vão se (des)construindo à medida que as respostas para as dúvidas do narrador não se efetivam. São silêncios que revelam, a partir da subjetividade da memória, aspectos concernentes à relação entre pai e filho no processo de autorreflexão e autoconhecimento do narrador, mas que também desnudam questões sociais e históricas, como o questionamento feito por inúmeras famílias, ainda hoje, sobre os presos políticos, constatando que muitos foram mortos e desaparecidos pelos regimes militares.
Por sua vez, no romance de Kucinski, a temática da busca também é inerente a toda a obra e descortinará memórias e silêncios do pai ao tentar encontrar a filha. A procura de K. igualmente será permeada pela dúvida e pela angústia por não obter respostas sobre o paradeiro de Ana. Os primeiros passos ocorrem em direção ao local de trabalho da filha, a Universidade de São Paulo (USP), e são marcados pela decepção de não a encontrar e descobrir, por meio de amigas, que há onze dias ela não comparecia ao trabalho e que pessoas estranhas a estavam procurando. A conversa entre o pai e as amigas da filha é traspassada pelo medo de alguém os escutar. Saindo da USP, K. dirigiu-se a um endereço o qual Ana lhe dera, com a recomendação de só a procurar lá caso acontecesse algo muito grave e ela não atendesse o telefone, porém o intento revela-se novamente inútil.
O caminho percorrido por K. é constantemente assinalado pelo sofrimento extremo e por decepções: primeiro, a tentativa de encontrar Ana viva; depois, já convencido da morte da filha, a procura pelo corpo, querendo fazer jus ao seu direito de enterrá-la. Na ausência do corpo, porém, resta-lhe apenas a tentativa de um enterro simbólico, com uma lápide no cemitério judeu, mas mesmo essa intenção é rechaçada pelo rabino, alegando que seria uma atitude contrária aos preceitos judaicos.
No entanto, antes de defrontar-se com a verdade, K. encontraria inúmeros obstáculos em seu percurso: mentiras e armadilhas organizadas pelos agentes do Estado para que ele não descobrisse o paradeiro da filha, que já havia sido presa, torturada e morta. A conduta do Estado, negada, muitas vezes, até hoje, é uma forma de encobrir as atrocidades por ele cometidas durante a ditadura militar no Brasil, assim como ocorreu em outros países latino-americanos. O objetivo era fazer com que os indivíduos considerados “subversivos” fossem definitivamente eliminados, postura recorrente de regimes ditatoriais em suas políticas de silenciamento e de assolamento da dignidade humana.
Paulo Eduardo Arantes, enfatiza que
a ditadura, por assim dizer, localizou o topos indecidível da exceção, a um tempo dentro e fora do ordenamento jurídico, tanto na sala de tortura quanto no desaparecimento forçado, marcado também, esse último, por uma espécie de não lugar absoluto. Esses os dois pilares de uma sociedade do desaparecimento. (Arantes, 2010: 208)
Por sua vez, ainda sobre questões condizentes à tortura e à ocultação de cadáver, Vladimir Safatle reflete que não enterrar alguém,
pode significar não acolher sua memória através dos rituais fúnebres, anular os traços de sua existência, retirar seu nome. Uma sociedade que transforma tal anulação em política de Estado, como dizia Sófocles, prepara sua própria ruína, elimina sua substância moral. (Safatle, 2010: 238)
A violência representada na ocultação do cadáver, impedindo a família de enterrar o corpo, pode ser vista como uma tentativa de silenciar a memória e a existência de Ana. Quando o Estado impossibilita sujeitos de terem acesso a um corpo que esteve em seu poder, silencia-se não apenas a memória e a existência de quem lutou contra essas políticas repressivas, mas, também, tudo aquilo que a Declaração Universal dos Direitos Humanos preconiza em respeito à dignidade humana, ao direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.
O medo é algo que atravessa as políticas de silenciamento, uma vez que os sujeitos necessitam de mecanismos que burlem a regra imposta pela censura. No romance de Kucinski, esse sentimento é notório em muitos momentos, como no relato supramencionado, quando o pai busca notícias da filha na USP e as amigas de trabalho sentem temor de dizer algo, pois têm receio de que estejam sendo vigiadas. As universidades brasileiras estavam, naquele contexto, em constante observação por agentes da repressão, por simbolizarem focos de resistência de atos e ideias contrários ao regime ditatorial. O medo do pai de a filha estar nas mãos do Estado, como citamos, também é representativo, justamente pela conduta assumida pelos órgãos de repressão em caso de prisões políticas, muitas vezes com torturas, mortes e desaparecimento dos corpos, como ocorrido com a filha e o genro de K.
Sob outra perspectiva, que não a do pai em busca da filha, temos a representação do medo em outros episódios da ditadura. No capítulo “A terapia”, um dos mais fortes de todo o livro de Kucinski, há narrações de fatos importantes relacionados ao medo e às sequelas deixadas pelas torturas e pelos torturadores. O capítulo é sobre a personagem Jesuína Gonzaga e suas memórias de quando trabalhara em uma casa de Petrópolis — a Casa da Morte —. Em virtude das lembranças que possui do lugar e do que lá ocorria, Jesuína apresenta medos que a afetam psicológica e fisicamente e, por isso, foi encaminhada para uma psicóloga, a pedido da firma onde trabalha, para tentar resolver essas questões. Todo esse capítulo é importante, uma vez que os relatos da personagem descrevem muito do que ocorria nos “porões” da ditadura, como na Casa da Morte, chefiada por Sérgio Paranhos Fleury.[4]
Na consulta com a psicóloga, inicialmente, Jesuína tenta se esquivar das perguntas, falando pouco, dizendo apenas que está ali porque a mandaram, mas, paulatinamente, vai revelando o que vivenciou. Diz que convive com um barulho que necessita retirar da cabeça e que sofre alucinações, insônia e sangramentos desde que a casa fechou. Indagada a dizer que casa era essa e o que lá ocorria, a personagem relata:
Não, nada disso, a senhora não entendeu, era uma cadeia, só que disfarçada de casa. Às vezes ele me mandava escutar o que um preso ou uma presa falavam; eu fazia a faxina ou levava água, e era para me fazer de boazinha, ver se elas passavam algum bilhete, algum número de telefone, tinha que fingir pena, me oferecer para avisar a família, essas coisas. Às vezes eles acreditavam e me passavam algum bilhete. Eu entregava direto para o Fleury. (Kucinski, 2016: 117-118)
[...] Quando os carros chegavam, o portão abria, automático, os carros entravam com o preso e logo levavam ele para baixo, onde estavam as celas. Eram só duas celas. Eu ficava quase sempre na parte de cima, que dá para a rua. Lá no andar de baixo, além das celas, também tinha uma parte fechada, onde interrogavam os presos, era coisa ruim os gritos, até hoje escuto os gritos, tem muitos gritos nos meus pesadelos. Mais embaixo ainda, no fundo do quintal, quase no final da ribanceira, tinha uma coisa, uma espécie de depósito ou de garagem. A sala fechada onde interrogavam os presos eu às vezes tinha que limpar, mas lá embaixo no depósito nunca me mandaram. (Kucinski, 2016: 120)
[...] Tinha um tambor. Desses grandes de metal. Tinha essa garagem virada para os fundos, parecendo um depósito de ferramentas; levavam os presos para lá e umas horas depois saíam com uns sacos de lona bem amarrados, colocavam os sacos numa caminhonete estacionada de frente pro portão da rua, pronta para sair, e iam embora... Aí eles lavavam tudo lá embaixo com mangueira, esfregavam, esparramavam cândida. Atiravam umas roupas e outras coisas no tambor e punham fogo. (Kucinski, 2016: 123)
[...] A garagem não tinha janela, e a porta estava trancada com chave e cadeado. Uma porta de madeira. Mas eu olhei por um buraco que eles tinham feito para passar a mangueira de água. Vi uns ganchos de pendurar carne igual nos açougues, vi uma mesa grande e facas igual de açougueiros, serrotes, martelo. É com isso que tenho pesadelos, vejo esse buraco, pedaços de gente. Braços, pernas cortadas. Sangue, muito sangue. (Kucinski, 2016: 124)
Essas citações que dão voz a Jesuína representam, mesmo que ficcionalmente, o resgate da memória de atos corriqueiros praticados por aqueles que trabalhavam para o Estado nos órgãos de repressão. As comissões da verdade instauradas em vários países receberam e acolheram relatos que narravam prisões e torturas por parte de pessoas que sofreram com essa barbárie e por familiares que, ainda hoje, procuram parentes desaparecidos.
As sequelas dessas políticas de silenciamento, causadas por experiências de dor emocional e física, permanecem até hoje nas sociedades latino-americanas onde regimes militares se impuseram. Os medos percorrem a memória individual, como a de Jesuína — que mesmo não sendo torturada, sofreu com danos emocionais decorridos dos acontecimentos experienciados enquanto trabalhava na Casa da Morte —; a de K., inutilmente em busca da filha; e a de cada indivíduo sobrevivente dessas atrocidades. As memórias individuais despontam, por sua vez, em uma memória coletiva, referente aos que, assim como Jesuína, rememoram amargamente os fatos vivenciados; como tantas famílias ainda em busca de notícias de parentes desaparecidos e nunca encontrados e sujeitos presos e torturados, mas que sobreviveram para contar suas experiências, não deixando essa história cair no esquecimento.
Junto à temática da busca e do medo está o terrorismo psicológico, inegavelmente outra forma de violência praticada pelas ditaduras militares. As narrativas aqui trabalhadas apresentam momentos os quais o Estado, para se abster de seus crimes, cria uma “história paralela”, fazendo os sujeitos em busca de seus familiares, como K., não descobrirem o que realmente ocorreu. No romance de Kucinski, o pai de Ana é constantemente colocado em situações falsas, recebendo telefonemas, cartas, encomendas, entre outros subterfúgios responsáveis por trazer a ilusão de sua filha estar viva, porém, pouco a pouco, essas falsas pistas vão sendo descobertas, minando as esperanças do pai.
Em meio a essas questões, vale ressaltar a parcela da sociedade que resistiu bravamente contra as imposições dos regimes militares. As formas de resistências desses sujeitos nos permitem dar luz a episódios obscuros que mancharam a história recente da América Latina. Os relatos deixados por muitos que lutaram contra a repressão, além de permitirem o resgate de memórias, são atos de renitência daqueles que não se deixaram levar pelo discurso oficial, algo aceito por grande parte da população que não possuía conhecimento do que verdadeiramente ocorria na sociedade.
Nos dois romances aparecem modos diversos de reação, como luzes intermitentes que operam contra o poder oficial, às vezes por meio de greves, ataques armados, assaltos, sequestros ou em atitudes dentro da própria família, como ocorre em La distancia que nos separa, quando a filha do General Cisneros, Melania, estabeleceu uma “guerra” contra seu pai ao atuar combatendo o governo militar, se aproximando da esquerda e de grupos de protestos. Mesmo com a forte pressão do pai, Melania exige a soltura de mais de trinta presos políticos, entre eles aquele que viria a ser seu marido. Além dela, Fermin, outro filho do General Cisneros, ingressa em grupos contrários à ditadura. Essa forma de resistência ocorrida dentro da própria família compactua com as pretensões dos sujeitos que lutavam contra esse tipo de regime político, salvar companheiros que também buscavam um país democrático.
Em K.: relato de uma busca, as formas de resistência aparecem em vários capítulos, como em “A queda do ponto”, no qual se misturam a rotina da sociedade e o dia a dia dos membros desses grupos. Esse capítulo narra a descoberta, pelos militares, de um local de encontro (ponto)[5] da ALN e o medo e pânico que isso ocasionou em Ana e no marido. Entre as possibilidades que justificariam a descoberta do ponto, eles constatam que havia três hipóteses: a captura de algum membro do grupo que não suportou as torturas e delatou os companheiros, a presença de um traidor, ou, ainda, a existência de um agente infiltrado no grupo. O casal decide então que, para não entregar companheiros, caso sejam presos, inseririam uma pequena cápsula de cianureto entre o vão dos dentes e se matariam, postura representativa de uma forma de oposição. Essa repulsa à possibilidade da delação é um tema delicado e muito se questiona sobre os ideais daqueles que não conseguem suportar as torturas e acabam entregando companheiros de luta.
Em declaração do psicanalista Hélio Pelegrino para o livro Brasil: nunca mais, organizado por Dom Paulo Evaristo Arns, observamos que, pela tortura, o corpo separa-se das vontades do indivíduo, obrigando-o a agir de forma contrária aos seus princípios:
Através da tortura, o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue. É este o modelo básico no qual se apoia a ação de qualquer torturador [...]. Na tortura, o corpo volta-se contra nós, exigindo que falemos. Da mais íntima espessura de nossa própria carne, se levanta uma voz que nos nega, na medida em que pretende arrancar de nós um discurso do qual temos horror, já que é a negação de nossa liberdade. O problema da alienação alcança, aqui, o seu ponto crucial. A tortura nos impõe a alienação total de nosso corpo, tornando estrangeiro de nós e nosso inimigo de morte. (Arns, 1987: 282)
O medo sentido pelos personagens em decorrência da queda do ponto vai além de um temor quanto ao próprio bem-estar físico; refere-se, sobretudo, a uma preocupação com os companheiros e amigos, preferindo abdicar da própria vida a delatá-los. Diante disso e do posicionamento de Pelegrino, é fato a crueldade inerente a esses regimes ditatoriais onde a vida dos indivíduos está subjugada ao que o Estado aspira, ou seja, proteger seus objetivos em nome de uma falsa moral e de uma falsa ordem social, mesmo que para isso necessite utilizar de meios escusos e bárbaros como a tortura.
Considerações finais
Como é possível observar, nos propusemos a analisar algumas questões presentes tanto no romance do brasileiro Bernardo Kucinski quanto no do peruano Renato Cisneros. A figura do pai foi elemento fundamental no caminho percorrido por nós, assim como a temática da busca, que moveu o filho, em La distancia que nos separa, em se autoconhecer a partir das memórias de seu pai, e a do pai à procura da filha desaparecida e já morta, em K.: relato de uma busca. Desenharam-se, então, outras questões que foram, paulatinamente, abordadas: o medo, as torturas, o terrorismo físico e psicológico e as formas de resistência, possuindo como pano de fundo as ditaduras militares no Peru e no Brasil.
Tendo em vista o contexto brasileiro atual, no qual grupos políticos anseiam pelo retorno de governos militares, esse tipo de abordagem se faz necessária, para que momentos conturbados e obscuros da história, como as ditaduras militares na América Latina e tudo o que esse tipo de imposição autoritária carrega consigo, não caia no esquecimento. Ao resgatar esses episódios dos possíveis silêncios advindos da história por vezes não contada, a memória ganha sentido e nos leva a desnudar e dar voz a inúmeros sujeitos presos, torturados e mortos pelos regimes militares. Nesse sentido, as palavras de Roberto Vecchi e Regina Dalcastagnè são elucidativas, pois, rememorar ditaduras a partir da literatura
É muito mais um ato político, que procura não só mostrar como a literatura tem sido e continuará sendo um arquivo surpreendente que guarda, de maneira mais incisiva do que a historiografia, a memória ainda dolorida de um tempo áspero e impróprio. Um tempo em que uma barbárie antiga mostrou seu rosto dramaticamente moderno e capaz de impor o regime do horror. (Vecchi e Dalcastagnè, 2014: 11)
Portanto, um filho, ao tentar ficcionalizar a figura do pai, pode estar percorrendo um processo de reconciliação com a história de um país que ainda carrega as feridas herdadas pela ditadura militar peruana. Por sua vez, em Kucinski, há a necessidade de escavar fundo a história da ditadura militar no Brasil, ainda muito mal contada e muitas vezes inventada, para que absurdos não emerjam como verdades, os sujeitos que sofreram com suas políticas de silenciamento não sejam esquecidos e esse contexto não volte a se repetir.