Resumo: O artigo discute o fenômeno do empresariamento da educação a partir do final do século XX e apresenta um mapeamento inicial das parcerias escola/empresa no Rio Grande do Sul. A partir de uma análise documental, foram estudados programas desenvolvidos em escolas públicas por uma Associação Educativa sem fins lucrativos mantida pela iniciativa privada, cuja finalidade é formar sujeitos empreendedores no Ensino Fundamental e no Ensino Médio. As discussões e a análise dos documentos foram realizadas com base nas teorias de Ball, Dardot e Laval, Sennett e López-Ruiz. O estudo permitiu-nos compreender como algumas das discussões realizadas pela área de Gestão e Negócios sobre a reengenharia, o capital humano e o empreendedorismo adentram as instituições de ensino e demandam a formação de um sujeito flexível.
Palavras-chave: educaçãoeducação,empreendedorismoempreendedorismo,capital humanocapital humano.
Abstract: This paper discusses the phenomenon of education entrepreneurship from the end of the 20th century on and presents an initial mapping of the Programs developed in public schools by a non-profit Educational Association maintained by the private sector whose goal is to educate entrepreneur subjects in Elementary and High School. The discussions and the documental analysis were based on the theories of Ball, Dardot and Laval, Sennett and López-Ruiz. The study has enabled us to understand the way in which some of the discussions held in the Management and Business area about re-engineering, human capital and entrepreneurship have entered educational institutions and required the education of a flexible subject.
Keywords: education, entrepreneurship, human capital.
Articles
Empresariamento da educação em tempos de capitalismo flexível: análise de parcerias escola/empresa no RS
Education entrepreneurship in times of flexible capitalism: Analysis of school-company partnerships in Rio Grande do Sul
Recepção: 15 Março 2017
Aprovação: 02 Agosto 2017
Vivemos em um tempo de proliferação de discursos sobre a importância da inovação e da reinvenção contínua dos sujeitos e das instituições em suas múltiplas dimensões. As críticas à educação, de uma forma geral, e à instituição escolar, de modo específico, não cessam de aparecer em noticiários da mídia, programas televisivos e jornais; a cada dia, surgem novos programas e/ou projetos que prometem trazer soluções para os problemas ou supostos problemas educacionais.
No bojo da problematização sobre o “fracasso” da educação, está a discussão permanente sobre as funções sociais da instituição escola na Contemporaneidade. À escola e, por consequência, à educação credita-se a solução de vários problemas sociais, econômicos, políticos e culturais. Nesse contexto, um debate que ganha força é sobre o papel da escola na formação de sujeitos “preparados” para a vida em sociedade, regulada, em grande medida, pelas relações de trabalho, que se modificaram drasticamente na passagem da sociedade industrial para a sociedade pós-industrial2.
Segundo Sanson, “o conhecimento e a inovação passam a ser os elementos caracterizadores que impactam o conjunto da sociedade [...] tal como até então era compreendida e praticada na sociedade industrial. O imaterial está ancorado no centro da nova economia” (2010, p. 28). Diferentemente da organização disciplinar do trabalho baseada na reprodução, o imperativo da inovação, que guarda estreita relação com a lógica da empresa, inscreve-se no cenário contemporâneo de instabilidade, incerteza, competitividade, concorrência, volatilidade e mobilidade, e “é nesse sentido que a forma de trabalhar é associada ao pós-fordismo como a passagem de uma lógica da reprodução para uma lógica da inovação, de um regime de repetição a um regime de invenção” (Sanson, 2010, p. 33).
O nascimento do concorrencialismo3 no final do século XX, a reconfiguração do papel do Estado e a emergência do capital humano e do empreendedorismo como valores sociais modificam as relações dos sujeitos entre si e consigo mesmos. O que movimenta a concorrência não é mais a lógica da igualdade, mas a capacidade constante de diferenciação, compreendida a partir de um processo de escolhas que os sujeitos fazem, implicando, sobretudo, investimentos em si mesmos. Que escolhas são essas? Quais as condições de possibilidade dessas escolhas, tendo em vista diferenças relacionadas com classe social, raça, gênero, etnia e regionalidade, entre outras questões? No capitalismo flexível, um dos
[...] diagnósticos mais comuns é o desemprego, e em particular as baixas expectativas de trabalho para os recém-saídos da escola que ingressam sem experiência num mercado preocupado em aumentar os lucros cortando os custos com mão de obra e se desfazendo dos ativos, em vez de criar novos empregos e construir novos ativos. [...] uma das recomendações oferecidas com mais frequência aos jovens é serem flexíveis e não muito seletivos, não esperarem demais de seus empregos, aceitá-los como são, sem fazer muitas perguntas, e tratá-los como uma oportunidade a ser usufruída de imediato, enquanto dure, e não como o capítulo introdutório de um “projeto de vida”, uma questão de autoestima e autodefinição, ou uma garantia de segurança a longo prazo (Bauman, 2005, p. 18).
Nesse contexto neoliberal4, o Estado passa a ter uma função compensatória, de modo que a “análise da política educacional não pode ficar restrita aos limites do Estado-nação”, pois ela “está sendo ‘feita’ em novas localidades, em diferentes parâmetros, por novos atores e organizações” (Ball, 2014, p. 27).
A partir da última década do século XX, proliferam soluções privadas para a resolução do que tem sido compreendido no momento como problemas da educação, associados em grande medida aos discursos sobre a necessidade de formação de um sujeito flexível que seja responsabilizado pelos seus sucessos e fracassos. Inúmeros projetos e programas têm sido veiculados por instituições privadas, organizações públicas estatais e organizações públicas não estatais. Tais redes de parcerias exigem “novas formas de pensar e de fazer pesquisa - como etnografias de eventos, comparecimento e uso das mídias sociais como dados, fazendo-o dentro de ‘estudos de caso’ para rastrear as relações e os movimentos” (Ball, 2014, p. 19).
Essas mudanças ficam evidentes na Proposta intitulada “Educação e conhecimento: eixo da transformação produtiva com equidade”, redigida no contexto dos anos 1990 pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL) e pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), apresentando várias questões sobre o redimensionamento da organização escolar no contexto político, econômico e social contemporâneo. A Proposta é uma primeira tentativa de esboçar algumas linhas condutoras das políticas e das instituições que possam favorecer as vinculações entre educação, conhecimento e desenvolvimento. A relação com um ethos empresarial, o papel compensatório do Estado e o investimento em capital humano como variável da competitividade ganham centralidade:
Os novos tempos exigem uma nova relação entre educação, capacitação e empresa, na qual esta última assuma o papel de líder na formação de recursos humanos e o estado função compensadora em relação aos grupos desassistidos (CEPAL-UNESCO, 1995, p. 193, grifos nossos).
Não obstante, é fora de dúvida que as características dos mercados atuais tornam os recursos humanos, em quase todos os cenários empresariais, uma nova e especial variável da competitividade (CEPAL-UNESCO, 1995, p. 123, grifos nossos).
A teoria do capital humano, no sentido estrito, centra-se no fato de que a distribuição que um indivíduo faz do seu tempo entre várias atividades no presente influi na sua produtividade futura (CEPAL-UNESCO, 1995, p.149, grifos nossos).
A função dos empresários é fundamental nesse processo de acúmulo de conhecimentos, tanto pelo papel de aprendizagem quanto pela importância das empresas na difusão dos conhecimentos adquiridos (CEPAL-UNESCO, 1995, p. 157, grifos nossos).
Considerando-se o tripé educação, capacitação e empresa, o presente artigo:
situa o fenômeno do empresariamento da sociedade, dos sujeitos e das instituições escolares a partir do final do século XX, que está diretamente relacionado com o nascimento do concorrencialismo, com a reconfiguração do papel do Estado e com a emergência do capital humano e do empreendedorismo como valores sociais;
apresenta algumas das discussões realizadas pela área de Gestão e Negócios sobre a reengenharia, as quais proliferam e ganham centralidade não só na gestão das instituições privadas, mas também na gestão das instituições públicas, demandando um sujeito flexível;
apresenta, ainda, um breve mapeamento das parcerias escolas/empresa no Rio Grande do Sul, tendo como foco central os programas que pretendem formar sujeitos empreendedores para atuarem no mercado de trabalho contemporâneo.
É preciso disposição para assumir a responsabilidade pela própria vida e pela própria carreira. Se a tecnologia e os mercados mudam e suas habilidades se tornam obsoletas, é preciso reconhecer que a culpa não é de sua empresa. Se alguém tem culpa, esse alguém é você, por não ter ficado à frente dos avanços e se preparado para os novos desafios (Hammer, 1997, p. 213).
A reorganização da arquitetura institucional da empresa e seus efeitos nas formas de condução das condutas dos sujeitos trabalhadores expandem-se para as relações estabelecidas em outros âmbitos da sociedade. A nova individualidade idealizada, produzida por um indivíduo que adquire novas capacitações - alterando constantemente sua base de conhecimento (Sennett, 2006) -, atravessa as relações que os sujeitos estabelecem consigo próprios e com os demais.
A política neoliberal extrapola em muito os mercados de bens e serviços e diz respeito à totalidade da ação humana, procurando moldar os sujeitos para torná-los empreendedores dispostos a aproveitar as oportunidades de lucro e a entrar no processo permanente de concorrência (Dardot e Laval, 2016). Importa dizer que “foi particularmente no campo do management que essa orientação encontrou sua expressão mais forte” (Dardot e Laval, 2016, p. 136, grifo dos autores).
A palavra-chave, mercado, ainda é a mesma do pensamento liberal tradicional, mas o conceito que ela designa mudou. Não é mais o de Adam Smith ou o dos neoclássicos. É um processo de descoberta e aprendizado que modifica os sujeitos, ajustando-os uns aos outros. A coordenação não é estática, não une seres sempre iguais a si mesmos, mas produz uma realidade cambiante, um movimento que afeta os meios nos quais os sujeitos evoluem e os transforma também (Dardot e Laval, 2016, p. 139, grifos dos autores).
Essa mudança no conceito de mercado como realidade cambiante, em permanente transformação, encontra na empresa o lugar da execução de novas combinações e, no empreendedor, o personagem ativo cuja função é pô-las em prática (Dardot e Laval, 2016). A inovação e o empreendedorismo passam a ser imperativos do nosso tempo, pois possibilitam que o jogo neoliberal funcione a partir da maximização da produtividade dos sujeitos e das instituições. Perder e recomeçar faz parte do jogo; ficar parado significa ser deixado para trás; ter a formação mínima e ou máxima não é sinônimo de empregabilidade. A própria relação com o emprego modifica-se, pois a ideia é a do empresariamento de si e da capitalização do homem, ou seja, é preciso ver a si mesmo como um capital que requer investimentos permanentes, e a educação passa a ser entendida como algo necessário ao longo de toda a vida.
A nova relação entre educação, capacitação e empresa, citada pela CEPAL e pela UNESCO (1995), tem consistido prioritariamente na formação de sujeitos empreendedores para atuarem num cenário altamente flexível. Em uma economia cambiante, o sujeito perde a segurança da estabilidade e ganha uma suposta “liberdade de escolha5”, como se todos pudessem escolher e como se essas escolhas não fossem reguladas dentro da lógica neoliberal. Os cases de sucesso não cessam de proliferar, e a performatividade6 e a meritocracia movimentam o jogo da competitividade. Muitos passam a acreditar que, se não conseguiram uma boa colocação, é porque não se esforçaram suficientemente. O que está em jogo nesse processo é o “hiperinvestimento do privado” (Lipovetsky, 1983, p. 41), ou seja, um processo de individualização e responsabilização permanentes. O jogo da concorrência deve mobilizar os sujeitos, acarretando o máximo de resultados e o mínimo de custos.
Cabe aqui continuamente a figura do empreendedor schumpeteriano, que deixa de ser empreendedor quando estabiliza ou estabelece os seus negócios. As palavras de ordem são inovação e autogestão. É preciso estar constantemente correndo riscos. Essas questões foram altamente discutidas dentro do processo de reengenharia - novas formas de gestão das empresas -, proposto principalmente a partir da década de 1990. Michael Hammer e James Champy publicaram em 1993 o livro Reengenharia: revolucionando a empresa em função dos clientes, da concorrência e das grandes mudanças da gerência. Nessa obra, considerada um absoluto best-seller, eles propõem novas formas de gerenciamento das instituições. Segundo os autores, é preciso esquecer as antigas estruturas organizacionais (departamentos, divisões, grupos e assim por diante), pois a reengenharia rejeita a divisão do trabalho, o controle hierárquico, a economia de escala e todos os demais pertences de uma economia no estágio inicial de desenvolvimento. Ela rejeita a tradição; implica descontinuidade e capacidade de começar sempre de novo. Quando questionados sobre “o que é a reengenharia?”, Hammer e Champy dizem que “nada melhor do que retornarmos a nossa sucinta definição original da reengenharia: começar de novo. A reengenharia trata de começar de novo em uma folha de papel em branco” (1994, p. 35), ou seja, a reengenharia trata “da reinvenção das empresas - não da sua melhoria, de seu aperfeiçoamento ou de sua modificação” (1994, p. 23, grifo dos autores) -, e é por meio dela que é possível uma “reestruturação radical dos processos empresariais que visam alcançar drásticas melhorias em indicadores críticos e contemporâneos de desempenho” (1994, p. 22).
A reengenharia procura romper com os modelos fordistas de trabalho, baseados em rotina, divisão de tarefas e fragmentação das atividades, e instaurar novas formas de pensar a empresa e os negócios mais conectados com as mudanças colocadas em curso a partir do final do século XX. Tais mudanças estão imbricadas com a passagem do poder gerencial para o poder acionário; com a busca por parte dos investidores dotados de novo poder de resultados em curto e não em longo prazo; com o desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação e manufatura, cujo princípio central é a instantaneidade (Sennett, 2006).
Ao discutirem a noção de reengenharia como um caminho para a mudança, Hammer e Champy (1994) discorrem sobre os seguintes pressupostos:
(1) As três forças que impeliram as empresas a um território desconhecido: clientes, concorrência e mudança.
(2) O princípio de que a mudança “é a normalidade” (1994, p. 14, grifo dos autores).
(3) O entendimento de que as atividades orientadas a partir de tarefas estão obsoletas, de forma que o trabalho precisa ser organizado em torno de processos.
(4) A percepção da reengenharia como um movimento que “rejeita a sabedoria convencional e as suposições herdadas do passado” e “engendra novas soluções para a estrutura dos processos, pouco ou nada assemelhadas às das eras anteriores” (1994, p. 35).
(5) O fato de que a reengenharia procura romper com a divisão do trabalho, com o controle hierárquico e com a economia de escala e se caracteriza como “a procura de novos modelos de organização do trabalho. A tradição de nada vale. A reengenharia é um novo começo!” (1994, p. 35, grifos nossos).
(6) A importância de algumas mudanças que podem ser definidas da seguinte forma: (a) as unidades de trabalho mudam de departamentos funcionais para equipes de processos; (b) os serviços mudam de tarefas simples para trabalhos multidimensionais; (c) os papéis das pessoas mudam de controlados para autorizados; (d) a preparação para os serviços muda do treinamento para a educação (aprender a aprender); (e) o enfoque das medidas de desempenho e da remuneração altera-se da atividade para os resultados; (f) os critérios das promoções mudam do desempenho para a habilidade; (g) os valores mudam de protetores para produtivos; (h) os gerentes mudam de supervisores para instrutores; (i) as estruturas organizacionais mudam de hierárquicas para niveladas; (j) os executivos mudam de controladores do resultado para líderes.
(7) As relações de trabalho, que se modificam a partir do investimento em capital humano e do empreendedorismo: “se o antigo modelo se compunha de tarefas simples para pessoas simples, o novo se constitui de serviços complexos para pessoas espertas, o que torna mais seletivo o ingresso na força de trabalho”, de modo que “poucos serviços simples, rotineiros e não especializados serão encontrados em um ambiente pós-reengenharia” (1994, p. 55).
(8) O desempenho, que passa a ser medido pelo valor criado, e a remuneração, fixada por esse mesmo critério.
Desse modo, analisar o tripé educação, capacitação e empresa - evidenciado em vários programas focados na formação de sujeitos empreendedores que possam atuar em um mercado de trabalho flexível - implica compreender alguns dos processos da reengenharia que inauguraram novas formas de gestão contemporâneas. Além das discussões sobre mudança, inovação, novos modelos de organização do trabalho, foco nos resultados e competitividade, a reengenharia propõe que os sujeitos se movimentem permanentemente a partir do investimento que fazem em seu capital humano e da capacidade que têm de aprender a aprender. Nas palavras de Hammer (1997, p. 213):
Você tem de acreditar que o sucesso de ontem não faz nada além de qualificá-lo para participar do jogo mais uma vez. É preciso comprometer-se com o aprendizado contínuo, com a reconquista de suas credenciais sucessivamente. É preciso levar a sério a determinação da Bíblia: “Com o suor do teu rosto, comerás teu pão”.
Pode-se dizer que, na atualidade, a teoria do capital humano e o empreendedorismo se tornaram valores sociais (López-Ruiz, 2007). Conforme já explicitado, uma nova corrente da administração, que pode ser nomeada como capitalismo humano e empreendedorismo, patrocinada principalmente por economistas, analistas de mercado e consultores, surge nos finais dos anos 1990 e toma cada vez maior força no início do século XXI. As relações construídas no mundo do trabalho das grandes corporações que se dão em torno do ethos empresarial, dada a centralidade do mercado, servem como medida de análise do trabalho e dos trabalhadores da sociedade em geral. Noções como empreendedorismo, inovação, capital humano, criatividade e flexibilidade ultrapassam o âmbito corporativo e contribuem para delinear os traços de uma mentalidade econômica, de maneira a vincular os indivíduos a um complexo de deveres (López-Ruiz, 2007).
Presenciamos, cada vez mais, tais discussões naturalizando-se no cotidiano escolar, e a autogestão, a inovação e o empreendedorismo passam a ser as soluções para todos os problemas enfrentados. E é justamente nesse sentido que se percebeu a necessidade de seguir investigando as parcerias escola/empresa e seus efeitos no cotidiano escolar, a partir das recomendações veiculadas por alguns de seus programas ancorados na lógica empresarial, questão que será discutida na próxima seção.
Especialista em si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. Todas as suas atividades devem assemelhar-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos. A economia torna-se uma disciplina pessoal. Foi Margaret Thatcher quem deu a formulação mais clara dessa racionalidade: “Economics are the method. The object is to change the soul” [A economia é o método. O objetivo é mudar a alma] (Dardot e Laval, 2016, p. 330-331, grifos dos autores).
Na atualidade, parece existir um consenso sobre a importância da difusão do empreendedorismo por meio de inúmeros programas e/ou projetos que encontram, na escola, um locus privilegiado para a formação de sujeitos empreendedores. As parcerias com as Secretarias Municipais e as Coordenadorias Estaduais de Educação visam a: contribuir com as empresas e com o mercado de trabalho, de um modo geral, mediante a formação de trabalhadores flexíveis; cumprir com as funções “sociais” das empresas e/ou outras instituições; e apresentar soluções para a crise da educação brasileira. Conforme já mencionado, tal crise - no entendimento de vários empresários, economistas, administradores e jornalistas, entre outros - se explica a partir daquilo que se espera da instituição escolar em tempos do capitalismo flexível.
Ao referir-se à falência da educação brasileira, o economista e colunista da Veja Gustavo Ioschpe7 diz que:
Nosso futuro está penhorado porque não cuidamos do patrimônio mais importante que um país tem: sua gente. Se dependermos da qualificação dela para avançarmos, tudo leva a crer que continuaremos vendo os países desenvolvidos de longe e que, assim como a geração anterior viu o Brasil ser ultrapassado pelos tigres asiáticos, a nossa irá testemunhar a passagem de China, Índia e outros países menores (Ioschpe, 2012, p. 23).
Os estudos realizados por pesquisadores da área da educação sobre o capitalismo flexível, o neoliberalismo e os seus efeitos na sociedade são altamente criticados pelo economista. Ao referir-se às teses dos pesquisadores que problematizam as relações entre educação, capitalismo e neoliberalismo, ele diz que:
Essas teses, como de costume, são apenas frutos da verborragia dos “pesquisadores” que as produzem. Não vêm embasadas por nenhuma tentativa de comprovação quantitativa - até porque a maioria de seus autores se confunde com qualquer operação matemática ou estatística que requeira sofisticação maior do que calcular o troco do táxi e costumam, convenientemente, mascarar essas deficiências sob um discurso ideológico segundo o qual a própria quantificação, do que quer que seja, seria uma vitória da superestrutura neoliberal, mercantilista (Ioschpe, 2012, p. 56).
O lado positivo dessa relação estreita é que teremos muito a construir no momento em que educadores e empreendedores se notarem parceiros e pensarem junto o futuro do país. O negativo é que, enquanto tivermos um sistema educacional que só produz ignorantes ideologizados, continuaremos com esse capitalismo de araque. Não se produz um vale do silício com analfabetos funcionais (Ioschpe, 2012, p. 59, grifos nossos).
A fala de Ioschpe só reforça as discussões realizadas ao longo do artigo, de que a empresa e o homem empresarial são o cerne na lógica da concorrência. Os estudos realizados na área da educação sobre as funções sociais da escola empalidecem frente à literatura da área de Gestão e Negócios, que dá o tom do que deve ser feito e pensado em termos de educação. Discussões, como as realizadas por Theodore Schultz, atravessam muitos dos programas propostos, pois se entende que as atribuições das instituições educacionais estão, a partir das definições do autor (1967, 1987), relacionadas com: a descoberta e o cultivo do talento pessoal; a instrução, que aumenta a capacidade de adaptação das pessoas frente às flutuações do mercado e é um estímulo à flexibilidade na realização de reajustamentos ocupacionais e regionais; o atendimento às solicitações de um país em relação à formação de capital humano (mão de obra qualificada); a importância do ensino escolar adicional no fornecimento de aptidão empreendedora - capacidade de lidar com desequilíbrios associados à modernização econômica. Nas palavras do autor:
[...] educar significa, etimologicamente, revelar ou extrair de uma pessoa algo potencial e latente; significa aperfeiçoar uma pessoa, moral e mentalmente, de maneira a torná-la suscetível de escolhas individuais e sociais, e capaz de agir em consonância; significa prepará-la para uma profissão, por meio de instrução sistemática; e, por fim, significa exercitar, disciplinar ou formar habilidades, como, por exemplo, aperfeiçoar o gosto de uma pessoa. A ação ou processo de atingir um ou mais destes objetivos é, em primeira aproximação, o que se pode entender por educação (Schultz, 1967, p. 18, grifos nossos).
Crianças e jovens são considerados o público-alvo capaz de incorporar essas mudanças da lógica empresarial, pois se acredita que o “seu pensamento ainda não foi solidificado por anos de maus hábitos. O pensamento orientado para processos deve ser incorporado aos currículos de escolas secundárias e até primárias. Isso seria barato e fácil de fazer” (Hammer, 1997, p. 208). De fato, muitas têm sido as parcerias que ganham espaço nas Redes Públicas de Ensino, o que nos leva a refletir sobre o setor privado, que tem ocupado “uma gama de funções e de relações dentro do Estado e na educação pública em particular, como patrocinadores e benfeitores [...] como contratantes, consultores, conselheiros, pesquisadores, fornecedores de serviços e assim por diante” (Ball, 2014, p. 181).
Em estudo realizado, mapeamos alguns dos programas e/ou projetos firmados no Rio Grande do Sul a partir da parceria entre empresas e/ou outras instituições com oito Secretarias Municipais e três Coordenadorias Estaduais de Educação, que foram selecionadas a partir de um levantamento geral de parcerias em todas as SMEDs e CREs do Estado, cujo foco central é a formação de sujeitos empreendedores. Interessou-nos: mapear as parcerias entre escola e empresa firmadas no decorrer desse período nas escolas de abrangência da pesquisa e analisar os documentos que abordam os pressupostos colocados em circulação por cada uma dessas parcerias no cotidiano escolar. Partimos do pressuposto de que os documentos materializam visões institucionais, concepções de educação e pressupostos norteadores da ação e de que os ditos que circulam a partir deles produzem verdades no cotidiano escolar.
As oito Secretarias Municipais e as três Coordenadorias de Educação totalizaram 22 parceiros ativos em 2016, sendo que alguns desses parceiros possuem um amplo portfólio de projetos com diferentes finalidades e públicos, conforme explicitaremos na sequência. Os parceiros estão distribuídos da seguinte forma:
Terceiro Setor: ONG Glocal; Junior Achievement; Instituto Jama; Instituto Avisa-lá; Instituto Natura; Instituto Crescer Legal; Instituto Alfa e Beto; Associação Atlética Banco do Brasil (AABB); Fundação John Deere; Associação Comercial e Industrial de Uruguaiana (ACIU); AFUBRA; Celulose Rio-Grandense (CMPC); Projari;
Sistema S: SEBRAE; SESI; SESC; SENAC;
Cooperativas de Crédito: SICREDI;
Empresas: Toyota, Medabil, Plastiweber e Banrisul.
A partir da coleta e da leitura de todos os documentos produzidos e veiculados nos diferentes programas8 desenvolvidos pelos 22 proponentes, criamos três categorias analíticas:
parcerias com foco na formação continuada de professores e de gestores;
parcerias com foco no fornecimento de materiais didáticos (práticas pedagógicas);
parcerias com foco na formação de crianças e jovens empreendedores.
Frente ao papel ocupado pelo setor privado e pelo terceiro setor na educação pública, “tanto patrocinando inovações (por ação filantrópica) quanto vendendo soluções e serviços de políticas para o Estado” (Ball, 2014, p. 181, grifos do autor), no início da pesquisa, imaginávamos que grande parte das parcerias - tirando aquelas com ações pontuais já descritas - dissessem respeito ao fornecimento de “soluções educacionais” por meio da formação de professores e gestores numa lógica empresarial e/ou dos famosos “pacotes educacionais/apostilamentos”, com foco na realização de práticas pedagógicas inovadoras. Porém, dos 27 programas desenvolvidos pelos parceiros, 19 têm como foco central a formação de crianças e de jovens empreendedores. Neste caso, as soluções educacionais passam, em grande medida, pelo tipo de sujeito a ser formado para atuar no mercado de trabalho flexível, questão já discutida ao longo do artigo.
Importa dizer que, dos 19 programas desenvolvidos nas escolas, 1 é do Instituto Crescer Legal, 1 é da ONG Glocal, 5 são do SEBRAE e 12 são da Junior Achievement. A Junior está presente em 26 estados brasileiros e Distrito Federal e já envolveu 121.804 voluntários, 12.087 escolas e mais de 4 milhões de jovens em seus programas no Brasil (Junior Achievement Brasil, 2017c). Ela é uma associação educativa sem fins lucrativos, mantida pela iniciativa privada, que foi fundada em 1919 nos Estados Unidos e conta com vários programas voltados à formação de sujeitos empreendedores, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio. Atualmente, ela está presente em mais de 120 países, contemplando, em seus programas, mais de 10 milhões de jovens ao ano (Junior Achievement Brasil, 2017a). Sua missão é:
[...] inspirar e preparar jovens, despertando seu espírito empreendedor para serem bem sucedidos na sociedade e em uma economia globalizada, transformando-os em cidadãos qualificados e realizados, que possam contribuir positivamente para o desenvolvimento sustentável do Brasil (Junior Achievement Brasil, 2017a).
A Junior funciona a partir de um tripé que envolve empresas, voluntários e escolas. As empresas investem na parceria com a entidade, que, por sua vez, prepara voluntários para atuar nas instituições de ensino; os voluntários aplicam os programas nas Escolas com o objetivo de formar crianças e jovens empreendedores (Junior Achievement Brasil, 2017a). Entre os benefícios dos seus programas, a Junior Achievement Brasil (2017d) cita:
Para as empresas, “preparação e identificação de futuros empregados e consumidores”;
Para os voluntários, “desenvolvimento de habilidades e competências” e “satisfação pessoal através da contribuição para o desenvolvimento social”;
Para os jovens, a entidade afirma que eles “se convertem, assim, em pessoas mais informadas, consumidores mais exigentes, melhores empregados no futuro e, por fim, adquirem o espírito empreendedor de que o Brasil tanto necessita”;
Para as escolas, “formação global do aluno - complemento curricular sem custos adicionais” e “empatia entre professores e voluntários do meio empresarial, com benefícios para ambos”;
Para a sociedade, “advento de uma sociedade que cria mais riqueza, mais empregos” e “pessoas mais informadas”.
É interessante observar o número de empresas parceiras citadas na página da Junior Achievement no Brasil, que se dividem entre: mantenedores institucionais (4 empresas), parceiros nos projetos nacionais (24 empresas) e apoiadores (13 empresas), totalizando 41 empresas envolvidas. Segundo a Junior Achievement Brasil (2017b), “o desenvolvimento da educação para o mundo dos negócios não seria possível sem a visão dos grandes empresários brasileiros”, o que reforça a noção de ampliação “cada vez maior das empresas, dos empreendimentos sociais e da filantropia na prestação de serviços de educação e de políticas educacionais, e o surgimento concomitante de novas formas de governança em ‘rede’” (Ball, 2014, p. 23).
Sobre o empreendedorismo, o presidente da Junior no Rio Grande do Sul, Sérgio Lewin, diz que:
Ao contrário do que muitos supõem, o empreendedorismo não se refere apenas à atividade de fundar uma empresa e geri-la, tem a ver com uma atitude diante da vida, uma atitude caracterizada pela iniciativa e ousadia, pela capacidade de romper barreiras, de procurar abrir novos caminhos, de ser responsável por seu próprio destino (Lewin, 2017).
Acredita-se que as “qualidades humanas”, as “aptidões”, as chamadas “competências para o século XXI”, precisam ser desenvolvidas, pois “a capacidade de comunicar, de trabalhar com os outros, de gerenciar e de resolver conflitos, tornam-se cada vez mais importantes” (Delors, 2012, p. 77) no enfrentamento dos desafios contemporâneos, ou seja, “existe uma questão comum aos países desenvolvidos e em desenvolvimento: como aprender a comportar-se eficazmente em uma situação de incerteza; como participar na criação do futuro?” (Delors, 2012, p. 78). Nesta lógica, a flexibilidade, a precarização das relações de trabalho, os empregos temporários e as atividades autônomas não são problematizadas, mas assumidas como algo natural, como ponto de partida para a ação no nível dos sujeitos que devem tornar-se empresários de si mesmos. Lackéus (2015) divide tais competências em não cognitivas e cognitivas. Segundo o autor (2015), as competências não cognitivas se subdividem em conhecimento no nível dos modelos mentais, do conhecimento declaratório e da autopercepção e nas competências de marketing, de recursos, de oportunidades, interpessoais, de aprendizado e estratégicas. As competências cognitivas estão relacionadas às atitudes e são definidas a partir dos subtemas: paixão empreendedora, autoeficácia, identidade empreendedora, proatividade, tolerância à incerteza/ambiguidade; inovação e perseverança (Lackéus, 2015).
Na visão de Lackéus (2015), as justificativas para uma educação empreendedora são de três ordens: a primeira diz respeito ao desenvolvimento macroeconômico e ao potencial de criação de emprego, o que permitiu que o empreendedorismo ganhasse prioridade na agenda política - porém, não contribuiu com o surgimento de uma abordagem pedagógica integrada para todos os níveis de ensino -; a segunda diz respeito aos efeitos da educação empreendedora na perspectiva do indivíduo, ou seja, como um meio para obter mais empenho, criatividade, alegria e interesse; a terceira está relacionada com o interesse dos jovens pelo empreendedorismo social, motivados pela possibilidade de resolução de problemas.
O desenvolvimento de competências empreendedoras nos contextos escolares encontra respaldo neste conjunto de pressupostos. Os programas da Junior versam sobre o desenvolvimento de competências empreendedoras nos seus três níveis: empregabilidade, desenvolvimento de um conjunto de atributos dos sujeitos empreendedores - o que já justificaria os investimentos feitos no nível do indivíduo - e empreendedorismo social/sustentabilidade, conforme pode ser evidenciado no Quadro 1.
Conforme já destacado em suas descrições, os programas priorizam os seguintes temas: empregabilidade, educação e qualificação, plano de carreira, habilidades pessoais, responsabilidade e cooperação, exploração e aumento das aspirações profissionais, habilidades e conhecimentos, aprender-fazendo, preparação para o mercado de trabalho, oportunidade de conhecer o dia a dia de um profissional ou empreendedor, converter-se em um miniempresário, economia de mercado e funções básicas de uma empresa, etapas envolvidas no planejamento de um negócio, alternativas inovadoras de aprendizado sobre planejamento financeiro, conhecimentos em finanças e preparação para enfrentar os obstáculos proporcionados pela busca de uma vida financeira saudável, tendências de mercado, desempenho dos concorrentes e variáveis de custos e preços.
O ensino do empreendedorismo e seus desdobramentos, tanto no nível das competências não cognitivas quanto no nível das competências cognitivas, fica evidente nos programas analisados. A ideia é a de que os jovens compreendam “que a riqueza se cria; que nós fazemos acontecer; a necessidade de assumir riscos [...] o valor da perseverança” (Junior Achievement Brasil, 2017d), ou seja, a responsabilização dos sujeitos pelos seus sucessos e fracassos é reforçada constantemente.
Enquanto empresário de si, o indivíduo deve investir em sua formação, em seu networking, agregar valor à carreira, e não apenas buscar emprego (López-Ruiz, 2007). Segundo a Junior Achievement Brasil: “estar no controle da sua própria vida não acontece simplesmente. É importante refletir sobre o futuro e ter disciplina para buscar suas metas. Uma maneira de fazer isso é pensar estrategicamente sobre a sua vida” (2012, p. 45), pois “a vida é um caminho, não um destino, e você é o arquiteto do seu caminho” (Junior Achievement Brasil, 2012).
Os princípios neoliberais - lógica da concorrência, desempenho, produtividade -, em sua interface com as novas relações de trabalho - flexibilidade, empresariamento de si, investimento em capital humano, entre outras questões -, ficam evidentes nas parcerias estudadas.
O mapeamento das parcerias com foco na formação de sujeitos empreendedores permitiu-nos compreender como algumas das discussões realizadas pela área de Gestão e Negócios sobre a reengenharia (começar de novo como numa folha de papel em branco), o capital humano (necessidade de os sujeitos fazerem investimentos constantes em si mesmos, principalmente a partir do desenvolvimento de competências exigidas no mercado de trabalho contemporâneo) e o empreendedorismo enquanto um valor social adentram as instituições de ensino e demandam a formação de um sujeito flexível.
Nos estudos subsequentes, interessa-nos aprofundar o mapeamento e o estudo dos documentos coletados no âmbito de cada uma das parcerias, de modo a compreender a rede estabelecida no Rio Grande do Sul entre instituições públicas estatais, instituições públicas não estatais e instituições privadas, bem como os efeitos na gestão escolar e na gestão de ensino produzidos a partir dos programas e/ou projetos em execução.
Universidade do Vale do Rio dos Sinos. viviklaus@unisinos.br