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Ética Intercultural: do conhecer ao re-conhecer o Outro
Magali Mendes de Menezes; Leonardo Castro Dorneles
Magali Mendes de Menezes; Leonardo Castro Dorneles
Ética Intercultural: do conhecer ao re-conhecer o Outro
Intercultural Ethics: From knowing to re-knowing the Other
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 3, pp. 366-373, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
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Resumo: Este estudo busca, inicialmente, refletir a violência na constituição do Outro presente no pensamento denominado de Orientalismo, teoria analisada por Edward W. Said, na obra Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente (2007). Posteriormente, apresenta algumas reflexões que emergem do campo da Ética Intercultural, formulada pelo pensador chileno Ricardo Salas, de forma a evidenciar e, ao mesmo tempo, mostrar as contradições de dois aspectos do Orientalismo: a ausência de diálogo intercultural e de pressupostos éticos; e a evidência de uma moral que disfarçava a intenção consciente de tornar o nativo um objeto de lucro, reificando, assim, sua condição. A proposta de uma ética intercultural carrega elementos fundamentais para pensarmos uma proposta de educação intercultural, tecida pela compreensão de re-conhecimento.

Palavras-chave: OrientalismoOrientalismo,ética interculturalética intercultural,educaçãoeducação.

Abstract: This study initially seeks to think about the violence of the constitution of the Other that is present in the concept called Orientalism, a theory analyzed by Edward W. Said in his book Orientalism: western conceptions of the Orient. After that, it brings some thoughts that come from the field of Intercultural Ethics, created by the Chilean writer Ricardo Salas, as a way to confirm and, at the same time, show the contradictions of two aspects of Orientalism: the absence of intercultural dialogue and ethical conjectures; and the evidence of a morale that masked the conscious intention of turning natives into commodities and reifying their condition. The idea of intercultural ethics carries fundamental elements for the thinking of a proposal for intercultural education, which should be weaved by the comprehension of recognition.

Keywords: Orientalism, intercultural ethics, education.

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Ética Intercultural: do conhecer ao re-conhecer o Outro

Intercultural Ethics: From knowing to re-knowing the Other

Magali Mendes de Menezes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil
Leonardo Castro Dorneles
Associação Sul Americana de Filosofia e Teologia Interculturais, Brasil
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 3, pp. 366-373, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Recepção: 18 Janeiro 2016

Aprovação: 09 Junho 2017

No hace mucho tiempo, la tierra estaba poblada por 2 000 millones de habitantes, es dicer, 500 millones de hombres y 1 500 millones de indígenas. Los primeros disponían del verbo, los otros lo tomaban prestado (Fanon, 2011, p. 5).

Introdução

Quando olhamos a história da humanidade, percebemos um rastro de violência que se instaura de diferentes formas, por vezes explícita, por outras, sutil. Parece estranho imaginarmos uma violência sutil, pois toda forma de desconstituição da dignidade do Outro nos parece, desde já, carregada de muita força. Contudo, quando analisamos mais atentamente esta trajetória, verificamos que projetos travestidos de propostas “humanitárias”, de discursos muitas vezes permeados por justificativas éticas, afirmam cenários de extrema violência ao Outro. Buscaremos, desse modo, analisar a partir do pensamento de Said, como a concepção do que o autor chama orientalismo, traduz momentos desta trajetória de violência. Para tanto, faz-se necessário explicitarmos os fundamentos do Orientalismo, no qual flagramos uma perspectiva carregada de violência ao Outro, mas que se sustenta em uma compreensão de “justiça” presente na relação assimétrica entre colonizadores e nativos. O Orientalismo postulava que essa relação seria um processo natural assim como o era a inferioridade dos nativos egípcios.

Said desenvolve seu estudo sobre interculturalidade fora de uma linearidade histórica, sua ênfase é a descrição pontual da atuação de representantes do Orientalismo, em saltos históricos que passam pelo inicio formal do Orientalismo (1312) até os dias atuais. O autor explicita por um lado, o desenvolvimento e método dessa abordagem e por outro, postula a desumanização dos orientais gerada pelas concepções orientalistas. É a partir da análise da ação orientalista que o autor fundamenta sua crítica, evidenciando a eliminação de grande parte dos valores humanísticos na expansão do Orientalismo. Said aponta para um imaginário que reduziu o Outro a um objeto de exploração e, consequentemente, de lucro. A reflexão sobre Ética desde uma perspectiva Intercultural, desenvolvida por Ricardo Salas acrescenta outros elementos para dialogarem com esta análise, pois percebemos a importância da crítica, mas também a necessidade de formulação de um pensamento propositivo em tempos em que ainda vivemos uma profunda violência ao outro, de uma colonização assumindo novas faces.

Propomos-nos, nesta reflexão, confrontarmos esses fundamentos com alguns pressupostos do indigenismo brasileiro, para pensarmos de que maneira o Orientalismo pode ser atualizado quando olhamos para a situação dos indígenas no Brasil. Acreditamos que a releitura desta obra a luz da Ética Intercultural fornecerá elementos para aprofundarmos a crítica sobre encontro atual entre indígenas e não indígenas brasileiros, pois compreendemos que a reflexão que propomos aqui pode ser transposta ao contexto atual em que indígenas e não-indígenas vêm buscando um diálogo, mas que em muitos momentos, ainda encontra-se atravessado por problemas históricos presentes nestas relações. Isto nos provoca a interrogação sobre a efetiva possibilidade de relações interculturais.

Orientalismo: o conhecimento do Outro

Said define o Orientalismo como o conhecimento do Oriente, constituído a partir do imaginário de estudiosos ocidentais, que surge formalmente em 1312. Seu desenvolvimento efetivo ocorre durante o século XIX, embora os traços dessa perspectiva sejam encontrados no pensamento mítico grego, sobretudo nas obras de Homero. O Orientalismo surge como uma perspectiva política que discrimina o chamado Oriente em relação ao Ocidente, reconhecido como uma cultura superior, que abarca uma visão de progresso e de civilização. O Orientalismo como a sistematização de um conhecimento atinge seu auge na metade do século XIX, no qual é concebido como um vasto tesouro da erudição, tendo assim o status de disciplina acadêmica.

O Orientalismo tem como característica relevante o pensamento binário, o qual opõe orientais - tidos como portadores de mente imprecisa e carente de simetria, raciocínio descuidado, sem energia e iniciativa - ao europeu (representação do Ocidente), possuidor de um raciocínio lógico natural, cético, de inteligência treinada. Apesar de os orientalistas se autodenominarem conhecedores do oriente, notamos que suas considerações evidenciam um pensamento que não respeita e consequentemente, não reconhece as perspectivas dos nativos, suas formas de compreender o mundo. Ao contrário, constroem tal conhecimento sem dialogar com esses sujeitos, desconsiderando o conhecimento produzido por estas populações. Said critica essa postura a partir da atuação de um dos representantes do Orientalismo afirmando que:

Não ocorre a Balfour, entretanto, deixar que o egípcio fale por si mesmo, já que é mais provável que qualquer egípcio disposto a falar seja ‘o agitador que quer criar dificuldades’, e não o bom nativo que faz vista grossa às ‘dificuldades’ da dominação estrangeira (Said, 2007, p. 64).

O autor, nesta citação, refere-se a Arthur James Balfour (1910), importante representante do Orientalismo. Said evidencia o utilitarismo disfarçado numa moral que inverte pressupostos éticos, tentando convencer que o nativo que discorda da ação colonizadora é o mau cidadão, contrário ao desenvolvimento natural do processo colonizador (e civilizador), desde já legítimo. Esse pensamento característico do Orientalismo, não reconhece a dignidade do Outro e o coloca como menor, sem direitos. O nativo é sempre culpado, devedor e, por isso, deve obediência ao europeu, que por ser forte, quer tutelar a ação do oriental. Percebemos nesta relação um não reconhecimento da dignidade do Outro, visto como diferente. Ao nomear e identificar o Oriente, fato este que poderia demonstrar uma nova disposição para olhar o Outro, imprime-se um modo de ser e pensar que não parte das riquezas culturais aí produzidas. Ou seja, ao nomear desconsidera-se o modo de ser do Outro, a nomeação surge como uma estratégia para destituir o que há de próprio neste Outro. É desse modo, que reconhecer é fazer justiça ao que o Outro é.

A justiça e o reconhecimento são fundamentais para estabelecer um diálogo intercultural:

Deduz-se que a necessidade do diálogo intercultural é a exigência de realizar a justiça, de tornar factual um contato justo com o outro libre. Por certo, isso quer dizer que é necessário reconhecer o outro como pessoa humana portadora, justamente na sua diferença, de uma dignidade inviolável, que nos faz iguais (Fornet-Betancourt, 2001, p. 264 inSalas, 2010, p. 60).

É o reconhecimento da diferença que legitima uma dignidade inviolável e que estrutura o imperativo ético. Assim, a reflexão sobre a possibilidade e urgência em pensarmos uma Ética Intercultural se faz na necessidade de instaurarmos justiça. O reconhecimento da igualdade pressupõe o reconhecimento da dignidade do ser humano que se faz na diferença. A visão orientalista impôs uma universalidade do humano que se traduziu numa concepção de humanidade referenciada pelos valores europeus (modernos). Mas quando olhamos para as culturas percebemos diferentes concepções e percepções de humanidade, que nos coloca na difícil tarefa de re-conhecer e dialogar com estas visões.

Na perspectiva orientalista, o conhecimento é o pressuposto para a dominação do nativo. Ele é constituído pelo exame de uma civilização desde as suas origens ao seu apogeu e declínio, e é gerador de supremacia, possibilitando o domínio e autoridade sobre o objeto e a negação da autonomia. Assim, segundo Said, os países orientais existem, num certo sentido, como o ocidente os conhece, sendo o Orientalismo “o conhecimento do Oriente, que coloca as coisas orientais na aula, no tribunal, na prisão ou no manual, para escrutínio, estudo, julgamento, disciplina ou governo” (Said, 2007, p. 74). Conhecer é assim uma forma de exercício do poder!

Analisando este conhecimento que sustenta um processo de dominação, podemos verificar a negação ou distanciamento de uma abordagem que considere também a existência de um conhecimento nativo fundamentado em outra perspectiva, capaz de produzir outra cosmologia, concepção de mundo, de humanidade, de natureza. Essas diferenças são desprezadas ou valorizadas na medida em que alimentam o mercado de consumo com novos ‘produtos’ provenientes deste território ‘exótico’ que muitas vezes, representa o Oriente. Não interessa aos colonizadores (e aqui podemos falar de novos processos de colonização) qualquer manifestação contrária ao movimento colonizador (civilizador). Estas manifestações são vistas como uma expressão inconveniente, ofensiva e atrasada em relação à ideia de progresso contida neste processo. Qual seria o fundamento desse desinteresse? O conhecimento acerca do oriente realmente daria conta de originar a perspectiva da supremacia descrita por Said? Existiriam outros fundamentos que legitimariam a dominação dos nativos? Resta alguma humanidade nessa atuação dominadora?

Said elabora a seguinte questão sobre a possibilidade de preservar a humanidade na relação entre oriente e ocidente:

Será possível dividir a realidade humana, assim como a realidade humana parece ser dividida, em culturas, histórias, tradições, sociedades, até raças claramente diferentes, e sobreviver humanamente às consequências? Será possível evitar a hostilidade expressa pela divisão dos homens em ocidentais e orientais? (Said, 2007, p. 80).

Estas questões elaboradas por Said apresentam oposições e antagonismos encontrados na concepção do Orientalismo, elementos estes que impossibilitam uma relação humana - portadora de justiça - permeada por hostilidades; relação de exploração e consequente coisificação de outros povos. Portanto, não parece possível conservar a humanidade (mas também aqui é importante pensarmos o que estamos entendo por isso) a partir de uma abordagem que tem como fundamento utilizar o conhecimento - Orientalismo - para dominar, explorar e reduzir o outro a objeto gerador de lucro.

Os orientalistas causaram danos significativos aos nativos, a partir de suas certezas absolutas e incontestáveis, subjugavam aqueles que discordassem de sua leitura minuciosa do oriente. Said afirma que: “A verdade, em suma, torna-se uma função do julgamento erudito e não do próprio material que com o tempo parece dever até a sua existência ao orientalista” (Said, 2007, p. 107). As codificações orientalistas convencem o leitor ocidental não iniciado (consumidor do Orientalismo como conhecimento institucionalizado do Oriente), e assim a própria concepção do Oriente torna-se uma propriedade do Orientalismo. Said enfatiza que neste processo de descrição do Outro - o Oriente - se produz uma existência, ou seja, o Oriente deve a própria existência àquele que o descreve, o orientalista.

Ética Intercultural e seu desafio educacional: o re-conhecimento do Outro

A partir das reflexões expostas, percebemos que o processo civilizatório instaurado no Ocidente torna-se sinônimo de humanização, em que conhecer o outro não significa uma abertura a compreensão deste humano, mas uma violenta imposição ao seu modo de apresentação. A própria palavra humanidade carrega em si o sentido deste projeto. Humanidade significa tanto uma representação do coletivo como de um sentimento que possibilita sermos humanos. A humanidade é carregada por cada um de nós à medida que nos identificamos com o sentido legitimado historicamente do que seja humano. Percebemos que neste sentido, o projeto de educação imposto pela modernidade-colonial (europeia) carregava em si, uma proposta de humanidade que deveria ser universal. A educação foi estratégica na configuração deste projeto. Como pensarmos então humanidades, em sua pluralidade de manifestações? Como pensarmos uma proposta educacional que leve em consideração as pluralidades culturais, os diferentes exercícios do humano?

É dessa forma que partimos de uma ideia de conhecimento para pensarmos o re-conhecimento. Esta passagem, no entanto, é desafiadora, também está inserida num exercício de profunda abertura ao Outro (constituída por conflitos, negociações do que somos), que se traduz em proximidades e distanciamentos necessários a esta relação. O que está colocado aí é a forma como um modo de conhecer o Outro produziu uma verdade sobre este Outro.

O que significa conhecer? Se acompanharmos um pouco a história das ideias (do ocidente) verificamos que existe uma relação intima entre conhecimento e verdade. Nesse sentido, o conhecimento não se apresentou sempre da mesma forma. Para os gregos, por exemplo, o conhecimento estava associado a uma ideia de des-coberta. Conhecer significava conhecer o Ser, o que as coisas eram em si mesmas, sua essência. Mas para isto necessitava-se des-cobrir este Ser, que estava encoberto pelas opiniões, pelas percepções falsas apreendidas através dos sentidos. Para o cristianismo conhecimento e verdade perpassava a ideia de re-velação. Podíamos conhecer a verdade, mas este conhecimento tornar-se-ia verdadeiro na medida em que estivesse ancorado na fé.

Para os modernos o problema do conhecimento passa por outras questões e estes elementos são fundamentais para compreendermos o Orientalismo. A questão trazida pelos modernos vai concentrar-se não mais na reflexão sobre a possibilidade ou não do erro, mas se é possível a verdade. Conhecimento então se refere a um processo de adequação. Mas será com Kant que encontraremos a fundamentação do projeto moderno. Kant, responsável pela chamada virada copernicana, desloca a problemática do conhecimento que estava centrada até então no objeto a ser conhecido, para o sujeito. Para o filósofo o importante é pensarmos quais são as possibilidades do conhecimento, ou seja, mais importante que sabermos se algo é verdadeiro ou não, se corresponde ou não a uma realidade, é compreendermos como este pensamento se forma. O importante é o que pensamos, assim, realidade é o que passa pelo pensamento. Se a realidade é temporal ou espacial, não sabemos, o fato é que só compreendemos a realidade espacial e temporalmente porque estas são categorias do pensamento. Esta virada trará consequências profundas a forma como pensamos e percebemos o Outro; e consequentemente, a forma como pensamos a educação. O Outro só passa a existir a medida que é pensado. Mas pensado por quem? Há alguém que define, que nomeia e diz “Outro”. Como então re-conhecer o Outro sem pensá-lo a partir de referencias instaurados por este que pensa? Como o re-conhecimento pode romper com as tradições e compreensões do que seja conhecimento? Como pensar o Outro sem que este perca sua outreidade?

Para pensarmos estas questões ratificadas pela perspectiva que originou o Orientalismo, queremos trazer a ideia de geocultura, proposta por Rodolfo Kusch. Este filósofo argentino busca o desenvolvimento do paradigma de pensar a libertação a partir dos próprios sujeitos oprimidos, os povos americanos. Libertar-se é gerar as condições para que um grupo geocultural possa viver sua própria vida plenamente. Kusch argumenta que todo grupo humano é sujeito de sua cultura e está sempre em constituição, definido e redefinido em suas decisões práticas, a partir de um núcleo geocultural e existencial (Langón, 2005).

Os postulados acima fundamentam a afirmação da impossibilidade da libertação contida em um saber objetivo desenvolvido de fora e trazido como salvação a um povo alienado, como propõe Cromer (importante representante do orientalismo). Na perspectiva geocultural, o Orientalismo não teria condições de ser justo a partir de seus pressupostos. A instalação de uma relação justa necessita de um paradigma, no qual o estar sobrepõe o fazer, a instância qualitativa é mais relevante que a quantitativa, a opinião confere mais certeza que a ciência. Esses fundamentos são descritos como características do homem americano, contrapondo este ao europeu, o autor apresenta os pressupostos de sua geocultura. Assim, consideramos que a relação que surge do Orientalismo, evidencia, na sua essência, a impossibilidade da justiça, pois o saber do Outro aparece como uma ameaça, necessitando de uma tradução e ressignificação por parte dos “ocidentais” que dessa forma, exploram e coisificam os nativos.

Outra contraposição aos fundamentos orientalistas são os estudos de Raul Fornet-Betancourt e Ricardo Salas, que assim como Kusch, são filósofos representantes do pensamento latino-americano na perspectiva da interculturalidade. Interessa-nos expor algumas questões que sirvam de fundamento para a crítica ao Orientalismo a partir da ética intercultural proposta pelos autores.

A universalidade - que marca o pensamento (logos) grego - é um elemento relevante na constituição da reflexão da cultura ocidental. Este aspecto delineou fundamentos que serviriam para o entendimento de qualquer comunidade, tendo assim, em sua essência, a imposição de uma forma de conceber o mundo, desprezando outras cosmologias e formas de pensar e constituir suas práticas cotidianas. Neste sentido Leopoldo Zea (2005, p. 51) nos diz que o logos grego introduz um modo de pensar e organizar o mundo, em que tudo que escapa a esta ordem passa a ser considerado bárbaro.

Donos do logos, é esta a única expressão possível da ordem. Qualquer outra expressão resulta bárbara, isto é, balbuciante, mal dita, mal expressa [...]. Centros de poder e, à margem, homens ou povos que não sabem ou não podem se expressar em um logos que não lhe seja próprio. Os outros são os mal falantes e, portanto, entes que devem ser submetidos (Zea, 2005, p. 51).

Assim, esses pressupostos ocidentais, não reconhecem diferentes percepções de mundo, como dotadas de racionalidade, de expressão, uma vez que estas não sustentam uma percepção legítima do viver humano. Toda e qualquer outra percepção apenas balbucia ideias. Trataremos de aprofundar a crítica a esse entendimento, no âmbito filosófico, a partir da compreensão da necessidade em pensarmos uma Filosofia latino-americana e, posteriormente, intercultural. Os filósofos latino-americanos que traremos para nossa discussão partem da indagação sobre até que ponto a historia da Filosofia não se traduziu em um pensamento eurocêntrico e hegemônico.

A Filosofia contextualizada intercultural critica a Filosofia profissionalizada, que é concebida como propriedade da academia e dos filósofos profissionais. Esta concepção de Filosofia é distorcida e exclui outras formas de entendimento do que é Filosofia. Propõe então, um fazer filosófico intercultural, que surge da reflexão crítica de nossos tempos em parceria com o Outro. Esta se configura, na ausência de expansão de um único pensamento, na cooperação mútua das racionalidades autônomas e no reconhecimento da dignidade inviolável que constitui cada cultura.

Essa Filosofia critica a hegemonia e postula uma nova forma de constituir a Filosofia, a partir de duas dimensões: metodológica e hermenêutica; e a transformação libertadora do mundo histórico latino-americano. Há, nesse entendimento, a substituição da ideia de Filosofia unilateral, que estabelece critérios próprios e fechados a partir de um ponto de vista, pela Filosofia contextual e intercultural, que se constitui no diálogo que atinge os povos excluídos e reconhece estes como diferentes, constituidores de pensamento, com os mesmos direitos que têm todas as culturas. Assim, a compreensão e re-conhecimento da diversidade torna-se uma instância importante para o estabelecimento de uma ética intercultural que não privilegia uma cultura. Essa postura impede o encontro violento e não se constitui como ação de vingar a barbárie perpetrada em nossa América Latina, ao contrário, postula uma Filosofia para todos, que se fundamenta numa proximidade fraterna. Contudo, não dá as costas para situações de exploração e para a realidade de um mundo globalizado e neoliberal, que privilegia os poderosos, as grandes corporações e os governos injustos e corruptos. Portanto, a filosofia contextualizada intercultural é,

[...] una propuesta que invita a transformar la filosofía que hacemos en un saber que sepa ejercerse como teoría y práctica de proximidad entre los seres humanos y sus culturas en el mundo de hoy, para que ése nuestro sea realmente nuestro mundo, un mundo del nosotros (Fornet-Betancourt, 2001, p. 20).

A ética intercultural, proposta que fundamenta a compreensão de uma Educação Intercultural, é constituída desde o pensamento latino-americano e busca olhar uma cultura a partir dela própria, sem imposições. Por isso, não pressupõe um encontro de iguais, mas o re-conhecimento da dignidade do outro a partir da diferença.

Uma postura ou ação intercultural não provoca a perda das identidades culturais, ao contrário, busca repensar, recontextualizar e ressituar permanentemente essas identidades, tendo como movimento simultâneo argumentar e reconstruir valores e normas, que, segundo Salas (2010), podem gerar uma ética universal. A aproximação dessa universalidade dar-se-ia a partir da argumentação e reconstrução de valores de cada cultura. Esses valores não serão em si universais, mas sim os critérios para atingi-los, que pressupõem a necessidade de realizar justiça e o reconhecimento do outro como portador de uma dignidade inviolável.

Outro elemento relevante nessa proposta é o conflito. Para Salas (2003, p. 32), o conflito é inerente às sociedades humanas, sendo a conflitividade um fenômeno dinâmico e constituído por acordos e desacordos, encontros e desencontros em diversos níveis. Dessa forma, a ética intercultural entende que o dinamismo e a reconstrução dos valores que orientam a ação é uma marca da ética. É preciso, pois, conviver com a mudança, com a releitura das formas de convívio humano a partir das atividades práticas de cada grupo social. Nesse sentido, o pensamento intercultural opõe-se ao etnocentrismo e a uma racionalidade monocultural.

O diálogo intercultural, necessário para pensarmos uma educação intercultural, surge na convivência entre diferentes que reconhecem a forma de atuação do outro e buscam compartilhar suas ações e aprender com o Outro. É desse modo, que conhecer perpassa necessariamente um re-conhecer, ou seja, todo e qualquer conhecimento sobre Outro deve emergir de um diálogo de re-conhecimento. Nessa perspectiva, o diálogo é permanente recriação, não é possível determiná-lo a priori, ele é fruto da relação que prioriza a justiça recíproca.

Orientalismo brasileiro: o indigenismo

Tomamos como exemplo o chamado indigenismo para afirmarmos que nossa discussão não trata de aspectos constituintes somente do Orientalismo e de sua época, mas também de fundamentos presentes na história do Brasil, através do indigenismo, que buscam inserir indígenas na lógica capitalista.

Para uma breve problematização do indigenismo no Brasil, é necessário citarmos (não nos interessa desenvolver esses aspectos no momento) quatro importantes momentos do contato entre indígenas e não-indígenas no Brasil: a invasão dos europeus, que introduz a catequização, que foi conduzida pelos padres jesuítas a partir de 1540. Em 1910, a criação do Serviço de Proteção ao Índio pelo Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, que criou alternativas para superar a situação desfavorável dos indígenas. A criação do Parque Nacional do Xingu, pelos irmãos Villas Bôas, em 1961, que buscou reservar uma área para os indígenas que sofriam com o chamado desenvolvimento e progresso. E mais tarde, a instituição da Fundação Nacional do Índio, que existe até hoje e é alvo de críticas contundentes de lideranças indígenas. Essas iniciativas constituíram uma relação que detinha o poder nas mãos dos não-indígenas.

Conforme Bartolome, o indigenismo é “um processo histórico-ideológico intimamente relacionado com a experiência do mundo ocidental-capitalista no mundo indígena, sendo mais uma alienação ideológica da realidade indígena” (Bartolome e Robinson, 1981, p. 108). O indigenismo constituiu a negociação entre o desenvolvimento de uma cultura de consumo e a adequação dos indígenas brasileiros a essa proposta. Aqui novamente, destacamos a importância da educação escolar neste processo. Embora tivesse também uma característica de proteção contra ações violentas perpetradas por madeireiros e outros exploradores das matas brasileiras habitadas por indígenas, representadas pelos intermediadores do governo brasileiro (como os irmãos Villas Bôas), o indigenismo gerou essencialmente a inserção da lógica ocidental, criada primeiramente pela colonização, na vida indígena. Portanto, em essência não considerava a forma de ser dos indígenas como algo possível de ser mantido, mas sim adequada à vida dos não-indígenas, o que revela o binarismo como constituinte dessa relação, pois os não-indígenas que têm poder (superiores) adequam os indígenas (inferiores) a uma nova forma de agir, pois eles seriam incapazes de fazê-la por conta própria.

Pensar na possibilidade de um diálogo entre indígenas e não-indígenas aponta necessariamente, para o reconhecimento de lógicas distintas, nas quais o silêncio, por exemplo, tem significados extremamente diferentes. É desse modo, que devemos descobrir e re-descobrir constantemente a forma de constituir estes diálogos, em que nem sempre a palavra assume a principal fonte de expressão.

Consideramos que, aparentemente, há menos prejuízo ao nativo no Indigenismo que no Orientalismo, pois a escuta, e o reconhecimento de algumas necessidades fundamentais dos indígenas são desenvolvidas pelos indigenistas em vistas de preservar a manutenção dessa cultura, no entanto a intenção maior é adaptar esses indígenas à lógica dos não-indígenas.

Alcida Rita Ramos, no estudo intitulado Projetos Indigenistas no Brasil Independente, comenta:

A transformação dos índios em criaturas feitas à imagem do cristão civilizador (assim como o cristão é a criatura feita à imagem e semelhança de Deus), ou seja, integrá-los à sociedade dominante. Esta política atravessa os séculos, assume tonalidades várias, mas se mantém desde as insistentes recomendações do escrivão Pero Vaz de Caminha para a catequização dos “brasis”, passando pela política pedagógica dos jesuítas (Baêta Neves, 1978), pelo diretório pombalino, pela proposta de José Bonifácio, até a Constituição Federal de 1988 (Ramos, 1999, p. 10).

Nossa convicção sobre a semelhança dos fundamentos orientalistas aos pressupostos que estruturam relações recentes como o indigenismo se sustenta nessas questões.

Compreendemos que o encontro ético é impulsionado pela vontade sincera de justiça, que reconhece um histórico humano de exploração e violência contra os indígenas.

Algumas questões finais

Ao analisarmos as características dos encontros entre nativos e colonizadores, indígenas e não-indígenas, a partir de propostas, antagônicas como o Orientalismo e a Ética Intercultural, percebemos que os fundamentos de uma relação humana necessitam de um olhar e ação cuidadosos. Destacamos a importância de buscarmos constituir esse encontro a partir de uma ética que preserve a forma de ser do Outro, respaldando a necessidade de justiça. Contudo, uma questão essencial ainda nos instiga e suscita o aprofundamento de nossa discussão: será possível a convivência justa entre indígenas e não-indígenas atualmente? Esta questão nunca pode ser abandona, pois todo e qualquer diálogo deve ser permeado por esta constante inquietação, ou seja, de um diálogo justo e de uma justiça dialógica.

Para concluir a reflexão trazemos a experiência da escola indígena hoje no Brasil. Por muito tempo esta escola representou um espaço de afirmação do processo de colonização, que passava pela educação do corpo, da língua. Contudo hoje é possível pensar neste espaço de outras formas, e as escolas indígenas, com a resistência destes povos, tem nos ensinado isto. A escola assim como a terra, não é apenas o espaço demarcado, a escola vai além de suas paredes. Mesmo que a escola tenha um currículo não significa converter toda cultura indígena em material escolar. As culturas e saberes indígenas nos mostram experiências, conhecimentos que não são fragmentados, que tem uma relação intensa com a vida e que a escola indígena não forma indivíduos e sim coletivos. Estas questões ainda estão muito distantes da escola que temos.

Existe uma reflexão que Kusch faz, provocativa para pensarmos estas questões. Devido a riqueza de seu pensamento, a transcrevemos em sua totalidade:

[...] com a alfabetização se dá a fixação e a uniformização do sentido. Em suma, se instala um logos convencional que nada tem a ver com o logos não escrito que encerra o sentido do existir indígena. Se nega então com a alfabetização a possibilidade do mecanismo do antidiscurso, porque se alfabetiza um aspecto do existir. É possível que isto se remedeie [destaque nosso] enquanto a alfabetização vá acompanhada de algo, assim como um poetizar, a partir do alfabeto mesmo. O poético, ou seja, a poiesis, ou seja a criação, poderia reatualizar o horizonte simbólico do indígena e por conseguinte, reintegrar a totalidade de seu existir (Kusch, 1976, p. 112).

Kusch nos mostra que não podemos perder a poesia no diálogo intercultural. A poesia é capaz de trazer a existência o que culturalmente poderia estar ameaçado de deixar de existir. A poesia como que preenche o vazio intercultural, criando outras formas de diálogo, em que a palavra poética - aquela que não é feita de conceitos, mas de metáforas, como uma palavra sempre fora de lugar - é capaz de deixar o outro existir, de dar espaço para que o outro possa dizer-se. Isso se dá, porque a palavra poética não é apertada, possui folgas, espaços de silêncio em que o invisível habita. Recordamos um trecho do filme O Carteiro e o poeta (1994), em que Pablo Neruda explica ao carteiro o que é metáfora: “Aqui é a ilha e o mar, e quanto mar, se sai de si mesmo a cada instante, diz que sim, que não, que sim, que não, um azul, em espuma, em galope, não pode estar quieto, me chamo mar, repete, pegando uma pedra sem tentar convencê-la [...]”. Generosidade de um mar que bate na pedra, lapidando-a com o tempo, mas não quer convencê-la. Mar que vem e vai, mareando o pensamento na sua inconstância. Sentido da metáfora, ser inconstante e não definidora que essencializa, define, adere a forma e tudo que sai desta forma é inadequado.

É preciso fazer da escola indígena ou não indígena, do encontro com o outro, um espaço poético, em que a linguagem mais do que definidora seja mítica. Esta é a única forma de “remediar” sua violência. Mas é importante destacar, como comenta Kusch na citação feita, que apenas é uma forma de remediar e não eliminar, pois a alfabetização a partir de outra cultura não indígena é uma tarefa da escola ocidental, contudo deve ser acompanhada por uma desalfabetização poética (feito mar que vai e vem). Como o processo de desconstrução proposto por Derrida em que não se destrói o que se construiu, mas se desconstrói, num exercício criativo de resignificar o que parece estar marcado em cada letra do alfabeto romano, utilizado pelos europeus para civilizar o bárbaro, ou seja, aquele que não sabia falar, apenas balbuciar! E desse modo se educa a língua a dizer uma palavra que não é sua. Ao se ensinar um alfabeto ensina-se uma cultura, um modo de ver o mundo, que ordena desde a palavra apreendida, a própria vida.

Material suplementar
Referências
BARTOLOME, M.; ROBINSON, S. 1981. Indigenismo, dialética e consciência étnica. In: C. JUNQUEIRA; E. CARVALHO (org.), Antropologia e Indigenismo na América Latina. São Paulo, Cortez Editora, p. 107-114.
FANON, F. 2011. Los condenados de la tierra. Cuba, Fondo Editorial Casa de las Americas, 281 p.
FORNET-BETANCOURT, R. 2001. Transformación Intercultural de la Filosofía. Bilbao, Editorial Desclée de Brouwer, 427 p.
KUSCH, R. 1976. Geocultura del hombre americano. Buenos Aires, Coleção Estudos Latinoamericanos, 159 p.
LANGÓN, M. 2005. Geocultura. In: R.A. SALAS (dir.), Pensamiento Crítico Latinoamericano: Conceptos Fundamentales. Santiago de Chile, Universidade Católica Silva Henríquez, vol. II, p. 457-466.
SAID, E. 2007. O alcance do Orientalismo. In: E. SAID, Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo, Cia. das Letras, p. 41-102.
SALAS, R.A. 2010. Ética Intercultural (re)leituras do pensamento latini-americano. São Leopoldo, Nova Harmonia.
RADFORD, M.; TROISI, M. 1994. O Carteiro e o poeta. [Motion picture]. Itália, França e Bélgica. Miramax.
RAMOS, A.R. 1999. Projetos indigenistas no Brasil independente. In: Colóquio Antropologias Brasileiras na Viragem do Milênio. Centro de Estudos de Antropologia Social (ISCTE), Lisboa, p. 15-17.
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Notas
Autor notes

Universidade Federal do Rio Grande do Sul. magaliufrgs@gmail.comAssociação Sul Americana de Filosofia e Teologia Interculturais. orcaoito@yahoo.com.br

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