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A pesquisa de intervenção cartográfica em Arte Educação
Monica Zewe Uriarte; Adair de Aguiar Neitzel
Monica Zewe Uriarte; Adair de Aguiar Neitzel
A pesquisa de intervenção cartográfica em Arte Educação
Cartographic intervention research in Art Education
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 3, pp. 387-394, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
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Resumo: Este artigo tem como foco a pesquisa de intervenção cartográfica como um método para pesquisas em Arte Educação. O objetivo é discutir sobre essa metodologia, que coloca em evidência os processos e as questões educacionais que respeitam as subjetividades e a experiência. A metodologia de pesquisa é qualitativa, e a abordagem é bibliográfica, com aporte teórico principal em Deleuze e Guattari (1995), Kastrup (2008) e Uriarte (2017). Como resultado, sinaliza-se que essa metodologia exige mudança nas práticas de narrar; apresenta a pesquisa e a intervenção como dois planos de um mesmo processo; não dissocia os campos da análise e da intervenção; constitui-se um método aberto às relações e às conexões com outras áreas do conhecimento; exige a imersão do pesquisador no território da pesquisa; é sempre um coletivo de forças e, mostrou-se muito adequado para a pesquisa em Arte Educação, especificamente na área da Música.

Palavras-chave: pesquisa-intervenção cartográficapesquisa-intervenção cartográfica,metodologia de pesquisametodologia de pesquisa,Arte EducaçãoArte Educação.

Abstract: This paper focuses on the cartographic intervention research as a method for research in Art Education. The objective is to discuss this methodology, which highlights the educational processes and issues that respect subjectivities and experience. The research methodology is qualitative and the approach is bibliographical, with the main theoretical framework based on Deleuze and Guattari (1995), Kastrup (2008) and Uriarte (2017). As a result, we point out that this methodology requires a change in the narrative practices; presents research and intervention as two plans of the same process; does not dissociate the fields of analysis and intervention; is an open method to relations and connections with other areas of knowledge; requires the immersion of the cartography researcher in the research territory; is always a collective of forces alongside stable outlines called shapes, and proved to be very suitable for the research in Art Education, specifically in Music.

Keywords: cartographic intervention research, research methodology, Art Education.

Carátula del artículo

Articles

A pesquisa de intervenção cartográfica em Arte Educação

Cartographic intervention research in Art Education

Monica Zewe Uriarte
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Adair de Aguiar Neitzel
Universidade do Vale do Itajaí, Brasil
Educação Unisinos, vol. 21, núm. 3, pp. 387-394, 2017
Universidade do Vale do Rio dos Sinos

Recepção: 16 Maio 2017

Aprovação: 06 Outubro 2017

Introdução

O mais bonito nessa obra é ver a unidade: tantos artistas envolvidos com uma grande produção. A música do amanhecer é linda, e nós levamos para as crianças ouvirem, contamos a história, dançamos, foi maravilhoso! (Bolsista do PIBID, Grupo 2, 2012).

Como manter, em uma pesquisa científica, o frescor da experiência que lemos no depoimento da epígrafe? A sua força expressiva encontra-se no processo educativo, um processo que ampliou o modo de olhar, de ouvir, de perceber do grupo pesquisado, modos que precisam ser valorizados. A pesquisa qualitativa é sinalizada como um meio apropriado para entender percepções, necessidades e comportamentos a partir não apenas do ponto de vista do pesquisador, mas dos sujeitos da investigação, porque as subjetividades de ambos não são refutadas no processo - a vida humana é vista como uma atividade interativa e interpretativa que vai sendo tecida no contato com as pessoas. Ela nos permite trazer para a discussão o que as pessoas pensam e como reagem em diferentes situações a que são expostas. Esse posicionamento metodológico para realizar pesquisas defende o entendimento do homem como intérprete do mundo em que vive, acolhendo, dessa forma, as inquietações do pesquisador e dos sujeitos da pesquisa.

Ao longo de nossa vivência de pesquisadores, constatamos que a pesquisa qualitativa em arte e educação carece de metodologias que considerem o processo artístico na sua intensidade, isto é, que contemplem dados em uma perspectiva ampliada, como a introdução de textos de diversas naturezas como contos, poesias, pinturas, música, entre outras linguagens, considerando a arte como meio para construção de conhecimentos e novos saberes. Há a necessidade de uma metodologia que considere o processo que possibilita encontros sensíveis com a arte, a cultura e a natureza, deslocando o olhar para outros pontos de vista, tornando o desconhecido um objeto de saber. Para Martins e Picosque (2012, p. 128): “Os signos da arte portam em si uma maior potência da diferença, isto é, são polissêmicos, camaleônicos, o que faz com que a arte se imponha como um ponto de vista privilegiado sobre o mundo e as coisas do mundo”.

Por isso, entendemos que, ao trabalhar com a arte, é preciso uma metodologia que deixe falar a experiência - esta entendida como ações criadoras que transcendem, pelos afetos, “[...] aquilo que se dá a ver no momento que acontece” (Pillotto, 2015, p. 7) -, mais perceptível aos encontros das pessoas que fazem parte das pesquisas, de suas angústias, de suas manifestações livres. Uma metodologia que não rejeite o trato poético das coisas nem a cientificidade, mas que revele o conhecimento pela experiência, e esta “[...] é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova” (Larrosa, 2016, p. 26). Como então qualificar mais ainda as pesquisas em arte educação sem perder as oportunidades que são geradas pelo exercício do estético e salvaguardando a validade científica dos processos?

A pesquisa de intervenção cartográfica vem sendo empregada nas pesquisas como uma abordagem metodológica que se situa em um entre-espaço ou entre-lugar e vem tomando fôlego por buscar nos processos meios para compreender questões educacionais. Uma metodologia mais flexível aos “acontecimentos” e às problematizações, que não faz uso de procedimentos e de mecanismos de controle, não se ocupando com resultados reproduzíveis, mas com as compreensões e as experiências muitas vezes relegadas a segundo plano na pesquisa científica.

A pesquisa, nessa abordagem, estabelece-se a partir de contatos possibilitados por encontros culturais, vivências artísticas, reflexões, registros escritos, fotográficos, audiovisuais, planejamentos, ações educativas, entre outros, a fim de proporcionar diferentes formas de intervenção. O papel do pesquisador constitui-se em articular o conhecimento já construído de uma determinada área com as novas evidências encontradas a partir da investigação, dando um corpo ao trabalho, que se comporá pelas marcas do pesquisador e dos pesquisados quanto às suas crenças, suas formas de observar e suas posições teóricas e políticas. Disso decorre a compreensão de que a pesquisa está intimamente implicada às relações estabelecidas entre o que se estuda, com quem se estuda e para que se estuda.

Este artigo tem como objetivo discutir sobre essa metodologia que coloca em evidência os processos, sendo considerados como meios para compreender questões educacionais que respeitam as subjetividades e a experiência. Esta, ao romper com perspectivas mais tradicionais de pensar e registrar o pesquisar, se abre para possibilidades múltiplas, pois não tem como objetivo a infalibilidade. A pesquisa de intervenção cartográfica visa à ampliação da compreensão das relações estabelecidas entre os indivíduos e, portanto, não busca explicar e prever resultados. Ela considera, na produção de conhecimento, as percepções dos sujeitos envolvidos e todo e qualquer signo produzido como imagens, sons, movimentos do corpo, palavras, etc., os quais produzem novos significados pessoais e coletivos. O trabalho do pesquisador cartógrafo é reflexivo e flexível porque necessita sempre repensar sobre o planejado, rever os dados coletados (o que aconteceu e questionar a própria prática e hipóteses) e considerar as contribuições do grupo pesquisado.

Nesse artigo, a pesquisa de intervenção cartográfica será discutida tendo em vista a aplicação feita por Uriarte (2017). Sua pesquisa foi desenvolvida a partir do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), com o objetivo de cartografar como a mediação cultural pode ampliar a formação estética, artística e política dos professores em formação inicial e continuada, de forma a potencializar o PIBID como espaço de cultura. Os sujeitos de sua pesquisa foram professores e alunos da Educação Básica, acadêmicos do curso de Licenciatura em Música da Universidade do Vale do Itajaí - Univali e a pesquisadora.

Trazemos essa pesquisa para exemplificar como o movimento provocado pela pesquisa de intervenção cartográfica amplia as abordagens tradicionais da investigação, buscando uma atuação transformadora nas pesquisas participativas, intervindo na experiência. Essa atuação é possibilitada pela forma como o pesquisador se envolve com a investigação, que, segundo Kastrup (2008), é um envolvimento que descarta a ideia de neutralidade do pesquisador, pressupondo que este já está implicado com a observação e, por meio de sua intervenção, o objeto de estudo pode ser transformado.

Pesquisar e intervir: uma interlocução constante do pesquisador e dos sujeitos pesquisados

Socializamos erros e acertos, atividades que deram certo e outras que tiveram que ser adaptadas no momento das aulas, exigindo dos professores percepção e jogo de cintura. Foi um momento de usar nossa criatividade para podermos assim conhecer diferentes formas de se trabalhar música, música e teatro, música e artes, música e questões sociais, reforçando a importância de se refletir sobre o trabalho da educação musical para obter um resultado mais efetivo (Bolsista do PIBID, Grupo 3, maio de 2013).

Essa expressão escrita de um dos licenciandos de música, bolsista do PIBID, revela uma das características da pesquisa de intervenção cartográfica: o pesquisar e o intervir são indissociáveis, e seu percurso é construído no processo e na complexidade dos acontecimentos investigados. Para tanto, a pesquisa conta com uma interlocução constante do pesquisador com os sujeitos pesquisados. A bolsista declarou: “Socializamos erros e acertos [...] reforçando a importância de refletir [...]”.

A pesquisa de Uriarte (2017) foi se constituindo nesses encontros de diálogo e trocas com professores da rede municipal e licenciandos em música, oferecidos mensalmente com a pretensão de criar condições, por meio de grupos de estudo e do acesso a atividades artísticas, para a potencialização da imaginação e da ação criadora dos professores, “[...] sempre considerando os efeitos do processo do pesquisar sobre o objeto da pesquisa, o pesquisador e seus resultados” (Passos e Barros, 2014, p. 17). Ao longo do processo da pesquisa-intervenção, a busca do pesquisador foi por atuar como mediador nos processos de formação, envolvido com os desejos, as vontades, as angústias e os desafios que circundam a mediação cultural na escola.

Segundo Castro e Besset (2008, p. 12), “[...] a partir do momento em que o pesquisador entra no contexto onde se dá a pesquisa, suas perguntas e propostas já constituem uma intervenção”. Dessa forma, ao participar ativamente de todo o processo favorecendo que os professores e licenciandos se percebessem como mediadores culturais no espaço escolar, houve intervenção, cujo foco da pesquisa aponta para “[...] estar aberta às particularidades do contexto, em termos econômicos, culturais e psicossociais: a dimensão cultural e a singularidade das trajetórias das instituições e organizações coletivas estão fortemente presentes” (Sato, 2014, p. 171). Essa aproximação dos pesquisadores com os sujeitos da pesquisa dá-se em um “[...] processo de negociação entre os envolvidos e que depende das circunstâncias presentes” (Sato, 2014, p. 171).

A pesquisa-intervenção está balizada pelos princípios de considerar as realidades sociais e cotidianas comprometendo-se ética e politicamente com a produção de práticas inovadoras, como indica Moreira (2008). Como é um processo construído pela intervenção, é preciso olhar para os resultados a fim de promover outros exercícios, aplicando-os com aquele grupo e contexto. “[...] a pesquisa-intervenção só acontecerá se houver um problema comum a ser solucionado” (Moreira, 2008, p. 430).

Na pesquisa desenvolvida por Uriarte (2017), o primeiro problema com o qual a pesquisadora se deparou foi sobre a formação inicial dos licenciandos de Música em diferentes períodos do curso, o que indicava maior e menor experiência e contato com o ambiente escolar, assim como diferenças nas apropriações conceituais. Outra questão que precisava ser pensada diz respeito à formação das professoras supervisoras que receberam na escola os licenciandos do programa PIBID, formadas em Pedagogia, sem conhecimento em Educação Musical, mas com experiência no emprego da música nas atividades diárias desenvolvidas no Centro de Educação Infantil. Diante dessa problemática, o pesquisador compreendeu que todo o espaço de encontros que a pesquisa previa precisaria focar na mediação cultural desse grupo, a partir da troca de saberes e de experiências, promovendo a interação entre os sujeitos da pesquisa.

No decorrer do processo, houve também a preocupação quanto à participação e ao envolvimento dos sujeitos da pesquisa com relação à produção escrita, realizada nos relatórios e nos portfólios que ficavam disponíveis no ambiente virtual da universidade, assim como nos artigos publicados em eventos e revistas. Rocha e Uziel (2014, p. 540) destacam que o conhecimento gerado pela pesquisa-intervenção é “[...] uma produção que se faz entre os saberes já acumulados e que servem como referencial norteador das práticas participantes da pesquisa, e o fazer enquanto construção contínua que organiza a investigação da problemática em questão”.

As autoras indicam também que existem dois campos da pesquisa-intervenção, ambos compatíveis com este trabalho: o campo de análise e o campo da intervenção. O primeiro “[...] se circunscreve como intervenção no campo teórico produzido sobre a área, sobre a problemática que se quer explorar” (Rocha e Uziel, 2014, p. 540). No que diz respeito ao campo de intervenção, ele “[...] nos remete ao espaço de interlocução, ao território de encontros possíveis entre pesquisador e comunidade envolvida no processo de investigação” (Rocha e Uziel, 2014, p. 540).

Não é possível dissociar esses campos, da análise e da intervenção, pois não se pode abrir mão de conhecer e estudar a teoria produzida sobre o tema pesquisado - campo de análise - e articular esses conhecimentos às experiências do grupo - campo de intervenção. Para que esses campos cumpram suas funções, a intervenção deve promover reflexões quanto ao seu percurso, partilhando com o grupo seus avanços e suas necessidades, o que só é possível a partir de uma pesquisa de caráter aberto, processual, em rede, na qual a experiência e a investigação estiveram em sintonia.

Imagens da cartografia: mapas, desenhos, territórios, pistas

[...] o mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social (Deleuze e Guattari, 1995, p. 22).

A epígrafe de Deleuze e Guattari (1995) apresenta-nos uma ideia pouco recorrente da cartografia como mapa. Apesar de ela ser uma ciência que concebe, estuda e utiliza os mapas, e estes, por sua vez, são desenhos que indicam lugares ou territórios, favorecendo nossa orientação e nosso conhecimento sobre esse espaço, os autores provocam-nos a pensá-la como um espaço que pode ser modificado constantemente. Essa analogia permite-nos compreender que, ao adotarmos a cartografia como metodologia, faz-se necessário estar atento às flutuações que ocorrerão no percurso da pesquisa e que irão compor esse mapa.

O mapa é uma imagem que pode ser pensada como um objeto estético que carrega formas e cores, aberto a diferentes caminhos, passível de interpretações poéticas, marcadas pela ocupação e pela desocupação de um espaço, que abriga crenças e valores culturais e sociais. Nas pesquisas em Arte Educação, a cartografia pode ser utilizada como método de acompanhamento do traçado das linhas que indicam os percursos culturais, o que possibilita ao pesquisador enxergar e refletir sobre o procedimento em curso, voltado tanto à manutenção como à criação de novos caminhos. Compreendemos que as formas da cartografia são desenhadas pelos seus participantes e seus objetos, mas o que orienta a pesquisa são as forças do campo, no caso dessa pesquisa, a estética e a arte. Uma pesquisa de intervenção cartográfica organiza-se a partir de diferentes fontes de construção, consulta e coleta de dados, de modo a tornar mais conectáveis os campos do pensamento discursivo e sensível, construído pelos colaboradores, compondo um plano de forças e de afetos. Uma metodologia que solicita a atenção e a sensibilidade do pesquisador para experimentar os muitos e inusitados cruzamentos possíveis durante a pesquisa.

No campo da cultura, a cartografia entende a experiência como um saber-fazer com base na construção do conhecimento e da atenção, essencial para configurar o campo perceptivo da pesquisa (Passos e Barros, 2014, p. 18). Nessa perspectiva, a cartografia acompanha percursos e aplica conhecimentos em processos de produção e de redes. Na cartografia, a atividade de fazer o mapa de um campo de forças pode ser suscitada pelo desejo de modificar um estado de coisas e mesmo de interferir no processo, que pode alterar os contornos do mapa. Toda intervenção pode ser uma pesquisa, desde que seja guardada uma atitude investigativa, sejam adotados procedimentos rigorosos de produção de dados e o trabalho redunde em textos publicados, socializando os resultados e submetendo as conclusões a outros pesquisadores. Na cartografia, a atividade de fazer o mapa de um campo de forças pode ser suscitada pelo desejo de modificar um estado de coisas e mesmo de interferir no processo, que pode alterar os contornos do mapa.

Instigados por esse movimento, sinalizamos a cartografia como forma e meio de desenhar, de demarcar, de interpretar e de reinterpretar os territórios pesquisados na Arte Educação, pois, por meio dela, compreendemos que a dinamicidade que envolve a escola e seus agentes é respeitada, contemplando na pesquisa também os elementos que surgem na experiência vivida, na interlocução com os pares, os quais na cartografia identificamos como pistas.

As pistas têm a finalidade de guiar o cartógrafo como “[...] referências que concorrem para a manutenção de uma atitude de abertura ao que vai se produzindo, e de calibragem do caminhar no próprio percurso da pesquisa” (Passos et al., 2014, p. 13). Provocadas pelos princípios da esquizoanálise propostos por Guattari (1988), apresentamos pistas que podem ser utilizadas, sem ordem ou sequência, na pesquisa-intervenção. Elas se remetem umas às outras e, também, “[...] não formam uma totalidade, mas um conjunto de linhas em conexão e de referências, cujo objetivo é desenvolver e coletivizar a experiência do cartógrafo” (Guattari, 1988, p. 14).

A cartografia é um método que distingue, mas não separa pesquisa e intervenção

Pesquisa e intervenção são dois planos de um mesmo processo porque a cartografia discute a indissociabilidade entre o conhecimento e a transformação tanto da realidade quanto do pesquisador (Passos e Barros, 2014, p. 17). A pesquisa dá-se na experiência, no acontecimento, na intervenção e, por isso, o pesquisador e os pesquisados são afetados. Uriarte (2017) descreve como as relações estabelecidas no processo entre professores supervisores e alunos da Educação Básica e os licenciandos de música do PIBID afetaram todos os envolvidos, pois licenciandos aprendiam com os professores e estes com os licenciandos. A troca instituída entre ambos e com os alunos da Educação Básica interferiu na produção dos materiais e nos conhecimentos gerados, inclusive nos registros das ações. Ler seus relatos nos portfólios transformou-se em momento de reflexão sobre a mediação cultural que se mostrava presente a partir das considerações, dos novos hábitos adquiridos e do olhar mais apurado para as atividades artísticas na escola. O mapa do PIBID no Centro de Educação Infantil apontou para as artes como seu campo de forças, o qual foi se articulando com outras linhas já existentes, remetendo a uma construção de novas formas de perceber, pensar e fazer, presentes nas atitudes e nas produções de materiais e textos.

A prática da cartografia requer o aprendizado de uma atenção nos trabalhos do cartógrafo

Textos, diálogos, fotografias, entrevistas, músicas, imagens e todo o tipo de material que pode ajudar no mapeamento das semióticas do campo podem ser utilizados neste trabalho de pesquisa, acompanhados da observação paciente e minuciosa do cartógrafo. A cartografia não trabalha apenas com os signos linguísticos, nem os privilegia: “O que é do campo do visível é tão importante quanto o que é do campo do dizível” (Deleuze e Guattari, 1995, p. 33), o que exige atenção do pesquisador porque ele trabalha também com as percepções dos envolvidos. Como se constituiu em um método aberto às relações e às conexões com outras áreas do conhecimento, o pesquisador necessita abrir-se para o novo, para aprendizagens de outras áreas, relacionando-as. No caso da pesquisa de Uriarte (2017), a pesquisadora manteve-se atenta às problemáticas que envolviam a docência na Educação Básica e a formação do futuro professor de música, introduzindo saberes advindos de várias áreas artísticas, não apenas relacionadas à música, reorganizando as estratégias de formação à medida que a pesquisa evoluía.

Movimentos-funções do dispositivo na prática da cartografia

No campo da pesquisa, circulam linhas de natureza diferentes que necessitam ser respeitadas e explicitadas: visibilidade, enunciação, força e subjetivação. Uriarte (2017) busca dar visibilidade à problemática da música na escola, produzindo enunciados que revelem a compreensão da sua função no ambiente escolar. A presença dos licenciandos no Centro de Educação Infantil (CEI) foi uma das forças que deu movimento à pesquisa, cruzando-se vetores afetivos, subjetivos e cognitivos por meio da mediação efetuada pelo pesquisador. Ao atribuir-se a professores da universidade, licenciandos e professores da Educação Básica responsabilidades e funções compartilhadas, abriu-se possibilidades de cartografar-se novos signos, linhas que compuseram esses movimentos-funções. Se as linhas circulam, o campo da pesquisa e os vetores são entendidos como forças geradas pelo encontro das linhas.

A cartografia é sempre um coletivo de forças

Inicialmente, a cartografia traçada pelo pesquisador indicava encontros mensais presenciais, contatos mediados pelo ambiente virtual, assim como visitas à escola, como um plano de forças, representando a necessidade de constituir um coletivo. À medida que a pesquisa avançou, a cartografia desses encontros foram se modificando, tendo em vista o movimento dos grupos de licenciandos, de gestores, de professores e de alunos da Educação Básica. Experiências exitosas assim como aquelas que não corresponderam às expectativas acionaram novas linhas, que, na confluência com outras, se transformam em vetores, que indicaram a necessidade ou não de mudanças no processo, resultando, quase sempre, em um novo plano de forças. Ao lado dos contornos estáveis do que denominamos formas, objetos ou sujeitos, coexiste o plano coletivo das forças, e a cartografia é a prática de construção desse plano.

A prática da cartografia requer dissolução do ponto de vista do observador

A posição pessoal do pesquisador está marcada por interesses, expectativas e saberes. Assim, deve-se ter o cuidado para que a cartografia reafirme a expectativa do coletivo de forças do qual o pesquisador é parte integrante. Por isso, o pesquisador deve vigiar-se constantemente para que o coletivo de forças seja respeitado e, nesse sentido, não lhe cabe tomar as decisões - elas precisam ser partilhadas. Em princípio, o que orienta a pesquisa são as forças do campo, e é nessa direção que a cartografia busca ser um método preciso e rigoroso. A cartografia faz-se no encontro das forças que constituem o mundo com as forças que constituem as subjetividades do coletivo. O aprendiz de cartografia vigia-se para, ao atentar-se às formas, não substituir a atenção às forças em movimento. Uriarte (2017) relata que os encontros na universidade e na escola foram momentos que a pesquisadora precisou manter-se muito atenta às necessidades do outro, do grupo, porque a experiência dá-se no acontecimento. Sua função foi de mediador com o olhar voltado ao espaço da arte na escola, mediando os saberes e as experiências sensíveis e respeitando as vontades e as necessidades do grupo: coletivo de forças nesse campo de pesquisa.

Cartografar é habitar um território existencial

Essa pista, sinalizada por Alvarez e Passos (2014), reforça a importância da imersão do cartógrafo no território da pesquisa procurando não só compreendê-lo, mas experienciá-lo. Esse território de que falam os autores não são espaciais, mas semióticos, o que significa que, ao cartografar um território, encontram-se signos. A arte é um exemplo de território no qual a atividade desenvolvida cria signos, porque ela “[...] não imita objetos, ideias ou conceitos. Ela cria algo novo, porque não é cópia ou pura reprodução” (Martins et al., 2010, p. 21). Os signos podem ser sonoros, gestuais, corporais, verbais, visuais, entre outros, gerando um novo ponto de vista a partir de um debruçar-se do artista sobre uma ideia, optar pelo uso de uma técnica, acionar seu conhecimento sobre determinado conceito ou objeto e sua capacidade para criar.

A importância dos signos não está demarcada pelo sentido usual, mas na possibilidade de identificar as forças sensoriais que circulam no território. São vários os sistemas de signos e é “[...] no cruzamento de diferentes sistemas de signos que se torna possível entender a configuração do território” (Kastrup, 2008, p. 471). O signo também pode assumir a posição de problema, forçando a pensar, desatando os nós e possibilitando que novas conexões possam ser constituídas. Dessa forma, os signos tanto delimitam como também se constituem em possibilidades de abertura do território.

Em sua pesquisa, Uriarte (2017) demarcou que diferentes signos perpassaram sua trajetória, como os da literatura, das artes visuais, da mídia, da música, do preconceito, do encantamento, da linguagem, da sensibilização, do entorno da comunidade, dos saberes docentes, da estética, entre tantos outros que habitaram o território do centro de educação infantil, da universidade, da arte e da música.

A política da narratividade

É a pista que aborda o tema da escrita de textos de pesquisa. Como ao longo da trajetória signos vão se apresentando - alguns ficam latentes outros exigem o abandono -, é fundamental a busca por dispositivos mais adequados para comunicar os resultados. A proposta pela cartografia exige uma mudança das práticas de narrar, pois ela faz uso de diversos textos, de diversas linguagens, que se conectam com outros saberes, que não coloca o olhar do pesquisador como prioridade e, por isso, exige uma outra proposta de escrita, um texto que se comporte de forma mais rizomática. Um texto que traz como vetores as palavras entremeadas com imagens, figuras, notas, depoimentos, devaneios, mapas e tantos outros signos se compõe de forma hipertextual. É uma narratividade que apresenta o resultado de um coletivo de forças, e não apenas o olhar do pesquisador sobre a realidade observada.

Uriarte (2017) faz o exercício de narrar de forma cartográfica, apresentando pistas, conectando saberes, assumindo, como pesquisadora, uma atitude de envolvimento e de sensibilidade na observação das falas, das atitudes, dos gestos e das propostas. Ao refletir sobre as pistas que surgem, o pesquisador constrói coletivamente um mapa que se volta à ampliação do acesso teórico e prático da área estética e artística, o que possibilita o aguçar do olhar para os conceitos, permitindo observar novos significados, promovendo mediações que mudam percursos.

Para assumir essa proposta metodológica mantendo atenção às modificações do percurso, Rolnik (2006) indica perguntas que o cartógrafo deve fazer. As respostas o ajudarão a compreender melhor o processo, decidindo se deve ou não interferir no sentido de modificar o mapa, a saber:

  • Quais são os signos que habitam o território?

  • Que conexões podem ser percebidas entre os signos?

  • Que linhas revelam um movimento de crescimento e nele acionam a criação de outros signos?

  • Quanto à potência inventiva, quais as conexões que a favorecem e a reduzem?

  • Quais são os problemas que impedem o movimento inventivo?

  • Quais levam à paralização? Que novos encontros podem ser potencializados?

Esses questionamentos são fundamentais para a intervenção cartográfica, pois eles propõem um movimento de reflexão, de revisão, de reorganização, de registro, de conexão e de produção de saberes. Como nos alerta Rolnik (2006, p. 23), o cartógrafo deve “[...] dar língua para afetos que pedem passagem”. Para dar passagem aos afetos, cabe ao pesquisador cartógrafo promover encontros com os pesquisados e nesses encontros registrar as mútuas interferências. O mais importante nesse processo não é perceber se os interesses do pesquisador aparecem nas conclusões da pesquisa, mas “[...] de considerar o quanto a ação, as práticas e a experiência da pesquisa são geradoras de transformações” (Kastrup, 2008, p. 474). A pesquisa de Uriarte (2017) ao considerar os movimentos do grupo investigado, ao reorganizar os procedimentos diante das dificuldades, ao ampliar o conceito de cultura com o qual iniciou a pesquisa, ao perseguir o conceito de mediação cultural ou ainda ao trazer para o texto a experiência dos envolvidos produziu, com rigor, uma pesquisa viva.

O rigor do método é ressignificado a partir da intervenção: “O rigor do caminho, sua precisão, está mais próximo dos movimentos da vida ou da normatividade do vivo. A precisão não é tomada como exatidão, mas como compromisso e interesse, como implicação na realidade, como intervenção” (Passos et al., 2014, p. 11). Isso significa que pesquisador e pesquisados se aproximam dos movimentos do cotidiano, interessados no caráter processual da realidade, o que requer, segundo Kastrup (2008, p. 467), “[...] a habitação do território investigado e a implicação do pesquisador no trabalho de campo”. Um movimento de atenção e reflexão sobre o percurso se estabelece tendo em vista que ele vai se modificando, pois é concentrado em pistas que vão surgindo da e na experiência.

Os relatos dos bolsistas do PIBID de Música sobre o seu cotidiano nos permitem compreender a importância dessas pistas que vão surgindo. Elas trazem para o texto científico um frescor e um movimento que nos levam a entender o funcionamento e a dinamicidade da escola, mas também as angústias e experiências dos sujeitos:

[...] A gente tomava café com os outros professores... aí tinham os concursados e os ACT, então a gente foi entendendo como funciona essa política, como é o ambiente de trabalho, como que a coordenação da escola funciona [...] (Bolsista do PIBID, Grupo 3, 2014).

Eu já sou professora de História da rede, e eu estava muito desmotivada com a atual situação da escola, e vamos nos habituando e deixamos de tomar iniciativas que são importantes para toda a escola (Bolsista do PIBID, Grupo 4, 2013).

Essa atitude frente aos dados empíricos, que nunca é pura racionalização quando tratamos de educação - mas que também não desconsidera pontos comuns, ao contrário, o tempo todo propõe cruzamentos e cotejamentos - nos convida a trazer para o texto científico a razão e o sensível, a objetividade e a subjetividade, a afirmação mas também a contradição, afinal, o juízo crítico também faz uso da intuição, do saber-fazer.

Considerações finais

[...] refletir sobre o verdadeiro papel do professor e o que transforma um professor em uma pessoa realmente significativa para o aluno, criando laços que podem ser levados para a vida toda (Bolsista do PIBID, Grupo 4, 2014).

Buscamos ao longo deste artigo apresentar as características da pesquisa de intervenção cartográfica como um método aberto às relações e às conexões com outras áreas do conhecimento. Sinalizamos que os participantes estão implicados em uma produção coletiva de conhecimento, em que as experiências diárias geram conceitos, refletem e significam as práticas, e, nesse movimento, conhecer é um processo de repensar e reinventar sempre. A epígrafe utilizada nessas considerações revela e exemplifica como a pesquisa e a intervenção são processos indissociáveis e como a abertura para as percepções e as linhas de forças gera um movimento que permite a reflexão e uma nova forma de atuação do professor em sala de aula.

Indicamos essa metodologia para pesquisas qualitativas no campo da Arte Educação que desejam considerar as percepções dos sujeitos envolvidos como vetores de subjetividade, e um campo de força que se articula com outras linhas já existentes, remetendo a novas formas de perceber, pensar e de fazer, presentes nas atitudes e nas produções de materiais e textos.

Trouxemos como exemplo a pesquisa intervenção desenvolvida por Uriarte (2017) para exemplificar como considerar a experiência e manter uma atitude investigativa com procedimentos rigorosos de produção de dados. Nessa pesquisa verificamos que a intervenção foi se constituindo a partir de encontros com os integrantes do grupo do PIBID Música na universidade, na participação em atividades culturais, nas visitas do pesquisador à escola com a finalidade de refletir com o grupo de professores acerca do trabalho artístico-musical desenvolvido na escola, com foco na mediação cultural como potencializadora da sua formação. Ao dar vazão para as percepções dos sujeitos pesquisados e da pesquisadora, a investigação reconheceu o valor da experiência e sinalizou que o inteligível e o sensível não estão apartados na produção de conhecimentos.

A opção da pesquisadora pela intervenção cartográfica a partir de projetos artísticos demonstrou sua confiança de que a arte aciona processos de produção de subjetividade, que resultam em experiências conectáveis entre si. A pesquisadora optou pela cartografia por considera-la uma opção adequada para desenvolver sua pesquisa sobre a formação de professores pela lógica da estética e da arte, investindo em uma reflexão sobre a educação estética, o que compreendeu uma reflexão também sobre o mundo, o homem e seus objetos. A pesquisa buscou expandir para as percepções, a intuição e a inventividade, como modos de conhecer, selecionar e escolher, trazendo lado a lado as experiências com a arte e a descrição, o comentário, a interpretação e os discursos sobre a experiência, com ações que promoveram a formação estética, artística e política dos professores integrantes do PIBID. A arte é um território de invenção e, como tal, instiga a imaginação, incita o movimento, aproxima a cultura da vida.

Material suplementar
Referências
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Notas
Autor notes

Universidade do Vale do Itajaí. uriarte@univali.brUniversidade do Vale do Itajaí. neitzel@univali.br

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