Resumo: Esta pesquisa contextualiza o processo da análise de assunto no âmbito dos acórdãos jurisprudenciais, tendo em vista a relevância desse tipo documental no contexto jurídico como mecanismo de defesa de direitos e de teses jurídicas. Conceitua-se a fonte de informação jurisprudencial, apresentando suas características, funções e estrutura. São também apresentados os requisitos essenciais das sentenças, de acordo com o Novo Código de Processo Civil, de 2015. Os referenciais teóricos da indexação, em especial, da etapa da análise de assunto, são explorados com foco na aplicação da metodologia da análise conceitual de acórdãos proposta por Guimarães (1994), adaptada ao contexto dos tribunais de contas.
Palavras-chave:Análise de assuntoAnálise de assunto,IndexaçãoIndexação,JurisprudênciaJurisprudência,AcórdãoAcórdão,Perspectiva aplicadaPerspectiva aplicada.
Abstract: The present study reviews the subject analysis process in the context of court decisions, considering the importance of this type of legal documents as precedent to guide and support future rulings and legal arguments. It conceptualizes case law information presenting its characteristics, purpose, and structure. The essential requirements of the sentences are also provided, according to the New Brazilian Code of Civil Procedure, 2015. Theoretical studies on indexing, especially those concerning the subject analysis stage, are explored focusing on the use of the conceptual analysis of court decisions, as proposed by Guimarães (1994), adapted to the context of the courts of accounts.
Artigos
Análise de assunto de acórdãos jurisprudenciais
A organização da jurisprudência no âmbito dos tribunais é um campo promissor para a atuação do bibliotecário que, a par das metodologias necessárias de análise de assunto e do exame da estrutura documental dos julgados, contribui para maior visibilidade e reconhecimento do trabalho desse profissional. Além disso, a representação temática da jurisprudência de modo padronizado, reflete-se nos resultados das estratégias de busca dos usuários do sistema de informação.
Nesse sentido, este trabalho objetiva contextualizar a análise de assunto de acórdãos jurisprudenciais, especialmente os produzidos pelos tribunais de contas, ambientação deste estudo, de modo a fornecer subsídios ao indexador desse tipo documental, pouco conhecido pelos bibliotecários, de modo geral. O acórdão é um documento decorrente da atuação judicial em segunda ou posterior instância e da atividade fiscalizatória de controle externo exercida pelos tribunais de contas.
Para que tais fontes de informação sejam recuperadas e disseminadas ao público a que se destinam, faz-se necessário o emprego de metodologias de análise de assunto para fins de indexação. A adoção de técnicas de indexação para a organização da jurisprudência proporciona os benefícios da constituição de bancos de dados estruturados, com melhores índices de precisão na representação, se comparados aos de busca textual. Com isso, contribui-se para a transparência dos julgados dos tribunais, conforme as diretrizes preceituadas na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, Lei de Acesso à Informação (BRASIL, 2011), e evita-se a ocorrência de julgamentos distintos para matérias semelhantes.
A partir do estudo da literatura (BARBOSA NETTO; CUNHA, 2015; BRASIL, 1996; BRASIL, 2002; GUIMARÃES, 2004; MAÇOLI, 2005; PIMENTEL, 2015), observa-se a predominância das categorias de análise de assunto de acórdãos propostas por Guimarães (1994), elaboradas a partir da estrutura desse documento e da Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale (1994), a saber: fato, instituto jurídico, entendimento e argumento. Desde então, essas categorias tornaram-se referenciais no que tange à análise de assunto desse tipo de documento.
Assim, este trabalho objetiva aplicar a análise de assunto por categorias, proposta por Guimarães (1994), com as adaptações necessárias aos acórdãos produzidos pelos tribunais de contas, os quais possuem características diferenciadas em relação aos tribunais do Poder Judiciário. Para tal, são buscados os referenciais teóricos da Biblioteconomia e Ciência da Informação (CI), e das Ciências Jurídicas, com o objetivo de entender as nuances relacionadas à representação temática da jurisprudência.
A indexação é uma atividade que objetiva representar o(s) assunto(s) dos documentos, de modo padronizado, para facilitar as buscas e pesquisas em bases de dados. Para Farrow (1995, p. 243), “[...] o processo de indexação consiste na compreensão do documento a ser indexado, seguida da produção de um conjunto de termos de indexação.”. A compreensão do processo de indexação, segundo o autor, ganhou novos elementos com o desenvolvimento, a partir de meados da década de 1970, da psicologia cognitiva, pois as representações são as bases dos processos cognitivos humanos.
Segundo o Manual de indexação de jurisprudência da Justiça Federal, “[...] o principal objetivo da indexação é possibilitar a recuperação de documentos a partir da descrição de seu conteúdo temático.” (BRASIL, 1996, p. 12). Para a NBR 12676: 1992, a indexação é o “[...] ato de identificar e descrever o conteúdo de um documento com termos representativos dos seus assuntos e que constituem uma linguagem de indexação.” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 1992, p. 2). A literatura apresenta algumas concepções para o termo indexação, revelando duas etapas fundamentais no processo: uma de análise de assunto (subdividida em compreensão do texto, identificação e seleção de conceitos) e outra de representação padronizada ou tradução. Para Fujita (2004, p. 266-270, grifo nosso),
[...] o processo de indexação essencialmente consiste de três etapas básicas: análise, síntese e representação. [...] A indexação em análise documentária, sob o ponto de vista dos sistemas de recuperação de informação, é reconhecida como a parte mais importante porque condiciona os resultados de uma estratégia de busca. O bom ou o mal desempenho da indexação reflete-se na recuperação da informação feita através de estratégias de busca. Isso nos leva a considerar que a recuperação do documento mais pertinente à questão da busca é aquela cuja indexação proporcionou a identificação de conceitos mais pertinentes ao seu conteúdo, produzindo uma correspondência precisa com o assunto pesquisado em estratégias de buscas em bases dados [...].
Observa-se, desse modo, conforme apontamentos de Fujita (2004), que a representatividade da indexação é medida pelos resultados da busca realizada pelo usuário. É nesse momento, da recuperação, que se verifica o quão efetiva foi a indexação.
Cunha (1987) argumenta que a análise documentária compreende dois níveis de análise a serem realizados pelo bibliotecário: a análise do texto e a análise documentária propriamente dita, com a síntese dos conceitos/palavras-chave. A primeira tenta “desmontar” a construção do discurso do autor/produtor, por meio da organização da estrutura lógica/metodológica do discurso do autor/produtor usando a segmentação do texto, que corresponde à identificação das sequências que contêm as informações principais. Na fase da síntese, a análise documentária objetiva estabelecer os conceitos/palavras-chave capazes de traduzir o conteúdo do documento analisado. Essa fase inclui seleção e fixação dos conceitos (CUNHA, 1987).
Para Fujita (2006, p. 3), a “[...] indexação é um processamento intelectual que depende da cognição [...]”, sendo concebida a partir da perspectiva da análise do domínio, defendida por Hjørland (2002). A análise do domínio vislumbra a contextualização social da Ciência da Informação, a partir do estudo do domínio de assunto a ser representado. Segundo Fujita (2006), a literatura aponta duas concepções de indexação: a indexação orientada ao conteúdo do documento, com o objetivo de representação, e a concepção orientada para a demanda da comunidade usuária e o objetivo da recuperação. A autora defende a abordagem sócio-cognitiva da indexação, no sentido de que
[...] o indexador, visto como leitor, é considerado, individualmente, em abordagem cognitiva pelo processamento de informações que realiza durante a leitura documentária para análise de assunto, contudo como leitor profissional deve ser visto dentro de seu contexto sócio-cultural que abrange atuação e formação profissional em abordagem sócio-cognitiva (FUJITA, 2006, p. 2-3).
No processo de indexação, segundo Naves (1996), a análise de assunto constitui-se em uma das etapas mais relevantes, e são várias as concepções dadas, na literatura, a esse tema tão relevante na área de Biblioteconomia e Ciência da Informação. Segundo a autora, a extração de conceitos “[...] que traduzam a essência de um documento é conhecido como ‘análise de assunto’ para alguns, análise temática para outros e ainda como análise documentária ou análise de conteúdo.” (NAVES, 1996, p. 215). Não obstante essas diferentes denominações, neste trabalho elas são consideradas como equivalentes e são abordadas na vertente da análise de assunto, conforme exposto na seção 3.
É preciso destacar que, após o estágio da análise de assunto, completa-se o processo da indexação com a etapa da tradução. Nessa etapa, o indexador utiliza linguagens especializadas para representar os conceitos previamente selecionados, com a finalidade de compatibilizar os termos identificados no documento com aqueles utilizados pelo usuário no momento da busca de informações. Contudo, nem sempre o vocabulário controlado usado pelo sistema de informação permite a representação tão específica dos conceitos quanto necessário. Nesses casos, o indexador deve adotar termos imediatamente admitidos na linguagem de indexação ou representá-los, provisoriamente, por termos mais genéricos, deixando os novos conceitos para posterior estudo e inclusão no vocabulário (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 1992).
A análise de assunto é uma atividade que objetiva identificar e selecionar os conceitos de um documento, representados por termos, com a finalidade de representá-los em um sistema de recuperação da informação. Para Lancaster, Elliker e Connell (1989), do ponto de vista do usuário, a análise de assunto é o elemento central para o acesso ao assunto dos documentos. Segundo a NBR 12676: 1992, assunto é o “[...] tema representado num documento por um conceito ou combinação de conceitos.” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 1992, p. 1). A análise de assunto é feita em dois momentos distintos da indexação: durante a análise do documento, para identificação e seleção dos conceitos válidos para representação, e no momento da pesquisa ao sistema de informação, quando é necessário identificar, na pergunta do usuário, o termo adequado para formular uma estratégia de busca.
Sabe-se que a eficiência de um sistema de recuperação da informação depende, fundamentalmente, da qualidade do processo de análise de assunto, tanto dos documentos, quanto das questões apresentadas pelos usuários. Para Cesarino, “[...] grande parte das falhas na recuperação da informação se deve a erros ou omissões na interpretação do conteúdo dos documentos e na percepção da demanda das pessoas a que se destina o sistema.” (CESARINO, 1985, p. 161-162). Essas omissões ou falhas na representação dos assuntos dos documentos também podem ser influenciadas por questões ideológicas, tanto dos textos, que veiculam discursos próprios com a intenção de “convencer” o leitor, quanto dos indexadores, enquanto intérpretes dos conteúdos dos documentos e construtores de um novo discurso (CESARINO, 1985). É importante considerar, também, que a análise de assunto é uma atividade intelectual marcada pela subjetividade, experiência, conhecimentos e valores do indexador, defende Naves (1996). Fujita (2013) corrobora essa ideia, ao afirmar que quanto mais compreensão o indexador tem do processo e da subjetividade nele envolvida, melhores condições ele terá de resolver, metodologicamente, os problemas. Nesse sentido, Cunha (1987, p. 52), também argumenta:
[...] ao colocarmos esta problemática, pretendemos pôr em discussão o preconceito bibliotecário de “leitura única e absoluta”, assim como a existência de conceitos/palavras-chave e bibliotecários/analistas de documentação “neutros”. Isto é, consideramos que o leitor/bibliotecário/analista da documentação tem sempre uma visão ideológica, sobrepondo-se à linguagem/ideologia do texto/discurso a analisar. Essa sobreposição se manifesta pela opção “ideológica” que faz em relação ao uso ou descarte de determinados conceitos/palavras-chave, mesmo quando se reporta às regras de objetividade e neutralidade aconselhadas pelos manuais e pela ética profissional vigente.
Por outro lado, Hjørland (1992, p. 174) destaca a dificuldade de se conceituar assunto, tendo em vista que, para um mesmo documento, diferentes percepções subjetivas sobre o assunto podem ser identificadas. O autor recupera o termo aboutness, na literatura de Biblioteconomia e Ciência da Informação, como uma tentativa para escapar das dificuldades de conceituação do termo assunto. Nesse sentido, sobre o assunto de um mesmo livro há muitas possibilidades: a versão do autor (frequentemente expressa no título ou no texto); a versão do leitor; a versão do editor (indicada, por exemplo, pelo título da série) e a versão do bibliotecário, expressa em termos de um sistema de classificação da biblioteca (HJØRLAND, 1992).
A mesma dificuldade em relação ao termo é identificada por Lancaster, Elliker e Connell (1989), os quais salientam que aboutness é um conceito “escorregadio”. Tais autores diferenciam o aboutness intrínseco e extrínseco, sendo que o primeiro refere-se ao conteúdo de assunto de um documento, enquanto o aboutness extrínseco refere-se tanto à finalidade para a qual o documento é utilizado, como o motivo pelo qual o documento foi adquirido e outras variáveis externas. Outros autores também discutem sobre essa diferença, tais como Fairthorne (1969), Hutchins (1977) e Beghtol (1986). Já Naves (1996) considera atinência como equivalente a aboutness, que é um conceito importante na literatura sobre análise de assunto e se refere à tarefa de determinar, de modo preciso, o assunto de que trata o documento, ou seja, sua tematicidade. Apesar das dificuldades relacionadas à clarificação do conceito de aboutness, a revisão de literatura realizada pelos autores acima citados aponta para o grande interesse de estudos sobre o tema no campo da análise de assunto.
Para Hjørland (1992), o assunto é entendido a partir de uma concepção idealista, ou seja, o assunto é a designação de uma ideia. Nesse sentido, documentos compartilham ideias expressas por um dado assunto. Outra característica atribuída ao assunto pelo autor é a função instrumental ou pragmática, segundo a qual um assunto destina-se a alguém ou a alguma coisa. Para esse autor, o assunto é determinado pelas propriedades dos documentos, que dependem de um contexto, de modo que as propriedades centrais para um contexto não o são, necessariamente, em outro. Um documento possui um número infinito de propriedades e não é possível contá-las na totalidade. Sendo assim, os assuntos não podem ser definidos a priori, argumenta Hjørland (1992).
O documento Princípios de Indexação estabelece apenas uma fase para a análise de assunto do documento, realizada durante a indexação, “[quando] os conceitos são extraídos do documento através de um processo de análise [...] [para, então, haver o] estabelecimento dos conceitos tratados num documento, isto é, o assunto.” (UNISIST, 1981, p. 84-85). Para a norma NBR 12676: 1992, o estágio da análise de assunto ocorre em duas fases: “[...] a) exame do documento e estabelecimento do assunto de seu conteúdo; b) identificação dos conceitos presentes no assunto.” (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 1992, p. 2). Sobre as normas, as autoras Sousa e Fujita (2014, p. 28) alertam:
As diretrizes e normas servem de apoio, de base para dar direcionamento, mas além delas, é de suma importância que o sistema de informação tenha uma política de indexação estruturada e registrada. Essa Política é de expressiva importância para a condição de êxito ou não do processo. Tanto os Princípios de Indexação quanto a NBR 12676/1992, deixam a cargo do indexador algumas decisões que devem estar estabelecidas na Política, ao invés de serem realizadas quando o indexador achar necessário.
Conforme os apontamentos de Sousa e Fujita (2014), verifica-se a importância de o indexador observar as regras e normas, mas tão importante quanto isso, é o registro das decisões sobre a indexação em um documento, que formalize a política de indexação do sistema de informação. Com isso, objetiva-se padronizar a representação temática e diminuir a subjetividade da análise de assunto.
Fujita (2003) também defende como estratégias de análise de assunto a identificação de conceitos a partir da estrutura textual do documento, combinada com a análise conceitual por questionamento, conforme a NBR 12676: 1992. As perguntas destacam aspectos gerais sob os quais um assunto pode ser analisado e que devem ser considerados na leitura. A estrutura do texto relaciona-se à maneira segundo a qual as ideias são dispostas no documento, com relação ao conteúdo, ao tema e aos conceitos. O uso da estrutura textual para análise de assunto é defendido, ainda, por Guimarães (1994) e Kobashi (1994) e Silva (2008).
No processo de seleção de conceitos, nem todos eles são, necessariamente, representados. O quantitativo de conceitos varia em função dos critérios de exaustividade e especificidade definidos na política de indexação do sistema, pelo volume de informações contidas nos documentos e também em virtude das necessidades dos usuários. Não se deve, por isso, atribuir um limite arbitrário ao número de termos (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 1992).
A NBR 12676: 1992 também sugere ao indexador que, na expressão dos conceitos por termos de indexação, sejam observados alguns cuidados básicos: usar os descritores autorizados pelo vocabulário adotado e para o emprego de termos novos, realizar um estudo prévio em instrumentos de referência, como dicionários, enciclopédias, outros tesauros e consultados especialistas na área de domínio. Esse estudo é fundamental para que não sejam criados termos de forma arbitrária, a partir de assuntos com pouca ocorrência nos documentos. Nesse sentido, os indexadores devem monitorar, constantemente, os novos assuntos e observar as garantias de uso e da literatura sobre os novos conceitos. Tais cuidados são importantes para a manutenção da consistência e da eficácia na recuperação da informação, de modo a garantir que todos os documentos sobre determinado assunto sejam representados pelo mesmo descritor e agrupados por um único termo no catálogo de assuntos.
A jurisprudência abarca um conjunto de documentos produzidos pelos tribunais que inclui os acórdãos, as súmulas[1] e as decisões monocráticas (proferidas por um único membro). A literatura aponta algumas concepções para o termo jurisprudência, mas o consenso em relação à sua definição refere-se a refletir os julgamentos reiterados de um tribunal sobre determinada matéria. Desse modo, os operadores do Direito falam que a jurisprudência de um Tribunal é pacífica em determinado sentido, pois existe certo consenso do colegiado, em um específico momento histórico[2], sobre a tendência de julgamento de uma matéria. Barros (2016, p. 35) acrescenta, sobre essa questão, que:
[...] uma decisão judicial reiteradamente prolatada, em mesmo sentido e sobre o mesmo objeto (jurisprudência), contribui e impulsiona a criação e/ou modificação de uma lei ou, por assim dizer, de novos direitos.
A informação jurídica diferencia-se dos demais tipos documentais em virtude de suas peculiaridades. A literatura jurídica aborda as fontes do Direito, as quais designam os “[...] processos ou meios em virtude dos quais as regras jurídicas se positivam com legítima forma obrigatória, isto é, com vigência e eficácia no contexto de uma estrutura normativa.” (REALE, 2002, p. 140). Para Montoro (1972), as fontes do direito subdividem-se em formais, que são os modos de expressão do Direito, e materiais, as quais geram o conteúdo ou a matéria do Direito. As fontes formais incluem a legislação, o costume jurídico, a jurisprudência e a doutrina, para alguns autores. Já as fontes materiais incluem “(1) a realidade social, isto é, o conjunto de fatos sociais que contribuem para a formação do Direito e (2) os valores que o Direito procura realizar, fundamentalmente sintetizados no conceito amplo de justiça.” (MONTORO, 1972, p. 55).
A vida em sociedade, disciplinada pelo Direito, é marcada por uma multiplicidade de fenômenos em constante evolução. Para tais fenômenos, verifica-se uma insuficiente previsão legislativa, conforme doutrina de Fagundes (1949). É nesse contexto que a jurisprudência contribui de modo supletivo com a evolução do Direito, ajustando os princípios normativos da norma abstrata aos fatos da vida. Nesse sentido, Barros (2014, p. 9) defende que a evolução do Direito “[...] também se revela na criação e recriação do conhecimento contido em uma argumentação jurisprudencial.”. Os tribunais e magistrados, segundo Fagundes, exercem um processo exegético e construtivo de “[...] adequação do texto inerte da lei escrita às realidades dinâmicas do ambiente, alcançando soluções positivas para os conflitos de interesse e desajustamentos sociais.” (FAGUNDES, 1949, p. 18). É nesse contexto, então, que “[...] o juiz se desdobra no completar e desenvolver, no restringir e atenuar, segundo critérios emergentes, as deficiências e arestas dos textos legais.” (FAGUNDES, 1949, p. 24). A lei necessita ser interpretada e aplicada pelos operadores do direito para alcançar plenitude de significado. Guimarães (1999) completa ao ressaltar que, em casos de lacunas na lei, o juiz constitui norma para o caso concreto. Assim, após várias “[...] decisões no mesmo sentido em casos materialmente idênticos para a caracterização da jurisprudência, teremos o surgimento do chamado Direito Jurisprudencial.” (GUIMARÃES, 1999, p. 16). Fagundes (1949, p. 19, grifo nosso) acrescenta
[...] não se arroga o juiz, nesses casos, funções legiferantes. O seu papel é supletivo e se há de inspirar discretamente no dever de fidelidade à lei escrita, na valiosa consideração do passado, com o qual não é possível perder o contato, e no reconhecimento de que há necessidades novas a enfrentar e satisfazer. [...] Um exame da jurisprudência calcada nos diversos ramos do direito, seja no direito de família, no das coisas, no das sucessões, no penal, no administrativo, na exegese da Constituição da República, como na regulação do comércio e do trabalho, deixará patente o valor da sua contribuição. Não é de muito tempo a precedência dos tribunais (Supremo Tribunal), tribunais do Distrito Federal e São Paulo) ao legislador, no admitir o reconhecimento dos filhos de pais desquitados. O Cód. Civil, na sua literatura, o impedia, quando, considerando que o desquite não dissolve o vínculo matrimonial (art. 315, parág. único), declarara, ao mesmo tempo, a impossibilidade do reconhecimento dos filhos de pessoas impedidas nos termos do art. 183, n. VI, isto é, casados. [...] Somente anos depois da adoção desse critério jurisprudencial, acudiu o legislador à reparação da grave injustiça, reclamada insistentemente pela consciência social da nação. O que era jurisprudência de alguns tribunais, tornou-se lei para todos.
A jurisprudência, além de fonte do Direito, pode também ser concebida como informação jurídica, “[...] já que a jurisprudência divulgada serve como vetor da transparência, da democratização e da fiscalização social.” (PIMENTEL, 2013, p. 70). A jurisprudência, constitui, desse modo, uma importante fonte subsidiária de informação à medida em que atualiza o entendimento da lei, a partir de uma interpretação atual e consonante aos anseios do seu tempo, argumenta a autora. Na perspectiva apresentada por Pimentel (2013), observa-se o aspecto da transparência e publicidade da informação jurisprudencial, a qual deve encontrar-se acessível aos cidadãos e aos operadores do Direito, para a defesa de seus direitos. Pensando desse modo, também acredita-se que a jurisprudência disponibilizada e organizada contribui para a disseminação e maior acesso às decisões dos tribunais, de modo a revelar a atuação desses órgãos públicos.
Ao complementar a abordagem de França (1980), sobre as funções da jurisprudência, Barité (1999, p. 29), advoga que os documentos jurisprudenciais possuem a essência de registro das funções reparadoras e tutelares, sendo
[...] reparadoras porque frente a um litígio entre particulares, partindo da base de que o interesse comum é consolidar um estado de paz social, a jurisprudência chega a uma conclusão que se crê fundada em razões de equidade e justiça. Tutelares porque está implícita em sua atuação, a proteção dos institutos jurídicos que o ordenamento interno de um país determina.
Quanto à estrutura, Barité (1999) afirma que todo documento jurídico apresenta uma macroestrutura e uma microestrutura. A identificação delas possui efeitos diretos em relação às estratégias selecionadas para classificar e indexar o seu conteúdo. Assim, nos documentos jurisprudenciais identificam-se duas macroestruturas:
[...] de um lado, a totalidade da experiência submetida à decisão dos juízes. De outro, a sentença, o fato ou a solução considerados em si mesmos. [...] [As microestruturas] correspondem a cada um dos elementos de uma sentença, os que são estudados em profundidade pela Diplomática.[3] (BARITÉ, 1999, p. 28).
Em relação aos documentos jurisprudenciais produzidos pelos tribunais, destacam-se os acórdãos, que são abordados na próxima seção.
Segundo o Novo Código de Processo Civil (NCPC), de 2015, no art. 204, “[...] recebe a denominação de acórdão o julgamento proferido pelos tribunais.” (BRASIL, 2015). Segundo Guimarães (2004), dois elementos são depreendidos dessa definição: a natureza (julgamento) e sua fonte geradora (tribunais). A fonte geradora dos acórdãos são os tribunais, que se manifestam em matéria recursal, apreciando pedidos oriundos de uma instância inferior, ou em competência originária, como no caso dos tribunais de contas (ambientação deste estudo), cujos processos originam-se e são concluídos no interior de cada tribunal, sem possibilidade de recursos para outros tribunais de contas. Assim,
[...] na condição específica de documento, o acórdão se enquadra no âmbito dos atos administrativos (ou deliberativo-normativos), ou seja, aqueles oriundos de deliberações de órgãos da administração pública (geralmente colegiados, que trazem regras e normas de cumprimento (GUIMARÃES, 2004, p. 36).
Acórdão é o nome, na instância superior, da decisão que, em primeira instância, se chama sentença, de sententia, opinião. Ambos são expressão do julgamento [...]. Como sentença que é, o acórdão deve seguir todas as normas estabelecidas na lei para a elaboração das sentenças. Conterá o nome das partes, a exposição dos fatos e do direito aplicável, o resultado dela ou fundamentação, e, finalmente, a parte dispositiva ou decisão propriamente dita. A motivação do acórdão é, naturalmente, sua parte mais importante [...].
E Tucci (1977, p. 169) defende as duas ocasiões em que se produz o acórdão.
Denomina-se acórdão o ato decisório, pronunciado por órgão colegiado de segundo ou superior grau, tanto nas causas de sua competência originária, como naquelas de que deva conhecer, em virtude de manifestação recursal, na forma prevista nas leis processuais e de organização judiciária.
O acórdão apresenta elementos descritivos e temáticos. Os primeiros refletem dados como nome do tribunal, turma ou câmara responsável pelo julgamento, relator, partes interessadas, natureza processual e número do processo. Já os elementos temáticos decorrem da estrutura previamente definida pelo NCPC: relatório, fundamentação e dispositivo. Segundo Guimarães (2004), no acórdão “[...] se identifica um silogismo cuja premissa maior reside na norma jurídica aplicável (direito discutido), a premissa menor na situação fática abordada na ação e a conclusão na decisão (a aplicação do direito ao fato).” (GUIMARÃES, 2004, p. 37).
Os elementos essenciais da sentença estão previstos no art. 489 do NCPC. Sentença que é, o acórdão obedece à essa mesma estrutura. O art. 489 dessa norma estabelece:
Art. 489. São elementos essenciais da sentença: I - o relatório , que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II - os fundamentos , em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem (BRASIL, 2015).
O Relatório é parte inicial do acórdão e consiste em uma apresentação histórica do processo (narrativa ou descritiva), por meio do mapeamento da questão jurídica e dos fatos concernentes ao andamento processual. Câmara argumenta que o relatório é a “[...] parte da sentença em que o juiz exporá, de forma resumida, todo o histórico do processo, desde a propositura da ação até aquele momento em que a sentença está sendo proferida.” (CÂMARA, 2011, p. 430). O artigo 489 do Novo Código de Processo Civil destaca que o relatório conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, e o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo (BRASIL, 2015). Segundo Guimarães (2004), o relatório alicerça a decisão, pois é
[...] elemento essencial em termos de forma (sem o qual a sentença seria mero despacho) e de conteúdo (exigência lógica da sentença, por revelar os fatos e o direito sobre as quais as partes esperam a manifestação do Poder Judiciário) (GUIMARÃES, 2004, p. 40).
outro lado, a Motivação ou Fundamentação constitui princípio geral do direito processual, determinado pelo art. 93, IX, da Constituição da República de 1988 (BRASIL, 1988). No NCPC, a motivação está prevista no art. 489, II, constituindo a parte do acórdão em que os juristas analisam as questões fáticas e jurídicas postas, a partir do ordenamento jurídico vigente. Caracteriza-se por ser basicamente argumentativa e analítica, a partir de referências a outras fontes jurisprudenciais, legislativas e doutrinárias. Para Câmara (2011), a fundamentação “[...] é a parte da sentença em que o juiz apresentará suas razões de decidir, os motivos que o levaram a proferir decisão do teor da que está sendo prolatada.” (CÂMARA, 2011, p. 431). Por isso mesmo, é também chamada de motivação. Na fundamentação, o juiz apresenta os elementos que contribuíram para a formação de seu convencimento. É uma exigência do Estado Democrático de Direito como uma forma de controle da atuação do juiz ou outra autoridade incumbida da decisão.
Para Guimarães (2004) e Câmara (2011), na Motivação o magistrado, em um primeiro momento, examina as questões de fato e de direito apresentadas no Relatório para, a partir disso, estabelecer os fundamentos, de fato e de direito que fundamentarão sua decisão.
Dessa forma, observa-se, na Motivação, o desenvolvimento de um silogismo similar àquele encerrado pela sentença. Se neste tem-se o fato como premissa menor, naquela tem-se fundamentos de fato; e para o direito pretendido (premissa maior da sentença), tem-se os fundamentos de direito da Motivação (GUIMARÃES, 2004, p. 44).
Por fim, o Dispositivo, também denominado acórdão stricto sensu, apresenta a solução ou o posicionamento sobre as questões apresentadas, ou a conclusão do silogismo até então desenvolvido no Relatório e na Motivação (GUIMARAES, 2004). Ele inicia-se por locuções como Ante o exposto, acordam...; Pelo que acordam...; Fundamentos pelos quais acordam... O Dispositivo pode, também, apresentar questões preliminares, como aquelas referentes à admissibilidade de um recurso. O art. 489, III, do NCPC destaca que o Dispositivo é o requisito essencial da sentença na qual o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem (BRASIL, 2015, grifo nosso). O Dispositivo é a parte mais representativa do acórdão. Câmara (2011, p. 433) assim destaca:
Dispositivo, [é] a parte da sentença que tem conteúdo decisório. É no dispositivo que o juiz irá apresentar sua conclusão, dizendo se põe termo ao seu ofício de julgar resolvendo ou não o mérito da causa, declarando o autor ‘carecedor de ação’, decretando o despejo, anulando o contrato, condenado o réu a pagar a quantia exigida, julgando improcedente o pedido do autor, ou qualquer outro resultado possível.
A ausência dos elementos essenciais da sentença implica vício na decisão. Defende Câmara (2011, p. 433),
[...] a falta de relatório ou de motivação importa nulidade absoluta da sentença, de acordo com a doutrina unânime. A falta de dispositivo implica inexistência jurídica da sentença – o ato não tem decisão.
O Novo Código de Processo Civil também define, no §1º do art. 943, que “todo acórdão conterá ementa”, que é uma forma de resumo ou sumário das questões centrais discutidas no processo, também usada como fonte de pesquisa e recuperação da informação jurisprudencial.
Nos tribunais de contas - também denominados órgãos de controle externo, responsáveis pela fiscalização e controle externo dos recursos públicos – ambientação desta pesquisa, a aplicação do Código de Processo Civil é supletiva e subsidiária. Entretanto, a partir de estudo dos autores Barbosa Netto e Cunha (2015, p. 29), vislumbra-se um núcleo comum para a estrutura desses acórdãos, bastante semelhante ao definido pelo NCPC, como a seguir descrito.
- Relatório ou Introdução: parte descritiva dos fatos e dos direitos sobre os quais versam os autos, com exposição de eventuais pedidos a serem apreciados.
- Voto (incluindo Fundamentação + Dispositivo do Voto): peça na qual o relator examina as razões de fato e de direito trazidas ao processo, posicionando-se sobre cada uma delas e sobre pedidos liminares ou de mérito, consignando, por fim, sua proposta para apreciação pelo colegiado.
- Acórdão ou Decisão: contém a parte que consubstancia a deliberação do colegiado sobre as questões vertidas no processo, com indicação do provimento adequado para o tipo processual: julgar regular, regular com ressalvas ou irregular as contas de administrador público, aplicar multa a responsável, etc. (BARBOSA NETTO; CUNHA, 2015, p. 29).
Pela análise dessa estrutura temática, observa-se que os acórdãos produzidos pelos tribunais de contas são semelhantes à estrutura temática definida pelo NCPC. É importante destacar que outras peculiaridades da documentação produzida pelos tribunais de contas podem ser identificadas nos regimentos internos dessas instituições.
Nesta seção, apresentam-se os referenciais teórico-metodológicos de Guimarães (1994, 2004), com o objetivo de aplicá-los no contexto dos acórdãos produzidos pelos tribunais de contas. Essa escolha teórica justifica-se pelo estudo da literatura (BARBOSA NETTO; CUNHA, 2015; BRASIL, 1996; BRASIL, 2002; GUIMARÃES, 2004; MAÇOLI, 2005; PIMENTEL, 2015), em que se evidenciou a expressividade da obra de Guimarães (1994), na qual o autor caracteriza e especifica quatro categorias fundamentais para a análise de assunto em acórdãos: fato, instituto jurídico[4], entendimento e argumento. Essas categorias, concebidas a partir da estrutura temática do acórdão e da Teoria Tridimensional do Direito (TTD), desenvolvida, a partir da década de 1940, pelo jusfilósofo brasileiro Miguel Reale, também são fundamentos para a elaboração de ementas, pois observa-se a existência de uma aproximação metodológica na realização das atividades de indexar e resumir, embora os produtos dessas atividades sejam distintos.
Segundo Reale (1994), todo fenômeno jurídico pode ser concebido a partir de três elementos principais: fato, valor e norma, pois, para ele, a essência do fenômeno jurídico é valorativa e, portanto, interpretativa. O Direito, nesse contexto, é concebido como um instrumento valorativo histórico-cultural, em superação ao normativismo jurídico. Argumenta Reale (1994, p. 64-65, grifo do autor) que:
[...] uma análise em profundidade dos diversos sentidos da palavra Direito veio demonstrar que eles correspondem a três aspectos básicos, discerníveis em todo e qualquer momento da vida jurídica: um aspecto normativo (o Direito como ordenamento e sua respectiva ciência); um aspecto fático (o Direito como fato, ou em sua efetividade social e histórica) e um aspecto axiológico (o Direito como valor de Justiça). [...] O problema da tridimensionalidade do Direito tem sido objeto de estudos sistemáticos, até culminar numa teoria, à qual penso ter dado uma feição nova, sobretudo pela demonstração de que: a) onde quer que haja um fenômeno jurídico, há, sempre e necessariamente, um fato subjacente (fato econômico, geográfico, demográfico, de ordem técnica etc.); um valor, que confere determinada significação a esse fato, inclinando ou determinando a ação dos homens no sentido de atingir ou preservar certa finalidade ou objetivo; e, finalmente, uma regra ou norma, que representa a relação ou medida que integra um daqueles elementos ao outro, o fato ao valor; b) tais elementos ou fatores (fato, valor e norma) não existem separados um dos outros, mas coexistem numa unidade concreta; c) mais ainda, esses elementos ou fatores não só se exigem reciprocamente, mas atuam como elos de um processo [...] de tal modo que a vida do Direito resulta da interação dinâmica e dialética dos três elementos que a integram.
Esse
Esse posicionamento de Reale (1994) aponta que a Ciência Jurídica pode ser concebida a partir de três elementos fundamentais, quais sejam, fato, valor e norma, presentes em qualquer momento da vida jurídica. São três aspectos básicos presentes em todo fenômeno jurídico, portanto.
Argumenta Reale (1994) que a essência do fenômeno jurídico é valorativa e, portanto, interpretativa. O Direito, nesse contexto, é concebido como um instrumento valorativo histórico-cultural, em superação ao normativismo jurídico.
A teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, é uma teoria jurídica muito original e conhecida internacionalmente. Por essa teoria, Reale teria superado o mero normativismo jurídico que prevalecia nos meios acadêmicos e jurisprudenciais de sua época, demonstrando que o fenômeno jurídico decorre de um fato social, recebe inevitavelmente uma carga de valoração humana, antes de tornar-se norma. Assim, Fato, Valor e Norma em seus diferentes momentos, mas interligados entre si, explicariam a essência do fenômeno jurídico. Mais do que isso, a Teoria do Direito de Miguel Reale representa uma contribuição importante para a compreensão da ciência do Direito, visto que inaugura uma nova ontologia jurídica. Por ela, Reale demonstra a existência de um estreito vínculo entre a dimensão ontológica (fato que revela o ser jurídico), a dimensão axiológica (que valora o ser jurídico), e a dimensão gnosiológica (que dá a forma normativa ao ser jurídico) (GONZALEZ, 2006, doc. não paginado).
De acordo com os apontamentos de Gonzalez (2006), o fenômeno jurídico decorre de um fato social, tendo, de modo intrínseco, uma carga de valoração humana, antes de tornar-se norma. Pode-se interpretar que esse aspecto envolve, ainda, as diversas demandas sociais que impactam na elaboração da norma.
Segundo Reale (1994), o Direito origina-se do fato, sua dimensão essencial, porque é necessário que exista um evento ou acontecimento para o estabelecimento de um vínculo de significação jurídica. O fato encontra-se no início e no fim do processo normativo e, inserido em uma estrutura normativa, origina o fato jurídico. “Poder-se-á dizer que o Direito nasce do fato e ao fato se destina, obedecendo sempre a certas medidas de valor consubstanciadas na norma.” (REALE, 1994, p. 199). Nesse sentido, pode-se dizer que o
[...] fato jurídico é todo e qualquer fato que, na vida social, venha a corresponder ao modelo de comportamento ou de organização configurado por uma ou mais normas de direito. O fato jurídico, em suma, repete, no plano dos comportamentos efetivos, aquilo que genericamente está enunciado no modelo normativo (REALE, 1994, p. 199).
Nessa concepção, só é possível falar de fato jurídico na medida em que este esteja inserido em uma estrutura normativa.
A partir da TTD, de Reale (1994), Guimarães (1994) assim descreve e especifica as quatro categorias fundamentais para análise conceitual em acórdãos:
[...] a) o Fato (previsto com tal por REALE) é um dos elementos que, presente no Relatório, gera a lide de que trata o acórdão; b) o Instituto Jurídico (ao mesmo tempo norma e valor aplicado ao fato, na doutrina de REALE), representa a pretensão jurídica das partes – o direito discutido – na questão sub judice, estando igualmente presente no Relatório; c) o Entendimento (norma específica, enquanto resultado de um operação axiológica entre o fato e a norma geral aventada – o instituto jurídico), elemento característico dos documentos jurisprudenciais, concretiza-se através do Dispositivo; d) o Argumento (explicitação do procedimento axiológico do Judiciário), presente na Motivação, estabelece nexos entre o fato e o instituto jurídico, tendo caráter persuasivo, de forma a garantir um “Dispositivo verossímil” às partes e às instâncias superiores na hipótese de interposição de posterior recurso (GUIMARÃES, 1994, p. 185-186).
Analisando mais especificamente, o fato jurídico, Guimarães (1994, p. 186) aponta que ele constitui-se em “[...] todo fato material que produz efeitos jurídicos; vale dizer, fatos de cuja ocorrência nascem, modificam-se ou extinguem-se direitos, adquirindo, pois, relevância jurídica.”. “No caso do acórdão, o fato existe na direta dependência do direito que se discute.” (GUIMARÃES, 1994, p. 187). A identificação da categoria fato não se refere a uma ação específica, mas a uma situação fática de natureza genérica, cujas características podem se repetir em outros contextos, gerando situações fáticas de mesmo teor. Para Guimarães (1994, p. 190, grifo nosso), “[...] o fato atua como ‘elemento disparador’ da questão mas, no acórdão, ele tem um objetivo: atingir um determinado direito (configurando-o ou não) [...]”, de forma que o Judiciário possa se posicionar. O fato jurídico “gera”, portanto, efeitos de direito.
A partir desses apontamentos teóricos, objetiva-se apresentar um exemplo de aplicação prática das categorias de análise de assunto de Guimarães (1994), em um acórdão produzido pelo Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais (TCEMG), na forma da natureza processual[5] denúncia.
Segundo a metodologia proposta por Guimarães (1994), “pergunta-se” ao Relatório do referido acórdão o que ocorreu (fato), obtém-se a informação. É importante destacar que a categoria Fato pode ser subdividida em Especificações do Fato.
Desse enunciado, duas questões importam ao direito no âmbito do acórdão:
a) a realização de pregão eletrônico para registro de preços para eventual contratação de empresa especializada na prestação de serviços de impressão e reprografia;
b) o edital contém as irregularidades (especificações do fato):
- manutenção na licitação de Órgãos Públicos que realizaram licitações ou aderiram a outras atas de registro de preços, e que “sabidamente não irão contratar via ata de registro de preços”;
- irregularidade na definição da área de cobertura de ‘tonners’ pretos.
Para fins de indexação da Denúncia, na fase de identificação de conceitos, sem a preocupação com a correspondência desses conceitos em um vocabulário controlado, é importante destacar os seguintes conceitos: denúncia; pregão eletrônico; registro de preços; edital, irregularidade; contratação, empresa especializada; serviços de impressão e reprografia. Para as irregularidades apontadas pelo denunciante, é necessário verificar, no voto do relator, se elas foram realmente consideradas irregulares, pois não se justifica “inchar” o campo da indexação com conceitos que não sejam representativos das irregularidades passíveis de responsabilização, como é o caso em questão. Observa-se, que ao final, no Voto, o relator julgou as irregularidades improcedentes, não sendo necessário, nesse caso, apontar as irregularidades na forma de conceitos.
O instituto jurídico, por sua vez, de acordo com Guimarães (1994), é o direito pretendido, o que se pretende judicialmente. Ele é previsto em lei, caracterizado pela doutrina e apreciado pela jurisprudência. Observam-se, nos institutos jurídicos, as seguintes características:
[...] a) são oriundos de situações (circunstâncias) com características comuns; b) tais situações possuem relativa permanência; c) existe uma estrutura normativa (normas e modelos jurídicos) homogênea prevendo tais situações; d) dessa previsão resulta uma entidade autônoma, oponível a outros institutos jurídicos. No âmbito da análise documentária, interessam ainda, ao bibliotecário/documentalista, outras questões a respeito do instituto jurídico: a) possui caráter genérico e abstrato; b) reflete, no âmbito do acórdão, “o que se busca” do Judiciário; vale dizer, o que dá o caráter jurídico à pretensão (constitui-se no direito discutido); c) como decorrência do aspecto anterior, constitui-se no elemento básico de pesquisa no acórdão, uma vez que o fato atua como seu elemento especificador, circunstanciando-o; d) a terminologia, no âmbito dos institutos jurídicos, encontra-se mais sedimentada, seja por ele se constituir em um aspecto mais técnico do Direito, seja pelo fato de a legislação e a doutrina estabelecerem denominações para os mesmos. Dessa forma, observa-se que as linguagens documentárias na área jurídica, trazem, via de regra, a previsão de institutos jurídicos (GUIMARÃES, 1994, p. 192).
É importante destacar, no entanto, que em processos de controle externo não há um objeto único que se possa qualificar como o “direito pretendido”, pois em tais processos o que se espera da atuação dos tribunais de contas é a defesa do interesse público e não há uma parte no processo, nos moldes dos litígios do Poder Judiciário. Tendo em vista, ainda, as análises da autoras deste trabalho e, especialmente, diante da dificuldade de se identificar um instituto jurídico único nos processos do controle externo, a categoria Instituto Jurídico será adaptada para a expressão Questão jurídica ou técnica, que foi assim denominada por Guimarães (2004), quando tratou da elaboração de ementas. Essa escolha se justifica pelo fato de os processos de análise documentária em indexação e em ementas serem semelhantes.
Essa adaptação terminológica se faz necessária para que as categorias de análise de assunto sejam mais sugestivas ao indexador. Além disso, as próprias autora deste estudo se viram diante de dificuldades em transpor a terminologia inicial adotada em Guimarães (1994) para os acórdãos do controle externo. Desse modo, tendo em vista essa adequação, e retomando a análise da Denúncia n. XXXXXX, entende-se que a questão jurídica ou técnica sobre a qual se discute é sobre a fiscalização dos atos de gestão dos agentes públicos envolvidos, de forma especial, a análise de denúncia no contexto de um processo licitatório de pregão eletrônico. Dessa análise, apontam-se os seguintes conceitos principais: fiscalização, atos de gestão, denúncia, edital de licitação, pregão eletrônico.
O entendimento é uma categoria peculiar ao acórdão, estando presente no Dispositivo (parte final do acórdão), e funciona como elo entre o fato e o direito discutido, por meio de um posicionamento do Judiciário, segundo Guimarães (1994). O entendimento apresenta caráter opinativo e manifesta um posicionamento, favorável ou não, da autoridade legalmente constituída, para o fato apresentado, em relação às pretensões postas pelos interessados. As características do Entendimento são:
[...] a) exterioriza a prestação jurisdicional, como se pode observar no mandamus existente no Dispositivo. Ex.: “dou provimento...”; b) apresenta caráter dual, pois o nexo a ser estabelecido entre o fato e o instituto jurídico só pode ser positivo (existente) ou negativo (inexistente). Tal fato se traduz em expressões como: “dar/negar provimento”, “conhecer/desconhecer”, etc. [...] c) permite maior precisão na busca, pois a análise – e em consequência, a representação documentária – pelo entendimento diminui a revocação, eliminando ruídos no SRI (GUIMARÃES, 1994, p. 196).
Na Denúncia n. XXXXXX apresenta-se, no Dispositivo, item III – Voto, o entendimento do colegiado: votar pela improcedência da Denúncia e consequente arquivamento dos autos. O relator destaca, no entanto, que a constatação de elementos irregulares futuros durante a realização do procedimento licitatório poderá ensejar novo exame da matéria pelo Tribunal, conforme excerto a seguir.
Mais uma vez, para fins de indexação da Denúncia, nas fases de identificação e seleção de conceitos, é importante destacar os seguintes conceitos referentes ao Entendimento: improcedência da denúncia; arquivamento dos autos.
O entendimento necessita ser motivado. Sustenta Guimarães (1994, p. 198), “[...] verificado o que ocorreu (fato), o direito que se discute judicialmente (instituto jurídico) e o tipo de posicionamento tomado pelo Judiciário (Entendimento), chega-se às razões que sustentam tal posicionamento.”. Nesse sentido, a Motivação é uma exigência legal e uma atividade basicamente argumentativa e persuasiva, que objetiva justificar o Dispositivo. Vislumbra-se, com o entendimento, conectar a situação jurídica com as demais fontes de informação jurídicas. “O Dispositivo, deve, pois, vir acompanhado de uma argumentação que possa convencer as partes (conseguir a ‘adesão de seus espíritos’) no sentido do entendimento do juiz.” (GUIMARÃES, 1994, p. 202).
No caso da Denúncia n. XXXXXX, observa-se que o colegiado julga a denúncia improcedente, a partir dos fundamentos apresentados pela Unidade Técnica e pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Contas, balizados no Decreto Estadual nº 46.311, de 2013, que regulamenta o Sistema de Registro de Preços no Estado de Minas Gerais, bem como na análise do Edital. Dentre os fundamentos apresentados pela Unidade Técnica e pelo Ministério Público de Contas são representativos os argumentos expostos a seguir.
Por fim, os enunciados seguintes sintetizam os argumentos defendidos pelo colegiado para julgar a Denúncia n. XXXXXX improcedente: “não há obrigatoriedade de se contratar a totalidade da estimativa dos serviços constantes na Ata do Sistema de Registro de Preços” e “a disponibilização de dados acerca de taxa de cobertura de páginas visa facilitar a formulação de propostas”.
Nesse caso específico, como as irregularidades apontadas no acórdão não foram confirmadas no entendimento final do Colegiado, não se justifica o apontamento dos conceitos que representam os argumentos na indexação, só o resultado final: Denúncia improcedente; Arquivamento dos autos.
Para fins de elaboração de uma ordem para a organização dos conceitos na indexação, sugere-se verificar se os termos são autorizados pelo vocabulário controlado adotado pelo sistema de informação, e dispor tais termos de modo a criar uma frase de indexação. Essa frase é feita a partir da construção de enunciados lógicos que representam o conteúdo temático do acórdão, como indicado a seguir.
A recuperação da informação é diretamente afetada pela qualidade da indexação, que tem no estágio da análise de assunto o seu maior desafio. Essa análise depende dos conhecimentos prévios do indexador sobre o tema a ser analisado, das demandas informacionais dos usuários e das políticas de indexação adotadas pelo sistema. Nessa perspectiva, os estudos sobre essa etapa, da análise de assunto, são importantes e devem priorizar a sistematização da leitura e a seleção de conceitos pelo indexador, assim como o conhecimento da estrutura dos documentos analisados.
Nesse sentido, este trabalho contextualiza, a partir de uma perspectiva aplicada, a análise de assunto do acórdão, a partir das categorias definidas por Guimarães (1994), e adaptadas ao contexto dos tribunais de contas. Com essa abordagem, as categorias de análise temática refletem a estrutura do documento, que é refletida na indexação. Observa-se, assim, que a indexação da jurisprudência depende do conhecimento da estrutura do acórdão (relatório, fundamentação e voto), da terminologia da área e de metodologias de análise conceitual que proporcionem um padrão na representação dos assuntos. Nesse contexto, a subjetividade do processo pode ser minimizada.
O trabalho de Guimarães (1994) pode ser considerado uma referência no campo da representação temática de acórdãos, o que foi evidenciado em boa parte dos trabalhos identificados (BARBOSA NETTO; CUNHA, 2015; BRASIL, 1996; BRASIL, 2002; GUIMARÃES, 2004; MAÇOLI, 2005; PIMENTEL, 2015). O autor aliou os conceitos da Biblioteconomia e da Documentação ao campo jurídico e delimitou quatro categorias para a análise de assunto do acórdão - fato, instituto jurídico, entendimento e argumento - tendo como norte as partes temáticas relatório, fundamentação e voto. Assim, é possível identificar os conceitos a partir do contexto de cada parte temática do acórdão.
A representação padronizada da informação, por outro lado, com o uso de metodologias adequadas, reflete-se nos resultados das estratégias de busca nas bases de dados. O desafio do indexador, nesse sentido, é identificar os conceitos pertinentes ao documento e ao sistema de informação, com a finalidade de proporcionar, aos usuários, a correspondência precisa entre o assunto pesquisado e o conteúdo dos documentos. Nessa perspectiva, uma abordagem lógica por meio de categorias, auxilia o indexador na análise e na determinação dos conceitos dos documentos.
Salienta-se, mais uma vez, que a representatividade dos registros recuperados pelo usuário final depende, entre outras, da adoção de procedimentos sistemáticos de análise de assunto, que objetivem o processo de indexação.
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