Editorial
O dossiê Patrimônio e Culturas Tradicionais foi proposto para divulgar estudos recentes relacionados ao patrimônio imaterial e às culturas tradicionais. No início do processo, nos surpreendeu a pandemia pelo COVID cujos desfechos, além das inúmeras perdas de patrimônio humano, ainda são uma grande incerteza.
Estamos em um momento contraditoriamente marcado pelo multiculturalismo e pela mundialização, em que o patrimônio imaterial e as culturas tradicionais, de forma resiliente, se apresentam como um capital social a ser valorizado e divulgado. Tratam-se de instrumentos que, quando bem utilizados, permitem mitigar o desrespeito ao meio ambiente, bem como compensar a invisibilização das minorias e a exclusão de grupos populares de boa parte das práticas políticas, econômicas e sociais vigentes. Embora frágeis, os saberes e práticas tradicionais incluem estratégias de sustentabilidade e, por estarem indissoluvelmente associados às suas comunidades e aos espaços em que se manifestam, se constituem em alternativas para um desenvolvimento mais justo.
Por outro lado, as populações tradicionais, representadas pelas culturas indígenas, afrodescendentes e imigrantes vindos ao Brasil, corresponsáveis pela constituição do patrimônio nacional, somente tiveram seu reconhecimento há pouco tempo, por meio da Constituição da República de 1988. Em seu artigo 216, fica expresso que dele fazem parte os bens de natureza material e imaterial “[...] portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira [...]”. E estabelece que o poder público, junto com a comunidade, protegerão o patrimônio por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. De modo específico, determina o tombamento dos documentos e sítios que tenham reminiscências históricas quilombolas (BRASIL, 1988). A importância do documento é que acolhe, finalmente, a diversidade cultural brasileira, que passa a ser protegida e valorizada, incluídos aí os indígenas, os afro-brasileiros e os imigrantes. Desde então, vêm sendo realizadas investigações que buscam recuperar as narrativas que emergem desses grupos, entendidos aqui como culturas tradicionais, tema contemplado neste Dossiê. Todavia, devemos lembrar, como destaca Campos (2015, p. 87), que “[...] o patrimônio é um campo de disputa de identidades, manipuladas pelo poder político que tem, como seu braço direito, a norma jurídica”. Desse modo, ressalta o autor, não se pode ignorar que a legislação permite o reconhecimento de algumas identidades que, ao buscarem se afirmar, entram num embate político que tem, de um lado, a busca pela memória, identidade e preservação, e, de outro, a indiferença, o esquecimento e a destruição. Portanto, não podemos esquecer de que se trata de um processo difícil, em que apenas a norma jurídica não é suficiente para que suas determinações se operacionalizem.
Eis que hoje apresentamos os onze artigos e um ensaio aprovados, cujos autores, sob diferentes olhares e diversos contextos, atenderam o nosso chamamento, ao interpretarem os saberes e práticas das culturas tradicionais. Para organizá-los, os agrupamos por suas temáticas, o que, de algum modo, divide este Dossiê em duas partes. Na primeira, reunimos textos que contemplam o patrimônio indígena, quilombola e da imigração açoriana e italiana, acompanhados de outros que se referem à cultura tradicional no País. No que poderia ser considerada uma segunda seção, contemplamos as técnicas de construção da Arquitetura tradicional, com textos que se referem às práticas de construção com barro, à herança africana presente nas construções dos grupos escravizados no Brasil e um ensaio que recupera as técnicas de construção de barcos por afro-colombianos em Tierra Bomba, na Colômbia.
No primeiro artigo da presente edição, Marília Xavier Cury, em Repatriamento e remanescentes humanos – musealia, musealidade e musealização de objetos indígenas, discute a restituição de objetos e coleções indígenas, dentro de uma política de maior respeito aos direitos humanos, num processo de descolonização que dá voz às comunidades na tomada de decisões nos contextos e práticas dos museus. Trata-se de um movimento em que os objetos recuperam a carga de espiritualidade que lhes foi conferida pelas vozes indígenas, enquanto nos museus eram tão somente considerados simples objetos. Isso permite que, com a sua ressignificação feita pelos indígenas, se estabeleça uma nova perspectiva museal, em que, ao invés do museu representá-los, eles possam falar por si próprios.
Em temática correlata, Ana Luisa Jeanty Seixas e Eber Pires Marzulo, no texto Emergência Guarani-Mbyá nas Missões Jesuíticas: novos atores no Patrimônio Cultural?, discutem o processo de valorização patrimonial e de incorporação de novos atores na questão patrimonial, que são os agrupamentos indígenas que não tiveram seu legado reconhecido como patrimônio cultural. O palco desse debate são as Ruínas Jesuíticas Guarani, em São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul/Brasil, considerada patrimônio há quase um século, mas deixando em segundo plano a cultura Guarani. Dentro desse processo, os autores focalizam a Tava, lugar de referência para o povo Guaraní, declarada patrimônio cultural imaterial em 2014, a partir da análise das diferentes narrativas em torno desse bem. O reconhecimento da Tava como patrimônio será realizado a partir da compreensão de diferentes narrativas constitutivas de um mesmo bem cultural.
Na mesma perspectiva, Ana Lúcia Goelzer Meira e Leonardo Alberto Corá Silva, em Remanescentes das Missões Jesuítico-Guaraní no Rio Grande do Sul: da pedra e cal à paisagem cultural, focalizam na trajetória do patrimônio cultural das Missões Jesuítico-Guarani no Rio Grande do Sul. Os autores identificam na gestão do sítio de São Miguel o reconhecimento gradual de todas as dimensões do patrimônio, desde o início do século XX, como exemplo de patrimônio material, até hoje, com a possibilidade da definição de uma paisagem cultural regional, como um instrumento dinâmico que permite a incorporação dos vários municípios e grupos sociais desse território. Analisam como a gestão gradativamente foi contemplando as várias escalas – desde a local até a mundial – e incorporando os conceitos do campo patrimonial, em especial a noção do imaterial pela inclusão da compreensão indígena sobre o mundo.
Em sequência, dois textos tratam da herança cultural deixada pelos imigrantes que colonizaram o sul do País, um deles sobre a imigração italiana e o outro sobre a açoriana. No primeiro, Luis Fernando Beneduzi, em Bens culturais: memórias da imigração italiana no Rio Grande do Sul, interpreta a contribuição da imigração italiana para a história do Rio Grande do Sul, e destaca os eventos comemorativos como momentos de reflexão em torno do papel das migrações para a constituição do patrimônio nacional. O autor destaca o papel das comemorações dos cinquenta anos da imigração italiana no RS, apresenta as primeiras festas da uva na década de 30 e o projeto Caminhos de Pedra, nos anos 80, e registra ainda outras festividades contemporâneas, baseadas num determinado conceito de italianidade. Conclui que alguns lugares de memória permaneceram no tempo, se constituem em elementos fundantes para a rememoração da imigração, e se tornaram responsáveis pela construção da identidade étnica da região colonial italiana no Estado.
Já em Sobre história, memória e patrimônio no Sul do Brasil - monumentos aos açorianos em Porto Alegre e Florianópolis, Eloisa Helena Capovilla da Luz Ramos e Luciana da Costa Oliveira discutem o processo de produção dos monumentos comemorativos à imigração açoriana em Porto Alegre e Florianópolis. Para isso, analisam documentos, fotografias, maquetes, discursos e matérias de jornais relativos às suas inaugurações. O objetivo dessa imersão na história do grupo açoriano, segundo as autoras, foi questionar a importância desses lugares de memória enquanto patrimônio material das duas cidades, bem como chamar a atenção para o descaso com que são tratados esses monumentos.
A seguir, Maria Amalia Silva Alves de Oliveira e Ingrid Almeida de Barros Pena, em A construção do patrimônio e identidades emergentes no Maciço da Pedra Branca (RJ), se detém no estudo dos bens culturais do Parque Estadual da Pedra Branca, no Rio de Janeiro. Como pano de fundo, baseiam-se na noção de patrimônio de comunidades tradicionais, haja vista que a região reúne as comunidades quilombolas de Camorim, Cafundá-Astrogilda e Dona Bilina. As autoras propõem a utilização de ações de turismo como estratégia para reconhecimento identitário dos grupos sociais presentes no território. Por meio dele, seriam focalizadas as práticas locais relacionadas à natureza, os modos de vida, as trajetórias e as memórias pessoais da comunidade. Segundo elas, essa seria uma forma eficaz para ativar o seu potencial como patrimônio natural e minimizar os permanentes conflitos na região desde a sua transformação em unidade de conservação, ocorrida em 1974.
Urbano Lemos Jr. e Vicente Gosciola, em seu texto Memória, identidade e digitalização de bens culturais: o legado da Missão de Pesquisas Folclóricas no Brasil, recuperam a contribuição de Mário de Andrade em suas viagens realizadas em 1938 para a identificação e reconhecimento do patrimônio cultural nacional. Os autores analisam como as infovias contribuem para a preservação e difusão dos bens culturais reunidos pelo autor e destacam que a digitalização permite a constituição de um repositório importante para conservar e difundir os valores culturais do patrimônio andradino.
Marcelo Nascimento Bernardo da Cunha e Suely Moraes Cerávolo, no artigo Reflexões sobre o Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia, apresentam o Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia (IFB), escola para mulheres que marcou época na cidade do Salvador nas primeiras décadas a meados do século XX. O objetivo dessa imersão é destacar aspectos ainda não explorados sobre a relação entre a edificação e a estrutura expográfica com a Coleção de Arte Popular da Instituição. Desse modo, os autores de propõem a recompor o trajeto de formação de coleção para museu e descrever as características do espaço destinado a abrigar o acervo a partir de 1939, bem como seus equipamentos e modos expositivos.
Em relação às praticas religiosas tradicionais, o trabalho de Áurea Pinheiro sobre Os inventários da celebração do Bom Jesus, Oreias, Piauí salienta a necessidade de desconstruir o olhar homogêneo que há sobre o Nordeste. Como metodologia, destaca a relevância da descrição aprofundada no método de inventário de um patrimônio dinâmico como são as festas religiosas. A autora ressalta importância do inventário participativo para valorizar os agentes sociais que, ao se manifestarem, reforçam seus laços de pertencimento em relação às suas referências culturais. Além disso, a técnica contribuiria, segundo ela, para recuperar as marcas das identidades de grupos sociais que vivem no território, bem como compartilhar suas memórias e histórias.
Dando sequência, aqui se inicia uma não formalizada segunda seção do dossiê, cujo foco são os saberes e técnicas tradicionais em Arquitetura como referências de patrimônio cultural. Trata-se de uma temática que possui grande atualidade, pela dimensão de sustentabilidade que podemos vislumbrar nesses saberes, importantes por utilizarem materiais não convencionais e recuperarem antigos ofícios e saberes que se constituem em patrimônio cultural imaterial.
Em seu artigo intitulado Culturas constructivas con tierra en el espacio altoandino. Aproximaciones tecnológicas y sociales desde el norte argentino, Julieta Barada, Jorge Tomasi, María Florencia Barbarich, Natalia Veliz e Virginia Saiquita descrevem as técnicas construtivas das populações alto-andinas. Para isso, utilizam dados obtidos durante estudo realizado no norte da Argentina com o objetivo de analisar as práticas e procedimentos numa escala local. Os autores destacam que o processo construtivo é um fato social, profundamente imbricado nas práticas pastoris e agrícolas daquelas comunidades. Ao demonstrar as transformações ao longo do tempo, enfatizam que a tradição não é um elemento estático, mas algo dinâmico que se apresenta em permanente atualização nas práticas históricas, o que permite uma aproximação etnográfica para reconhecer os pontos de vista locais sobre as práticas construtivas.
No texto que segue, Günter Weimer apresenta Arquitetura popular afro-brasileira, onde descreve as matrizes tipológicas e construtivas da arquitetura tradicional na África, em especial das culturas banto e sudanesa, trazidas da África para o Brasil e aqui adaptadas pelos grupos escravizados. A partir das descrições, acompanhadas de desenhos com bico de pena produzidos durante o trabalho de campo, o autor analisa os processos de transferência dessas técnicas e sua adequação ao contexto brasileiro, na perspectiva da diáspora e da emancipação, de modo a evidenciar as marcas dessa transposição no espaço construído. O autor revela, em sua análise, que, durante o período colonial, em que a população de origem africana era majoritária, a arquitetura afro-brasileira se tornou hegemônica entre os grupos populares, com grande capacidade de adaptação, mesmo com as influências das culturas indígena e lusitana.
E, para fechar com chave de ouro, apresentamos o ensaio Cronistas que visibilizan saberes ancestrales, em que seus autores, Alejandro Henríquez e Jaime Alberto Sarmiento Ocampo, num texto suave e ilustrado por belas aquarelas, discutem a importância da recuperação de ofícios e saberes tradicionais, que se tornou hoje um tema central nas políticas de conservação do patrimônio imaterial ou intangível. Isso porque são reveladoras importantes das expressões, manifestações e prática que conferem a determinados grupos seu sentido de identidade, pertencimento e continuidade histórica. Nesse sentido, focalizam como a população afro-colombiana reivindica as memórias de sua resistência e construção do território, por meio do ofício de construção de embarcações de madeiras. Trata-se do ofício de Carpinteria de Ribera, na ilha de Tierra Bomba, no distrito de Cartagena, costa caribenha da Colômbia, narrado através das vozes dos mestres e aprendizes que preservam os saberes e fazeres vinculados a esse tipo de construções. A originalidade da narrativa se dá pela forma de registro das entrevistas, através de desenhos e projetos que documentam essa tradição ancestral, como estratégia para recuperar esses ofícios e saberes no âmbito do patrimônio cultural colombiano. Foi difícil escolher, entre as aquarelas, a que poderia ser utilizada para ilustrar o dossiê Patrimônios e Culturas Tradicionais, que hoje oferecemos aos leitores. A escolha recaiu na Figura 29 do ensaio, El Guaira, por representar um dos barcos produzidos pelos mestres e aprendizes, num momento de pura tranquilidade que contrasta com o ambiente de desassossego em que estamos imersos hoje, ao enfrentarmos a pandemia que nos assola.
Como editoras deste Dossiê, expressamos nossa profunda admiração pelos autores, seguras de que as temáticas abordadas se constituem em contribuições para a construção de uma sociedade mais justa. Desejamos a todos uma boa leitura, tão prazerosa quanto foi para nós a edição deste número da revista Em Questão.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, p. 1, 5 out. 1988.
CAMPOS, Yussef Daibert Salomão de. Proposições para o patrimônio cultural. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.