Servicios
Servicios
Buscar
Idiomas
P. Completa
Bens culturais, mercado e italianidade: memórias da imigração no Rio Grande do Sul
Luís Fernando Beneduzi
Luís Fernando Beneduzi
Bens culturais, mercado e italianidade: memórias da imigração no Rio Grande do Sul
Cultural goods, market and Italianity: Memories of migration in Rio Grande do Sul
Beni culturali, mercato e italianità: memorie sull’immigrazione nel Rio Grande do Sul
Em Questão, vol. 26, pp. 93-120, 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: : L’immigrazione italiana ha costituito un fenomeno importante nella storia del Rio Grande do Sul, sia dal punto di vista etnico-culturale sia economico, politico o sociale. La manodopera migrante ha contribuito alla diversificazione dell’economia gaúcha sin dai primi decenni del XX secolo. Inoltre, questo sviluppo economico ha collaborato alla nascita di un’élite etnica locale che, negli anni 1920, ha preso a sé il diritto/dovere di produrre la memoria di un’immigrazione vittoriosa. Di conseguenza, sin dagli anni 1920-30, memorie, narrative sull’immigrazione italiana e italianità si intrecciavano all’economia e alla politica, identificando un gruppo etnico che ha contribuito al progresso economico e sociale dello stato. Lungo il tempo, i momenti di crescita del brand “Italia” nei mercati interno ed estero si sono sovrapposti ad una enfasi nella positività etnica italiana. L’obiettivo di questo articolo è cercare di capire quali codici di italianità contemporanei risalgono a quel momento primordiale degli anni 1920 e come il mercato ha plasmato questo nuovo prodotto di consumo, i beni immateriali associati agli italo-gaúchos.

Parole chiavi: Identità etnica. Immigrazione italiana. Beni materiali e immateriali. Mercato consumatore.

Palavras-chave:Identidade étnicaIdentidade étnica,Imigração italianaImigração italiana,Bens materiais e imateriaisBens materiais e imateriais,Mercado de consumoMercado de consumo.

Resumo: A imigração italiana constituiu um fenômeno importante na história do Rio Grande do Sul, seja do ponto de vista étnico-cultural, seja político, econômico ou social. A mão-de-obra dos imigrantes contribuiu para a diversificação da economia gaúcha já nas primeiras décadas do século XX. Por outro lado, esse desenvolvimento econômico colaborou para o nascimento de uma elite étnica local que, na década de 1920, tomou para si o direito/dever de produzir a memória de uma imigração vitoriosa. Portanto, já nas décadas de 1920-1930, memória, narrativas sobre a imigração italiana e italianidade se entrecruzavam com a economia e a política, indicando uma etnia que contribuiu para o progresso econômico e social do estado. No tempo, os momentos de crescimento do brand “Itália” nos mercados interno e exterior se sobrepuseram a uma ênfase na positividade étnica italiana. O objetivo do presente artigo é buscar compreender quanto dos códigos de italianidade contemporâneos remontam àquele momento primordial da década de 1920 e como o mercado foi moldando este novo produto de consumo, os bens imateriais associados aos ítalo-gaúchos.

Palavras-chave:Identidade étnicaIdentidade étnica,Imigração italianaImigração italiana,Bens materiais e imateriaisBens materiais e imateriais,Mercado de consumoMercado de consumo.

Abstract: : Italian immigration has been an important phenomenon in the history of Rio Grande do Sul, whether from an ethnic-cultural, political, economic or social point of view. Labor force of immigrants has contributed to the diversification of the gaucho economy as early as in the first decades of the 20th century. On the other hand, this economic development has contributed to the birth of a local ethnic elite that, in the 1920s, took for itself the right/duty to produce the memory of a victorious immigration. Therefore, as early as in the 1920s and 1930s, memory, narratives about the Italian immigration and Italianity intersected with the economy and politics, indicating an ethnicity that contributed to the economic and social progress of the State. Over time, the growth of the “Italy” brand in the domestic and foreign markets has overlapped with an emphasis on ethnic Italian positivity. The aim of this article is to seek to understand how much of contemporary Italianity codes date back to that primordial moment of the 1920s and how the market has shaped this new consumer product, the intangible heritage associated with the Italo-gauchos.

Keywords: Ethnic identity, Italian immigrations, Tangible and intangible heritage, Consumer market.

Palavras chave Identità etnica, Immigrazione italiana, Beni materiali e immateriali, Mercato consumatore

Carátula del artículo

Bens culturais, mercado e italianidade: memórias da imigração no Rio Grande do Sul

Cultural goods, market and Italianity: Memories of migration in Rio Grande do Sul

Beni culturali, mercato e italianità: memorie sull’immigrazione nel Rio Grande do Sul

Luís Fernando Beneduzi1
Universidade Ca’Foscari, Italia
Em Questão, vol. 26, pp. 93-120, 2020
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Recepção: 10 Agosto 2020

Aprovação: 28 Agosto 2020

1 Introdução

Na internet podem ser encontradas diferentes festas, encontros, eventos que se identificam com uma origem italiana, isto tanto no Rio Grande do Sul quanto no resto do Brasil, ou ainda em outras realidades nacionais, como nos Estados Unidos ou na Austrália, por exemplo. Com relação à realidade gaúcha, uma rápida leitura de sites que divulgam eventos relacionados às zonas de imigração italiana, ou das prefeituras destas regiões, ou ainda das próprias entidades criadoras/organizadoras, permite a percepção de uma luta pela autenticidade e pela melhor representação da italianidade na região, no estado ou até mesmo no país. Se Antônio Prado, em uma matéria do governo estadual sobre a 34ª Noite Italiana, era apresentada como “a cidade mais italiana do Brasil”; Serafina Corrêa, nas comemorações do seu 60º aniversário, identificava-se como a capital nacional do Talian; e Flores da Cunha, no site municipal, destaca a arquitetura italiana e o dialeto vêneto como elementos caracterizadores da cidade[1]. Em cada uma dessas localidades a expressão da italianidade, em diferentes acepções, transforma-se em uma atração turística e objeto para o consumo.

Já em 1931, quando da primeira Festa da Uva de Caxias do Sul, denota-se essa combinação entre identidade étnica e mercado na venda de uma determinada imagem de italianidade e de “Região Colonial Italiana[2]”, impressionando e envolvendo visitantes e locais. Como afirma Ribeiro (2002), a festa, que permitia evocações da antiguidade clássica, constituía uma epifania do progresso da região, representava a opulência da colonização italiana no Rio Grande do Sul. De fato, dava continuidade a um processo inaugurado com o cinquentenário da imigração italiana no estado, em 1925, o qual celebrou em eventos públicos, mas também na redação de um livro com aproximadamente mil páginas, a contribuição italiana ao desenvolvimento econômico e humano sul-riograndense.

Observa-se, ainda, uma marca política muito forte na construção da divulgação da festa, consequência de uma nova preocupação do Estado italiano com relação às suas coletividades no exterior. Se o texto comemorativo do cinquentenário estava impregnado do discurso fascista na celebração do grupo étnico italiano, com a Festa da Uva não era diferente, a começar pela evocação da antiguidade, tanto cara ao Duce, na recuperação da Roma Caput Mundi. Não é certamente uma coincidência que a consolidação das diferentes festas da vindima em uma única e monumental comemoração aconteceu em 1931, alguns meses depois da primeira Giornata dell’Uva, evento nacional acontecido na Itália, no dia 28 de setembro de 1930, e sucessivamente transformada, pela vontade de Mussolini, em uma festa popular.

Portanto, essas diferentes comemorações étnicas são representações que determinados grupos, ao interno da coletividade, buscam construir. As imagens identitárias transformam-se em um produto de consumo, seja no âmbito econômico seja naquele político, através de representações acerca do grupo étnico que buscam aceitação dentro e fora da coletividade. O sucesso do evento e a sua consolidação como um bem cultural da comunidade, vão depender também do grau de verossimilhança entre a representação e a realidade representada na construção do imaginário coletivo.

Nesse sentido, a partir do material de divulgação de festas étnicas na “Região Colonial Italiana” do Rio Grande do Sul e, também, de alguns projetos culturais, o objetivo deste artigo é identificar como são propostos esses produtos culturais enquanto representação da italianidade e como se constroem enquanto bens de consumo. Dito de outra maneira procura-se entender quais são as características da identidade étnica italiana que atraem consumidores e produzem crescimento, e como isso impacta nas decisões acerca da conservação ou na invenção das tradições.

2 Contexto histórico e perspectiva teórica da análise

No entanto, antes de começar a análise dos eventos étnicos contemporâneos, é importante apresentar brevemente três questões: o contexto de evolução da imigração italiana no Rio Grande do Sul, alguns indícios teóricos sobre a construção da memória do grupo étnico e o impacto do álbum do cinquentenário da imigração italiana na construção de certas representações sobre os imigrantes italianos. A primeira questão fornece as bases históricas para a produção da identidade étnica, enquanto a segunda permite uma compreensão mais adequada sobre as dinâmicas de entrecruzamento entre a memória individual e aquela coletiva. Sobre a terceira, possibilita a visualização de algumas ideias-imagens que acabaram se cristalizando com as comemorações de 1925, para depois se transformarem em marcas indeléveis de italianidade.

Entre os séculos XIX e XX, um fluxo importante de imigrantes italianos chegou ao Brasil e, especificamente, ao Rio Grande do Sul. Na busca de se tornarem pequenos proprietários, uma grande quantidade de vênetos, lombardos e trentinos ocuparam lotes rurais nas antigas colônias imperiais (Conde d’Eu, Dona Isabel e Campo dos Bugres), constituindo pouco a pouco a zona de imigração italiana do Rio Grande do Sul, na Encosta Superior do Nordeste. Em uma região distante e mal conectada com a capital do Estado, sujeitos de diferentes proveniências das províncias do nordeste italiano começaram progressivamente a criar uma nova realidade cultural.

O desejo do imigrante de se transformar em proprietário de um lote agrícola estava em sintonia com o projeto imperial de ocupar as terras vazias do sul do País, ou seja, não inseridas no espaço de produção capitalista e na lógica de mercado. Os imigrantes tiveram essa importante função, atribuída pelo Império, e depois pelo Partido Republicano Riograndense, de modificar economicamente a fisionomia das colônias imperiais. Ao mesmo tempo, tiveram também a incumbência de colaborar com a política de branqueamento do povo brasileiro e a regeneração da nação, contribuindo com o crescimento da população branca no País. A tal propósito, os italianos eram vistos como melhores do que os alemães, chegados a partir de 1825, porque eram identificados como mais facilmente assimiláveis culturalmente, considerando o aspecto linguístico, a religião e os costumes das populações latinas. Na verdade, o projeto imperial não era construído somente a partir da ideia de melhorar a “raça brasileira” com a atribuição de uma nova fisionomia. Ao contrário, pensava fortemente na construção de uma identidade nacional latina e católica, o que beneficiava o componente italiano em detrimento daquele alemão, embora mais desenvolvido, segundo as hierarquias raciais da segunda metade do século XIX (ALENCASTRO; RENAUX, 1999).

Diferentemente do caso paulista, no qual a massa de mão de obra imigrante proveniente da Itália foi utilizada na produção de café e colocada diretamente em contato com sujeitos autóctones (nas fazendas e depois na cidade de São Paulo), no Rio Grande do Sul, a maior parte dos imigrantes, nos primeiros 25 anos do fluxo de massa, encontrava-se sem contatos com a comunidade brasileira. Esta especificidade da dinâmica migratória dos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina contribuiu para a construção de uma base dialetal híbrida de comunicação, constituída a partir da combinação dos dialetos das zonas de proveniência dos imigrantes italianos (Vêneto, Lombardia, Trento e Friuli).

No processo migratório, além da linguagem, os imigrantes trouxeram consigo relações de sociabilidade, expressões de religiosidade, modos de construir e organizar o espaço público. Além das roupas, cada família carregava nas malas e caixotes as experiências individuais e coletivas vividas na terra de partida (BENEDUZI, 2011). Também aqui se observa um importante fenômeno de hibridação cultural, na construção das igrejas, nas escolhas dos padroeiros, na edificação das casas, na organização das festas e das atividades que envolviam os momentos de pausa no trabalho. Pouco a pouco a natureza foi sendo domesticada e, entre capitéis, casarões, edifícios de culto e estabelecimentos comerciais, começava a nascer uma espécie de “nova nação” fora da Península Itálica. Esse movimento cultural de construção da italianidade é descrito por Blengino (2011) como o nascimento de “novas Itálias” no exterior: uma espécie de patchwork identitário com culturas que provinham das diferentes zonas de origem dos imigrantes.

Ao observar as festas que foram tomando forma desde os anos 1920 – com relação à Região de Colonização Italiana do Rio Grande do Sul – os elementos da experiência concreta do processo migratório mencionados acima estão presentes, cruzados em maneiras diversas, em dinâmicas contínuas de hibridação. Na verdade, cada evento apresentará fragmentos do real vivido pelos imigrantes no tempo, ressignificados em novas narrativas que buscam vender uma determinada italianidade. Nesse ponto, é essencial compreender melhor o modo como a memória individual e coletiva vão sendo construídas e reelaboradas, produzindo representações do grupo étnico e identificações. Mesmo tendo em vista um consumo, estas memórias devem estar em sintonia com a autorrepresentação da comunidade e, também, com a forma como esta é percebida pelos outros, aqueles que serão parte dos consumidores.

Efetivamente o sucesso de um evento está vinculado também à sua capacidade de criar no expectador uma determinada sensação sobre o passado comunitário, garantindo a eficácia das estratégias e do material utilizado, produzindo uma sensação de mergulho no passado. Como a Madeleine de Proust, a vivência da festa deve produzir o efeito de um passado recuperado, de um reviver, através das sensações, das experiências das pessoas de outra época. No entanto, é necessário considerar ainda o fato que se está em um espaço de comunicação entre um emissor da mensagem e um destinatário, o que implica também certo nível de impossibilidade de previsão. Como afirma Ricoeur (1997), falando sobre a recepção, mesmo que o enunciador proponha uma lógica de leitura dos sinais do passado, a produção de significados pertence de fato ao mundo dos leitores, aos destinatários da mensagem, ou seja, aqueles estão “consumindo” o produto. A comemoração terá sucesso se for interpretada como produtora de imagens representativas da experiência da comunidade, porque os expectadores viram nela a narrativa do passado deles (ou aquilo que imaginam ser o passado do outro) e identificaram-se com ela.

Portanto, a festa deve produzir um efeito de rememoração, seja enquanto reconhecimento da recordação seja como esforço de conservação do passado. Em relação à primeira característica, destaca-se a ideia de identificar nos fragmentos do passado presentes nas representações parte da experiência pessoal, estando associada ao receptor. No segundo caso, percebe-se uma perspectiva de exercício para garantir a permanência da coisa ausente (ou representada) através da memória. Nessa situação, pode ser identificada a uma pedagogia da memória, considerando que as comemorações têm esta função de presentificar aquilo que deve permanecer na lembrança da comunidade, aquelas que devem ser as características que irão definir o próprio grupo, criar a sua autorrepresentação. Nesse sentido, sobretudo se as comemorações forem analisadas em uma perspectiva histórica – nos últimos cem anos – será possível perceber a ação desta pedagogia na construção de “lugares de memória” da imigração italiana no Rio Grande do Sul, ou seja, “[...] de grandes símbolos de reconhecimento coletivo” (NORA, 1999, p. 347). Desde o álbum do cinquentenário da imigração italiana no estado, passando pelas primeiras festas da uva, pelas comemorações dos cem anos da imigração e por todas as outras festas que seguiram, foram sendo cristalizadas imagens sobre a imigração e sobre os imigrantes que se tornaram com o tempo representações reconhecidas por todos.

Sobre os “lugares de memória” e a elevação de determinados eventos, símbolos, objetos, datas, locais, por exemplo, a estatura de sinal de autorrepresentação da comunidade, está presente a construção da memória coletiva. De fato, a pedagogia sobre o que deve ser recordado do passado participa da construção de quadros sociais que nortearão as lembranças individuais, posto que são também sociais. Portanto, a presentificação do passado trabalha com esta matéria prima que é constituída dos vestígios daquilo que foi, atribuindo valor de representação coletiva, uma cosmovisão do grupo, e produzindo uma narrativa que acaba funcionando como fonte para a memória individual:

Para Maurice Halbwachs, a memória – mesmo aquela mais individual – é social, posto que seus quadros são feitos de noções por metade imagens por metade ideias que oferecem a sensação de uma significação social, a visão de mundo de nosso grupo. O fio condutor que percorre o seu livro é que a recordação é uma reconstrução do passado a partir da representação que um grupo faz de seus interesses atuais (NAMER, 1999, p. 349)

Tendo presente que aquilo que chega do passado são rastros de experiências vividas e agora ausentes, é fundamental analisar, ao interno do contexto onde foram produzidas e conservadas, os grupos que participaram desse processo de elaboração e preservação. Além disso, sendo uma dinâmica que entrecruza individual e coletivo, é necessário verificar os mecanismos de interação entre estas duas dimensões da memória. Por um lado, Halbwachs (1994) pensa na recordação a partir dos quadros sociais da memória, identificando-a com uma experiência que interconecta o individual e o coletivo, assim como o privado e o público. Por outro lado, Ricoeur (2004) permite uma leitura diferente sobre o individual e transforma-o em um singular-plural, em unicidades compartilhadas. A experiência é considerada um processo individual ao interno de outro, simultâneo, coletivo; no entanto, esse individual é uma composição de sujeitos que participam do processo mnemônico: a experiência pessoal cria aquela coletiva e ao mesmo tempo aquele vivido plural se torna a base da lembrança individual.

Falava-se antes sobre a presentificação do passado e este será um elemento muito importante na análise das diversas festas através do tempo, porque os diferentes presentes das comunidades marcam novas recordações e produzem novos processos narrativos, portanto, interferem no ato de rememoração. O tempo presente reflete uma luz que incide sobre o vivido, dando destaque a algumas experiências e opacidade (ou relegando à sombra) outras, partindo deste passado que é constituído de uma concentração de contrastes (CATROGA, 2001). No caso específico dos processos migratórios e das relações étnicas na terra de chegada, considerando que a ascensão social constitui elemento central no projeto de deslocamento, a expectativa com relação ao futuro é um balizador fundamental da experiência. A concretização do projeto pessoal, assim como a falência deste projeto, define o olhar do migrante com relação ao presente, mas também no que concerne ao passado, desde a partida, passando pelo trânsito migratório, até os contatos com a terra de chegada, ou, enfim, a construção do hoje.

Enfim, a relação entre passado e presente, no contexto das comemorações, conduz à questão da identidade, ao pertencimento a certo grupo e à autorrepresentação que a comunidade faz de si mesma, também com a ideia de interferir na forma como é percebida por aqueles de fora. Neste caso, a leitura do passado parte de uma percepção positiva, da força do grupo étnico e da vitória sobre as dificuldades que se colocaram na trajetória daquela coletividade. Da epopeia migratória, sobre a qual as elites coloniais destacavam a superação das adversidades e a pujança da região, pela força do braço do imigrante, quando das comemorações de 1925, nasceu um importante kit de representações sobre a italianidade que estará presente, mesmo que com alguma variação, nas festas e comemorações que se seguiram durante o século XX.

De certa forma, as dinâmicas que envolvem a identidade étnica reproduzem, em dimensão menor, os elementos identificados por Thiesse (1999) como caracterizadores de uma identidade nacional. Na busca de uma coesão interna do grupo, cria-se uma história comum que conecta passado e presente, construindo uma única comunidade unida no tempo e no espaço: são indicadas peculiaridades que diferenciam aquele coletivo em relação a outros, enaltecidas as qualidades intrínsecas daquela população, enfatizadas as marcas deixadas no lugar onde vivem:

Uma história que estabelece a continuidade com os antepassados, uma série de heróis significativos das virtudes nacionais, uma língua, monumentos culturais, um folclore, lugares marcantes e uma paisagem típica, uma mentalidade particular, representações oficiais – hino e bandeira – e edificações pitorescas – costumes, pratos típicos ou um animal emblemático. (THIESSE, 1999, p. 14)

Como será possível observar, já a partir da apresentação da primeira celebração coletiva, aquela do cinquentenário da imigração italiana, esse kit marcou, e continua caracterizando fortemente todas as festas étnicas. Os valores inatos dos ítalo-gaúchos, a fala do Talian (construção dialetal de grande relevância no processo de invenção da tradição), a alimentação, as músicas, a arquitetura, todos esses “ingredientes” acabam compondo o cenário das festas e criando este vínculo que produz a continuidade do grupo, desde os pionieri (termo usado no álbum comemorativo dos cem anos da imigração italiana) até os descendentes hodiernos.

Um instrumento originário na elaboração da memória coletiva sobre a imigração italiana no Rio Grande do Sul foi sem dúvida, como já indicado antes, o álbum comemorativo dos cinquenta anos da imigração: Cinquentenário da colonização italiana no Rio Grande do Sul. A cooperação dos italianos para o progresso civil e econômico do Rio Grande do Sul. Na verdade, o álbum nasce como memorial, pois se transforma em um recipiente no qual são recolhidas as diferentes atividades que fizeram parte da comemoração, como a exposição colonial italiana e seus prêmios, as festas realizadas nas diferentes cidades que nasceram “com o trabalho do braço italiano”, além de fazer uma “fotografia” para o futuro sobre o “estado da arte” da participação italiana na construção da riqueza humana e material sul-rio-grandense. Poder-se-ia dizer com Le Goff (1978) que se constitui em um monumento da imigração italiana no estado, porque se transformou em um veículo de cristalização da lembrança, ou melhor, o próprio álbum se tornou testemunho do passado, perenizando uma memória sobre os acontecimentos que marcaram o estabelecimento dos italianos nos primeiros cinquenta anos da imigração.

A palavra latina monumentum deve ser reconectada à raiz indo-europeia men que exprime uma das funções fundamentais da mente (mens), a memória (memini). O verbo monere significa ‘fazer recordar”, donde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. O monumento, reconstruindo sua origem filológica, é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação (LE GOFF, 1978, p. 38).

Portanto, o álbum do cinquentenário possui uma dupla função: por um lado, quer comemorar – celebrar a memória do fenômeno migratório e daquelas que deram certo; por outro, quer ser monumento – eternizar esta lembrança que festeja. Certamente esta dupla função estava a serviço de um objetivo político que colocava juntos diferentes sujeitos e grupos envolvidos nas celebrações, e que buscavam reforçar determinados vestígios do passado como instrumento de força. Para a política fascista, as comemorações de 1925 serviam para dar visibilidade a uma leitura positiva da expatriação de muitíssimos italianos, apresentar o fenômeno migratório não como uma perda ou incapacidade da nação, mas como a exportação de civilização. Da sua parte, a política local gaúcha desejava criar um novo equilíbrio interno no estado; nesta realidade, os imigrantes e as suas pequenas propriedades não se constituem somente matriz de novas estratégias de produção, mas também são parte de uma nova cultura política e econômica. Por fim, as elites locais aspiravam por uma releitura do deslocamento dos imigrantes – deles próprios ou de seus antepassados – a partir de uma nova perspectiva, fundada na ideia de um sacrifício necessário para a produção de riqueza e prosperidade: quando mais árduo o processo de ocupação da terra de chegada, maior ênfase recebe a tenacidade e maior importância a vitória.

O livro celebrativo – em seu processo narrativo – explicita como fio condutor o relato do grandioso trabalho realizado pelos indivíduos provenientes da Península Itálica, em solo sul-rio-grandense. Um percentual muito importante do texto dedica-se à apresentação da prosperidade industrial, comercial e agrícola já evidente depois de apenas cinquenta anos da chegada dos primeiros imigrantes. Se por um lado é enfatizada a profunda amizade que, através do trabalho dos imigrantes, une os dois povos latinos (italianos e brasileiros), como afirmava o duce – Benito Mussolini – na carta impressa no início do livro; por outro, é destacada a operosidade do colono italiano na construção de uma dinamicidade econômica e social, considerando ainda as desvantagens do ponto de partida (terras piores que aquelas recebidas pelos alemães, mais distantes da capital do estado e de mais difícil acesso), e o papel como novo coração agrícola do estado do Rio Grande do Sul. A obra – escrita em língua italiana – é acima de tudo uma narrativa que busca mostrar a importância do componente italiano no processo de modernização do sul do Brasil, não somente no âmbito econômico, mas, sobretudo, naquele humano, na criação de uma nova civilização.

No conjunto da obra, a união de interesses entre a política fascista, o projeto de reequilíbrio do Partido Republicado Riograndense e a busca de novas narrativas por parte das elites imigrantes, observa-se a cristalização de características que se transformam em símbolos identitários da italianidade. Coloca-se em evidência a qualidade moral do elemento italiano, no que se refere à religiosidade, ao trabalho, à procriação e à família, e a capacidade de assimilação, e, portanto, de regeneração da população local, desejada com a política de branqueamento. Para melhor compreender as estratégias descritivas utilizadas no álbum comemorativo, utilizam-se três imagens que são centrais na obra e que destacam em geral as qualidades dos italianos: modelo de católico, trabalhador incansável e de moral sã.

Com relação à primeira imagem – de bom católico – o livro do cinquentenário apresenta um modelo religioso definido pelo trabalho, pela família, pela oração. Mesmo com uma vida dura em terra estrangeira, um espaço hostil e incivilizado, e um contínuo estranhamento com a nova realidade, o imigrante mantém-se firme, sem medo e sem perder a esperança, porque a confiança na ação misericordiosa de Deus conserva a sua serenidade:

Morto de cansado por causa do trabalho quotidiano, reunia a família, à noite, entorno à parca mesa, rezava suas breves orações e em seguida se recolhia, e adormecia com a consciência tranquila, confiante na Divina Providência. (CINQUANTENARIO... ,1925, p. 58).

Como enfatiza a citação, mesmo com dificuldades para encontrar alimento para os seus (neste momento são lembrados os primeiros contatos com o novo mundo), o imigrante consegue dormir com a consciência tranquila porque são sua fortaleza a certeza de sua dedicação honesta ao trabalho, a família que o circunda e o Pai celeste que escuta as suas orações. Em um espaço de recordação e relato, o qual marca as experiências comemorativas, a religiosidade constitui um componente de coesão e ordenação de um mundo desorientado pelas rupturas do processo migratório. Dessa forma, o vivido é ressignificado, iluminado agora pela vitória descrita no presente do grupo, que produz um “olhar para trás” em busca do heroísmo na histórica comunitária.

O colono operoso é a segunda marca distintiva do imigrante que se quer destacar, pois o álbum do cinquentenário é repleto de narrativas que engrandecem o empreendedorismo dos imigrantes, a maneira como ocuparam a Serra Gaúcha: vitoriosos contra a natureza selvagem, transformando a terra inculta em produtiva. Também aqui a representação hiperbólica do sofrimento do imigrante e das suas dificuldades colabora para a criação da figura do herói, na medida em que são ressaltados os problemas relacionados ao processo de ocupação da terra de chegada: o colono italiano não produziu bem-estar e progresso em uma situação propícia, pelo contrário, embateu-se em uma realidade difícil e soube prosperar:

Ainda que guarnecido com meios de produção inadequados, ainda que tenha ocupado os terrenos menos férteis, ainda que tenha recebido os meios de transporte mais difíceis e com maiores distâncias, mesmo assim o colono italiano soube e sabe impor-se no fenômeno produtivo riograndense, não somente pela grande variedade de seus produtos, mas pela quantidade e qualidade dos mesmos, honorando a estirpe milenária portadora de civilidade e de progresso em todo o mundo (CINQUANTENARIO.... 1925, , p. 239).

Além do trabalhador operoso, a imagem do colono também é perpassada por outros elementos que passaram a compor a representação do imigrante italiano e de seus descendentes no Rio Grande do Sul, em contraposição à figura do nacional. A robusteza física e a moralidade são outras duas características destacadas no álbum comemorativo e que foram recuperadas também nos documentos relacionados a outras festas do período, como aquela da Uva, ou momentos sucessivos de comemoração e celebração, como o centenário da imigração italiana, em 1975, ou nas festas étnicas que se desenvolveram a partir dos anos 80 do século XX.

De acordo com o livro do cinquentenário, o imigrante italiano e seus descendentes possuem coeficientes muito altos com relação ao vigor e a vitalidade do grupo, tornando-se instrumento importante para qualificar (branquear e civilizar) a população “nacional”. Apresenta um índice de natalidade muito superior à média do estado e, inúmeras vezes, superava, inclusive, a taxa de nascimentos das zonas mais férteis da imigração alemã, mantendo-se abaixo do número médio estadual com relação à mortalidade. Portanto, é fisicamente desejável como mão-de-obra, porque permite uma importante reprodução endógena da mesma, garantindo braços para a agricultura e para as indústrias.

Além de serem sadias fisicamente, as populações provenientes da Península Itálica também o são moralmente, fazendo com que a zona colonial italiana apresente os menores índices de criminalidade. Tendo em vista que delitos contra a propriedade, a honra (estupros), à vida, ou marcados por lesões corporais são praticamente inexistentes entre italianos e ítalo-gaúchos, o colono desse grupo étnico é classificado como modelo de civilidade, e candidato ideal para colaborar com composição de uma população adequada para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul:

Dessa forma, esses se constituem, como mais acima dizíamos, o mais expressivo atestado da excelente índole, da alta moralidade dos costumes e do espírito ordeiro da população de origem italiana. (Cinquantenario..... ,1925, p. 250).

3 As marcas da italianidade em projetos contemporâneos do mercado cultural

Outra proposta de monumento da imigração italiana que se propõe como o “tempo recuperado” das experiências dos primeiros núcleos coloniais, é o projeto “Caminhos de Pedra”, iniciado nos anos 80 do século XX, no interior do município de Bento Gonçalves, sede da antiga colônia imperial de “Dona Isabel”. Pode-se dizer que o impulso inicial acontece em 1987, a partir de um levantamento conduzido pelo engenheiro Tarcísio Michelon e pelo arquiteto Júlio Posenato, sobre o acervo arquitetônico presente na zona rural do município[3]. Desde esse momento inicial, observa-se a ideia do resgate da cultura trazida pelos imigrantes à região da serra gaúcha, e o espaço rural – a diferença daquele urbano – é privilegiado pelo fato de ter sido menos tocado pelo progresso socioeconômico e pela transformação imobiliária vivida pela zona urbana.

O projeto que nasceu a partir do levantamento arquitetônico teve logo uma missão importante: convencer os moradores que os fragmentos daquele passado arquitetônico, linguístico, cultural, religioso interessavam a um público mais amplo e que podia ter um valor no mercado. Em entrevista realizada pela antropóloga Alessia De Biase, ainda da década de 90 do século XX, pode-se observar o processo de transformação daquilo que era um sinal de atraso, de falta de “progresso”, em um ponto de força da região. Em uma das casas que fazem parte do roteiro, o anfitrião, identificado pela autora como W.S., informa que a elaboração do roteiro turístico trouxe consigo um processo de revisão da língua utilizada na comunicação com sujeitos que não pertenciam à comunidade (De Biase, 2001). O koiné dialetal que se constituiu nas primeiras décadas depois da chegada dos imigrantes à região, com o tempo foi se transformando em um instrumento de comunicação interno ao grupo de moradores da localidade, mas não era usado com os “estrangeiros”, porque representava um sinal de atraso e motivo de vergonha. O entrevistado relembra que após a proibição do uso de uma língua diferente do português durante o Estado Novo, o dialeto foi desaparecendo pouco a pouco do espaço urbano e as pessoas da zona rural do município, que ainda o utilizavam, eram inferiorizadas. Com o sucesso do empreendimento, o grupo adquiriu orgulho pelo uso do dialeto (ou de fragmentos do mesmo) nas atividades inerentes ao projeto turístico. Neste caso, o dialeto acabou se tornando um elemento que reforça o objetivo do projeto de um retorno ao passado, porque confirmava a verossimilhança com as experiências dos pioneiros, apresentando-se como um sinal de continuidade temporal.

Para melhor compreender a questão do “tempo recuperado”, objetivo central do projeto, apresenta-se, rapidamente, as principais características do roteiro que começou a ser construído nos anos 90 do século passado. O itinerário é estruturado através de diferentes edificações presentes ao longo da antiga estrada que ligava os municípios de Bento Gonçalves e Caxias do Sul, com o intuito de tornar vivo aos visitantes o quotidiano dos primeiros tempos da imigração italiana. Não está relacionado, porém, unicamente com a divulgação da cultura material, considerando que as casas, quando da realização da pesquisa, eram habitadas por descendentes de imigrantes, os quais recebem os turistas, apresentando como as massas, o vinho e outros produtos característicos da região eram produzidos desde o tempo de seus antepassados, aquele da chegada dos primeiros imigrantes à localidade. Desse modo, visitar as edificações, ou mesmo somente passar pela estrada, possibilitaria um retorno ao passado, com um convite a mergulhar no quotidiano da imigração italiana do início do século XX.

O roteiro turístico era divido em dois tipos de atrações: pontos de visitação e pontos de observação externa. Com relação à primeira categoria, é constituída por edificações que permitem uma visita interna, oferecendo uma experiência concreta do trabalho quotidiano realizado pelos primeiros moradores e que, em teoria, continuaram sendo feitos pelos descendentes. No que tange à segunda, como se denota do próprio nome, são apresentadas atrações que possibilitam somente uma visualização desde o exterior da edificação. De qualquer forma, o itinerário, na sua totalidade, quer oferecer ao visitante a oportunidade de transitar através daquilo que os organizadores do projeto designam como um “Museu Vivo” da imigração italiana na Serra Gaúcha.

Os responsáveis pela organização dos “Caminhos de Pedra” criaram um museu a céu aberto, um monumento da imigração italiana no Rio Grande do Sul, destacando aquilo que deveria ser recordado/celebrado/comemorado, selecionaram um percurso narrativo de reconstrução do passado imigratório, escolheram o tipo de público que iria ver e a maneira de construção de uma pedagogia da passeidade. Optaram por não sinalizar as cicatrizes que marcaram mais de um século de ocupação da Região de Colonização Italiana, pelo contrário, procuraram eliminar qualquer marca que pudesse manchar a atmosfera de tipicidade. Inclusive foram buscadas outras casas – originalmente não presentes na localidade – para que fossem incorporadas ao projeto. Desmontadas em seus espaços originais e remontadas no percurso dos “Caminhos de Pedra”, reforçam a ideia de espetacularização do passado, permitindo um aumento da rentabilidade do vivido do grupo étnico.

Aliás, a lucratividade do passado, a partir do momento em que o número de turistas começou a aumentar e o projeto começou a dar certo economicamente, começou a se fortalecer o processo de invenção da tradição destacado por Alessia De Biase: não uma invenção entendida como mentira ou fantasia, porque partiam de fragmentos do real, mas como a construção de uma nova narrativa mnemônica que opacificava os momentos de conflito e de ruptura do passado:

A transformação do sentir do senhor W.S. e dos outros habitantes em relação às suas casas e o olhar de outros não é linear. Eles riram, em princípio, do senhor J.P., mas por intermédio da construção da identidade proposta por promotores, eles tomaram consciência, pouco a pouco, de que eles eram os habitantes legítimos da colônia e de que havia um público preparado para ver neles os descendentes diretos da cultura italiana. Inseridos numa decoração destituída dos traços infamantes da miséria sofrida entre as duas guerras, lhes ensinaram que podiam adquirir, aos olhos dos visitantes, um status de personagens talvez pitorescas e históricas, como se fossem os remanescentes de uma antiga civilização (De Biase, 2001, p. 177).

As celebrações do cinquentenário da imigração italiana, e também o próprio álbum comemorativo, apresentavam-se como bens de consumo, primeiramente políticos, por conta dos diferentes interesses em jogo, mas também econômicos, na construção de uma imagem de progresso das zonas de colonização (inclusive para promover a retomada dos grandes fluxos de imigrantes de finais do século XIX). Da mesma forma, a Festa da Uva, nas edições da década de 30 do século passado, era caraterizada por esse duplo consumo, político e econômico. Mesmo as celebrações dos cem anos da imigração não fugiram a essa transformação em bem de consumo político (o enaltecimento do imigrante ordeiro no seio de uma ditadura militar), mas também econômico, considerando as exposições e a propaganda que envolveu o biênio da imigração italiana e alemã, entre 1974 e 1975. Por fim, o projeto “Caminhos de Pedra” – em finais do século XX – caracterizou-se como um novo momento de transformação dos bens culturais em bens de consumo, com uma ideia de tempo recuperado, a recriação de um espaço histórico nunca existido enquanto tal. Processo semelhante poder-se-á observar nas festas de finais do século XX e início do XXI que serão analisadas a seguir.

Com relação às festas étnicas contemporâneas, a imagem de uma imigração vitoriosa, presente já no álbum comemorativo dos cinquenta anos da chegada dos “pioneiros”, é muito forte, por exemplo, na “31ª Noite Italiana”, realizada no município de Antônio Prado, em 2011, através das imagens de mesa farta, cantos alegres e gastronomia entendida como representativa do pertencimento étnico-cultural. Com relação ao evento específico citado, que acontece anualmente, a identidade do grupo étnico está relacionada com a fartura da alimentação e com a diversão, em uma comemoração da bem-sucedida epopeia dos pais fundadores desta Itália de além-mar, inventando uma tradição italiana que na verdade é o resultado de um processo de hibridação com a cultura da terra de chegada. Consequência disso se encontram juntos polenta brustolada, grostoli, batata doce e cucas, fruto de uma união cultural que ocorreu em terra brasileira. De qualquer forma, o objetivo da festa, como dos outros eventos já analisados, está vinculado a uma ideia de “tempo recuperado”, porque se propõem como um regate do passado imigratório, de um continuum temporal: “[...] é sem dúvida reproduzir da forma mais fiel possível os costumes dos imigrantes italianos que chegaram a região há mais de 140 anos” (CDL, [2019?], não paginada).

É importante destacar que a partir dos anos 80 do século XX, mais especialmente durante a década de 90, o Rio Grande do Sul foi tocado por um importante revival étnico (BENEDUZI, 2019). Estes anos foram marcados por um crescimento importante da produção de memorialistas sobre o fenômeno migratório, com destaque especial para o modo como os imigrantes começaram suas vidas na terra de chegada. O período foi caracterizado também pelo aumento dos projetos de gemellaggio (cidades irmãs ou geminação de cidades) entre municípios italianos e brasileiros, fortemente fundamentados em uma proximidade étnico-cultural marcada pela imigração. Além disso, observou-se um boom nas festas de família, nas quais se celebrava/comemorava os antepassados imigrantes e a trajetória vitoriosa do núcleo familiar, e, ainda, o crescimento exponencial das festas étnicas, como a “Noite Italiana”, citada no parágrafo anterior.

Retornando à festa de Antônio Prado, a história do evento remonta aos primeiros passos do revival étnico, ainda em 1981, portanto, a mesma poderia ser considerada precursora em relação às festas modernas da italianidade. Desde seu início pode ser observada a ideia de construção de um bem de consumo fundado sobre a identidade étnica italiana, seja pelos idealizadores, membros da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) da cidade, seja pelo contexto no qual nasceu a ideia, a Convenção Nacional das CDL, em Porto Alegre. Como informa o histórico da festa, na página do evento, os casais Beltrame e Anghinoni tiveram a inspiração durante o coquetel de encerramento da Convenção, quando foram oferecidas “barricas de vinho e farta comida típica italiana”[4]. Segundo o site da festa, nesse momento nasceu a “melhor festa típica italiana realizada no Rio Grande do Sul e, consequentemente, considerada a maior do Brasil”[5]. Observa-se mais uma vez que o objeto a ser comercializado é a tipicidade, em que novamente o brand italiano (ou ítalo-gaúcho) é apresentado como instrumento para a atração de visitantes: polenta, queijo, copa, salame e vinho, que constituíam o emblema de uma verdadeira representação da autenticidade étnica.

Nos primeiros anos do evento, até 1995, o material de divulgação era produzido com características tipográficas que recordavam os cartazes, panfletos, jornais das décadas de 20-30 do século passado, começando, desde o convite, a transmitir uma mensagem de mergulho nas experiências dos “pioneiros”. O conteúdo dos anúncios, por outro lado, foi adquirindo com o tempo um perfil mais étnico, propondo um encontro com a gastronomia e a música símbolos da região. Se na primeira festa, em 1981, era apenas feito um convite, indicando que era a “festa que faltava” e comunicando o cardápio em língua portuguesa, na segunda edição, em 1982, são adicionados alguns outros símbolos da italianidade, como o jogo da mora ou as canções italianas, com a música da “Banda Florentina” mantendo ainda uso do português.

Vai ser na terceira edição, em 1983, que as atrações da festa serão comunicadas em talian (o nome que se consolidou como aglutinador de um tipo de koiné dialetal da Região Colonial Italiana): Formaio, salami, socoi, galine-roste [...] giogo della Mora, canti in Talian i tante altre bele robe. Em 1985, além da indicação do que o visitante iria encontrar na festa, também o próprio convite é feito em dialeto, chamando todos a participar da festa dei nostri taliani, que em 1986 vê acrescentar “puramente típica”. Em 1989, quando da nona edição da festa, o cartaz acrescenta duas informações dignas de nota: Antônio Prado, citá belíssima, fata con la man dei nostri taliani e Eco, coesta zé la festa que faremo par ricordar i costumi dei nostri imigranti taliani. Nos anos seguintes os textos desaparecem, sendo indicadas somente informações essenciais sobre data, local, horário e, a partir de 1996, com a mudança total do design do cartaz, as imagens tomam o lugar dos antigos textos para comunicar com fotos de pratos, roupas, cenários, aquela ideia de italianidade que se queria antes passar com a escritura.

Assim como o projeto “Caminhos de Pedra” prometia um retorno ao passado através do passeio pela paisagem da estrada que o constitui e da visitação às casas que se apresentam como monumentos de uma passeidade que se indica como recuperada, também a “Noite Italiana”, de Antônio Prado, oferece a mesma sensação de viagem no tempo. No segundo caso, o ambiente da festa promete um retorno àquela experiência das festas comunitárias dos primeiros imigrantes, talvez com uma mesa mais farta e com o acréscimo de algum prato que se conheceu no novo mundo, mas com a sonoridade do dialeto, a familiaridade do jogo da Mora e as canções mais representativas da identidade étnica.

Em 2015, no município de Farroupilha, mais especificamente na localidade de Nova Milano, uma festa foi organizada para comemorar os 140 anos da imigração italiana no Rio Grande do Sul. Também aqui se observa como o álbum do cinquentenário construiu lugares de memória sobre o fenômeno migratório proveniente da península italiana, como por exemplo, um marco de fundação, ou a data de nascimento da Região Colonial Italiana na Serra Gaúcha. A região comemorava, enquanto localidade elegida como o lugar da chegada dos primeiros imigrantes, o dia da etnia italiana, que confirma oficialmente aquele 20 de maio que já tinha sido consagrado pelo livro comemorativo de 1925.

Como afirmava Anne Marie Thiesse, anteriormente citada, com relação à identidade nacional, também aquela do grupo étnico necessita de uma fundação, um território, uma língua e de pais fundadores (THIESSE, 1999). Dos três primeiros, já se comentou anteriormente, com relação ao último componente, a festa de 2015, (mas o próprio marco de celebração da etnia italiana) confirma as famílias Crippa, Radaelli e Sperafico, provenientes da província de Monza, na Lombardia. Mesmo que os imigrantes tenham começado a chegar desde o início da década de 70 do século XIX e a ocupar os espaços loteados nas colônias imperiais na Encosta Superior do Nordeste, o álbum de 1925 atribui a estas famílias a paternidade e elege este espaço como berço do nascimento do grupo étnico na serra gaúcha. A força de cristalização deste lugar de memória, “instituído” na década de 20, é tão forte, que se transforma em lei estadual no ano de 2001.

A narrativa construída sobre a festa, com relação à partida, ao trânsito e à vitória do imigrante, reforça mais uma vez a epopeia migratória construída nos relatos do cinquentenário, com um imigrante obrigado a deixar a terra de nascimento, a empreender uma dura viagem, para, enfim, construir uma região rica, próspera, opulenta, obviamente fundada sob a égide do trabalho:

Naquela época, a Itália vivia um período de guerra. A fome crescia e a população estava cada vez mais isolada. Depois de uma longa viagem de mais de três meses em navios precários, começava o maior desafio: construir uma nova vida. Desde então, a bravura dos primeiros imigrantes italianos tomou a região. Hoje, muita coisa produzida no estado é destaque no mundo inteiro, como o vinho (GLOBO, 2015, não paginada).

Como último evento selecionado apresenta-se a FestiPizza, que acontece no município de Serafina Corrêa, que em 2019 chegou à sua 8ª edição, com o lema El paradiso dele pizze a Serafina Corrêa mama mia!. Mais do que ao festival diretamente, quer dar ênfase ao uso da italianidade (ou “talianidade”) atribuído aos bens materiais e imateriais da cidade como instrumentos de atração dos visitantes a este “pedacinho da Itália no Brasil”[6].

O site da Prefeitura Municipal de Serafina Corrêa informa que, desde 20 de maio de 2015, a cidade detém o título de “capital nacional do talian” e que, em 2009, com a lei municipal n. 2.615, a “língua talian-vêneto brasileiro” foi co-oficializada junto ao português como veículo de comunicação local, tendo sido disposto, a partir de 2013, o seu uso preferencial na semana do aniversário do município[7]. No breve histórico sobre o Talian, indicada como “nova língua neolatina”, fala-se sobre o nascimento deste koiné, reconhecido em 2015 como patrimônio cultural imaterial do Brasil, enquanto caracterizador da cultura das populações provenientes da península itálica no Rio Grande do Sul. Como se pode notar, muito do pertencimento étnico-cultural no município é construído a partir de uma específica política linguística, mas que também transforma esse bem imaterial em um bem de consumo, quando se vende uma certa representação como instrumento de atração turística.

Além da questão linguística, manifestada inclusive através de expressões utilizadas no site da FestiPizza, uma outra característica da “Las Vegas”[8] do Rio Grande do Sul, as réplicas de edificações italianas, são utilizadas como meio para trazer visitantes para a festa. Na divulgação da edição de 2015 era enfatizada a rica presença de monumentos italianos na cidade, da nave dos imigrantes até o Coliseu, em fase de construção, todos indicando íntima relação da cidade com a preservação da memória dos antepassados:

O município se destaca pelo resgate da cultura e das tradições. Nele estão expostos belos monumentos que mantém viva a história dos seus antepassados. O monumento mais representativo da imigração italiana é La Nave Degli Immigranti. Ela foi construída em 1986 e chama a atenção principalmente pela sua originalidade. Ela representa a vinda dos imigrantes italianos em navios e também homenageia e destaca a bravura e o significado da imigração e da construção do Rio Grande do Sul (FESTIPIZZA, 2015, não paginada).

Nesse primeiro monumento e na sua explicação, percebe-se novamente a função importante do álbum do cinquentenário da imigração italiana na construção de uma memória coletiva sobre o fenômeno. A nave é apresentada como o sinal de uma homenagem aos pioneiros que desbravaram a floresta selvagem, colaborando para a construção do estado, ou poder-se-ia dizer, copiando o título do livro comemorativo, para o progresso econômico e civil sul-rio-grandense. Mas a função, como indica ainda a citação, é parar o tempo – manter viva – a experiência dos antepassados. Como no projeto “Caminhos de Pedra”, a proposta é permitir um retorno ao passado e tal possibilidade é utilizada como promoção para a vinda de visitantes ao festival das pizzas.

É interessante o conjunto dos monumentos presentes que permitiriam esse “resgate da cultura e das tradições” dos antepassados. A “via Gênova” é a rua onde se encontram as construções e é associada ao porto desta cidade da Ligúria, do qual partiu um percentual importante dos imigrantes que se dirigiram ao Rio Grande do Sul. Nela, encontram-se o Castello Inferiore di Mastostica, a Casa di Romeo, a Casa di Giulietta e La Rotonda (projetada – a edificação original – pelo famoso arquiteto italiano Andrea Palladio, no século XVI). Se os monumentos indicados, cujos originais estão presentes nas províncias de Verona e Vicenza, podem ser associados à origem geográfica de proveniência dos imigrantes da Região Colonial Italiana na serra gaúcha, embora não representem exatamente aquele mundo camponês que constituiu a porção mais significativa dos deslocamentos para o sul do Brasil, o Coliseu, outro monumento presente, ainda que em processo de construção, em 2015, permite uma relação pouco próxima ao regate das tradições proposto pela capital do Talian.

4 Considerações finais

No presente artigo, buscou-se percorrer, embora de maneira sintética, algumas festividades e edificações que marcaram e continuam sinalizando o fenômeno migratório italiano no Rio Grande do Sul. Partindo das comemorações dos cinquenta anos da imigração italiana no Estado, se apresentou as primeiras festas da uva, na década de 30 do século passado, passou-se pelo projeto “Caminhos de Pedra”, nascido nos anos 80, e também por algumas festividades contemporâneas fundadas em um determinado conceito de italianidade. Nesta trajetória, puderam ser identificados alguns lugares de memória da imigração que permaneceram no tempo e passaram a constituir uma parte importante da rememoração acerca da imigração, que caracterizou a construção da identidade étnica da Região Colonial Italiana.

Pode-se perceber uma forte relação entre a construção destes monumentos, entendidos como bens materiais e imateriais, e a identificação dos mesmos como bens de consumo, pensando em um uso político ou econômico dos mesmos. Sem dúvida a questão política atravessa todos os casos, embora seja mais visível nos eventos que remontam às décadas de 20 e 30 do século XX, caracterizados por diferentes projetos, como aquele de potência do fascismo italiano ou de diversificação econômica do governo estadual, ou ainda, ascensão política, da elite colonial. Nos demais, encontra-se sem dúvida uma forte política de manutenção da identidade étnica italiana, reforçando o seu valor na construção estado. Sob o ponto de vista econômico, a exposição de produtos comerciais está associada a todos os eventos e a divulgação das próprias festas, com o uso da italianidade, constitui um sinal importante do valor econômico do patrimônio e do uso do passado, ou melhor, de reelaborações do passado comunitário como veículo de produção de rentabilidade.

Material suplementar
Referências
ALENCASTRO, Luiz Felipe; RENAUX, Maria Luiza. Caras e modos dos migrantes e imigrantes. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (org.) História da Vida Privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
Beneduzi, Luis Fernando. Os fios da nostalgia. Perdas e ruínas na construção de um Vêneto imaginário. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.
Beneduzi, Luis Fernando. Identidades em transformação: desde a Itália e até a Itália, percepções de um pertencimento. Anuario de Estudios Americanos, Madrid, vol. 76, p. 79-100, 2019.
BLENGINO, Vanni. Los viajeros italianos en la Argentina. Confluenze. Rivista di Studi Iberoamericani, Bologna, v. 3, n. 1, p. 1-16, 2011.
CÂMARA DE DIRIGENTES LOJISTAS. A noite italiana é um retrato da família. Antônio prado, [2019?], não paginada.
CARTROGA, Fernando. Memória e História. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy (ed.). Fronteiras do milênio. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2001.
Cinquantenario della colonizzazione italiana nel Rio Grande Del Sud. La cooperazione degli italiani al progresso civile ed economico del Rio Grande del Sud. Porto Alegre: Barcellos, Bertaso e Cia/Livraria do Globo, 1925.
DE BIASE, Alessia. Ficções Arquitetônicas para a construção da identidade. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, n. 16, p. 173-188, 2001.
FESTIPIZZA. Conheça Serafina Corrêa um pedacinho da Itália no Brasil. Serafina Corrêa, 2015, não paginada.
GLOBO. Festa italiana homenageia familiares dos primeiros imigrantes no RS. Rio Grande do Sul, 2015, não paginada.
Halbwachs, Maurice. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris: Albin Michel, 1994.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. Enciclopedia Einaudi, Torino, vol. V, p. 38-43, 1978.
NAMER, Gérard. Les cadres sociaux de la mémoire. In RUANO-BORBALAN, Jean-Claude (org.). L’histoire aujourd’hui. Auxerre: Sciences Humaines Éditions, 1999.
NORA, Pierre. Les lieux de mémoire. In RUANO-BORBALAN, Jean-Claude (org.). L’histoire aujourd’hui. Auxerre: Sciences Humaines Éditions, 1999.
Ribeiro, Cleodes Maria Piazza. Festa & Identidade: como se faz a Festa da Uva. Caxias do Sul: EDUCS, 2002.
Ricoeur, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo III. Campinas: Papirus, 1997.
Ricoeur, Paul. Ricordare, dimenticare, perdonare. L’enigma del passato. Bologna: Il Mulino, 2004.
THIESSE, Anne-Mare. La création des identités nationales: Europe XVIII.-XX. siécle. Paris: Seuil, 1999.
Notas
Notas
1 “Antônio Prado celebra a imigração italiana no Rio Grande do Sul” (https://estado.rs.gov.br/antonio-prado-celebra-a-imigracao-italiana-no-rio-grande-do-sul); “Muita emoção 60º aniversário de Serafina Corrêa” (http://www.serafinacorrea.rs.gov.br/muita-emocao-no-60o-aniversario-de-serafina-correa/); “Flores da Cunha, informações gerais” (https://www.turismoflores.com.br/pagina/informacoes-gerais)
2 O termo “Região Colonial Italiana” é usado no Rio Grande do Sul para descrever aquela área ocupada pelos imigrantes italianos, que historicamente construíram uma cultura identificada como ítalo-gaúcha ou ítalo-riograndense. Com relação aos espaço geográfico, faz-se referência à “Encosta Superior do Nordeste”.
3 As informações sobre o itinerário de visitação foram todas retiradas do site do projeto “Caminhos de Pedra” (http://www.caminhosdepedra.org.br/?pg=pvisitacao#anc). Acessado em 05 de fevereiro de 2011.
4 Citação retirada do site da festa (http://noiteitaliana.com.br/historia.php), último acesso em 07 de agosto de 2020.
5 Citação retirada do site da festa (http://noiteitaliana.com.br/historia.php), último acesso em 07 de agosto de 2020.
6 As informações sobre a “Festi Pizza” foram retiradas do site do evento (https://www.festipizza.com.br/), último acesso em 07 de agosto de 2020.
7 Informações retiradas do site do Município de Serafina Corrêa (http://www.serafinacorrea.rs.gov.br/talian/), último acesso em 07 de agosto de 2020.
8 Faz-se referência não a fama da cidade pelos diversos cassinos, mas pela sua outra atração turística, as réplicas de monumentos do mundo inteiro, como a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo, o Coliseu ou o Canal Grande. Alguns afirmam que visitar Las Vegas é como conhecer um pouquinho do mundo inteiro.
Autor notes
1 Doutor, Universidade Ca’Foscari, Veneza, Itália

luis.beneduzi@unive.it

Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc