Resumo: As reflexões sobre o Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia (IFB), escola para mulheres que marcou época na cidade do Salvador das primeiras décadas a meados do século XX, objetivam destacar aspectos ainda não explorados sobre a relação entre a edificação e a estrutura expográfica com a Coleção de Arte Popular dessa instituição baiana. Com base em pesquisa documental procura-se correlacionar as fontes consultadas, de modo a recompor o trajeto de formação de coleção para museu e descrever as características do espaço destinado a abrigar o acervo a partir de 1939 e os equipamentos e modos expositivos, concluindo-se sobre a importância e necessidade de mais pesquisas para desvendar as camadas de historiografia que ultrapassam a do próprio IFB.
Palavras-chave:Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da BahiaMuseu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia,ColeçãoColeção,Espaço expositivoEspaço expositivo.
Abstract: In this article the reflexions on the Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia-IFB (Museum of Popular Art of the Women´s Institute of Bahia State), a school for women that marked an era in the city of Salvador from the first decades to the mid-twentieh century, aim to highligth aspects still unexplored on the relationship between the building and the expographic structure with the Popular Art Collection of this Bahian institution. Based on a corpus of documents an attempt is made to correlate the sources consulted, in order to recover the trajectory that led to the assemblage of the collection, and to describe the characteristics of the place that has been sheltering it since 1939 as well as equipments and ways of exhibition, concluding on the importance and need for more research to reveal the layers of historiography that go beyond the history of the Instituto Feminino itself.
Keywords: Museum of Popular Art of Instituto Feminino da Bahia, Collection, Exhibition space.
Reflexões sobre o Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia
Reflexions on the Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia-IFB
Recepção: 31 Julho 2020
Aprovação: 11 Setembro 2020
Este texto surge de reflexões realizadas por nós no âmbito de investigações desenvolvidas no Grupo de Pesquisa Observatório da Museologia na Bahia (CNPq/Universidade Federal da Bahia), identificando estratégias, protagonismos e ações específicas com o fim de compreender criticamente os processos de patrimonialização e musealização ocorridos na cidade do Salvador, visando o entendimento do que chamamos campo museológico dessa cidade.
Ao longo dos anos vão se revelando a articulação de indivíduos, propostas e concepções sobre o patrimônio e sua utilização, ao evidenciar e analisar determinadas recorrências ao tempo em que se procura captar a manutenção ou mudanças de aspectos singulares nesse campo específico de estudos, o que inclui abordagens ideológicas e interpretativas a respeito das práticas culturais preservacionistas. Os estudos iniciam pela aproximação com as instituições investigadas através da visita às suas exposições (quando ainda em funcionamento), paralelamente à busca por documentação administrativa, histórica e museológica que possam dar pistas para o entendimento sobre prováveis origens, trajetórias, formação de coleções, exposições e ações desenvolvidas. Igualmente faz parte da abordagem a localização de estudos acadêmicos anteriores sobre as instituições bem como o contexto histórico social aos quais estão relacionadas, para o que interessam publicações em veículos noticiosos, como jornais e revistas.
Os resultados alcançados nesse processo de construção de relatos sobre memórias institucionais são diversos ficando patente que, as conclusões, serão sempre passiveis de complementação e, até mesmo, contestação, considerando-se que, muitas vezes, e pincipalmente sobre determinados aspectos, as informações se apresentam fragmentadas, carecendo de um corpo documental maior para um entendimento amplo do contexto institucional. Nesse quadro desponta uma questão que se revela a quem investiga memórias de instituições museológicas: a ausente e contraditória fragilidade memorialística justo nos lugares voltados à preservação de memórias. Importante destacar que muitos são os fatores que levam a isso, relacionados às mais diversas conjunturas – de recursos humanos, as materiais e tecnológicas e, mesmo, as conceituais. Com efeito, a complexidade dos processos museológicos implica uma série de ações nem sempre fáceis de controlar e registrar a ponto de contar, posteriormente, com a possibilidade de recuperar gêneses e transformações processuais.
No caso do Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia (IFB), desde anos atrás estabelecemos algum tipo de estratégia de abordagem, sendo a mais recorrente, até esse momento, a identificação e recolha de notícias veiculadas ao longo de décadas de extrema importância para entender a conjuntura institucional, considerando que este museu compõe uma estrutura museológica e organizacional mais ampla. Para complementar as notícias recorre-se a outros escritos como publicações, dissertações e teses, opúsculos editados pelo próprio Instituto dentre outras fontes possíveis de serem consultadas que vão elucidando circunstâncias de época e revelando - aqui ou ali - traços de Dona Henriqueta Catharino[1], a mentora da instituição. Supõe-se que há ainda um corpo documental a ser abordado - notadamente escritos e registros de próprio punho de Henriqueta Martins Catharino - relativos ao colecionismo e ao cotidiano institucional que esclareçam as ações, no presente foco, em particular sobre a formação do acervo do popular. A existência dessas referências é uma hipótese plausível sustentada por algumas pistas e informações, porém, uma série de circunstâncias impossibilitou, até o momento, o contato com tais fontes. Já no que diz respeito à exposição propriamente dita, fazia parte de nossa proposta apresentar considerações mais detalhadas sobre como a exposição se encontra atualmente. Não obstante a intenção de complementar as visitas técnicas realizadas anteriormente, nos vimos sem condições de realizá-las em virtude da pandemia e decretação do estado de emergência e isolamento social imposto pela Covid-19.
Ainda que conscientes da necessidade de ampliação da investigação para que sejam desveladas novas questões relativas a esse museu, para os autores, a escrita deste ensaio se justifica como recurso para evidenciar a importância da Coleção de Arte Popular do IFB, entendida como importante documento relativo ao colecionismo de início do século XX e sua relação à concepção de cultura e patrimônio vigente naquele momento, possibilitando inclusive refletir sobre os contínuos que se apresentam na atualidade.
Uma vez explicitada a abordagem analítica e a questão de fontes de pesquisa sobre o Museu de Arte Popular do Instituto Feminino da Bahia (IFB), nosso objetivo aqui é o de correlacionar as fontes consultadas para recompor o trajeto de formação daquilo que se iniciou como um apanhado de objetos, avolumando-se a ponto de compor uma coleção específica e farta e desta para museu. Procuramos salientar aspectos ainda não explorados entre a relação da edificação e a estrutura expográfica e a Coleção de Arte Popular dessa referida instituição, procurando descrever as características do espaço destinado a abrigar o acervo a partir de 1939, os equipamentos e modos expositivos para então chegarmos às considerações finais.
O Museu de Arte Popular é um dos segmentos do Museu Henriqueta Catharino formado por outras duas divisões: a de artes decorativas (Museu Henriqueta Catharino), e a de têxtil (Museu do Traje e do Têxtil, todas resultantes do colecionismo de Henriqueta Catharino. Guiada pela moral cristã, Dona Henriqueta, como chamada, conduziu programas assistencialistas e para a educação e profissionalização de mulheres a partir da década de 1920 na cidade do Salvador, com apoio pleno da Igreja católica e da elite baiana (PASSOS, 1993, 2010). Oficializado como órgão de utilidade pública em 21 de março de 1929, o Instituto Feminino da Bahia (IFB), dedicou-se à educação e desenvolvimento das mulheres. A arte, a música e a poesia sob a influência do Romantismo fizeram parte dos interesses de Dona Henriqueta, assim como viagens à Europa - França em particular - trazendo na bagagem objetos de arte e curiosidades. Além de participar de bazares e leilões, não se furtava a recorrer à empréstimos junto a seu ao círculo de amizades ou doações de famílias abastadas – mulheres na maioria - para complementar as exposições temporárias no IFB (QUEIRÓZ, 2016).
Se o argumento para formar os conjuntos de artes decorativas e indumentárias associava-se à intenção de apresentar para as alunas os costumes das tradicionais elites baianas do passado, o de arte popular justificava-se pela representatividade das culturas nacional e baiana (PASSOS, 1993). Nesse aspecto, e pelo período em que começou a atuar, início dos anos 20, não se descarta a notória expressão identitária nacionalista e regional que condiz, no discurso, com a ideia de Brasil unido das primeiras décadas da República. As elites da Bahia, nesse período, viviam dialéticas tensões simbólicas entre a importância que detivera ao longo do Império, reconhecida pelos talentos e centralidade política, e o esforço em recobrá-las. Reviver o lugar emblemático do passado era fonte de inspiração identitária e, nessa conjuntura geral, o povo, “objeto pedagógico”, carregava a “essência” de um passado ainda cercado pelos poderes totalizantes, a quem interessava presentificá-lo, confirmando o próprio discurso das elites (LEITE, 2012, p. 29-30; grifo nosso).
Em relação ao colecionismo do popular, quer de particulares quer do Estado[2], ajudava a sedimentar a defesa de tradições e, simultaneamente, impulsionava a sua legitimação (SANTOS, 2013). A despeito da argumentação do IFB em tom preservacionista das tradições das elites ou do popular, consideramos que Henriqueta Catharino foi movida por dois movimentos complementares: de um lado pela filosofia de vida caritativa determinada a ajudar o próximo e daí o adquirir ou ganhar artefatos populares e, por outro, pela paixão colecionista (CERÁVOLO, 2020).
Pensando-se na perspectiva material e expográfica, é preciso ter em mente que, longe de simples apresentação, ali estão reunidos conceitos propositivos, discursos, narrativas, preservação de referências (políticas, históricas, de dinâmicas culturais e patrimoniais), formulando espaço de manejo ideológico e inclusive a afirmação de valores morais (CUNHA, 2006). Compreender o universo ideológico e a conjuntura social dos quais colecionadora fez parte, ajuda a entender as exposições que, sob determinado ângulo, a revelam e à certa mentalidade da sua época. Com esses traços, seguimos adiante para refletir sobre a exposição do Museu de Arte Popular do IFB, abordando características da edificação para situar o espaço no qual ficou alojado e perceber a exposição em relação ao conjunto do qual faz parte.
Museus são conhecidos, acima de tudo, pelas salas de exposições. Segundo os autores de Conceitos-Chave em Museologia (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013), a palavra exposição remete à ação ou ao conjunto do que é exposto, mais o lugar (o espaço propriamente dito) no qual aquele agregado está dado a ver para visitantes. Seguindo o verbete, mas, procurando interpretá-lo, o espaço expositivo pretende proporcionar ao visitante a vivência sensível advinda da experiência individual, ao tempo em que mobiliza graus de interações sociais e culturais (sujeito/objeto; sujeito/assunto; sujeito/sujeito e assim por diante), perfazendo um composto aberto de relações interativas. As coisas, originais ou não, colocadas em vitrines, elementos de separação, ou mesmo sem esses aparatos, como que operam entre dois universos: o material, concreto, e o imaginário e imaginado. Nessa linha, continuam os autores do verbete, uma vez que a realidade não pode ser transferida para um museu, a exposição que ali acontece leva o sujeito a recorrer a analogias em dinâmico processo semiológico de comunicação. Vale adicionar que, a nosso ver, o Museu faz lembrar ainda que seletivamente os
elementos da cultura, costumes, crenças, valores, hábitos, pessoas, grupos e acontecimentos ajudando na definição de quais elementos identificam e diferenciam os grupos e suas práticas sociais, relacionando determinados objetos a imagens sociais de grupos sociais, inventando tradições. Pode ser elemento através do qual imagens e objetos, fabricam uma imagem “ideal” da realidade e suas dimensões. Por outro lado, museus também podem promover os esquecimentos, na medida em que, ao selecionar determinados elementos para compor o quadro das referências, deixa uma grande quantidade de outros elementos de fora de suas coleções e alheios a seus significados. (CUNHA, 2006, p.15)
Segundo Bernard Deloche, ao discorrer sobre as mitologias e o plano semiológico que cercam os museus, organismos culturais que se reapropriam do simbólico naturalizando sistemas de valores, os “expôts” - todo objeto suscetível de ser exposto –– na condição de signos, assumem a posição de “unidades discretas”, indissociáveis umas das outras, formando os elementos componentes de uma espécie de frase mais ou menos elaborada (nível denotativo), aproveitados na exposição (o texto) como “dispositivo[s] de comunicação e produção de sentido” operando no nível retórico (conotação), perspectiva analítica que faz a equivalência entre exposição e discurso (DELOCHE, 2010, p. 22-41). Vale ressaltar que, na condição de texto, as exposições são construídas com elementos diversos e sinais distintivos, além da composição de ritmo, a de gramática e sintaxe que, ao se articularem, permitem perceber “ênfases, proposições, metáforas” em leitura não uniforme na dependência do grau e nível de interação de cada indivíduo com o tema e os elementos que se apresentam (CUNHA, 2010, p.110).
Outra ponderação de Deloche (2010) de interesse para o assunto aqui tratado, diz respeito à ucronia (uchronie), algo intrínseco aos museus, referindo-se à história apócrifa, atemporal, colocada a serviço da ideologia com força para realizar a adesão dos membros de um grupo, assim e ao mesmo tempo, dando corpo a ideias e convicções às quais estão inerentemente unidos. Ao que se conclui que museus e exposições em museus tendem a transformar conteúdos em impulso performativo - que se pode dizer estruturante – para direcionar modos de ver o mundo (quando não em dogmas e regras).
Após essas breves considerações sobre o ato de expor que ajudam a demarcar nossa perspectiva sobre a abordagem expográfica, considerada como arranjo, voltamos ao Museu de Arte Popular e sua sede.
Antes de 1939, ano de inauguração da sede na qual o museu se encontra até hoje alojado, Henriqueta Catharino e o Monsenhor Flaviano Osório Pimentel[3], criaram a Casa São Vicente, em 1923, no Terreiro de Jesus (Praça 15 de Novembro, Centro Histórico) e, dentre os serviços programados[4], a Escola Comercial Feminina para a formação profissional e moral no escopo da educação católica. Em 1924 foi transferida para imóvel herdado na Praça da Piedade; em 1928 para a Avenida Sete de Setembro (no. 215, nas proximidades do Rosário)[5]. No ano seguinte, já como Instituto Feminino da Bahia, foi reconhecido de utilidade pública, como assinalado anteriormente[6] e, depois, Fundação Instituto Feminino da Bahia em 1950 (PASSOS, 2010). As sucessivas mudanças de imóvel sinalizam para a ampliação e consolidação dos projetos assistencialistas e educativos que funcionavam em paralelo, requerendo, cada vez mais, espaços maiores de acomodação e, consequentemente, adaptação às instalações. Acomodações que, para o presente foco analítico, dizem respeito às coleções que se ampliavam no trajeto. Exemplo do uso sobreposto de espaços se tem na imagem fotográfica da edição especial do O Imparcial (1934), em que podemos observar móveis repletos de objetos e servindo de aparador para outros tantos, bem como nas paredes[7]. Na legenda, constata-se a junção do gabinete de ciências físicas e naturais e museu em uma mesma sala (Figura 1).
Nota: “Aspectos do Gabinete de sicencias physicas e naturais da Escola Commercial Feminina (Sala d. Bosco e do Museu)” O Imparcial – Edição Especial, 1934. Álbum Recordando, IFB[8]. Observar no primeiro plano, várias banquetas, provavelmente para aulas e duas pequenas mesas.
Fonte: Jornal O Imparcial (1934).Os projetos de Henriqueta Catharino se expandiram e, com herança recebida, ela investiu na construção da sede própria iniciada em 1937 e finalizada em 1939, com 5mil m2 de área construída (PEIXOTO, 2003), com aspecto de “solar de família” (PASSOS, 1993, p. 27). Edifício de “linhas severas” seguindo “[...] rigorosas condições hygienicas de cubagem, claridade etc [...]” (Figura 2), começou a funcionar abrigando cursos profissionalizantes antes mesmo de findar os detalhes, como informado em jornal da época, ao divulgar que “Embora não innaugurado oficialmente já está funccionando no seu novo edifício o Instituto Feminino”[9] (JORNAL A TARDE, 1939, não paginada).
Na sede planejada estava prevista a “Sala Museu” assim denominada por Henriqueta Catharino, com 120 m2, instalada no mesmo piso das salas de aula, e a capela (PEIXOTO, 2003, p. 11)[10], guarnecida com vitrines e mostruários (PASSOS, 1993). Há uma ressalva: apesar de existir uma sala para museu, Ana Lucia U. Peixoto informa que, toda a instituição era decorada com “móveis, porcelanas, biscuits, opalinas” (PEIXOTO, 2003, p. 11), dentre outros objetos de arte decorativa, o que demarca a “ocupação esmerada” a que se refere Elizete Silva Passos (1993, p. 27), com peças em uso e ou decoração que se destacam aos olhos de qualquer visitante, sendo, ainda hoje, a ambiência interna ao prédio. Além disso, identifica-se a criação de uma segunda sala de exposição (no mesmo pavimento), aberta em 1940 por Henriqueta Catharino para expor a coleção de roupas, guarnecida com vitrines e mostruários apropriados, encomendados em firma especializada (PEIXOTO, 2003).
A notar que, a escolha de lugar, espaço e recursos expositivos – mobiliário, iluminação, acervo e outras variáveis – ultrapassam o acaso. Ao contrário, em se pensando na estrutura expográfica são vetores fundantes e mecanismos articuladores do discurso constituído por uma instituição, refletidos em projeções para os visitantes (CUNHA, 2006).
O espaço impõe uma lógica: a do seu próprio sentido arquitetônico, que se aplica a grandes estruturas arquitetônicas ou, igualmente, nas construções que passam despercebidas, pois marcadas por determinadas linguagens formadoras do “discurso do arranjo espacial” (COELHO NETTO, 1999, p. 11), mas cujo sentido pode ser modificado, ou seja, semantizado ou dessemantizado. Abordagem que pode ser realizada articulando nexos entre o espaço interior e o exterior, o privado e o comum, o construído e não construído, artificial e natural, amplo ou restrito, vertical ou horizontal, geométrico ou não, ainda na análise desse mesmo autor e obra. Em se pensando na comunicação os objetos, no caso dos museus em que vão integrar determinado espaço, este, por seu turno, os redefine em vínculos indissociáveis e solidários, fator que altera o fluxo dos sentidos (DOHMAN, 2013).
Justamente por considerar esses vetores para análise do espaço versus estrutura expográfica se destaca a localização das exposições dos museus do IFB, em diferentes pavimentos (no 1º. o Museu Henriqueta Catharino; no 2º. o do Traje e do Têxtil, no subsolo, o de Arte Popular), pois modelam a própria ambiência para a fruição dos objetos e criam microcosmos no interior mesmo da instituição, influenciados pelo valor simbólico que pode ser atribuído a cada um desses pavimentos.
O edifício do IFB na análise da arquiteta Mariella Araújo de Souza foi construído, em termos estruturais, em concreto armado[11], condizente com a “política tradicionalista [do Estado da Bahia]” (SOUZA, 2017, p. 118-127), de acordo com o movimento neocolonial de inspiração portuguesa das décadas de 1920-1940 e o pensar elitista burguês da época. A imponente fachada do edifício marcou fortemente a existência do IFB na cidade do Salvador e serviu, durante anos seguidos, como ilustração para as muitas reportagens publicadas em jornais chamando atenção ora para o Museu de Arte Feminina[12], ora para cerimônias, exposições e festejos ali realizados, mesmo passados 25 anos de atividades[13].
Dos cinco pavimentos (térreo, 1º, 2º. 3º e 4º)[14], o definido como térreo (Figura 3) em planta baixa (de 1956) era ocupado pelas “áreas de esporte e lazer”, com acesso pelo lado posterior (SOUZA, 2017, p.128-129)[15].
Nesse pavimento, em parte da área construída foi instalado o Museu de Arte Popular (e ali continua), e a mostra do acervo entre os vãos livres delimitados por vigas e pilares de concreto (Figura 4), ocupando ampla área do pavimento[16], igualmente compartimentado em salas de funções definidas, tal como nos outros andares[17]. A piscina, depois esvaziada, servia para aulas de natação das alunas, preparando-as para competições[18], em época em que a concepção de lazer para o IFB associava-se aos imperativos da formação moral católica em uma cidade do Salvador que vivia - no pano de fundo e em relação às mulheres - a tensão entre o tradicional e o novo (PASSOS, 1993).
Nota: Primeiro plano as vigas e pilares; em segundo plano a piscina vazia, ladeada por corredores e a área coberta ao fundo ocupada por expositores. Observar à direita a prolongada estante envidraçada com a parte superior também servindo de expositor.
Fonte: Souza (2017, p. 139).Com acesso interno através de escadas e pouca iluminação e aeração natural, a área destinada para essa exposição foi equipada com suportes expositivos de diferentes feitios, dimensões e qualidade do material. Há estantes e algumas prateleiras alinhadas às paredes, possivelmente executadas sob medida, e nichos inclusos na alvenaria. Outros são móveis (em madeira) reaproveitados como expositores: cristaleiras, étagères[19], aparadores, bases, cavaletes, banquetas. Junto às paredes, refletem o aproveitamento do espaço disponível ou quando em separado ressaltam a peça que se pretendia apresentar. Há expositores que parecem encomendados, como o mobiliário de dupla face envidraçada possibilitando a visão de todos os ângulos, e réplicas em madeira idênticas à do Museu de Arte Popular de Portugal (Figuras 5 a 9). Salvo alguma mudança ao longo do tempo infere-se que se mantenha o mesmo ordenamento até hoje.
Para a produção do mobiliário expositivo de alto custo e equipar o Museu no subsolo, cuja condição provisória era sinalizada em documentos, foi preciso contar com apoio externo assim registrado em documento posterior[22], para que chegasse a ter autonomia e melhores instalações conforme texto de Marieta Alves[23], expectativa declarada no opúsculo Museu de Arte Popular de 1957 preparado para o III Congresso Nacional de Folclore em 1957.
A ambientação da “cozinha de casa de família” (Figura 10) com a “nega” em pano e tamanho natural (Figura 11) tornou-se atração da exposição. Não é o caso aqui de analisar implicações e significados da representação de homens e mulheres negras em exposições museológicas[24], todavia, a figura em pano, reiteradamente fotografada ou citada nos jornais ao se referirem ao Museu de Arte Popular, compõe o diorama representando o lugar para cozimento de alimentos em fogão a lenha e utensílios - pilões, tachos de ferro ou cobre, abanos, peneiras e outras cestarias[25].
O acervo do Museu de Arte Popular do IFB tornou-se requisitado e endereço certo para eventos como congressos, que estreitavam a rede de interesses e relações, ou semanas comemorativas do folclore. Henriqueta Catharino, reconhecida pelos serviços prestados à cultura, artes e “letras pátrias” da Bahia, integrou a Comissão Bahiana de Folclore (1951)[26]. Em 1955, acontecia em Salvador o III Congresso Nacional de Turismo, e no IFB a “Grande mostra de arte popular”[27], preparada em seções, teve “a Baiana” adornada com roupas, joias e panos da Costa[28]. Outro evento que requisitou a visita ao Museu foi o III Congresso Brasileiro de Folclore (1957)[29], oportunidade para a reunião de folcloristas que tiveram em Renato Almeida, via Itamaraty, a personalidade que lutou pela legitimação do Folclore (e folcloristas) na condição de área de estudos no Brasil, marginalizada nas Ciências Sociais, tema de debates nos anos 1940 e década seguinte (VILHENA, 1997)[30]. Renato Almeida foi autor de longo e elogiadíssimo texto sobre o Museu – e o trabalho de Henriqueta Catharino -, publicado anos antes (1954) no Diário da Bahia[31], cuja ênfase no popular, equivalente ao tradicional, opera no discurso como contraponto às perdas ocasionadas pela modernização. Tem-se aí um provável ponto de contato entre o IFB e os folcloristas.
Com efeito, as ‘baianas’ e incluso os Orixás se transformaram em ícones da Bahia[32], fortalecendo o tripé – tradição, cultura popular e autenticidade cultural – confluído nos enunciados sobre a preservação do patrimônio cultural baiano[33], ao tempo em que integrava representações artísticas atestando supostas características da cultura baiana[34], bem como na literatura (como o fez Jorge Amado), ou em guias turísticos da Bahia dos anos 1950[35], em paradoxal contraste que, de um lado, valorizava as manifestações da população negra e, por outro, as marginalizava (ROMO, 2018)[36]. Nesse aspecto, a representação folclórica de modo geral carregava a tradição para alicerçar a “estrutura da sociedade brasileira” e, desta maneira, formar a “mentalidade turística” despercebida no Brasil (TOURINHO, 1961, p. 69, grifo nosso)[37].
Se para considerações sobre o espaço e a estrutura expográfica conta-se com certa trajetória cronológica relativamente definida (de 1923 a 1939) e, por isso mesmo, mais visível, sobre a formação da coleção de artefatos do popular e do próprio Museu, conta-se com indícios contraditórios, sendo necessário aprofundar as investigações para a solução de questões. Ainda assim, apresentamos, a seguir, algumas questões iniciais.
4 A Coleção de Arte Popular no IFB
Sobre a formação da coleção têm-se indicações com anos de distanciamento em décadas distintas. Desde um vago “há muitos anos”, em notícia informando que Henriqueta Catharino adquiria “material para um Museu de Arte Popular”[38] (ARQUIVO IFB, [19--]) a anos específicos: 1926 e 1929, em documento enviado à Bahiatursa (1974), com a significativa informação que o IFB recebera naquele ano peças do candomblé doadas por um delegado da polícia (Dr. Tancredo Teixeira), formando o “primeiro Museu de Arte Popular da Bahia”[39] (ARQUIVO IFB, 1974); 1931 (por informação contida no site), e a notícia da inauguração do Museu anunciada em 1957, quando do III Congresso de Folclore na cidade do Salvador (Figura 12)[40].
Nota: “No Instituto Feminino da Bahia, o prof. Fernando São Paulo [sic] fala na inauguração do Museu de Arte Popular – A Tarde, 04 jul. 1957.”
Fonte: A Tarde (1957).Em estudo recente concluímos que a constituição da coleção de artefatos populares se deu paulatinamente mesclando trabalhos manuais resultantes dos projetos assistencialistas, apresentados em mostras temporárias (para venda em bazares realizados pela Associação de Senhoras Brasileiras, no Rio de Janeiro)[41], com trabalhos de outras artesãs (ou artesãos) não vinculados diretamente aos projetos, porém representativos da artesania regional. Caso, por exemplo, de pequenas esculturas executadas por duas irmãs (Ana e Olegária de Almeida) da região de Jacuípe (litoral norte da cidade do Salvador), caracterizadas, por Marieta Alves, a primeira secretária de Henriqueta Catharino no IFB[42], como “tipicamente populares”[43]. A conhecida benemerência de Henriqueta, sua obra e o círculo social do qual participava - e contava, para desenvolver os projetos - não descarta a probabilidade de que ela mesma comprasse trabalhos artesanais motivada pela ajuda caritativa ou dar incentivo além de possíveis presentes ou ainda pelo próprio gosto (CERÁVOLO, 2020).
O deslocamento paulatino dos artefatos do popular dos bazares para alcançar a autonomia do acervo e do Museu atesta-se, nitidamente, no referido texto de Marieta Alves (1957), não obstante parta do Museu de Arte Antiga, criado para conservar “o que fez ou possuiu a mulher bahiana no passado” (ALVES, 1957, não paginada). O texto transmite a intenção em marcar a formação do acervo do popular anterior ao movimento dos folcloristas, no entanto, é importante salientar a diferença expressiva que não diz respeito a uma data ou outra mas, sim, às intenções: para os folcloristas tratava-se de coleta em campo para pesquisas[44]. Marieta Alves interpreta como “evolução” um inicial “Museu Miscelânia” em que havia de tudo, incluso peças de arte popular, de valor para os fundadores do Instituto. O relato pautado em notícias de jornais, procura enfatizar a legitimidade do cunho regional dos ancestrais baianos e o pitoresco e original (grifos da autora) que, ao migrar para a condição de documento historiográfico do IFB, agrupa dados valiosos sobre o gerar da coleção, os locais e as titulações atribuídas ao Museu trazendo indicações sobre o acervo e equipamentos expográficos.
Sobre o gerar da coleção tem-se a doação, pelas mãos do Monsenhor Flaviano Osório Pimentel, com quem Henriqueta Catarino iniciou os trabalhos assistencialistas, de:
[...] quadros, trabalhos mimosos de conchas e pedras preciosas, adornos e objetos de fantasia, espécimes da fauna, apresentação multiforme da flora, a célebre rêde que servira ao vigoroso escritor Euclides da Cunha, e muitos mostruários praticamente elaborados, no conjunto e disposições elogiáveis [...] (O IMPARCIAL, 1938, não paginada)
Ao Monsenhor Flaviano é atribuída a criação do Museu Regional (no prédio do Rosário, no. 215)[45], mas, no mesmo documento tem-se, ao passar do tempo, Museu Popular e Museu de Arte Popular. Quanto aos locais anteriores ao prédio de 1939, diz da inadequação além de agrupar, que se entende por acumular, das peças em vitrines. Sobre o acervo, no mesmo ano da mudança para a sede de 1939, o informe de mais uma exposição de prendas femininas para a “grande exposição das Senhoras Brasileiras” (grifo nosso) e o retorno dos trabalhos das irmãs Ana e Olegária de Almeida (bonecas, caixinhas e animais), observando-se que não se sabe se ocorreu na sede nova ou em endereço anterior. O problema do arranjo provisório das peças de arte popular no subsolo encontrou apoio e auxilio no Ministro da Educação Simões Filho[46], quando do III Congresso de Folclore; antes o IFB não pudera resolver por dificuldades materiais[47].
Na sede de 1939, a exposição do popular no IFB se instalou definitivamente no subsolo. Todavia, o noticiário nem sempre ajuda a entender se as exposições temporárias ocorriam também no espaço do Museu (lembrando a sala criada em 1940 por Henriqueta no primeiro andar, mobiliada para a exposição de têxteis e até os dias de hoje destinada às mostras temporárias). Ao festejar os 50 anos de atividades ocorreram em paralelo “exposições de arte no museu da Fundação” apresentando o manto e saia da Princesa Isabel[48], e a popular de “cunho inédito” produzida e executada pela artista Waldete Cristina, com cenários pintados e as ordens religiosas em pano[49], em esclarecedora noticia sobre a angulação religiosa católica do popular no IFB.
O quantitativo de artefatos da coleção do popular é desconhecido[50]. A folclorista Hildegardes Vianna fala em mais de 2 mil peças[51]. Segundo o documento da Bahiatursa (1974), anteriormente citado, o museu
[...] praticamente abrange todas as manifestações dos artistas obscuros que fixaram vezes genialmente, os ritos africanos, as danças, a cerâmica, redes e instrumentos, bonecas, trabalhos com os mais variados materiais como: conhas, cavacos, sementes, piaçava, pele de ovo, pão, penas, pano, lata, etc. Possui também 2 peças originais: um tear onde se fabricam panos da costa e um torno de oleiro e mais carranca de São Francisco, Jangada, etc. A cerâmica popular de várias regiões brasileiras, notadamente a baiana, são ponto alto, além dos trançados, tecelagem, esculturas, objetos de couro, chifes, etc. (BAHIATURSA, 1974, não paginada)
O documento menciona a cozinha com “preta velha com típica indumentária”; “farto material de candomblé”, artesanato indígena; artefatos de pesca” e, em separado, a coleção de ciências naturais para auxiliar as aulas práticas[52].
No que diz respeito ao tear, peça doada em 1955 por Abdias do Nascimento Nobre (Figura 13), destaca-se uma situação singular. Mestre Abdias (Salvador, 1910-1990), considerado o último representante da linhagem de artesãos produtores do pano da costa ou alaká, dedicado ao ensino da sua arte, instrutor em cursos de formação (impedindo o desaparecimento do ofício), mesmo após a doação continuou a usar o tear em exposição no Museu[53], o que de certa forma comprova a dinâmica deste acervo (ou outros), em evidente demonstrativo das forças mobilizadoras que operam em museus.
Fato é que de acordo com Marijara Queiróz, até 2011 a coleção de arte popular não estava inventariada (QUEIRÓZ, 2016), embora elemento fundamental de registro museológico e para pesquisas internas ou externas. Pautados pelo que se vê na exposição do acervo do popular do IFB - e as figuras (5, 6 e 7) o demonstram - trata-se de coleção volumosa em quantidade, rica em peças de artesãos que se tornaram conhecidos ou não, mas, nem por isso de menor expressão, e eclética nos materiais e diferentes temporalidades o que reforça, a nosso ver, a importância para o patrimônio cultural da Bahia no mais amplo sentido. Dito de outro modo, sob essas características o que se tem são camadas de historiografia que ultrapassam a do próprio IFB, ainda a serem pesquisadas.
Do que foi possível averiguar nas fontes consultadas, referenciadas ao longo do texto, a expansão dos projetos de Henriqueta Catharino resultou na construção de edificação própria para abrigar a sede do Instituto Feminino da Bahia, cujo subsolo abrigou a coleção de artefatos do popular amealhada ao longo dos anos e que ali se mantém até os dias atuais. Ao que tudo indica, não houve mudanças radicais nos equipamentos expositivos quer os projetados quer os adaptados. A coleção propriamente dita se caracteriza pela diversidade eclética de materiais, formas e expressões do popular nacional ou do exterior. Pouco comentamos sobre o arranjo dos artefatos que entendemos linear e a-histórico, ou seja, atemporal (relativo portanto à dimensão da ucronia a que nos referimos anteriormente), sequenciado em temas formando núcleos (cenas do cotidiano e esculturas em argila; bonecas de pano; cerâmica de uso doméstico; cestaria citando exemplos), justamente pela impossibilidade de re-visitar, neste momento, a exposição.
A finalização abrupta das considerações relativas à Coleção de arte popular, melhor dizendo, da cultura popular no IFB, com informação relativa ao diorama ainda existente no Museu, não é fruto da limitação de espaço para a escrita, contingenciada pelas normas necessárias relativas à publicação; certamente, um limite que sempre circunscreve os resultados da edição textual. Mas, no caso específico deste ensaio, a questão necessária para remarcar é o fato de que ainda há muito a ser prospectado, analisado, registrado sobre esse museu, sua história, acervos, práticas e importância.
Como museólogos e pesquisadores com formação em história, acreditamos que tal incompletude – de dados, evidências, documentos e assertivas - acaba sendo um caráter, na maioria das vezes, inerente a todos os fenômenos e fatos que investigamos. Assim, a situação não deve ser tomada como desestímulo ou barreira para que não sigamos em frente no objetivo de desvendar memórias e narrativas institucionais. Pelo contrário, favorece constituir-se como desafio a ser enfrentado com o fim de ampliar o entendimento sobre aquilo que estamos investigando provocados por nossas inquietações epistêmicas e, igualmente, pelo reconhecimento da necessidade de trazer a público fatos e questões que repousam no esquecimento, apesar da sua importância.
Ainda que marcado pela certeza de que muito ainda há a refletir, a partir do que já conseguimos apreender e, principalmente, pelas lacunas, a intenção é a de que o escrito seja canal para o estabelecimento de diálogos com outros pesquisadores e com a própria instituição visando ampliar os resultados de projetos similares, voltados para a construção do panorama sobre a história de instituições museológicas no Brasil.
Por fim, ressaltamos que as reflexões aqui registradas são fruto de pesquisa realizada ao longo de anos, com interrupções que são comuns em processos de investigação, e só foram possíveis pelo acolhimento institucional, por recursos que permitiram a participação de bolsistas de iniciação científica e pelas redes e diálogos com outros investigadores.
marcelo.bernardodacunha.cunha@gmail.com
sumocem@gmail.com
Nota: “Aspectos do Gabinete de sicencias physicas e naturais da Escola Commercial Feminina (Sala d. Bosco e do Museu)” O Imparcial – Edição Especial, 1934. Álbum Recordando, IFB[8]. Observar no primeiro plano, várias banquetas, provavelmente para aulas e duas pequenas mesas.
Fonte: Jornal O Imparcial (1934).Nota: Primeiro plano as vigas e pilares; em segundo plano a piscina vazia, ladeada por corredores e a área coberta ao fundo ocupada por expositores. Observar à direita a prolongada estante envidraçada com a parte superior também servindo de expositor.
Fonte: Souza (2017, p. 139).Nota: “No Instituto Feminino da Bahia, o prof. Fernando São Paulo [sic] fala na inauguração do Museu de Arte Popular – A Tarde, 04 jul. 1957.”
Fonte: A Tarde (1957).