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Traços identitários e memorialísticos materializados na fotografia de Ivo Tavares da periferia de Salvador, Bahia
Identity and memorialistic traces materialized in the photograph by Ivo Tavares of the outskirts of Salvador-BA
Em Questão, vol. 28, núm. 1, pp. 353-379, 2022
Universidade Federal do Rio Grande do Sul



Recepción: 25 Mayo 2021

Aprobación: 20 Agosto 2021

DOI: https://doi.org/10.19132/1808-5245281.353-379

Resumo: O estudo teve como objetivo evidenciar os traços identitários e memorialísticos materializados na fotografia de Ivo Tavares, que demonstram uma ressignificação da periferia de Salvador, Bahia. Quanto ao delineamento metodológico, a pesquisa se configura como qualitativa e descritiva, associada aos métodos documental e indiciário, os quais possibilitaram identificar vestígios presentes na fotografia de Ivo Tavares que estão disponíveis por meio do perfil no instagram desse fotógrafo. Para ampliar as possibilidades investigativas e interpretativas, aplicou-se questionário com perguntas abertas direcionadas ao fotógrafo. Com base nos resultados alcançados, pode-se afirmar que a fotografia produzida por Ivo Tavares é um documento que materializa informações que tanto desmitificam o conceito de periferia quanto favorecem a produção de novas informações sobre as práticas socioculturais dos sujeitos que integram esse lugar, que podem se sentir representados nesse documento, que materializa traços de memória e identidade. Concluiu-se que o sujeito também constitui sua identidade e sua memória na materialização e na produção de documentos, que se perpetuam para além do seu tempo e espaço geográfico. Assim, o documento possibilita que o sujeito registre o que para ele é representativo, tanto em sua individualidade quanto na coletividade.

Palavras-chave: Documento, Fotografia - Ivo Tavares, Memória, Identidade, Periferia.

Abstract: The study is aimed to evidence the identity and memorialistic traces materialized in the photograph of Ivo Tavares, which demonstrate a resignification of the outskirts of Salvador – BA. In relation to the methodological procedures, the research is configured as qualitative and descriptive, associated to evidential paradigm and document method, which enable to identify vestiges in the photograph of Ivo Tavares that are available by means of his Instagram account. In order to expand investigative and interpretative possibilities, it was applied a questionnaire with open-ended questions directed to the photographer. Based on the reached results, it can be affirmed that the photograph produced by Ivo Tavares is a document which materializes information that both demystifies the concept of periphery and favors the production of new information about the sociocultural practices of subjects that integrate this place, who can feel represented in this document that materializes traces of identity and memory. It is concluded that the subject also constitutes his identity and memory in the materialization and production of documents, which are perpetuated for beyond their time and geographic space. This way, the document enables that the subject record what is representative for him, both in his individuality and in the collectivity.

Keywords: Document, Photograph - Ivo Tavares, Memory, Identity, Outskirts.

1 Introdução

O sujeito, ao produzir informações e documentos, pode revelar uma percepção consciente dos anseios e dos desejos de refletir e perpetuar traços de memória e identidade que são representativos de seu povo e de seu lugar de fala. Tais documentos podem ser considerados dispositivos de memória, quando os sujeitos se reconhecem neles, ou seja, são representativos e carregam um valor simbólico, que estará alinhado à identidade de seus produtores. Assim, a fotografia, por representar uma seleção de fatos, lugares e ações de sujeitos e/ou grupos sociais, pode ser reconhecida como um documento que materializa vestígios de memória.

A fotografia pode cristalizar aspectos que o produtor deseja que sejam rememorados como também registra e informa vestígios de memória e identidade em perspectivas individuais e coletivas. Nesse sentido, pode descortinar os contextos socioculturais de seus produtores, por isso, constitui-se um dispositivo de poder ao ser selecionado para representar discursos tensionais. Nesse sentido, o trabalho de Ivo Tavares pode ser entendido como uma busca, por meio de uma ação consciente, de um “novo do olhar” para a periferia de Salvador, em uma ampliação e modificação de perspectivas em que se vislumbram os traços socioculturais e os vestígios de identidade e memória dos indivíduos e dos grupos sociais desse lugar.

Ivo Tavares é um fotógrafo soteropolitano, que reside na periferia de Salvador, Bahia, e busca, por meio da fotografia, revelar aspectos invisibilizados de bairros periféricos da cidade e do povo que vive nesse território. Ele utiliza o Instagram, desde 2014, como uma ferramenta de comunicação e disseminação de suas fotografias. Seu perfil tem 5.082 seguidores, com 361 publicações. Esses dados são referentes ao primeiro semestre de 2021.

Assim, considerando o exposto, o estudo teve o objetivo de evidenciar os traços identitários e memorialísticos materializados na fotografia de Ivo Tavares, os quais demonstram uma ressignificação da periferia de Salvador, Bahia (BA). Nessa perspectiva, o estudo foi fundamentado em autores como Halbwachs (2006) e Le Goff (2013), que versam sobre memória; Pollak (1992) e Candau (2013), que tratam de identidade e de memória; e Cox (2017) e Kossoy (2007), que abordam a fotografia como um dispositivo de memória.

Quanto ao delineamento metodológico, a pesquisa se configura como descritiva e usou os métodos documental e indiciário, por meio dos quais foi possível investigar vestígios presentes na fotografia de Ivo Tavares. Em consonância com os métodos, também foi aplicado questionário com o fotógrafo composto de perguntas abertas. A respeito da análise dos resultados, foi adotada a abordagem qualitativa.

Os resultados deste estudo indicaram que o contexto social influencia a formação identitária do sujeito por meio de uma interferência mútua. Esse processo produz vestígios de memória e de representação de traços identitários, tal qual foram identificados na produção fotográfica de Ivo Tavares, que conduz à afirmação de que a fotografia pode ser entendida como um dispositivo de memória.

2 Traços identitários e memorialísticos cristalizados na fotografia

O contexto social desperta no sujeito um sentimento de pertença que pode ser acionado a partir da produção de sentido sobre os diversos dispositivos que constroem e implicam uma leitura que o sujeito pode fazer de si mesmo. As práticas socioculturais desenvolvidas no meio são determinantes para a constituição dos sujeitos e sua visão sobre si mesmo e sobre o mundo. Nesse contexto, os diferentes lugares geográficos demonstram suas belezas e os problemas sociopolíticos que interferem na tomada de posição, de enfrentamento e de visão crítica do mundo por parte dos sujeitos sociais, e de silenciamento, de instabilidade e rejeição. Esses sentimentos e sentidos produzidos constituem, consciente ou inconscientemente, a identidade e a memória que o sujeito desenvolve e preserva ao longo da vida.

De acordo com Candau (2013, p. 142), a constituição identitária é uma condição necessária para indivíduos e grupos sociais, pois é ela que “[...] define o nosso ser, modela a forma de nos comportarmos [...]”. É por esse meio que se estabelecem os traços representativos dos sujeitos, seus costumes, suas percepções de mundo, suas tradições, suas crenças etc. Nessa dinâmica sociocultural, o sujeito demonstra uma necessidade de compartilhar informações, seja por meio das narrativas ou da materialização em dispositivos, que possibilitam reconhecer sua existência e suas práticas socioculturais, de modo que suas contribuições e memórias não sejam silenciadas ou apagadas no tempo. Nesse processo, os sujeitos constituem memórias e compartilham-nas, com o intuito de fortalecer aspectos que antes eram individuais e que, ao serem socializados, outros sujeitos podem se reconhecer. Dessa feita, tais aspectos tornam-se representativos e aceitos pela coletividade.

Segundo Dodebei (1997, p. 44), “[...] como o homem habita o espaço cultural que ele próprio cria e transforma continuamente, ele necessita utilizar o passado como marco referencial e autoidentificador.” Esse marco referencial indica a atribuição de valores simbólicos aos artefatos tangíveis e intangíveis no reconhecimento e no fortalecimento de aspectos socioculturais e é relevante para identificar o ‘diferente’, visando a uma consciência que opera no movimento de ampliar e de modificar os traços socioculturais. Assim ocorre, por exemplo, com as movências nas celebrações, nas tradições e nos costumes.

Sobre o entrelaçamento da memória e da identidade, Candau (2013) assevera:

[...] não pode haver memória sem identidade, porque a conexão dos estados sucessivos que o sujeito conhece é impossível se esse não tem consciência a priori de que esse encadeamento de sequências temporais pode ter uma significação. (CANDAU, 2013, p. 143).

A concepção do autor reforça que a memória é determinada de maneira significativa pela identidade, a qual está associada à forma como o sujeito interage com os elementos culturais de seu meio e ao sentido que ele confere a esses elementos e como julga o que deve ser preservado ou silenciado. O acesso e a apropriação dos dispositivos de memória possibilitam que o sujeito conheça o passado para compreender o presente e projetar o futuro.

A memória também se desenvolve na individualidade e no coletivo reciprocamente, pois, como afirma Halbwachs (2006, p. 30), “[...] jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos por nós, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de pessoas que não se confundem [...]” Durante sua existência, o sujeito pode sentir necessidade de reconhecer traços identitários em sua ancestralidade, visto que esses traços o caracterizam. Entretanto, mais do que as relações consanguíneas que o sujeito carrega, ele traz na voz (no sotaque, na expressão de acolhimento ou de intimidação), na pele (cor ou marcas/cicatrizes) e nas condutas (ideológica, política e de crença) um referencial que o entrelaça e o distingue na forma de ver e de ser visto pelo outro. Nesse viés, o sujeito não age de maneira isolada, pois suas práticas, sua visão de mundo, sua postura sociocultural e suas crenças são carregadas de significação. Halbwachs (2006) afirma que o sujeito jamais está só. É a partir de uma percepção e representação coletiva que ele interfere no meio e leva consigo “certa quantidade de pessoas” que o apoiam na produção e/ou validam os referenciais de memória.

Pollak (1992, p. 212) define a memória como um “[...] elemento constituinte do sentido de identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator extremamente importante do sentido de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si.” O sentido de continuidade e de coerência de uma pessoa, na visão de Pollak (1992), pode ser refletido como uma continuidade das ações que o sujeito desenvolve a partir do que experienciou no meio, com outros sujeitos, e aprendeu sobre seus antepassados, a partir de concepções que tomam como fundamento crenças e costumes de seu povo, ao acreditar em valores correspondentes ao coletivo, portanto, mantendo uma ‘coerência’ com o encadeamento de fatos ocorridos ao longo do tempo histórico. Essa ‘coerência’ é alcançada por meio do acesso e da materialização desses fatos, seja por meio de narrativas orais ou de documentos, que registram vestígios de memória, porque são essenciais para possibilitar o acesso e a apropriação dos elementos constituintes de acontecimentos e de fenômenos relevantes para determinado grupo social.

Jô Gondar (2016), ao abordar as cinco proposições sobre memória social, reflete que ela não se reduz à representação, porquanto “[...] a memória é bem mais do que um conjunto de representações; ela se exerce também numa esfera irrepresentável: no corpo, nas sensações, nos afetos, nas invenções e nas práticas de si.” (GONDAR, 2016, p. 36). Nesse sentido, entende-se que a memória vai além da materialidade que a representa, porque também é um processo de atribuição de sentidos e de significados produzidos pelos sujeitos sociais que são afetados por ela.

Ainda de acordo com Jô Gondar (2016), a memória:

[...] deixa de se reduzir aos axiomas da representação e da generalidade abstrata para se articular àquilo que nos afeta, que nos surpreende, que nos permite apostar em um outro campo de possíveis. E se tivéssemos que, em uma palavra, resumir o que na memória não se reduz à representação, diríamos: afeto, ou melhor, forças que nos afetam, e também forças pelas quais afetamos (GONDAR, 2016, p. 37).

Dessa maneira, a memória tanto interfere no processo sensorial, reflexivo e afetivo dos sujeitos quanto se articula com ele. Com base na reflexão de Jô Gondar (2016), pode-se dizer que, na constituição da memória e em sua interferência na formação dos sujeitos sociais, existe um processo simbólico em que os sujeitos - produtores e leitores compreendem a relevância de determinado dispositivo, fato ou fenômeno pelo sentido que o afeta.

Thiesen (2013) considera que a memória é um sistema recuperador de informações, ao afirmar que ela é:

[...] apoiada em diversas superfícies de inscrição (corporal, textual, imagética, celular, digital, rupestre, celeste, etc.) e que produz uma infinidade de documentos, em seu mais amplo sentido, da mesma forma que reproduz informação, conhecimento, dado, memórias. Para dar conta da memória-arquivo foram criadas, na história das grandes civilizações, as instituições-memória – arquivos, bibliotecas e museu. (THIESEN, 2013, p. 80-81).

Retomando a reflexão apresentada anteriormente, a voz pode informar muito sobre o sujeito e sua constituição identitária e memorialista. Por exemplo, quando o ouvinte associa o sotaque do comunicador a determinado território, esse comunicador já não é um sujeito em sua individualidade, mas traz consigo e, ao mesmo tempo, informa sobre dado espaço geográfico. Outro exemplo é quando se tem acesso a uma fotografia que pode evocar no sujeito lembranças de momentos vivenciados ao possibilitar a atribuição de sentido que levará o sujeito a se sentir representado naquele dispositivo. Nesse aspecto, tomando a reflexão apresentada por Thiesen (2013), a memória favorece a apropriação da informação por meio do documento e da associação com outras memórias que possibilitam a atribuição de sentidos e a produção de novos saberes e memórias.

Para Dodebei (1997), documento é:

[...] uma representação, um signo, isto é, uma abstração temporária e circunstancial do objeto natural ou acidental, constituído de essência (forma ou forma/conteúdo intelectual), selecionado do universo social para testemunhar uma ação cultural. (DODEBEI, 1997, p. 174-175).

Ele registra informações individuais e/ou coletivas que descortinam os contextos socioculturais de seus produtores, por isso é um dispositivo de poder ao ser selecionado para representar discursos tensionais.

Em conformidade com Le Goff (2013, p. 497), o documento "[...] é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, ensinamento [...] que ele traz devem ser em primeiro lugar analisados, desmistificando-lhe o seu significado aparente." A partir dessa reflexão, entende-se que o documento pode apresentar informações que decorrem da atividade que gerou sua produção, quando registra indícios do contexto sociocultural, econômico e político de seus produtores.

Nessa vertente, o documento pode ser reconhecido como um monumento que resulta "[...] do esforço das sociedades históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada imagem de si próprias [...]" (LE GOFF, 2013, p. 497). Os documentos podem revelar o contexto cultural e histórico em que foram produzidos e apresentar indícios de fatos que levaram à sua preservação, visto que foram selecionados por salvaguardar informações que representam certo período histórico. Com base em tal acepção, pode-se ratificar a afirmação de Le Goff (2013) sobre uma imposição, voluntária ou não, ao que foi dito por Dodebei (1997) quanto à avaliação desse documento para selecionar o universo social e testemunhar uma ação cultural. Quando o documento é preservado, atende aos critérios que representam a maneira como seus produtores são lembrados. Nessa compreensão, o documento não pode ser acessado de modo despretensioso, considerando apenas a atividade que o gerou, mas contextualizar sua produção e sacralização.

Entre os documentos que materializam vestígios de memória, tem-se a fotografia, que pode registrar um momento associado à realidade de um povo e seu contexto social. Kossoy (2007, p. 131) compreende que a fotografia é “[...] memória enquanto registro da aparência dos cenários, personagens, objetos, fatos; documentando vivos ou mortos, é sempre memória daquele preciso tema, num dado instante de sua existência/ocorrência.” Nesse percurso, a fotografia pode cristalizar um aspecto que o produtor deseja que seja rememorado. Assim, tanto deve ser produzida quanto apropriada por uma perspectiva crítica, considerando o que se deseja informar e cristalizar como memória.

Cox (2017, p. 243) assinala que as fotografias “[...] representam o aspecto mais memorável, se não sempre o mais informativo, do arquivo pessoal.” Ainda de acordo com Cox (2017, p. 243), as fotografias “[...] tendem a produzir mais reações do que um documento típico, porque fazem mais que conter informação [...]”, ao evocar lembranças e/ou reforçar narrativas. A fotografia, comparada com outros documentos, informa detalhes que podem ser difíceis de descrever em um texto verbal, a imagem - como a imagem e o movimento - e fornece indícios e detalhes que auxiliam a contextualizar uma prática que, por seu detalhamento, pode possibilitar o acesso a informações mais próximas da realidade e favorecer a interpretação e a apropriação da informação. Entretanto, vale ressaltar que, ao mesmo tempo em que amplia em detalhamento, pode permitir múltiplas produções de sentidos, portanto, o texto não verbal, como a imagem, não pode ser considerado “melhor nem pior” do que o texto verbal, uma vez que são complementares.

Diante do exposto, justifica-se a análise da produção de Ivo Tavares que materializa, por meio da fotografia, indícios de memória e identidade da periferia de Salvador - BA.

3 Trajetória metodológica

Este estudo se caracteriza como descritivo. Segundo Gil (2010, p. 27), o estudo descritivo “[...] tem o objetivo de descrever as características de determinada população ou fenômeno ou, então, estabelecer relações entre variáveis.” Considerando esse olhar, a pesquisa visa apresentar aspectos identitários e memorialísticos a partir de fotografias. Nesse contexto, o objetivo desta pesquisa foi de evidenciar os traços identitários e memorialísticos materializados na fotografia de Ivo Tavares, que demonstram “outro olhar” para a periferia de Salvador - BA.

É importante pontuar que a escolha pela fotografia e pela atuação de Ivo Tavares se justifica porque ele tem como fio condutor de sua produção o retrato do cotidiano da periferia da cidade de Salvador e os aspectos socioculturais do povo soteropolitano que reside nesse território.

Para atingir o objetivo antes anunciado, as fotografias de Ivo Tavares foram analisadas por meio da pesquisa documental e do método indiciário. Este último, proposto por Ginzburg (1986, p. 177), que afirma que, ao adotar esse método, o pesquisador parte da hipótese de que, “se a realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinais, indícios – que permitem decifrá-la.” Ao entender que o documento em questão, a fotografia, apresenta sinais significativos para revelar o que se busca nesta pesquisa, quanto aos traços identitários e memorialísticos, a seleção ocorreu por meio da representatividade identificada na fotografia, em relação a outras de igual característica, que fazem alusão aos aspectos que são objetos de discussão no texto. O levantamento dessas fotografias foi realizado no perfil do Instagram do fotógrafo, com seu consentimento, em que foram considerados, também, seus comentários/descrições nas respectivas fotografias.

Além do método documental, na análise das fotografias, também foi aplicado um questionário com o fotógrafo Ivo Tavares, via e-mail, entre os dias 28 de janeiro e 27 de fevereiro de 2021. Esse instrumento de coleta de dados foi composto de nove questões, distribuídas em três categorias: motivação para a fotografia; repercussão/contribuição sociocultural; e percepção/atuação como mediador. A primeira categoria evidencia um processo de autodescoberta de Ivo Tavares e demonstra a base para sua atuação como fotógrafo; a segunda busca identificar e analisar as contribuições do trabalho de Ivo Tavares, a partir de sua percepção, e revela o alcance de sua interferência na possível releitura dos sujeitos que têm contato com sua fotografia; e a terceira objetivou investigar sua percepção sobre sua prática mediadora e identificar se ela é consciente. Depois de feita a coleta dos dados, procedeu-se à análise, para cujo desenvolvimento foi adotada a abordagem qualitativa, que auxiliou a interpretar as respostas dissertativas elaboradas pelo participante da pesquisa.

4 Fotografias de Ivo Tavares que revelam traços identitários e memorialísticos da periferia de Salvador - BA

Para cumprir o objetivo de evidenciar os traços identitários e memorialísticos da periferia de Salvador, a partir da atuação de Ivo Tavares, foram selecionadas imagens representativas da expressão desse artista. A Figura 1 foi capturada no Bairro da Capelinha, o qual reflete parte do desenvolvimento de moradias na periferia de Salvador, com a vista da Baía de Todos os Santos. Nessa trilha, Ivo Tavares revela a imponência desse local, em suas formas e, nesse processo, ressignifica o que é percebido como belo, em que a periferia é ‘vista’ de outro ângulo, pois, apesar de retratar moradias sem planejamento ou infraestrutura, abriga um povo resiliente, que vive e demonstra uma existência com manifestações de fé, arte, alegria e tradição.


Figura 1
Figura 1 - Periferia de Salvador
Tavares (2020d)

Ivo Tavares nos convida para olhar entre os fios e as casas, entre os percursos que delineiam as ruas, trajetória de muitos moradores, que, em dimensões diferentes, podem ver, mas, nem sempre, ser vistos. Ivo Tavares demonstra que a periferia de Salvador também é delineada pelo mar e pelo reflexo do céu azul, em contraste com o que vem sendo selecionado nos cartões-postais de Salvador, que apenas estampam uma parte da cidade, e a maioria evidencia a orla turística e o centro comercial. Assim, esse documento - a fotografia - produzido por Ivo Tavares, materializa o desejo e o objetivo de seu produtor de revelar e ressignificar uma periferia de Salvador, que é desconhecida pelos que não têm acesso a esse território.

Para além dos aspectos analisados, é válido destacar a descrição da Figura 1, produzida por Ivo Tavares (2020d), quando cita: “Ser da favela, é muito mais do que você imagina. Fazer parte do que os outros olham e têm medo é muito mais do que você imagina.” Infere-se que o convite para ‘imaginar’ conduz a uma reflexão crítica do artista sobre a necessidade de romper barreiras do que é dito e, por vezes, é apagado em muitos comentários que são veiculados nas mídias, quando se acentuam os vários problemas que, apesar de reais, não são mais relevantes do que as características identitárias que se manifestam nesse território, através de suas práticas socioculturais, que constituem seus traços de memória e identidade.

A fotografia e sua descrição produzida por Ivo Tavares informam, verbalmente e imageticamente, que a periferia não é sinônimo de violência, pois ali também se encontram enfrentamentos em favor de uma convivência pacífica, além do desejo de preservar e de fortalecer tradições, costumes e manifestações de crença de seu povo. Dando seguimento, a fotografia produzida por Ivo Tavares pode ser compreendida como um documento que materializa informações que tanto desmitificam o conceito de periferia quanto favorecem a produção de um novo significado das informações sobre as práticas socioculturais dos sujeitos que integram esse lugar e que podem se sentir representados nesse documento.

O trabalho de Ivo Tavares também evidencia espaços que são significativos para a cidade de Salvador, como o da Figura 2, que se refere ao ambiente externo da Igreja Nosso Senhor do Bonfim, situada na Cidade Baixa de Salvador. Sujeitos integrantes ou não desse território podem, por meio da fotografia de Ivo Tavares, reconhecer aspectos religiosos representados nesse documento que, como defende Dodebei (1997), seleciona um universo social para testemunhar uma ação cultural.


Figura 2
Figura 2 - Ambiente externo da Igreja Nosso Senhor do Bonfim
Tavares (2021b)

O documento – a fotografia produzida por Ivo Tavares – registra informações que representam o contexto sociocultural de seu produtor e dos demais sujeitos vinculados a esse espaço. Nessa concepção, pode-se conhecer sobre a prática religiosa que é desenvolvida por sujeitos, marcando um fragmento de uma tradição e um movimento cultural. Portanto, a fotografia é um dispositivo informacional que seleciona e representa uma prática cultural.

Associada à imagem, Ivo Tavares (2021b) disponibiliza a seguinte descrição para a Figura 2:

Salvador se faz especial pela energia que carrega. Até seu vazio é poético, suas cores nos abraçam e seu vento nos invade, nos enche de fé. Nasci num paraíso que guerreia pela paz, que dança e chora. Nosso grito de dor e alegria é forte na mesma intensidade. Hoje Salvador completa 472 anos, seu cheiro tem história e tradição. Viva o lugar que brada uma energia inigualável. (TAVARES, 2021b).

Com uma linguagem que expressa a afetividade e o sentimento de pertencimento de Ivo Tavares, o texto faz alusão ao tempo de distanciamento social para enfrentar a pandemia, que iniciou em 2020, e resultou na suspensão de festejos populares e religiosos, que antes possibilitavam um movimento de celebração significativo para a tradição religiosa de Salvador. O fotógrafo (TAVARES, 2021b), ao afirmar “Até seu vazio é poético, suas cores nos abraçam e seu vento nos invade, nos enche de fé”, demonstra seu sentimento saudoso que pode, como na fotografia, aproximar outros sujeitos que se sintam representados por sua fala e imagem. É válido retomar Jô Gondar (2016) quando reflete que a memória social se exerce também em uma esfera irrepresentável, porquanto se manifesta no corpo, nas sensações e nos afetos. Esses fenômenos são coletivos, por isso afetam uns aos outros, como a fotografia de Ivo Tavares, que consegue afetar outros sujeitos que também estabelecem alguma relação e produção de sentido com ela.

Ainda no texto citado, Ivo Tavares refere-se à data comemorativa dos 472 anos da cidade de Salvador, que pode ser compreendida como uma citação que evoca seus traços identitários e memorialísticos de um passado e do presente, em um processo histórico que vai além de sua existência, mas de que ele e outros sujeitos se sentem participantes.

O valor simbólico que pode ser apreendido por meio de traços registrados na imagem e no texto compartilha informações que igualmente transparecem aspectos religiosos e de tradição, que se ampliam, como na fotografia, em um processo de produção de sentido e significado dos que conhecem, ou desconhecem, as práticas socioculturais do contexto geográfico e temporal de seu produtor.

Algumas fotografias de Ivo Tavares apresentam vestígios que podem aproximar sujeitos que, mesmo sem pertencer ao lugar em que o registro foi produzido, podem se sentir representados. Por exemplo, a Figura 3 registra as bandeirolas que decoram uma rua e, mesmo sem o texto, alguns sujeitos podem associá-las aos festejos juninos. Outros podem evocar memórias individuais e coletivas relacionadas a esses festejos, fortemente manifestados no Nordeste brasileiro. Nesses termos, a fotografia pode se constituir como um artefato com elementos que podem ser considerados ‘referenciais’ de memória e de ‘autoidentificação’, conforme compreende Dodebei (1997) em sua reflexão sobre documentos.


Figura 3
Figura 3 - Periferia de Salvador em festejos juninos
Tavares (2017)

Ivo Tavares (2017) descreve assim a fotografia: “Capelinha... É de São João.” Ao ler a imagem e o texto, os sujeitos que não conhecem as festas juninas poderão se apropriar das informações da existência de uma festa intitulada ‘São João’, celebrada por moradores da Capelinha, e ter acesso a um fragmento de uma organização para esse festejo. Apesar de a visibilidade desses festejos ser associada a lugares centrais e tradicionais da cidade de Salvador, nessa fotografia, parece que a periferia da cidade também realiza esse movimento de celebração e decoração de suas ruas, integrando outros lugares que igualmente realizam essa festa. Por outro lado, quando os sujeitos desse lugar - ou também residentes das periferias de Salvador – leem essa imagem, podem atribuir um sentimento de pertencimento e de representatividade. Assim, pode-se afirmar que a fotografia pode ser um dispositivo capaz de informar e de evocar vestígios de memória, em que os sujeitos podem se reconhecer, ou seja, carregar um valor simbólico, que está alinhado à identidade de seu produtor.

Cox (2017) assevera que as fotografias provocam mais reações do que um documento textual, porque fazem mais do que conter informação quando evocam lembranças e/ou reforçam narrativas. Como tratado anteriormente, a fotografia materializa informações que podem ser apropriadas pelo sujeito que, em comparação com um texto, não alcançaria a completude de detalhes e descrições, visto que o texto, ao ser decodificado, possibilita que o sujeito projete em seu subconsciente uma imagem, ou seja, que faça uma associação com informações anteriores. Por outro lado, a imagem também pode ser reconhecida como uma representação dos fatos e resultado de um processo de seleção.

Importa sublinhar que, nesse processo, compreende-se o valor significativo da imagem como uma fonte de informação, mas, em alguns casos, ela se torna coadjuvante e se relaciona, por meio de um processo intrínseco, com uma narrativa oral ou textual que, juntas, favorecem a atribuição de sentido e a apropriação da informação. No caso da Figura 4, ao analisar a imagem, muitos poderiam descrevê-la como uma rua, com certo aclive, com uma criança e muitos fios que ‘interferem’ na visualização do espaço, ou atribuir valor aos fios, que já não interferem, mas são elementos de sentido, em que o leitor projeta uma relação com as tramas e os entrelaces de uma prática, lugar ou sujeito; para outros, poderia ser a rua onde reside ou similar a ela. Enfim, existem várias significações que podem ser atribuídas à imagem.

Quando associada à descrição, o produtor apresenta uma trajetória, um caminho que pode ser ampliado de igual modo, mas oferece um fundamento para a análise, um início para o livre pensar. Dessa maneira, texto e imagem não concorrem, compartilham igualmente um processo de significação que auxilia a apropriação da informação que deseja ser compartilhada.


Figura 4
Figura 4 - Rua do Bairro da Capelinha, periferia de Salvador
Tavares (2021a)

Ivo Tavares (2021a) elaborou a seguinte descrição para a Figura 4: “Momentos em nós. Momentos em nó. Ouço Bethânia enquanto erro, querendo acertar. Batuco um samba inexistente querendo te tocar. Canto sem saber cantar, mas sei qual é o meu canto.” Conforme refletido anteriormente, o texto auxilia o leitor a interpretar a imagem que ressignifica o olhar para ela em um processo de associação com aspectos socioculturais, identitários, individuais e, ao mesmo tempo, coletivos que permeiam a visão de mundo desse sujeito produtor. O fotógrafo cita a cantora ‘Maria Bethânia’ e os ritmos musicais representativos de muitos baianos, nordestinos e brasileiros. A fotografia e o texto apresentam elementos que transparecem a memória e a identidade individual e alcança uma perspectiva coletiva, conforme define Pollak (1992), quando trata do entrelaçamento da memória e da identidade, tanto no âmbito individual quanto no coletivo.

A percepção da inter-relação dos traços identitários e memorialísticos apresentados nos documentos, quando associada à compreensão de Candau (2013) sobre a constituição identitária individual e dos grupos sociais, rege o comportamento e estabelece os traços representativos dos sujeitos, de seus costumes, suas percepções de mundo, suas tradições, suas crenças etc. Levando-se esse ponto em consideração, é notório que, quando a dinâmica sociocultural da periferia de Salvador é registrada na fotografia de Ivo Tavares, materializa informações que possibilitam reconhecer que existem memórias e práticas que, durante muito tempo, foram negligenciadas, mas não apagadas no tempo. Esses traços se ampliam em documentos fotográficos e em textos como este, que apresenta e ressignifica esse território e as práticas de sujeitos e grupos sociais. Os documentos podem ser entendidos como representações que carregam traços característicos das práticas socioculturais, como os que registram festas de largo, o convívio entre sujeitos, as conversas que compartilham memórias, experiências e conhecimento de vida, como também das edificações de residências na periferia que evidenciam marcas de uma trajetória sociocultural e histórica, conforme ilustram as Figuras 5 e 6.


Figura 5
Figura 5 - Meia-lua na Capelinha
Tavares (2020a)


Figura 6
Figura 6 - Periferia em construção
Tavares (2020e)

Tais dispositivos que versam sobre a periferia podem ressignificar a percepção do leitor que desconhece os motivos que levaram à realização de condutas, por exemplo, da construção desordenada de residências que podem oferecer riscos porque se situam em lugares não planejados e que, em algumas situações, os aspectos naturais podem incidir levando a problemas estruturais. Esse é um exemplo que, por vezes, é pré-julgado por pessoas que desconhecem a tentativa de sobreviver sujeitos que têm aquele lugar como possibilidade de construir sua história. A fotografia de Ivo Tavares também pode representar uma informação que carrega um ato político, de resistência e enfrentamento para mudar a realidade social dos sujeitos. Nessa visão, esse dispositivo informacional ganha relevância quando associado ao movimento de contribuição para revelar que, nesse lugar, residem sujeitos que são protagonistas sociais, que lutam e resistem às diversas barreiras impostas por um sistema socioeconômico deficitário.

Ivo Tavares apresentou as seguintes descrições das imagens. Figura 5:

No dia da meia-lua inteira, não ouvi Caetano, nem [Maria] Bethânia. Revisitei memórias e percebi que toda dor superada ainda é dor, mas agora que superada, é dor com brilho. Vira luz para facilitar o caminho. Também descobri que dores são inéditas e inevitáveis. O antídoto? Tempo. Todo ele que ainda houver. (TAVARES, 2020a)

Figura 6: “Se o urbanismo ao meu redor é o que grita, por qual motivo minha arquitetura é o que te incomoda? Ao anoitecer, o céu não perde o azul, nossos olhos que se perdem.” (TAVARES, 2020e).

No texto de Ivo Tavares sobre a Figura 5, depreende-se que, ao citar a música intitulada ‘Meia-lua inteira’, composta por Caetano Veloso, ele conduz à inferência que, apesar da beleza do cenário natural, com a meia-lua exposta na imagem, ainda existem marcas históricas, seja na memória individual ou na coletiva, que precisam ser superadas devido à resistência e à compreensão dos motivos que as originaram. Embora haja ‘brilho’, ainda existe ‘dor’. Essa afirmativa pode ser compreendida como uma informação que, apesar de evidenciar as belezas existentes nesse contexto, também demanda ações e posicionamentos em prol do desenvolvimento social, cognitivo e cultural dos sujeitos, como, por exemplo, a criação de políticas públicas, de ações de valorização cultural e de dispositivos socioculturais, educacionais e de saúde, que não apenas sejam criados, mas também representativos e fortaleçam esse ‘brilho’ já existente, ou seja, contribuam para desenvolver o sentimento de pertencimento.

A descrição da Figura 6 reforça essa informação com uma reflexão política, como uma fala de resistência e empoderamento. Convida, pois, a uma perspectiva de alteridade e substitui o sentimento de ‘incômodo’, uma vez que as ruas de Salvador demonstram uma aproximação geográfica entre moradias ‘nobres’ e as ditas 'periféricas'. A respeito dessa problemática, a ideia é de que se deseja substituir esse panorama inquietante por uma atitude de compreensão da diversidade que permeia os espaços.

Assim, os dispositivos fotográficos, como suportes informacionais, podem provocar uma reflexão política ao revelar que, apesar dos problemas socialmente históricos que conduziram homens e mulheres, a maioria, negros e negras, à moradia cuja infraestrutura é irregular e não projetadas, tornaram-se visíveis as belezas que conduzem ao lugar de pertencimento do povo, que vive e (re)existe nesse território. Essa perspectiva pode ser associada à afirmação de Le Goff (2013, p. 497) sobre a relevância do documento como testemunho e ensinamento que desmistifica um significado aparente. Nessa linha de pensamento, a fotografia de Ivo Tavares auxilia a ressignificar informações e produzir sua arte, quando seu olhar sensível capta e registra indícios do contexto sociocultural, econômico e político de indivíduos e grupos sociais.

O acesso e a apropriação dos dispositivos de memória possibilitam ao sujeito conhecer o passado para compreender o presente e projetar o futuro. As Figuras 7 e 8 transparecem traços identitários que se expressam na indumentária e nas características étnicas. Ao observar as imagens, tanto na Figura 7 quanto na 8, há vestígios de uma herança cultural que remete aos povos africanos presentes na linhagem dessa criança (Figura 7) e dessas baianas (Figura 8).


Figura 7
Figura 7 - Representatividade e empoderamento
Tavares (2020c)


Figura 8
Figura 8 - Baianas
Tavares (2020b)

Quando se visualizam essas imagens, um conjunto de informações são acionadas, como: ancestralidade, idioma, símbolos, religiosidade, culinária, vestimentas e expressões artísticas. Por conseguinte, a mulher que está representando uma cultura afrodescendente em um centro histórico é a mesma que está lutando pela (re)existência nas periferias de Salvador. A análise das imagens é estendida para as palavras (uma a uma), selecionadas com intencionalidade por Ivo Tavares, quando produz as seguintes descrições:

Figura 7: “Olhar firme. Firmeza ensinada e carregada. Firmeza necessária. Abaixo tinha um sorriso, mas a firmeza estava no olhar.” (TAVARES, 2020c).

Figura 8: “No dia das baianas, um estudo sobre reflexo. No dia das baianas, um momento de reflexão. Há mais mistérios, camadas, histórias e significados que você possa imaginar.” (TAVARES, 2020b).

Quando Ivo Tavares cita a ‘firmeza ensinada e carregada’ e as ‘histórias e os significados’, pode-se entender sobre os traços identitários e memorialísticos que a criança e as baianas negras os herdaram de sua ancestralidade. As ‘camadas’ não são apenas do vestuário, mas também uma estratificação social que impõe uma desigualdade e 'distância' entre os sujeitos. Tratar de aspectos relacionados às negras e aos negros brasileiros é abordar “[...] memórias subterrâneas que de diferentes formas confrontavam a memória oficial [...]” (POLLAK, 1989, p. 19). Para o autor, a memória é estruturada por hierarquias e classificações e atua em uma operação que reforça sentimentos de pertencimentos dos sujeitos e, ao mesmo tempo, diferencia-os dos outros. Nessa perspectiva, atuações como a de Ivo Tavares são valorosas por romper impressões que, ao longo do tempo, foram sustentadas como um padrão que é posto e seguido pelos demais sujeitos. Quebrar tais paradigmas é apresentar novas possibilidades de atribuir sentido que empoderam e fortalecem sujeitos que antes eram mantidos à margem da sociedade.

O ensinamento não advém somente da teoria, porque também é vivenciado nas práticas, nas lutas diárias e na conquista dos direitos que foram negados aos seus antepassados e cada conquista alcançada. Por exemplo, o direito à liberdade religiosa e de acesso à informação, que garante o ingresso em universidades públicas; o apoio de instituições de fomento para atividades de ensino, pesquisa e extensão; a realização de concursos públicos, entre outras ações que expressam uma longa trajetória do povo negro, mas que vêm sendo percorridas para o alcance pleno da cidadania, da justiça e da equidade social.

Essa análise se aproxima da reflexão realizada por Halbwachs (2006, p. 30), ao afirmar que “[...] jamais estamos sós. Não é preciso que outros estejam presentes, materialmente distintos por nós, porque sempre levamos conosco certa quantidade de pessoas que não se confundem [...]”. Essas mulheres carregam as experiências de seu povo, a tradição de seus ancestrais, a força do movimento por liberdade, a justiça e a representatividade que não são um desejo, mas um direito exigido por quem constitui e faz diferença em uma nação.

Considerando esses aspectos, as fotografias de Ivo Tavares revelam uma materialidade da informação que, manifestada no cotidiano da periferia, nas canções, nos ritmos, nas edificações, nas vestimentas, nas expressões, no tom da pele, no trançar dos cabelos, nas comidas e na ornamentação de ruas e casas, entre outros aspectos, deve ser preservada, representada, difundida e apropriada por meio dos diferentes dispositivos informacionais que podem ser, em alguns casos, reconhecidos como referenciais de memória.

Nessa perspectiva, além de analisar as fotografias e suas descrições, também se buscou uma interação com Ivo Tavares por meio da aplicação de questionário, para refletir sobre sua motivação para a fotografia, repercussão/contribuição sociocultural do trabalho e sua percepção/atuação como mediador, conforme apresentado no próximo tópico.

5 Ressignificação da periferia de Salvador, BA: pela ação consciente do fotógrafo Ivo Tavares

A fotografia pode materializar vestígios de memória e identidade ao registrar momentos associados à realidade de um povo e seu contexto social. O que diz respeito a esse enfoque, por meio da aplicação do questionário, buscou-se compreender o objetivo que permeia a atuação de Ivo Tavares ao registrar o cotidiano da periferia de Salvador. Em resposta a essa questão, o fotógrafo afirma:

São vários, mas que passam principalmente pela necessidade identitária para mim e para os outros daqui. Também posso e gosto de falar em desmistificação do local, pessoas e costumes, pois somos constantemente generalizados e criminalizados.

Pode-se apreender que a atuação de Ivo Tavares é movida por um sentimento de pertencimento e carregada de traços identitários. Por meio de sua fotografia, ele busca ressignificar o olhar da sociedade sobre a periferia. Nesse sentido, Kossoy (2007, p. 131) compreende que fotografia é “[...] sempre memória daquele preciso tema, num dado instante de sua existência/ocorrência.” Dando prosseguimento, como a periferia ainda é entendida por muitos apenas como um lugar de insegurança, de falta de infraestrutura e que inibe a visitação dos diversos sujeitos, a fotografia de Ivo Tavares leva a periferia para os diversos ‘lugares’, oportuniza (re)conhecer esse território e suas expressões culturais. A partir da análise das fotografias e suas descrições associadas à resposta de Ivo Tavares, pode-se constatar que o objetivo almejado pelo fotógrafo tem sido alcançado.

Ainda em relação à intenção de ressignificar a periferia, Ivo Tavares foi questionado quanto à repercussão dos leitores de sua fotografia e sobre depoimentos que expressam as contribuições para a vida de outros sujeitos por meio de suas fotografias. Compartilhando sua percepção, o fotógrafo afirmou:

Recebo mensagens e depoimentos diversos, principalmente de identificação e representatividade. Acredito que as mudanças promovidas por minhas fotografias são em níveis comportamentais, já que uso minha arte como um canal amplificador de vivências coletivas. Me falam sobre estarem consumindo mais arte, de estarem mais atentos às belezas do cotidiano e sempre dizem se lembrar de mim quando identificam alguma cena que poderia ser reportada por mim.

A partir da fala de Ivo Tavares, conclui-se que sua fotografia reconfigura o olhar do leitor que está distante da periferia e do que está vinculado a ela, o que fortalece um sentimento de representatividade, como afirma o fotógrafo. As fotos do artista podem despertar no sujeito leitor a rememoração de fatos e fenômenos que lhe são representativos, por isso são dispositivos de memória individual e coletiva, porque, como julga Halbwachs (2006), o sujeito leva consigo um pouco de outros sujeitos, e as fotografias de Ivo Tavares são contextualizadas em lugares pertencentes a uma coletividade. Considerando-se esse conceito, por meio de sua fotografia, Ivo Tavares enaltece os aspectos que antes poderiam ser despercebidos e nos convida a refletir sobre os elementos que unem esses sujeitos em sua individualidade e coletividade. Ao agir dessa maneira, ele produz fotografias que podem ser consideradas referenciais de memória e identidade, ao transparecer aspectos de representatividade de um povo e de um lugar.

Ao ratificar a contribuição para o fortalecimento identitário dos sujeitos da periferia de Salvador, Ivo Tavares enuncia:

Antes de chegar nessa pergunta, eu havia dito justamente sobre esse senso identitário do meu trabalho, que representa muito pra mim como indivíduo da periferia, para quem eu retrato nos trabalhos, e até para quem se sente retratado, seja na realidade atual ou em lembranças do caminho percorrido. Com isso, cada vez que mais pessoas veem meu trabalho, maior será o fortalecimento social de uma identidade tão marginalizada e vítima de preconceito como a da nossa periferia.

Observa-se que a representatividade inicia na própria condução consciente de Ivo Tavares, porque ele expressa seu sentimento de pertencimento como sujeito integrante da periferia de Salvador. Também se identifica o agir consciente desse sujeito no desejo de fortalecer socialmente a identidade e a memória do seu povo, modificando o olhar preconceituoso com que é vista a periferia. Ao usar a fotografia, o artista revela uma resistência e um esforço em apresentar uma perspectiva que antes era apagada, em um processo cujo entendimento de Le Goff (2013) é de que, por meio do documento a sociedade impõe ao futuro’ determinada imagem de si própria

As fotografias de Ivo Tavares revelam informações sobre o contexto cultural e histórico em que foram produzida e apresentam indícios de fatos que levaram a produzir um novo significado da periferia de Salvador, visto que cristalizam um cotidiano carregado de vestígios socioculturais, por isso, considerados referenciais de memória e identidade.

6 Click final

O sujeito produz informações e documentos que podem revelar suas percepções, seus anseios, desejos e lutas e, em alguns casos, configuram-se como dispositivos de memória, uma vez que os traços identitários de indivíduos e grupos fomentam a composição da memória. Para o dispositivo ser considerado um referencial de memória, os sujeitos têm de se reconhecer nele, ou seja, devem ser representativos e carregar um valor simbólico que estará alinhado à identidade de seus produtores.

É possível depreender que o contexto social influencia a formação identitária do sujeito que, ao mesmo tempo, atua no meio, realizando uma interferência mútua. Esse processo é contínuo, movente e recíproco, pois os sujeitos absorvem traços culturais de seu contexto enquanto produzem vestígios. Esses vestígios de memória e a representação de traços identitários foram identificados na produção fotográfica de Ivo Tavares, o que ratifica o pensamento de que esse documento é entendido como um dispositivo de memória. Assim, com base nessa afirmativa, pode-se afirmar que o sujeito preserva sua identidade e sua memória ao materializar e produzir documentos que perpetuam para além do seu tempo e espaço geográfico, o que lhe é representativo, tanto em sua individualidade quanto à coletividade e à diversidade que o constituem.

É mister enfatizar que essa reflexão demonstra uma articulação entre o sujeito e o meio, em um processo de trocas e de interferências. Todavia, embora esses sujeitos tenham aspectos identitários comuns, também terão expressões singulares e visões de mundo. Amparando-nos nessa conclusão, podemos afirmar que a atuação de Ivo Tavares, movida por sentimento de pertencimento, carrega traços identitários que lhe são individuais, mas se ampliam na busca de ressignificar o olhar da sociedade sobre a periferia, que é seu ambiente de reconhecimento com o coletivo. Assim, a coletividade que constitui o meio será composta pela diversidade das partes que o integram, porque cada sujeito carrega consigo percepções ideológicas, políticas e religiosas que moldam seus costumes e sua forma de interagir com o mundo e com o outro.

Nesse ponto, é relevante sinalizar o valor simbólico da fotografia como uma fonte de informação que, em alguns casos, associa-se à narrativa oral ou textual e favorece a atribuição de sentidos e a apropriação da informação. A fotografia é entendida, nesta comunicação, como uma representação da realidade que pode carregar traços característicos das práticas socioculturais e históricas de seus produtores e grupos sociais que, como o trabalho de Ivo Tavares, por exemplo, residem na periferia de Salvador e têm nesse dispositivo informacional evidências de marcas histórica, social e cultural de seu povo, portanto, são dispositivos de memória e de identidade.

Referências

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THIESEN, Icléia. Memória institucional. João Pessoa: UFPB, 2013.

Información adicional

Declaração de autoria: Concepção e elaboração do estudo: Ana Claudia Medeiros de Sousa, Raquel do Rosário Santos, Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira. Coleta de dados: Ana Claudia Medeiros de Sousa, Raquel do Rosário Santos Análise e interpretação de dados: Ana Claudia Medeiros de Sousa, Raquel do Rosário Santos, Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira. Redação: Ana Claudia Medeiros de Sousa, Raquel do Rosário Santos. Revisão crítica do manuscrito: Ana Claudia Medeiros de Sousa, Raquel do Rosário Santos, Bernardina Maria Juvenal Freire de Oliveira.

Como citar: SOUSA, Ana Claudia Medeiros de; SANTOS, Raquel do Rosário Santos; OLIVEIRA, Bernardina Maria Juvenal Freire de. Traços identitários e memorialísticos materializados na fotografia de Ivo Tavares da periferia de Salvador, Bahia. Em Questão, Porto Alegre, v. 28, n. 1, p. 353-379, 2022. DOI: http://dx.doi.org/10.19132/1808-5245281.353-379



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