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O Consumo de Crédito como Expressão da Dádiva Sob a Perspectiva de Idosos de Baixa Renda
Bruno Medeiros Ássimos; Gustavo Tomaz de Almeida; Georgiana Luna Batinga;
Bruno Medeiros Ássimos; Gustavo Tomaz de Almeida; Georgiana Luna Batinga; Marcelo de Rezende Pinto
O Consumo de Crédito como Expressão da Dádiva Sob a Perspectiva de Idosos de Baixa Renda
CREDIT CONSUMPTION AS A GIFT EXPRESSION UNDER THE PERSPECTIVE OF LOW INCOME ELDERLY
Revista Brasileira de Marketing, vol. 17, núm. Esp.6, pp. 914-930, 2018
Universidade Nove de Julho
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Resumo: Objetivo: compreender como o consumo de crédito se expressa como dádiva, ao se analisar a perspectiva de idosos de baixa renda. Métodos: entrevista em profundidade com roteiro semiestruturado e procedimentos etnográficos de observação participante.

Originalidade/Relevância: o crédito funciona como um componente-chave carregado de aspectos culturais que podem gerar um sentimento de liberdade ou prisão no consumidor, funcionando também como mecanismo de produção e governo de subjetividades coletivas e individuais, ainda pouco estudadas sob o prisma do idoso de baixa renda.

Resultados: foi possível notar que a dádiva abarca não só o ato de pagar, mas penetra sobre o subjetivo, projetando algo singular, incluindo os afetos, os laços e as emoções, em algo palpável como o empréstimo do nome; seus efeitos são anunciados e a quebra de qualquer parte do ciclo representa um ato contra a própria comunidade e não apenas com o idoso envolvido.

Contribuições teóricas: o estudo avança no entendimento da dádiva na ótica do consumo de crédito, ultrapassando a compreensão deste como um simples consumo de um produto financeiro. Os resultados discutidos descortinam a questão do “custo” e o “risco” da dádiva, elementos pouco presentes no relato de outros trabalhos que contemplaram a temática.

Contribuições sociais/para a gestão: este estudo contribui para que ofertantes de crédito alinhem suas estratégias de comunicação e relacionamento aos significados construídos pelos idosos em suas relações cotidianas, além disso, responsáveis por políticas públicas podem se inspirar para diminuir as disfunções e assimetrias presentes nas relações entre governo, empresas e cidadãos.

Palavras-chave:CréditoCrédito, Dádiva Dádiva, Idosos Idosos.

Abstract: Objective: this article reports the results of a study that sought to investigate how credit consumption is expressed as a gift from the perspective of seniors with low income.

Method: this research made use of ethnographic procedures of participant observation and interview. For the analysis of the data collected, it was used the discursive textual analysis.

Originality/relevance: the credit works as a major component of cultural functions capable of generating a sense of freedom or imprisonment, working too like a mechanism of production and governance of collective and individual subjectivities, which has been few studies under the prism of the elderly of income.

Results: it was possible to note that the gift holds not only the paying-act objectivity but, above all, it penetrates the subjective, transforming something singular and unique, including the affections, the bonds, the emotions, into something manageable as borrowing the name to take a credit. The gift is lived in community, its effects are announced and the breaking of any part of the cycle represents an act against the community itself and not only an elderly person.

Theoretical contributions: the theoretical discussion is based on the discussion of gift cycle and the symbolic consumption of credit in Brazilian culture, especially in the context of the low-income elderly, exceeding the habitual view of this theme in literature.

Social and managerial implications: the discussion is based on the premise that by combining these topics, it is possible to note the cultural impact of credit in the market.

Keywords: Credit, Gift, Elderly.

Carátula del artículo

Edição Especial Nacional

O Consumo de Crédito como Expressão da Dádiva Sob a Perspectiva de Idosos de Baixa Renda

CREDIT CONSUMPTION AS A GIFT EXPRESSION UNDER THE PERSPECTIVE OF LOW INCOME ELDERLY

Bruno Medeiros Ássimos
Universidade Federal de Viçosa, Brasil
Gustavo Tomaz de Almeida
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Brasil
Georgiana Luna Batinga
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais , Brasil
Marcelo de Rezende Pinto
Universidade Federal de Minas Gerais , Brasil
Revista Brasileira de Marketing, vol. 17, núm. Esp.6, pp. 914-930, 2018
Universidade Nove de Julho

Recepção: 19 Abril 2018

Aprovação: 01 Agosto 2018

1 INTRODUÇÃO

De início, vale contextualizar que o consumo de crédito possui relação direta com o marketing, haja vista que o indivíduo está inserido em um contexto denominado de sociedade de consumo na qual uma de suas características está relacionada com a oferta de crédito (Maurer, 2014). Sob o olhar do materialismo, por exemplo, o crédito pode ser compreendido sob a esfera cultural, como uma mercadoria fabricada, comercializada e vendida, bem como historicamente construída (L’Estoile, 2014).

Nesse sentido, os estudos que se utilizam de aspectos culturais em suas análises estão, geralmente, atrelados às experiências de consumo de crédito (ou falta dele) em momentos importantes da vida das pessoas, como a educação, preparação para o trabalho, compra ou construção de um imóvel, o nascimento de um filho ou a aposentadoria (Peñaloza & Barnhart, 2011). Em conjunto, essas pesquisas avançam na compreensão do significado do consumo de crédito, formando sentidos culturais de independência – integração social, indulgência, autodisciplina, segurança, restrição da liberdade (Peñaloza & Barnhart, 2011), mas também distinção de estilos de vida dentre as pessoas com maior capital cultural em relação as demais, ao mesmo tempo em que atribui ao portador uma capacidade paradoxal de liberdade ou aprisionamento panóptico (Bernthal, Crockett, & Rose, 2005). No mesmo sentido, o significado do consumo de crédito pode ser entendido como propulsor da autoestima (Garvey, Germann, & Bolton, 2015).

Em outras palavras, os principais avanços acadêmicos demonstram o crédito como um componente-chave carregado de aspectos culturais que podem gerar um sentimento de liberdade ou aprisionamento no consumidor (Maurer, Nelms, & Swartz, 2013), funcionando também como mecanismo de produção e governo de subjetividades coletivas e individuais (Lazzarato, 2012).

É pelo prisma do idoso de baixa renda que este trabalho pretende vislumbrar o consumo de crédito sob uma perspectiva cultural, associada ao sistema de dádivas proposto por Mauss (2003). Nessa linha, o idoso é concebido no presente trabalho como aquele que possui 60 anos ou mais com renda familiar média de até R$1.625,00 (ABEP, 2016).

Tendo exposto os elementos chave, este trabalho assume como pergunta de pesquisa: Como o consumo de crédito se expressa como dádiva, ao se analisar a perspectiva de idosos de baixa renda? Para esta tarefa, os seguintes objetivos específicos foram assumidos: (1) compreender o papel que alguns idosos de baixa renda podem assumir no mercado de crédito; (2) assimilar o que estes idosos esperam como devolutiva das relações sociais em um contexto em que se inserem como tomadores de crédito; e por fim, (3) entender os impactos da tomada de crédito para terceiros por esses idosos. Nos objetivos da pesquisa, a leitura se fará aliando crédito e dádiva, buscando interlocuções.

Como justificativas para a execução da pesquisa podem ser apontados alguns pontos. Em primeiro lugar, estudos anteriores apontam que os significados culturais estão presentes no debate acadêmico sobre o consumo e a dádiva, já que a retribuição é influenciada por valores nacionais (Donnel & Aaker, 2006), por exemplo, o empréstimo do nome para um amigo obter crédito e maior acesso ao mercado (Brusky & Fortuna, 2002), algo simbólico e comum em quase metade da baixa renda brasileira (Alves et al., 2013), indicando generosidade entre os pobres de redes sociais próximas diante uma emergência (Pereira & Strehlau, 2012). Neste caso, a dádiva possui expressões de solidariedade e generosidade que “geram efeitos associados ao reforço vincular” (Vizeu, 2009, p. 418), estabelecendo pontes que permitem cultivar relacionamentos sociais, mesmo diante dos riscos, incertezas e sacrifícios da dívida, mensurados por meios subjetivos (Mauss, 2003).

Em segundo lugar, ainda em termos de justificativa, a dádiva apresenta aspectos simbólicos relevantes e oferece lentes que possibilitam a observação e explicação das relações sociais em seus contextos (Vizeu, 2009). Aliado a isto, o número de idosos endividados cresce acima da média no Brasil, segundo o Serviço de Proteção ao Crédito (2015). Dessa forma, torna-se relevante investigar como estes idosos se inserem na dinâmica de oferta de crédito, levando em consideração os aspectos culturais em um contexto de baixa renda.

Em terceiro lugar, a partir das considerações apontadas anteriormente, pode-se afirmação que a articulação envolvendo as temáticas do consumo de crédito, dádiva no contexto de idosos de baixa renda no Brasil acaba por descortinar questões pertinentes e reveladoras para o campo do consumo em uma perspectiva cultural e socialmente construída. É justamente por meio do desvelar dessas questões que se apresenta uma lacuna teórica a qual o presente trabalho parece se acomodar e, principalmente, contribuir para os pesquisadores do campo do consumo.

Finalmente, este trabalho está organizado em cinco partes. A primeira, composta por esta breve discussão introdutória, é seguida da fundamentação teórica, na qual os temas “o ciclo da dádiva e o consumo simbólico do crédito na cultura brasileira” e “o consumo de crédito, a baixa renda e o idoso” são debatidos. Na terceira seção, é apresentada a metodologia adotada, decorrente de uma parceria com o poder público, permitindo o acesso a um campo composto por 120 idosos. O penúltimo tópico reflete a análise realizada sobre os dados em campo, ancorada nos objetivos desta pesquisa, o que permitiu a concepção de três categorias de análise. Por último, as considerações finais apresentam os apontamentos que refletem sobre a discussão realizada ao longo deste trabalho.

2 Fundamentação Teórica
2.1 O Ciclo da Dádiva e o Consumo Simbólico do Crédito na Cultura Brasileira

A dádiva é produto da circulação de bens materiais ou simbólicos que almeja criar, recriar ou fortalecer os vínculos entre pessoas e grupos (Vizeu, 2009), trata-se de uma mistura de “almas e coisas”, riquezas materiais e espirituais, físico e abstrato (Mauss, 2003). Tida como prática fundamental da vida social (Mauss, 2003), a dádiva não só engloba as mais diversas perspectivas da vida em sociedade, como a economia, a política, o direito e o senso estético, dentre outros (Vizeu, 2009), já que permeia universalmente as sociedades, ainda que certas especificidades possam ser observadas (Godelier, 2001).

Em complemento, Mauss (2003) reconhece na dádiva a estrutura que permite constatar as motivações individuais presentes nas dinâmicas sociais, muitas vezes fomentadas pelo sentimento de solidariedade, o que implica ser empreendida sem garantia de retorno (Caillé, 2002). Uma contrapartida de bens não é a preocupação central na dádiva. Diferente disso, as condições que a legitimam envolvem a não equivalência, a incerteza, o prazer do gesto, a liberdade e a dívida (Godbout, 1998).

A dádiva se constrói pelo princípio do dar, receber e retribuir, que lança vida própria à circulação de bens, pessoas e sentimentos associados ao processo. Sendo assim, o laço social é a premissa anterior a própria produção e reprodução de bens (Caillé, 2002). Nesse sentido, o primeiro princípio - a obrigação de dar, institui o laço, reconhecendo e formalizando as mais diversas hierarquias sociais, ainda que nem sempre o ato de dar possa representar algo benéfico em todos os momentos, já que imbui o sentido de dívida para ambas as partes envolvidas. Esse dar dispensa energia do indivíduo que inicia sua execução, fazendo que o ato seja carregado de elementos simbólicos peculiares (Mauss, 2003).

É importante considerar que suas múltiplas possibilidades de significação estão estreitamente vinculadas ao grau de intimidade entre quem concede e quem recebe, facilitando a percepção das motivações entre eles (Wolfinbarger, 1990). Da mesma maneira que o dar, o receber também é uma obrigação. Recusar é um ato ofensivo e significa a recusa da aliança - da comunhão. Igualmente importante, a retribuição mantém esse ciclo de dádiva. Logo, não realizá-la ou praticá-la de maneira inferior pode provocar danos na percepção entre indivíduos e suas relações (Mauss, 2003).

Dando sequência ao debate, a existência da dádiva perpassa pela satisfação provocada pelo ato, pelo deleite de ver o outro recebendo. Por isso ela é espontânea, justamente porque parte da iniciativa do indivíduo (Godbout, 1998). Anterior a tudo isso, ela existe em prol do estabelecimento e da manutenção das relações, criando e conferindo sentimento de pertencimento (Goudbout, 1999), muitas vezes estando atrelada a cerimônias, questões morais e comportamentos próprios (Malinowski, 1984; Mauss, 2003).

Assim, para Mauss (2003), a dádiva pertence ainda a uma dialética social e econômica unida pelo prestígio e pela honra, o que não permite reduzir a troca a um simples desdobramento utilitário, tampouco atender apenas ao interesse do primeiro doador. Ela não é a ação única e recortada por um instante, em um espaço-tempo. Seu simbolismo está presente em um ato de troca e inserido em um determinado momento. Entretanto, seu efeito se mantém atuante durante todo o tempo em que a relação estiver estabelecida como lembrança especial e dívida, que são rememoradas sempre, enquanto durarem os laços. Trata-se de um motor oculto de reprodução livre e gratuita (Temple & Chabal, 1995).

Não se pode esquecer ainda que sua evolução é explicada pela força do que é dado e seu prestígio não é narcísico, mas do outro, da fonte que originou a inspiração do ato. Em outras palavras, a instauração simbólica da dívida leva consigo a relação de reciprocidade, que supõe uma preocupação, uma inquietação em relação ao primeiro doador. Esta preocupação pode retornar por meio da dádiva da hospitalidade, da alimentação, da proteção ou por qualquer outro aspecto relevante da relação fixada (Temple & Chabal, 1995).

Em adição, ao contrário do sistema de mercado - em que as coisas possuem um valor preciso de troca, na dádiva tal valor depende da proporção das relações (França Filho, 1999) e suas características, sendo elas primárias ou secundárias. As de primeiro tipo estão conectadas às relações afetivas-familiares, que são aquelas que abarcam sentimentos de intimidade, amizade, confiança e apreço, independente de laços sanguíneos. As relações de segundo tipo são mais impessoais e instrumentais, possuindo menor carga afetiva. Não são piores, são apenas mais tênues. Dessa forma, ela pode se expressar nos mais distintos lugares, entre amigos, colegas de trabalho, familiares, vizinhos, associados de um clube, etc. (Goudbout, 1999).

Tendo em vista que a abrangência de sua atuação vai além dos pares, regendo as relações de grupos e outros elementos da vida em sociedade (Laval, 2006), é possível diferenciá-la por sua ação direta ou indireta. As questões materiais ou simbólicas trocadas entre dois entes, sendo eles indivíduos ou grupos, ocupam a classificação de ação direta. Já a reciprocidade indireta é direcionada não a quem concedeu a dádiva, mas a outro ente que deve devolvê-la a um terceiro distinto, como é comum observar na circulação de bens entre gerações (Mauss, 2003).

Isto permite conceber que o objetivo ético e político da dádiva é individualizar-se, potencializando, assim, a expressão da singularidade como garantia de pertencimento, diferenciado os coletivos humanos (Temple, 1998) e sendo necessária para se manter em sociedade (Pereira & Strehlau, 2012). Ao reforçar a confiança e instigar a reciprocidade, a dádiva estabelece alguns elementos essenciais para o fortalecimento das relações e para o senso de comunidade (Serva, 1993), tema pelo qual a cultura está intimamente atrelada e merece ser mencionada.

Nesse ponto, é possível reconhecer que indivíduos de culturas diferentes possam ser identificados por uma série de características, tais como o modo de agir, vestir, caminhar, comer, consumir, sem mencionar a evidência das diferenças linguagens (Laraia, 2002; Barbosa, 2004; McCracken, 2003; Rocha, 2000). As sociedades, além de produzirem bens e serviços, produzem um conjunto cultural de mitos, ritos, lendas, símbolos, heróis, valores e outros elementos que por meio de simbolismos, formam uma cultura material forte e bastante representativa do indivíduo e do grupo (Barbosa, 1996; Miller, 2007). Logo, é possível conceber que os diferentes sistemas culturais seriam capazes de agregar significados distintos aos bens, ao ponto de espelharem a própria sociedade, parecendo comuns a um grupo e totalmente estranhos a outro.

Assim, é possível notar que “os bens constituem uma oportunidade de dar matéria a uma cultura” (McCracken, 2007, p. 102). Um indivíduo é capaz de transformar a percepção de um bem e significá-lo por vias tão pessoais que é necessário um estudo pontual e profundo para elucidá-la, indo muito além da simples compreensão econômica (Belk, Wallendorf & Sherry, 1989). As transferências de significado e propriedades simbólicas encontram na troca um meio de expressão (McCracken, 2007), permitindo sua conexão com a dádiva. Em síntese, existem diferentes formas de consumir enquanto expressão de grupos sociais e cada uma delas precisa ser examinada a seu jeito (Miller, 2007). É preciso estar atento ao comportamento, já que é por meio dele que se observa a articulação da ação social. Entretanto, observar e compreender a cultura de um povo e expor sua naturalidade não deve resultar na redução de sua peculiaridade (Geertz, 2008).

No caso da cultura brasileira, por exemplo, a cordialidade é reconhecida como uma característica de destaque de seu povo. O cuidado no trato, a hospitalidade e a generosidade são atributos que representam outros traços do caráter de alguns brasileiros. O respeito normalmente observado aos outros povos encontra aqui sua réplica, que geralmente está assentada no desejo de estabelecer intimidade. O desapreço por qualquer forma de convívio que não seja guiada por uma ética de fundo familiar se reflete até mesmo na admissão de preceitos de reverência, também presentes no temperamento da sociedade brasileira, mas tão somente se isto não revogar completamente a possibilidade de convívio mais familiar (Holanda, 1995). A cordialidade e a generosidade podem ser observadas em diversos contextos, quando, por exemplo, nas camadas mais pobres da população, os indivíduos buscam apoio em suas redes de relações sociais próximas.

Tais redes se constituem de grupos não formais, nos quais o indivíduo sabe que pode buscar ajuda diante de alguma emergência, sendo o empréstimo do nome um acontecimento culturalmente comum (Brusky & Fortuna, 2002), que é um dos pontos que esse artigo trata. Esse apontamento, reforça a percepção de solidariedade, que “se constitui a partir de múltiplos atos de dádiva e “contra-dádiva”, bem como de diferentes intenções, gerando efeitos desiguais, porém, sempre associado a algum tipo de criação ou reforço vincular” (Vizeu, 2009, p. 418). Logo, alguma reflexão entre os traços apontados da cultura brasileira e a prática da dádiva pode ser realizada, como esse caso do “empréstimo do nome”, visto que a maneira pela qual se entende uma dívida está estreitamente ligada a influência dos valores nacionais (Donnel & Aaker, 2006).

O empréstimo do nome pode ter feito parte, em algum momento da vida, de aproximadamente quase metade das pessoas de baixa renda, sendo aparentemente comum na sociedade brasileira (Alves et al., 2013). As decisões tomadas em prol do empréstimo de algo tão simbólico, como o nome, também podem ser observadas sob a ótica da dádiva, funcionando como pontes nos relacionamentos sociais, visto que para manter a relação de dádiva, é preciso que ambas as partes estejam dispostas aos riscos de cultivá-la via crédito, tendo em vista as incertezas que permeiam este tipo de relação.

Dessa forma, todo ato de dádiva envolve sacrifício. Entretanto, trata-se de um sacrifício que se mensura sobretudo por meios subjetivos (Mauss, 2003). O uso social dos bens - físicos ou não, é um ato carregado de sentido (Appadurai, 2008) e que se entrepõe nas relações de dádiva, ainda que tais bens sejam os nomes.

Frente as questões pontuações, é possível notar que diferentemente das trocas formais realizadas por meio do estabelecimento de um contrato, na dádiva, a figura do doador merece especial atenção, visto que o significado de um bem já está permeado pelo status de quem doa, representando sua condição e demonstrando seu valor (Vizeu, 2009), mesmo que este doador seja um estranho, pois existem pessoas pelas quais certa simpatia é cultivada em virtude de representarem algo pelo qual o indivíduo se identifica (Godbout, 1999).

Por esse motivo, a presença de um contrato subjetivo na dádiva reforça a sensação de dívida, ao contrário das relações mediadas por contratos formais e por indivíduos que não se identificam. A falta de afeto em tais relações tende a diminuir sobremaneira a sensação de culpa, por exemplo (Fox & Lears, 1983). Em suma, a revisão de literatura aponta que o fracasso no pagamento de uma dívida simbólica, ou uma retribuição que nunca aconteceu, pode criar um desejo de compensação no doador, que culpabiliza o donatário. Tal esforço mental relaciona-se com uma interiorização advinda de uma pressão social igualmente simbólica. Isso é, o donatário passa a possuir um ideal de promessa que deve ser compensada de alguma forma no futuro, mantendo a ligação entre eles (Peixoto Junior, 2004).

Em suma, essa liberdade acorrentada da dívida encontra no prazer sua moralidade e seu sacrifício. A princípio, o prazer pertence ao doador em função da alegria do doar e o sacrifício que dele se origina. Ao donatário, lhe resta a punição, a perseguição a si mesmo pela promessa da reciprocidade (Peixoto Junior, 2004).

Vale mencionar que ao se associar a dádiva e o crédito, é necessário reafirmar que a dádiva se instala em uma posição incalculável, que concebe como inadequado o isolamento de variáveis, dada a sua dimensão sistêmica. Seu olhar sob o objeto não é maior do que seu olhar sobre as questões subjetivas que a efetivam e a mantém (Pereira & Strehlau, 2012). Por esse motivo, a “admissão do caráter plural de uma sociedade é um passo decisivo para compreendê-la como um efeito de sentido” (Bosi, 1998, p. 7). Como parte dessa diversidade está os idosos de baixa renda, cuja discussão segue na próxima seção.

2.2 O Consumo de Crédito, a Baixa Renda e o Idoso

Aliando o consumo de crédito e a baixa renda, é possível notar o impacto cultural do crédito no mercado. Por exemplo, a crise econômica mundial iniciada em 2008 teve raízes no mercado de sub-prime, isto é, títulos hipotecários destinados aos consumidores de menor renda nos Estados Unidos da América - mercado aparentemente povoado pelos chamados credores predatórios e corretores famintos (Langley, 2014; 2014a).

Outra prática de crédito direcionada também à baixa renda é o microcrédito, que são pequenos montantes de crédito disponibilizados a consumidores que momentaneamente representam alto risco de não pagarem suas dívidas, mas que possuem potencial para se tornarem bons demandantes de crédito adicional no futuro (Ossandón, 2014).

Nesse contexto, é interessante mencionar o trabalho etnográfico conduzido por Maurer, Nelms and Rea (2013), no qual os autores reconhecem o papel social vital do consumo de crédito na criação de confiança, manutenção e formação de relacionamentos. Os autores destacam na esfera cultural, que o crédito não é apenas uma ponte para se alcançar o produto ou serviço que se deseja consumir, mas possui, ele mesmo, agência nas relações sociais. Bensa (2006), em sintonia, afirma que quando os participantes de sua pesquisa falam de trabalho, salário, venda, dinheiro, ir ao mercado e sustentar a casa, eles não estão preocupados com aspectos econômicos, mas estão falando sobre como viver e viver bem por intermédio do crédito, sendo mais um projeto de vida do que um projeto mercantil, definindo até mesmo os papéis que cada indivíduo irá assumir na constituição de um lar e como será julgado por isso, por exemplo (L’Estoile, 2014).

Complementarmente, é interessante considerar que a economia capitalista moderna destaca que o mercado de crédito implica um quadro de referência comum, estabilizado e que define as expectativas. Tanto o desejo de maior previsibilidade do futuro quanto o cálculo parecem essenciais para mover esse mercado. Ter crédito trata de um modo específico de se relacionar com o futuro, baseado em esforços constantes para reduzir a incerteza (Brian, 2009).

Essa incerteza pode envolver tentativas de reduzir a privação, por exemplo, quando as pessoas dizem que estão experimentando necessidade (passando necessidade) ou experimentando a fome (passando fome). A incerteza é menor quando alguém ajuda alguém, na qual pode esperar ser ajudado mais tarde. Nesse cenário, não se pode prever como os próprios parceiros vão reagir em uma interação, mas quem ajuda e quem é ajudado tem expectativas definidas quanto às suas possíveis ações (L’Estoile, 2014).

Quando indivíduos de baixa renda são interrogados acerca da possibilidade de ter mais crédito no futuro, na realidade que L’Estoile (2014) estudou, eles formularam sonhos em vez de projetos. Em outra realidade, o indivíduo se relaciona com o crédito se comportando mais pró-socialmente, ou seja, escolhendo salvar pessoas, querendo tornar suas formas de sociabilidades mais amplas e ser melhor nos processos de socialização (Vohs, Mogilner, Newman, & Aaker, 2012). Outro tipo de retorno obtido por meio do crédito é a atratividade, já que, em um dado contexto, as pessoas que economizam são mais atraentes romanticamente (Sharma & Keller, 2014).

Ainda sobre indivíduos de baixa renda, agora em um contexto brasileiro, percebe-se que há um considerável conjunto de publicações sobre esse estrato de consumidores desde o início dos anos 2000 quando a temática passou a compor a agenda de pesquisadores do Marketing no Brasil (Silva & Rabelo Neto, 2018; Nogami, Vieira & Veloso, 2018; Hemais & Casotti, 2017; Natt, Barbosa, Vieira & Carrieri, 2017 para citar alguns trabalhos mais recentes), deve-se investigações com o propósito de investigar a relação consumo de crédito e baixa renda ainda pode ser considerado incipiente. Uma das exceções fica por conta da pesquisa conduzida por Nepomuceno and Laroche (2015) realizada com 457 clientes de instituições bancárias no país. Os resultados do estudo destacaram que as pessoas mais materialistas procuram ter maiores saldos de contas para sustentar a tentação de consumir, isso é, são mais poupadoras para comprar mais em momentos específicos da vida (poupança invertida – poupança para gastar). Nessa pesquisa, os indivíduos de baixa renda possuem saldos maiores quando afirmam que as posses são fontes de felicidade. Além disso, os que utilizam os bens para sinalizar sucesso são mais propensos a possuir maiores dívidas (Nepomuceno & Laroche, 2015).

Cabe mencionar ainda que o consumo de crédito pela baixa renda também é culturalmente interpretado como a única maneira de superar sua condição empobrecida, sendo uma alternativa flexível que ajuda a reduzir as diferenças estabelecidas em uma sociedade de classes (Bavel & Trujillo, 2003).

Especialmente sobre os idosos, as pesquisas no contexto norte-americano ganharam destaque a partir de 1950. Atualmente, a produção estadunidense aponta que este consumidor é mais objetivo, detém um bom relacionamento familiar, um comportamento financeiro de baixo risco, é usuário de serviços de aconselhamento de consumo ao crédito, é possuidor de uma boa aposentadoria, opta por trabalhar em tempo parcial (Xiao, Sorhaindo, & Garman, 2006) e prefere consumir por meio de cartões de crédito (Pulina, 2010).

No Brasil, somente a partir de 1980 que a terceira idade vem recebendo maior atenção dos pesquisadores brasileiros (Castro, Guilam, Sousa, & Marcondes, 2013). No campo do Marketing, boa parcela dos acadêmicos ainda percebe o consumidor idoso em níveis cognitivos ou comportamentais, raramente ampliando suas análises para esferas mais culturais (Moschis, Mosteller, & Fatt, 2011). Em grande parte dos estudos, os investigadores do Marketing se utilizam de várias formas de resposta cognitiva, avaliando desvios de uma decisão ótima, capacidade de filtrar uma publicidade espalhafatosa ou o uso de heurísticas. Em contraste, no nível comportamental, o foco é o comportamento do consumidor idoso como consequência de respostas cognitivas, por exemplo, a predisposição às fraudes ou ações resultantes da insatisfação com um produto ou serviço (Moschis, Mosteller, & Fatt, 2011).

Pode-se considerar, portanto, que ampliar os estudos para uma esfera cultural envolve perceber que não existe um padrão homogêneo de consumidores idosos controlados apenas por fatores cognitivos e/ou comportamentais, isso é, há diferenças entre atores e observadores ao construírem sua própria realidade social e suas percepções seletivas sobre o que se entende sobre o comportamento do consumidor idoso (Hörl, 2007).

A maior parte das pesquisas sobre idosos e a aquisição de crédito descreve as instituições que atuam no mercado de crédito, por exemplo, as instituições financeiras, como entidades que oferecem apenas benefícios a esse público. Um destes trabalhos afirma o quanto o “setor de serviços financeiros como um todo é o mais confiável” em relação as demais organizações que trabalham com os idosos (Devlin, Ennew, & Sekhon, 2015). Igualmente, nas pesquisas de alguns acadêmicos do Marketing, é comum que o idoso seja retratado apenas como uma oportunidade de market share.

Como ilustração, uma destas pesquisas alerta que “dada a importância do mercado consumidor idoso no desenvolvimento de estratégias de marketing bem-sucedidas [...] é imperativo que os decisores de marketing” respondam as necessidades “deste segmento de consumo significativo”. Isso seria alcançado pelas empresas de mercado de crédito se elas implantassem “estratégias de intervenção sustentáveis”, o que na prática representa a promoção de “programas de educação financeira [instrumental] para idosos pobres” em contrapartida aos “dividendos enormes” que a baixa renda representa para os bancos (Oumlil & Williams, 2011, p. 274). Ou seja, dadas certas condições de vida, as instituições se apresentam como salvadoras.

L’Estoile (2014) usa a noção de campo de oportunidades para se referir ao conjunto de possibilidades e constrangimentos que definem em um dado momento as condições de vida materiais e simbólicas para um grupo de indivíduos, entendendo que esta noção é próxima ao conceito weberiano de oportunidades de vida (Lebenschancen), equivalente a um quadro cognitivo e normativo usado pelas pessoas para dar sentido ao seu mundo e agir sobre ele. Nessa visão, consumir crédito possui múltiplos quadros de referência ou visões de mundo, estruturas mentais, culturais ou mesmo ontológicas, o que implica valores e crenças sobre o que é o mundo, o que constitui uma boa vida e o que é ser uma boa pessoa (Redfield, 1965), o que amplia a importância da compreensão da esfera cultural.

Desta forma, esta breve seção indica que há espaços teórico-metodológicos nos quais este trabalho pode atuar, como as expressões de dádiva no consumo de crédito pelo idoso de baixa renda, proposta deste estudo. Para tal intento, a próxima seção indicará a metodologia adotada para compreender essas expressões.

3 Metodologia

A pesquisa empírica foi desenvolvida em uma cidade da região metropolitana de Belo Horizonte a partir de um projeto social mantido pelo poder público municipal denominado “Projeto Municipal Feliz Idade”, que promove encontros semanais com 120 idosos de baixa renda, divididos em 84 mulheres e 36 homens com 60 anos ou mais.

Como abordagem, a pesquisa fez uso de procedimentos etnográficos de observação participante e entrevista. A etnografia foi o meio que possibilitou a compreensão dos hábitos e das relações entre os participantes (Malinowski, 1984). Os instrumentos de coleta de dados utilizados foram os diários de campo e a entrevista em profundidade individual com roteiro semiestruturado, conduzida no local das atividades do projeto social (Cooper & Schindler, 2016).

O período de coleta de dados teve início em abril de 2016 e seguiu até dezembro do mesmo ano, ininterruptamente. Os pesquisadores estiveram presentes em 32 encontros, equivalente a aproximadamente 160 horas em campo. A entrada dos pesquisadores nesse ambiente se deu por meio do contato de um dos membros da equipe com a Secretaria Municipal de Assistência Social da cidade. A participação dos pesquisadores foi efetiva ao longo de todos os encontros, ou seja, buscou-se uma interação ativa com o público entrevistado tanto no auxílio das diversas atividades conduzidas com os idosos pelos dirigentes do projeto, como na promoção de algumas ações como oficinas e palestras pelos próprios pesquisadores. Essa prática construída ao longo dos nove meses do trabalho de campo, além de favorecer a construção de um ambiente amistoso e propício à discussão de questões íntimas da vida dos idosos, serviu para coletar dados observacionais que vieram a compor, juntamente com as entrevistas, um rico material para análise.

Nessa etapa, durante o processo de observação participante, foi possível notar a emergência do tema “consumo de crédito” que, atrelado aos aspectos da dádiva em boa parte dos diálogos dos idosos, acabou por motivar os pesquisadores a se dedicar ao entendimento do fenômeno.

Em adição, durante a pesquisa foram obtidos recursos financeiros oriundos da Association for Consumer Research – ACR, responsável institucionalmente pela área de comportamento do consumidor, o que permitiu assumir parte dos custos da coleta de dados e entrevistar 25% dos participantes, dada a quantidade de idosos no projeto. O critério utilizado para selecionar os entrevistados foi a disponibilidade, relativa aos que demonstraram interesse em participar, confirmaram a participação e estavam presentes no momento do encontro (Bauer & Gaskell, 2003).

A fase dos encontros individuais para as entrevistas foi iniciada decorridos 5 meses no campo e finalizada em dezembro de 2016, totalizando 30 entrevistas. Nenhuma foi descartada na análise. Todos os participantes tinham entre 62 e 84 anos e se dividiam entre 10 homens e 20 mulheres com renda decorrente da aposentadoria dentro do limite considerado como baixa renda. O conceito de baixa renda utilizado na pesquisa baseou-se nos critérios propostos pela a Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP), que classifica a renda média familiar brasileira em estratos socioeconômicos. Em ordem crescente quanto ao nível de renda, as denominações se iniciam em: (1) extremamente pobre ou E, (2) pobre, mas não extremamente pobre ou D, e (3) vulneráveis ou C2, com renda familiar média de até R$ 1.625,00. Estas três faixas representam o recorte de baixa renda adotado nessa investigação.

Cabe reforçar que as entrevistas foram gravadas em áudio, resultando 20 horas e 53 minutos e transcritas na íntegra em Word, totalizando 871 páginas para análise, quando foram consolidadas em um arquivo único.

Para análise dos dados coletados, utilizou-se a análise textual discursiva, que consiste em uma “abordagem de análise de dados que transita entre duas formas consagradas de análise na pesquisa qualitativa, que são a análise de conteúdo e a análise de discurso”. (Moraes & Galiazzi, 2006, p. 118). Sua escolha justifica-se, pois possui aderência epistemológica ao propósito e referencial que sustentam este trabalho, que representa um recorte de uma pesquisa de campo ampla e estruturada, que se propõe a investigar e analisar as várias facetas e aspectos envolvidos no tema consumo de crédito como expressão da dádiva sob a perspectiva de idosos de baixa renda.

Esta característica que permite ao pesquisador construir suas categorias de análise a partir do movimento de interpretação do significado que é atribuído a partir da interlocução que se estabelece com a experiência empírica, só é possível em pesquisas nas quais ocorre um envolvimento do pesquisador com os sujeitos pesquisados, como a etnografia, a pesquisa-ação, a observação participante, dentre outros.

Em função dessas características, tais trabalhos permitem ao pesquisador a condição de exercitar a apropriação das diversas vozes e sentidos construídos a partir desse movimento de interlocução e interpretação que se estabelece com o campo. Após a unitarização, passa-se à organização dos significados semelhantes, chamada de etapa de categorização, na qual são reunidos os enxertos semelhantes, gerando diversos níveis de categorias de análise. Os processos recursivos permitem que a análise possa se deslocar do que foi observado empiricamente até se chegar a possibilidade de proposição teórica. Todo este processo gera meta-textos analíticos que irão compor os textos interpretativos da análise dos resultados (Moraes, 2003; Moraes & Galiazzi, 2006; Moraes & Galiazzi, 2011), apresentados na próxima seção.

4 Análise dos Resultados

Atendendo aos critérios teóricos e empíricos que orientam os objetivos deste trabalho, foram construídas categorias que reuniram elementos textuais semelhantes, trabalhados em etapas recursivas, modificados e reorganizados por meio de um processo em espiral, pois, conforme orientam Moraes e Galiazzi (2011, p. 125), “as categorias não saem prontas, para se chegar até elas, exige-se um retorno cíclico aos mesmos elementos até sua gradativa qualificação”.

Neste sentido, os dados foram avaliados e organizados em categorias, em termos de sua validade e pertinência, apoiados na interlocução entre aspectos culturais brasileiros, expressos no cotidiano dos sujeitos participantes, e a teoria da dádiva, em um contexto de consumo de crédito. Para tanto, três categorias emergiram desse entrelaçado processo de análise: ‘o nome como dádiva’; ‘a reciprocidade e a dádiva’ e ‘o “custo” da dádiva’, todos eles articulados entre si.

4.1 O “Nome” como Dádiva

O “nome”, um bem que é símbolo de status e elemento de identidade, incorpora o sentido de “crédito”, na forma de cheque, cartão de crédito e crediário em lojas da região, assumindo, assim, um papel importante nas relações de família e amizade. O nome assume o lugar de dádiva, que, ao recriar e fortalecer os vínculos entre a família e os laços de amizade, por meio de seu uso e empréstimo, garantem a circulação de bens materiais e simbólicos (Mauss, 2003; Vizeu, 2009), constituintes da vida em sociedade (Pereira & Strehlau, 2012), conferindo-lhe singularidade social (Godbout, 1999, Temple, 1998), retratando o que se espera da dádiva. Assim, o que as pessoas querem valorizar e o que está “em jogo” é o seu próprio nome.

A valorização e a importância que se atribui a esse bem, instiga-os a manterem o crédito disponibilizado em dia, ou seja, existe a preocupação com a pontualidade dos pagamentos, afinal, é preciso retribuir, o que para eles, foi doado de bom grado. Percebe-se isso no campo, em trechos como: “é porque meu ponto de vista é assim, você deve, você tem que pagar. Se na loja eu fui tão bem recebida, eu tenho o dever e obrigação de andar direita” (E9). Em complemento, a relação da dimensão do crédito ao sistema de obrigações que ele gera na dinâmica das relações entre uma comunidade pequena e pobre se manifesta no comércio local, onde o comerciante oferece o crediário aos seus clientes e são vistos por estes como pessoas que os auxiliam, portanto, alguém com quem eles possuem uma dívida financeira e moral, por isso, é preciso ser fiel e sempre manter a relação de trocas em dia (Barros & Rocha, 2009), se assemelhando à visão salvadora de Oumlil & Williams (2011).

A diferença, neste ponto, é que o nome doado como dádiva adquire contornos igualmente salvadores. Sem ele, não seria possível obter crédito em qualquer ofertante de crédito local. Tanto o nome doado quanto a instituição que empresta são considerados generosos e solidários, em consonância com os aspectos culturais brasileiros apontados por Brusky & Fortuna (2002).

No caso do campo em análise, trata-se de uma cidade com pouco mais de 25 mil habitantes, o que pode facilitar a compreensão do senso de solidariedade e da importância da rede de conhecidos nas entrevistas, facilitando os atos de dádiva, a criação e o reforço dos vínculos estabelecidos (Vizeu, 2009), que normalmente são de muitos anos. Manter o nome limpo significa honrar os compromissos financeiros, significa também manter sua imagem perante a comunidades local ilesa: “por isso que eu moro aqui há dezoito anos e tenho meu nome muito limpo aqui” (E6).

A manutenção do nome adquire especial importância em uma comunidade em que as pessoas se conhecem, especialmente os idosos, haja vista a inserção naquele contexto social há muitos anos. Entre todos os entrevistados, parece existir uma grande preocupação em manter a reputação do nome, o que igualmente esperam daqueles que são ajudados com a doação do nome para empréstimos. “Nunca deixei de pagar uma dívida. Nunca. Eu não gosto de deixar as minhas dívidas sem pagar e também não gosto que ninguém fica me devendo também” (E16). O bom grado da doação do nome cria um contrato subjetivo (Fox & Lears, 1983) que é acompanhado por uma pressão simbólica dado o ideal de promessa, o que mantém a conexão entre os envolvidos (Peixoto Junior, 2004).

Entretanto, a falta de garantia e o senso de solidariedade não são sinônimos de não aguardar absolutamente nada em troca. A reciprocidade também está associada ao sistema de dádivas de Mauss (2003), no qual o dar, receber e o retribuir conferem seu sustentáculo. Ao aceitar a dádiva, “a pessoa sabe que se compromete” (Mauss, 2003, p. 248). Quando o contrato subjetivo é quebrado, o laço social também o é. Isto fica claro nas entrevistas quando se referem a pessoa que recebeu a dádiva como uma pessoa que era amiga.

Emprestei para uma pessoa que dizia ser minha amiga e quando meu marido faleceu eu já estava com depressão, eu estava com diabetes e não sabia, aí sempre tem um aproveitador. Tinha uma pessoa que dizia ser minha amiga, ia na minha casa, comia, deitava na minha cama, chorava junto comigo, aí um dia ela me pediu um cheque, e eu emprestei […] (E1).

Estes idosos de baixa renda são frequentemente solicitados a tomarem empréstimos em seus nomes, especialmente por familiares em busca de juros mais baixos ou porque tais familiares estão impedidos de tomarem crédito por si mesmos por causa do nome sujo. Grande parte dos idosos já se acostumaram e parecem esperar que as abordagens aconteçam a qualquer momento “[...] não tem jeito né? Eles sabem que as taxas são bem menores” (E12). As famílias são numerosas e muitos familiares ou pessoas próximas, também de baixa renda, encontram nos idosos uma oportunidade de aliviar a pressão sobre suas próprias vidas financeiras.

Em tempo de crises, como a vivida pelo Brasil atualmente, a importância financeira do idoso na família parece aumentar, haja vista a certeza da entrada de recursos advindos de sua aposentadoria mensal e a possibilidade de se obter crédito com certa facilidade a custo mais baixo. Por estes motivos, o nome do idoso torna-se ainda mais relevante.

Foi percebido que nas famílias destes idosos, os membros estão em constante interação, o que pode refletir parte da cultura brasileira, especialmente em faixas mais baixas de renda, nas quais a proximidade permite o auxílio (Bavel & Trujillo, 2003). Aliado a isto, a preocupação destes idosos com o pagamento de qualquer tipo de dívida, “porque eu compro as coisas assim, [...], todo mês eu vou ali e pago direitinho” (E17), transforma seus nomes em verdadeiras preciosidades a serem ofertadas como dádiva.

Ao perceberem parentes mais próximos em uma má condição de vida, não é incomum que estes idosos ofereçam a dádiva, ato que os fazem se sentirem mais úteis. Em uma sociedade relacional como a brasileira (na qual o valor fundamental é relacionar, juntar, confundir, conciliar) (DaMatta, 1997), não retribuir, nesse caso, determinaria afastamentos ou, até mesmo, a redefinição dos relacionamentos. “Gosto de ajudar meus filhos, me sinto bem quando posso ajudar, se eu vejo que alguém precisa, eu mesma ofereço, não espero me pedirem” (E29). “A dádiva é antes de mais nada uma dádiva” (Godbout, 1999, p. 116). O ato de doação do nome como dádiva para a obtenção de crédito é algo que provoca não apenas o prazer da doação para esses idosos, mas a dádiva auxilia na manutenção do senso de pertencimento (Goudbout, 1999), tema que parece ser ainda mais sensível para esta faixa etária.

Em suma, como mencionado pela literatura, a abertura a doação vem acompanhada da espera por algum retorno, gerando o senso de reciprocidade, tema da próxima categoria.

4.2 A Reciprocidade e a Dádiva

O significado do bem por meio da dádiva representa o status da condição e valor do doador (Appadurai, 2008, Vizeu, 2009). As transferências de significados simbólicos são expressas pela troca (McCracken, 2007), que possibilita a observação e explicação das relações, incluindo diversas perspectivas (Vizeu, 2009). A reciprocidade, que pode ser encarada como resposta à doação, embora não seja obrigatória no sistema de dádivas, é aguardada. Se estes idosos emprestam seus nomes a alguém, eles esperam que este alguém os retribua, pagando em dia e honrando o compromisso assumido. Assim como um bem, o crédito pode ser emprestado e repassado a vizinhos, amigos e familiares.

Desse modo, ao se emprestar o nome para outro, a pessoa que recebeu essa dádiva passa a ter uma “obrigação” que vai para além do pagamento. Essa obrigação se inscreve no próprio bem adquirido, tal qual um presente, que carrega em si, a marca da confiança que o amigo ou parente lhe depositou. Assim, o empréstimo do nome e seu devido pagamento acabam por estreitar os laços de confiança e amizade entre vizinhos e parentes, mantendo o sistema de dádiva em circulação (Barros & Rocha, 2009).

A necessidade da reciprocidade é implícita, não dita, presente para ambos, marcada por um novo laço de obrigação na relação entre ambos, a dívida a ser paga e a dívida social. A dívida a ser paga é a dívida objetiva, aquela que não se discute, ela simplesmente deve ser honrada. A dívida social é a dívida do favor, da liberdade acorrentada de Peixoto Junior (2004). O donatário sempre deverá um favor ao doador e ele não poderá se esquecer disso. Existe a indicação de que não cumprir qualquer aspecto da dívida significa dor moral para ambos, isso é, o doador tem sua confiança abalada e o donatário sente que a rompeu. “Se a gente não tiver condições de pagar e a pessoa não puder pagar a gente, né? Para os dois lados ia ser ruim” (E11). “Ela me disse que não pagou em dia e que a consciência dela ficou doendo de não me pagar, né? Porque a gente aqui é assim, a gente considera a pessoa na frente, a gente dói por aquela pessoa não ter recebido, né? ” (E4).

Foi percebido que a reciprocidade não é esperada pela troca de itens iguais, dinheiro por dinheiro, por exemplo, ela parece cumprir seu papel por outros caminhos para estes idosos. “Sei que se eu precisar eu posso contar com ela, é a única filha que vem aqui quase todo dia, me ajuda a limpar a casa, a lavar roupa” (E7). É por meio das coisas simples, da atenção, da presença, da ação cotidiana que esses idosos valorizam as pessoas que estão a sua volta. Participar de suas vidas envolve a participação nas tarefas e necessidades cotidianas, indo ao encontro do pensamento de Temple & Chabal (1995), reforçando o vínculo social e cumprindo a reciprocidade. Trata-se de um círculo virtuoso, quanto mais presença e ação na vida daquele idoso, mais aquela pessoa merece a dádiva de seu nome, mais ela pratica reciprocidade.

Em suma, ao emprestar o nome, tendo em vista o contexto em que vivem com escassos recursos, estes idosos não esperam retribuições financeiras, eles sabem que os donatários não poderão fazê-lo. Eles esperam a reciprocidade da dádiva por meio do afeto, isto é tão importante quanto a honra ao pagamento da dívida. Se os beneficiários da dádiva são os familiares, a presença e o apoio nas mais diversas vivências desse idoso é o esperado. Se o beneficiário é um amigo, a mais sincera amizade, permeada pelo sentimento de gratidão, é a retribuição perfeita. Estes idosos doam solidariedade e generosidade, expressos por meio da dádiva do nome e esperam apenas que os sentimentos positivos retornem.

Ganha relevo nessa discussão a questão do compartilhamento. Percebeu-se no contexto dos idosos de baixa renda pesquisados, tal como apontado por Sarti (1996), que a partir do empréstimo do nome estabelecem-se vínculos que fomentam o compartilhamento de objetos que acabam por reforçar as relações sociais, uma vez que esses bens podem ser dados, devolvidos, vendidos, emprestados ou utilizados conjuntamente por meio de diversos arranjos possíveis. Porém, a dádiva pode levar a “custos” pelos atores envolvidos, questão a ser discutida na próxima seção.

4.3 O “Custo” da Dádiva

A sociedade brasileira é relacional, e, por isso, a rede de relações acaba assumindo um papel relevante no cotidiano das pessoas. Estar disponível para ajudar o outro em suas necessidades ou problemas financeiros torna-se uma atitude esperada, no entanto, ao se realizar tal ato, pode-se adquirir um problema. Afinal, esse “duplo papel nas questões financeiras: de um lado, ajudam a resolver problemas financeiros; de outro, criam problemas financeiros” (Mattoso, 2005, p. 37).

Eu lembro que fui comprar um notebook, aí ela... não sei, tem pessoas que eles conseguem ter um domínio sobre você, que ela acabou comprando uma impressora e um notebook e não pagou. Meu nome foi para o SPC (E8).

Ao “emprestar o nome”, empresta-se a si mesmo, assim como a dádiva, quem doa alguma coisa a alguém doa a si próprio. Ao doar-se, assume-se um risco inerente a essa transação simbólica do crédito. O risco de o beneficiário da dádiva não honrar o compromisso e retribuir pagando pela dívida, o que implicaria em “sujar” o nome e perder o crédito. E tal perda significa abafar a autonomia e ser excluído do mercado (Barros e Rocha, 2009). “Meu nome está no SPC até hoje. Eu não consegui pagar. Eu cobrei várias vezes, mas não adiantou. Depois disso a amizade acabou” (E13). Ser excluído do mercado pode adquirir contornos ainda mais fortes em uma cidade tão pequena, onde os relacionamentos são ainda mais próximos.

Assim, percebeu-se que não honrar significa a quebra de toda a relação com o donatário e uma grande dor de cabeça ao doador, que deverá “se virar” para assumir o compromisso deixado de lado. A exclusão do mercado de crédito não é apenas do doador em uma cidade pequena, mas do donatário também. Ainda que seu nome não esteja conectado à dívida, os moradores sabem, “o povo todo sabe que ela não paga, ninguém empresta” (E23), o que dificulta a aquisição de novos empréstimos por parte do donatário. O nome não será uma dádiva que será recebida tão facilmente outra vez por aquele que desonrou o doador.

Em adição, quando questionados sobre o esforço para pagarem a dívida de terceiros, em benefício de terem seus nomes “limpos” novamente, eles respondem: “A gente vai só juntando, mas o juro vai só aumentando. Mas eu não vou deixar de comer, eu não vou deixar de vestir, eu não vou deixar de cuidar do básico na minha vida para pagar. Até porque os juros são exorbitantes, né? ” (E23). Estes idosos são de baixa renda, muitas vezes não possuindo qualquer quantia para despesas extras. Assumir o custo de uma dívida que não é deles representa um grande impacto em seus orçamentos. Neste caso, o custo é objetivo, é quantificável, mas não se trata apenas desse tipo de custo. Logo, o custo é objetivo, relacional e social também.

A consequência imediata de ficar inadimplente é o aspecto prático de não poder comprar um bem a crédito. O “nome sujo”, neste caso, tem por consequência imediata a exclusão do crédito formal, que pela legislação atual, pode durar por cinco anos (Chauvel e Mattos, 2016). Entretanto, o problema não está limitado a isso, pois existe a vergonha de estar nessa situação. São as consequências “existenciais mais profundas – perder a identidade – passar a depender dos outros” (Mattoso, 2005, p. 164). “Nunca mais empresto” (E27) é o trecho que que mais se escutou no campo quando a promessa não se cumpre, quando a relação é quebrada e o custo é transferido a quem não usufruiu de qualquer bem. A “mancha” que se forma no nome de um mal pagador se espalha por uma comunidade, que parece compartilhar o desaforo do custo assumido pelo doador.

É importante frisar que o risco do empréstimo para estes idosos envolve áreas muito sensíveis, desde as despesas simples do cotidiano, como as contas de água, luz, telefone, impostos, até as despesas atreladas a manutenção da vida, como os gastos com medicamentos, médicos, alimentação, locomoção, abrigo e proteção, como foi observado no campo. Não honrar a dívida impacta fortemente no estilo de vida deles, que muitas vezes não possuem o dinheiro necessário para arcar com o valor não pago pelo donatário da dádiva.

Nesse contexto, os riscos são físicos e psicológicos, a preocupação com o pagamento da dívida, a vergonha e as constantes cobranças provocam algum grau de abalo mental nestes idosos, que demonstram muita preocupação e zelo com os pagamentos em dia.

Finalmente, a partir das análises realizadas, o artigo focará nas considerações finais.

5 Considerações finais

Ao chegar à seção de considerações finais, é possível tecer comentários de cunho conclusivo acerca do trabalho. Entre eles, deve-se salientar que a dádiva do nome vai além do pagamento correto. O pagamento correto parece ser expectativa de ambas as partes sob qualquer tipo de acordo, seja ele formal ou não. A partir da discussão proposta, foi possível notar que estes idosos possuem muito orgulho ao falarem dos pagamentos em dia. A dádiva abarca não só a objetividade do ato de pagar. Ela vai mais fundo, penetra sobre o subjetivo, transformando algo singular e único, os afetos, os laços, as emoções, em algo palpável como o empréstimo do nome. O nome é doado com afeto, como parte de alguém, é a doação de parte de alguém. Não pagar já seria inaceitável, mas não reconhecer o valor dessa doação de parte do outro é ainda mais grave, é preciso ser eternamente grato. Parece ser preciso pagar “a altura” algum dia e ainda assim, reconhecer que a dívida é eterna pela unicidade do ato.

No mesmo sentido, a dádiva do nome é doar parte desse significado para o outro, que na dívida, assume parte do doador, afinal o empréstimo levou o doador para o ato e todo o significado do seu nome. Esta é uma maneira pela qual se posicionam no mercado de crédito, respondendo ao primeiro objetivo específico desta pesquisa. É por meio da dádiva que expressam o seu valor, a sua utilidade, se sentem bem e felizes por poder fazê-lo. O empréstimo de um bem tão valioso quanto o nome para essas pessoas é apenas o primeiro degrau na tomada de crédito, o que aumenta o impacto da figura do idoso no mercado de crédito, especialmente na baixa renda.

Não é escusado afirmar que essa dinâmica fortalece as relações familiares, os vínculos de amizade, o senso de pertença a uma comunidade, cumprindo o objetivo fim da dádiva. Esta percepção cumpre o segundo objetivo específico deste trabalho, isso é, a assimilação da maneira pela qual estes idosos esperam a devolutiva das relações sociais em um contexto em que se inserem como tomadores de crédito.

Ao se emprestarem, como primeiro passo da obtenção de crédito, esses idosos de baixa renda assumem riscos que parecem ser tanto físicos como psicológicos. Físicos porque coloca em xeque a capacidade desse idoso em conseguir arcar com as despesas básicas como alimentação e gastos relacionados à saúde. É psicológico também porque está atrelado à preocupação em manter os pagamentos em dia. Assim, a dádiva não honrada representa impactos à saúde do idoso, o que permite compreender parte da dimensão dos impactos da tomada de crédito para terceiros a partir desses idosos - último objetivo específico deste trabalho.

Frente a essas reflexões, este trabalho buscou compreender como o consumo de crédito se expressa como dádiva, ao se analisar a perspectiva de idosos de baixa renda. No ciclo relacional desses idosos, o ato de doar, receber e retribuir nem sempre é o laço que se faz entre doador e donatário, isso porque: a dádiva é vivida em comunidade, seus efeitos são anunciados, a quebra de qualquer parte do ciclo representa um ato contra a própria comunidade e não apenas com o idoso prejudicado. Essas pessoas se unem para ter acesso a um mercado de crédito exigente, que não é justo com todos. Elas precisam estar unidas em suas vulnerabilidades, pobres, idosos, desempregados, doentes ou qualquer que seja o elemento que diminua seu poder de acesso ao crédito. Quebrar este ciclo social significa um atentado à dádiva coletiva, local em que um nome é mais do que um nome, é um elemento do escopo social que salva e melhora vidas. Ainda que esses idosos não sejam formalmente instituições financeiras, eles participam em termos simbólicos, do mercado e consumo de crédito ao cumprirem seu papel social com maestria durante a vida na baixa renda.

É importante ressaltar que os resultados do estudo trazem à baila alguns elementos que compõem avanços importantes no tocante às temáticas da dádiva, consumo de crédito e idosos de baixa renda. Em primeiro lugar, é possível levar em conta que, ao articular esses temas trabalhados em uma perspectiva cultural e socialmente construída da vida cotidiana dos atores, isso já se constitui uma contribuição que não pode passar despercebida. Em segundo lugar, no que tange à dádiva, o estudo avança no entendimento da dádiva na ótica do consumo de crédito, algo que ultrapassa o limite dos trabalhos que se limitavam o consumo de bens. Ademais, os resultados discutidos descortinam a questão do “custo” e o “risco” da dádiva, elementos pouco presentes no relato de outros trabalhos que contemplaram a temática. O trabalho ainda contribui para trazer para campo do consumo discursos proferidos por indivíduos de “carne e osso” coletados por pesquisadores que buscaram uma imersão efetiva e profunda na realidade dos sujeitos investigados.

No que se refere às implicações gerenciais, os resultados do trabalho ajudam a ratificar a ideia de que organizações dedicadas a oferecer produtos e serviços para o público idoso, principalmente aqueles de baixa renda, precisam lançar mão das características que compõe esse grupo. Ofertantes de crédito, bancos, financeiras, entre outras, precisam alinhar suas estratégias de comunicação e relacionamento aos significados construídos pelos idosos, conforme apresentado e discutido aqui. Por outro lado, os formuladores e implementadores de políticas públicas voltadas aos idosos também podem se cercar desses elementos para aumentar a eficácia de suas ações visando diminuir as disfunções e assimetrias presentes nas relações entre governo, empresas e cidadãos.

Nesse ponto, torna-se pertinente apontar algumas limitações acerca do trabalho. Em primeiro lugar, os resultados desta investigação podem se restringir ao contexto desses idosos, localizados geograficamente e com histórias de vida muito particulares. Atrelada a essa questão, não se pode deixar de mencionar que um estudo de cunho etnográfico a ser conduzido por pesquisadores pouco experientes nesse campo também se constitui uma limitação relevante. Para mitigar essa limitação, os pesquisadores buscaram, ao longo de todo o trabalho, manter-se fiel aos preceitos básicos desse método clássico do campo da antropologia mas que, por outro lado, vem se mostrando cada vez mais promissor para o campo dos estudos do consumo. Pode ser citada também como uma limitação relevante a ausência de outros estudos que contemplaram a articulação entre as temáticas, o que dificultou a comparação e uma melhor discussão dos resultados.

Por fim, considerando-se a característica exploratória da pesquisa aliada à perspectiva indutiva que norteou o estudo, sugere-se que novas pesquisas levem em consideração o impacto da prática da dádiva sob outras óticas tanto no que tange a outros estratos de consumidores de baixa renda como também em outros contextos culturais. Outras questões que emergiram ao longo da análise podem servir de ponto de partida para outras investigações como, por exemplo, os efeitos na saúde do idoso, haja vista a constante inserção social que a dádiva relacionada ao crédito proporciona. A comparação da prática da dádiva no contexto de crédito em outros contextos como em comunidades de baixa renda ou em “tribos” de consumo específicas, podem oferecer outros insights que contribuam para o avanço do conhecimento no campo do consumo.

Material suplementar
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Notas
Notas
[1] Doutorando em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG. Professor Substituto da Universidade Federal de Viçosa - UFV. Minas Gerais, Brasil. E-mail: bruno.assimos@gmail.com
[2] Doutorando em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG. Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais - UEMG. Minas Gerais, Brasil. E-mail: gtalmeida@sga.pucminas.br
[3] Doutoranda em Administração pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG. Pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG. Minas Gerais, Brasil. E-mail: georgianaluna@yahoo.com.br
[4] Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG. Professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG. Minas Gerais, Brasil. E-mail: marcrez@hotmail.com
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