Artigos
Recepção: 15 Novembro 2017
Aprovação: 14 Fevereiro 2019
DOI: https://doi.org/10.18226/21789061.v11i2p386
Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal buscar compreender, à luz do conceito Hospitalidade, as relações entre as cidades e os espaços públicos, do ponto de vista de seus frequentadores e moradores. Duas praças, localizadas nas cidades de Campinas-SP e São Paulo-SP, foram escolhidas como objetos de estudo, tendo em comum o fato de terem sofrido intervenções e reformas, mobilizando entre frequentadores e moradores, sentimento de identidade e pertencimento. A metodologia utilizada foi a observação in loco, com aplicação de entrevistas e pesquisa em jornais. As resultantes foram analisadas seguindo o proposto pela Análise de Conteúdo. Os resultados apontam para a importância desses espaços na constituição da vida coletiva nas grandes cidades e nas mudanças no uso do espaço público em diferentes momentos. Conclui-se que esses espaços são lugares privilegiados para o entendimento das relações de Hospitalidade no mundo contemporâneo.
Palavras-chave: Hospitalidade, Espaço Público, Pertencimento, Campinas-SP, São Paulo-SP, Brasil.
Abstract: This article objectives to understand, considering Hospitality concepts and goers and residents points of view, the relations between the city and their public spaces. Two squares chosen as objects of study, located in Campinas-SP and São Paulo-SP have in common reforms which eventually mobilized visitors and residents identity and belonging. Methodology included observation, interviews and newspaper analysis. The results point to the importance of these spaces in the constitution of collective life in large cities as privileged places for the understanding of the relations of Hospitality in the contemporary world.
Keywords: Hospitality, Public Space, Belonging, Campinas-SP, São Paulo-SP, Brazil.
INTRODUÇÃO
A cidade supõe uma dimensão pública que se opõe ou complementa a dimensão privada da vida cotidiana, adquirindo diferentes contornos ao longo do tempo que redefinem a relação entre espaço privado e espaço público. Para Rolnik (1998), “a casa se afasta da rua e dos vizinhos ganhando e murando seu lote ao redor” (p. 51). A ascensão da burguesia significou a separação da rua – que passa a ser vista como lugar de perigo e de desordem – e a especialização dos cômodos da casa, constituindo-se espaços privados e outros para o receber ‘público’. Conforme novos bairros são criados, a segregação e diferenças entre os espaços públicos se acentuam, redefinindo o conceito original de cidade como espaço de sociabilidade e de cidadania. Nesse contexto, as praças são ainda a expressão da possibilidade de relações de sociabilidade e de identificação das pessoas.
Sitte (1992), Lynch (1997) e Caldeira (2007) explicam que as praças exercem o papel de protagonistas no desenvolvimento das cidades. Mas, nas sociedades contemporâneas, elas têm se esvaziado e se tornado, muitas vezes, locais de passagem. Borja e Muxi (2003) defendem que a vida urbana depende de um equilíbrio na tríplice relação cidade, espaço público e cidadania, sendo que nenhum destes aspectos pode ser compreendido isoladamente. De fato, a palavra ‘espaço’, quando não acompanhada do adjetivo público, pode remeter à ideia de vazio, refletindo a linha tênue do seu papel na cidade e sua multiplicidade de sentidos. Costa (2014) explica que, para Milton Santos, espaço e globalização são ideias indissociáveis, pois há de se considerar três mundos num só: globalização como fábula, como perversidade e como possibilidade do ser mais humano. Nos três casos, a ideia de espaço aparece enveredando para questões de apropriação versus dominação da propriedade, sem deixar de destacar que em qualquer cenário, o espaço imprime as características da sociedade. Já em David Harvey, o mesmo autor explica que o espaço pode ser avaliado como absoluto, relativo e relacional. O primeiro podendo ser entendido como espaço do mapeamento, localização, posição, propriedade privada e barreiras físicas; o segundo como espaço de circulação, movimento e mobilidade e o último, como espaço das sensações e desejos, entre outros.
Nota-se, assim, que discutir espaço público não é tarefa simples. Trata-se de tema abordado na Filosofia, Sociologia, Urbanismo e Direito, entre outros, num leque de perspectivas que enriquece a construção do conceito e de sua compreensão. Narciso (2009) explica:
O espaço público é um lugar aberto, de acesso irrestrito, um ponto estruturante da malha urbana e confluência de vários caminhos e lugares, é um espaço de passagem e de permanência, construído por diversos agentes, quer na sua forma material ou vivencial. O espaço público é uma estrutura e estratégia de forma caracterizada pelos seus elementos constituintes [que o individualizam], social e economicamente (p. 271).
Em síntese, por espaço público se pode compreender um local de uso comum, de posse coletiva, para expressão da sociabilidade urbana, cuja forma de apropriação sempre impactou diretamente na relação das pessoas com a cidade. A história mostra ciclos em que espaços públicos estiverem sob os holofotes do interesse social dos cidadãos e períodos mais recentes, como o início do século XXI, em que se observa a perda de seu sentido tradicional, como um lugar de reunião, de pertencimento e identificação entre pessoas. Para Caldeira (2000) isso não significa a morte dos espaços públicos, mas, sim, um processo de transformação, adaptado aos traços modernos, cenário em que além de praças, ruas e parques, também são considerados como espaços públicos ou semipúblicos, shoppings, parques temáticos e centros turísticos, entre outros, lugares onde a desigualdade, exclusão e indiferença são mais acentuados. Lembrando Welten (2015), um dos desafios das sociedades contemporâneas é, crescentemente, aceitar o estranho, na dificuldade de uma prática das relações de alteridade acarretando na perda da habilidade básica das pessoas em interagir, acentuando o individualismo.
Tendo isso em vista, observar-se um movimento em busca de nova dinâmica para a gestão das cidades, a fim de mitigar a perda de identidade com o espaço público e minimizar as desigualdades na ocupação da cidade. Há inúmeros exemplos de cidades que buscaram uma ampla revitalização, ou seja, recuperação, reabilitação de áreas abandonadas, antigas, subutilizadas ou degradadas, cujo objetivo principal era colocar o ser humano em primeiro lugar. Uma proposta alinhada ao que Costa (2014) explica ser uma das teses de Milton Santos: uma globalização através de um mundo mais humano, cujo foco de todas as ações seja o cidadão. Não se trata de algo simples, o desafio é grande, pois se faz necessário uma ruptura no modus operandi e políticas públicas. Nesse sentido, é importante pensar na produção de espaços que promovam a interação entre pessoas, com o outro que não é entendido, promovendo vínculos sociais e da sociabilidade.
É a partir deste ponto que as manifestações das relações de Hospitalidade podem ser observadas. Por um lado, tendências contraditórias, que trataremos por ‘ambivalências’, como o crescimento das manifestações em lugares públicos, e por outro, o esvaziamento de lugares potencialmente produtores de sociabilidade, como as praças. A análise crítica das relações de Hospitalidade implica no reconhecimento do seu contrário, a hostilidade no âmbito urbano, apontando para uma sociedade que pode ser acolhedora e inclusiva, mas que, ao mesmo tempo, é excludente e opressora, remetendo mesmo, às muralhas das cidades medievais. Para Camargo (2015), a Hospitalidade se desenrola, nas sociedades contemporâneas, nos interstícios de um cotidiano marcado por sua ausência ou mesmo pela hostilidade, quando assim se consolida o oposto do vínculo social, a ausência de vínculos. Logo, da mesma forma que as manifestações de Hospitalidade podem ser compreendidas a partir da tríplice relação dar-receber-retribuir, a hostilidade é um ritual desencadeado por impedir-recusar-privar e se fazem presentes com grande evidência no cotidiano das cidades e dos espaços públicos. Assim, a Hospitalidade pública pode se valer da dinâmica urbana como ela se apresenta na atualidade.
Chávez e Van der Rest (2014) utilizam a metáfora da Ágora e da Fortaleza, de Weber (1922), para explicar a qualidade da Hospitalidade, que identifica e recebe o estranho, aceitando e integrando as diferenças. Esses autores apontam que, sob a ótica da Hospitalidade, a Ágora representa um aspecto da vida de uma cidade que pode ser equiparado a uma atitude hospitaleira em relação ao novo e ao estranho, à abertura ao outro e à troca democrática de ideias. Por outro lado, utilizam a Fortaleza, em referência às muralhas e fortalezas medievais, como metáfora para ilustrar as leis regulatórias das cidades e a necessidade de segurança, principalmente para evitar a presença de estranhos e de estrangeiros, além de limitar o comportamento dos cidadãos. Enquanto a Ágora simboliza a liberdade, algo muito valorizado pelos gregos, a Fortaleza representa o seu oposto, controlando a entrada de visitantes ou imigrantes, com exigência de vistos, por exemplo, ou limitando o contato entre as pessoas.
Além da compreensão sobre aspectos de Hospitalidade e hostilidade no contexto urbano, se faz necessário também analisar os agentes envolvidos na cidade. Severini (2014) pondera que a definição das personas na Hospitalidade urbana não é muito clara devido à sua complexidade, pois é necessário refletir sobre o papel dos ‘hóspedes urbanos’, que podem ser identificados como os moradores, os turistas ou até mesmo imigrantes. Isto porque todos que vivem a experiência da cidade se tornam turistas nela; um morador que se desloca para outro bairro a fim de conhecer um novo restaurante, museu ou história é um turista dentro da sua própria cidade. A autora ainda destaca que muitas vezes esta relação entre moradores e turistas é difícil de ser percebida no caso da Hospitalidade urbana, uma vez que não é possível identificar a diferença entre as pessoas nos espaços.
Essa dificuldade em distinguir quem é quem vai de acordo com o proposto por Gastal (2006), na figura do cidadão turista. Para a autora, os moradores e frequentadores das cidades devem ser considerados fluxos e assumindo essa condição, colocam-se em movimento e aos poucos trespassam suas práticas rotineiras apropriando-se dos espaços e cenas da cidade, tornando-se assim cidadão turista. “A cidade nos seus fixos, deixa de ser uma desconhecida, mesmo para seus próprios moradores, e torna-se o território familiar ao qual se constrói pertencimento e identificação, por passar a compartilhar seus códigos e, com eles, situar a própria subjetividade no urbano” (Gastal, 2006, p. 9). A mesma autora ainda destaca que, ao avançar na compreensão do papel do cidadão turista, chega-se ao turista cidadão, e cita Moesch (2005):
O turista cidadão é aquele morador da localidade que vivencia práticas sociais, no seu tempo rotineiro, dentro de sua cidade, de forma não rotineira, onde é provado em relação à cidade. Turista cidadão é aquele que resgata a cultura da sua cidade fazendo uso do estranhamento da mesma. Este estranhamento inicia no momento em que o indivíduo descobre no espaço cotidiano outras culturas, outras formas étnicas e outras oportunidades de lazer e entretenimento. Quando se encontra na situação de turista cidadão este sujeito aprende a utilizar os espaços ambientais, culturais, históricos, comerciais e de entretenimento com uma percepção diferenciada do seu cotidiano (p.9).
Observa-se, enfim, que a Hospitalidade no contexto urbano é uma mistura de elementos heterogêneos que formam um todo: Hospitalidade e hostilidade, turista e morador, apropriação e ocupação de espaço, coletividade e individualismo. São ambivalências, valores e conceitos indissociáveis para compreensão das relações nas cidades modernas[i].
AS PRAÇAS EM QUESTÃO
Partindo destas considerações, a Praça do Coco, localizada no distrito de Barão Geraldo em Campinas (SP) e a Praça Roosevelt, localizada no centro da cidade de São Paulo, foram selecionadas como objetos de estudo para este artigo. Ambas foram alvo de intervenções e reformas nas duas últimas décadas, com consequências evidentes tanto para a sociabilidade e ressignificação enquanto espaços públicos, quanto para suas funções sociais e culturais. A trajetória das praças se assemelha no engajamento de seus frequentadores, proteção dos moradores que as circundam e, principalmente, nos respectivos atrativos culturais.
A Praça Roosevelt tem como personagem chave Veridiana Prado (1825 – 1910) ou Dona Veridiana como era carinhosamente chamada. Foi considerada uma mulher à frente do seu tempo, aristocrata e intelectual. Como pano de fundo na história da Praça Roosevelt, um elemento importante foi a Bossa Nova, do ponto de vista musical e cultural, e, de outro lado, a presença marcante de transformações urbanas do período da ditatura militar. A combinação destes marcos resultou no que a Praça é hoje, muitas vezes desfigurada dos seus traços originais e arquitetônicos que, por outro lado, preservou funções culturais e musicais, como seus vários espaços de teatro, entre os quais, preserva o Cultura Artística, Os Parlapatões e tantos outros.
Na praça do Coco, pai e filho, Valdir e Vagner do Santos, criadores e responsáveis pelas intervenções e reformas da praça, se norteiam pelos princípios do desenvolvimento sustentável para resgatar e preservar a história do distrito de Barão Geraldo. Na visão dos proprietários, o distrito apresenta, desde a sua formação, características particulares que se destacam em relação à cidade de Campinas e são visíveis no comportamento dos seus frequentadores e moradores, na medida em que a população tem traços de bairrista, há uma efervescência cultural em razão da existência do Instituto de Artes da UNICAMP, a busca por saúde e estilo de vida alternativo. Para Vagner, trata-se de um organismo democrático e com vida própria, que agrega política, cultura e esporte.
Nos dois casos, percebe-se uma motivação comum para realização das mudanças, que consistem, em certo sentido, em ultrapassar os entraves colocados pelo poder público, ao transformar as adversidades e preservar os espaços públicos, transformando-os em lugares no sentido antropológico, segundo Marc Augé (1994).
METODOLOGIA
A pesquisa foi realizada entre 2016 e 2017, consistindo em observação direta [in loco], tendo sido realizadas inúmeras visitas às Praças, com realização de abordagens espontâneas com moradores e frequentadores em um primeiro momento. Posteriormente, foram selecionados alguns representantes que participaram das intervenções, entre eles arquitetos, secretários de obras e gestores, para entender como se deu todo o processo de revitalização das praças e visão dos mesmos em relação aos resultados. Além disso, a pesquisa foi complementada com informações obtidas em vídeos selecionados, sobre as praças, com depoimentos de frequentadores ilustres, como Ignácio de Loyola Brandão e outros, que acompanharam as mudanças das praças ao longo das décadas
Isto posto, viu-se necessário exemplificar cenas reais de hostilidade e Hospitalidade no contexto das Praças do Coco e Roosevelt, para observar os contrapontos destas duas categorias de análise. Se de um lado relações de Hospitalidade podem apresentar características de identidade e sentimento de pertencimento, de outro as manifestações de atos de hostilidade podem ser entendidas como o descolamento, a segregação e o não reconhecimento de pessoa. Logo, na análise da Hospitalidade, é preciso considerar sua outra face, a hostilidade, a exclusão e a possibilidade de conflitos. Assim, este artigo tem como proposta discutir a Hospitalidade urbana nas Praça do Coco e Roosevelt na partir de dados levantados por meio de: (i) perguntas estruturadas em um survey; (ii) matérias de jornais que retratavam cenas de Hospitalidade nos objetos de estudo.
Para a Praça do Coco, o roteiro foi adaptado para 32 perguntas estruturadas, que tiveram um total de 101 respondentes. A amostra foi determinada por conveniência, sendo o instrumento divulgado na rede social Facebook, incluindo grupos como S.O.S Barão Geraldo, Unicamp, Cultura em Barão Geraldo e Barão Geraldo, Campinas-SP. Também se fez uso do mailing de pessoas do networkingpróprio. No caso do público da Praça Roosevelt, o roteiro final foi composto por 33 perguntas estruturadas e uma semiestruturada, somando 105 respondentes. A amostra também foi determinada por conveniência, tendo o questionário sido divulgado na rede social Facebook, incluindo grupos como Praça Roosevelt Skateboard, Usuários da Praça Roosevelt, Praça Roosevelt e Universidade de São Paulo. Novamente, fez-se uso do mailing de pessoas do networking próprio.
Os conjuntos de perguntas de ambos os questionários foram divididos em cinco grupos: origem e frequência às praças (G1), com três perguntas em ambos questionários; motivações de frequência (G2), com três perguntas para em ambos questionários; identificação com as praças (G3), com quatro perguntas em ambos questionários; percepções em relação às transformações (G4), com 17 perguntas para respondentes da Praça do Coco e 18 perguntas para os da Praça Roosevelt; e dados dos respondentes (G5), com cinco perguntas em ambos questionários. Optou-se por realizar esta codificação visando facilitar a organização e análise dos dados. Após o levantamento das informações, os resultados foram tabulados e em seguida, foi elaborada a análise por meio de gráficos e interpretação dos dados quantitativos.
Foram selecionadas, ainda, 40 matérias, extraídas dos jornais Correio Popular [Campinas-SP] e Folha de São Paulo [São Paulo-SP], publicadas no período de 1 de janeiro de 2013 a 31 de dezembro de 2016, nas quais o título referisse a qualquer uma das praças e que retratasse fatos envolvendo frequentadores e/ou moradores. Os critérios de seleção foram a ocupação do espaço público com manifestações, festas, feiras e outros; conflitos envolvendo brigas, intervenção da polícia e outros confrontos; e reclamações. Após a leitura flutuante deste material, foram eliminadas quatro matérias que não atendiam aos critérios definidos. Optou-se por utilizar a regra de homogeneidade que, segundo Bardin (1997), é adequada para quando se busca obter resultados globais e/ou comparar entre si resultados individuais. Com isso, o extrato final do corpus ficou composto por 17 matérias sobre a Praça do Coco e 19 matérias sobre a Praça Roosevelt.
Optou-se por utilizar a metodologia de análise de conteúdo que, segundo Bardin (1977), envolve um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição. Definiu-se como enunciados para análise toda e qualquer manifestação por parte dos moradores e/ou frequentadores que representasse indicadores de Hospitalidade no contexto das praças e toda e qualquer manifestação por parte do frequentador e/ou morador que representasse indicadores de hostilidade ou seja, conflito, segregação ou não reconhecimento do outro no contexto das praças. O requisito escolhido para definir as categorias foi de pertinência, conforme Bardin (1997) e Franco (2005). Hospitalidade e hostilidade constituíram categorias chave para a análise e os enunciados foram codificados em: (C1) toda e qualquer manifestação de Hospitalidade por parte dos moradores e/ou frequentadores, ou seja, fatos que representassem expressões de identidade e sentimento de pertencimento de moradores e/ou frequentadores entre si no ambiente das praças ou para com as praças; (C2) toda e qualquer manifestação de hostilidade por parte do frequentador e/ou morador, ou seja, fatos que representassem um conflito, segregação ou não reconhecimento destes entre si no ambiente das praças ou para com as praças.
RESULTADOS E ANÁLISE
A partir dos resultados obtidos após aplicação dos questionários na pesquisa survey, foi possível identificar as caraterísticas dos públicos que frequentam as Praça do Coco e Roosevelt. Estes, em diversos aspectos se distinguem e em outros se assemelham. Na Praça do Coco, 63% dos frequentadores são do sexo feminino, possivelmente em razão do parque infantil disponível, onde as mães podem deixar seus filhos brincando em segurança. Já na Praça Roosevelt essa relação é de 48% de mulheres e 52% de homens. Aqui vale destacar o equilíbrio entre gêneros, que pode ser entendido como reflexo de um espaço público democrático, pelo menos no quesito gênero. Foi possível identificar também um equilíbrio em relação ao estado civil dos frequentadores da Praça do Coco, uma vez que, 53% se declaram solteiros e 46% casados. Na Praça Roosevelt se observou o contrário, sendo uma praça frequentada em sua maioria por solteiros, 66% do total, enquanto que 32% responderam ser casados. O quadro 1 “Faixa etária frequentadores das Praças” retrata como o público da Praça Roosevelt é mais heterogêneo do que o da Praça do Coco.
Há muitas razões para isso acontecer, a primeira delas é a localização. A Praça Roosevelt está localizada no centro da cidade de São Paulo, enquanto que a Praça do Coco está em um distrito da cidade de Campinas, o que dificulta a frequência de outras pessoas que não moram ali. Outro ponto importante diz respeito ao espaço. A Praça do Coco sendo menor que a Praça Roosevelt não consegue acolher muitos moradores e visitantes. Contudo, é importante ressaltar que, em ambas praças a maioria expressiva de pessoas está concentrada na faixa etária entre 26 e 39 anos, expondo a concentração de jovens frequentadores. Na Praça do Coco há muitas crianças, mães, frequentadores do quiosque e eventualmente grupos de pessoas que andam de bicicleta; na Praça Roosevelt no mesmo espaço convivem skatistas, os que andam de patins e frequentadores e trabalhadores dos teatros e bares. Outro dado relevante que pode ser observado é que ambas as praças são frequentadas por pessoas de faixas de idades visivelmente distintas, crianças pequenas, pré-adolescentes e idosos enxergam nestas praças espaços comuns para se frequentar. Segundo Jacobs (2000), quanto mais diversificado for o espaço mais pessoas de diferentes grupos sociais o frequentarão.
Quando questionados se frequentam outras praças na cidade, 58% dos respondentes do público da Praça do Coco disseram que não, enquanto que 77% dos respondentes da Praça Roosevelt disseram que sim. Não necessariamente este resultado significa que os frequentadores da Roosevelt não são fiéis a ela; há outros dados que mostram o contrário. O que se vê aqui são dois aspectos distintos. Primeiro, em São Paulo há outras opções de espaços públicos disponíveis para os moradores e visitantes, como por exemplo, o Parque do Ibirapuera, o Mirante 9 de Julho, as Praças da Sé, 14 Bis e do Arouche, entre outros. O que não ocorre em Campinas, onde as opções de espaços públicos com fácil acesso no município são mais escassas. Nota-se também o localismo exacerbado do morador do distrito de Barão Geraldo que, conforme relatado anteriormente, tem uma forte ligação a ponto de se ter o jargão comum que “Barão Geraldo não é Campinas”. Com isso, o que se vê são os moradores de Barão Geraldo vivendo suas vidas independentes de Campinas; estes procuram trabalhar, morar e ter o seu lazer no próprio distrito.
Essa característica dos habitantes de Barão mostra o vínculo social, a identidade e o sentimento de pertencimento e orgulho que pode promover o instinto de proteção com o local. Este sentimento de orgulho foi confirmado em ambos os roteiros, pois 84% dos respondentes da Praça do Coco e 78% da Praça Roosevelt confirmaram que sentem orgulho desses espaços. Os primeiros sinais deste orgulho exaltado ficaram evidentes em alguns fatos como vasos de flores para enfeitar a Praça do Coco, dados de presente pelos moradores para o Sr. Valdir e o Vagner; a sensação de que eles sentem que o público preza pela praça; e as diversas ações realizadas na Roosevelt para discutir e evitar o gradeamento do local.
Por outro lado, quando questionados se conheciam a história das praças, a maioria dos respondentes de ambos os objetos disseram que não. Mas, na Praça do Coco, 77% reconhecem que houve um resgate e valorização da memória do distrito de Barão Geraldo. Já o público da Praça Roosevelt ficou dividido com relação a isso. Aqui, observa-se uma diferença significativa nos cenários em função da ação do Sr. Valdir e de Vagner dos Santos utilizarem imagens de símbolos locais para contar a história de Barão Geraldo. Esta atitude nada mais é do que uma forma de se explorar as singularidades da região e promover legibilidade e resgate de memória para o público.
A relação dos públicos para com os espaços também pode ser percebida, isto porque 93% do público da Praça do Coco e 75% do da Roosevelt responderam que se sentem acolhidos ali. Isto mostra o vínculo social gerado pelos encontros entre pessoas que acontecem nesses lugares. Se fosse o caso de ambientes inóspitos, frequentados por pessoas hostis e que não gerassem qualquer sentimento agradável aos frequentadores e moradores, estas respostas seriam opostas. Este fato pode ser confirmado por Ferraz (2013):
[...] um espaço pode proporcionar todas as condições físicas de Hospitalidade, mas se a cidade não tiver um clima agradável, dificilmente será considerada por todos como uma cidade hospitaleira. Por outro lado, se uma cidade tiver um povo acolhedor e amável, mas se seus espaços urbanos não propiciarem condições de Hospitalidade, dificilmente os visitantes se sentirão em caso, acolhidos (p. 82-83).
Em se tratando da motivação de frequência, evidencia-se a função original da praça: trocas culturais, comerciais e sociais. Na do Coco, a maioria das pessoas sinalizou ir ao local pelo ambiente, pela comida e pelo encontro entre pessoas. Já na Roosevelt, o destaque foi o encontro, depois as casas de teatro e os bares, características que apontam o grau de identificação das pessoas com as praças, sendo uma para atividades diurnas e outra noturna. No Quadro 2, indica-se a motivação da frequência as praças. Nota-se que ambas são vistas como referências de atividades culturais, e que buscam se diferenciar pelo ambiente [Praça do Coco] ou pela presença das casas de teatro [Praça Roosevelt]. A sociabilidade, a comensalidade, o ritual de se relacionar com o outro, seja ele um estranho ou não, motiva as pessoas a frequentá-las.
Quando questionados sobre as vantagens observadas após as intervenções realizadas nas praças, as respostas obtidas traduzem o que foi visto até aqui, conforme o Quadro 3.
Em ambas as praças, o sentimento de pertencimento à comunidade e as trocas foram destacados pelos entrevistados. Na Praça Roosevelt percebem-se inúmeros conflitos entre os grupos que a frequentam, como será discutido adiante. Isto mostra que, apesar de ser um espaço multifuncional, a Roosevelt não necessariamente é um lugar em que as diferenças sejam respeitadas. Tal observação pode ser validada pela visão de Valentine (2008) e Chávez e Van der Rest (2014) que a aproximação entre pessoas não significa necessariamente uma transformação social, a compreensão do outro. Guardadas as devidas proporções, esta vocação cultural das praças promove um resgate de suas funções originais, como parte da função social das praças antigas como a Ágora, Fórum Romano e Praças Medievais, e como uma força catalisadora para a regeneração urbana.
Complementar a essa análise, aplicada a análise de conteúdo obteve-se como resultado 13 matérias na Praça do Coco e 15 na Praça Roosevelt, que retratavam as manifestações de Hospitalidade e quatro matérias para cada praça que apresentavam as manifestações de hostilidade. Dessa forma, foi possível observar que a maioria do material jornalístico que dá conta das manifestações de Hospitalidade, é de caráter cultural, seja por eventos de música, teatro ou dança ou por manifestações sociais. Publicação no jornal Correio Popular [5-2-2014], anunciando o retorno do Feverestival após dois anos, cujo encerramento se deu na Praça do Coco, e a publicação no jornal Folha de São Paulo [20-11-2015] anunciando o Festival Satyrianas, que mesmo com uma verba mais reduzida, ocupou a Praça Roosevelt e seus arredores pelas 16ª vez, são alguns dos casos que podem ser citados.
Já com relação à hostilidade, tanto a Praça do Coco como a Praça Roosevelt têm seus conflitos específicos, como por exemplo, os problemas de segurança, brigas por causa do volume da música, sons elevados durante o Carnaval em Barão Geraldo. Matéria no Correio Popular [5-3-e 2014] relata os prejuízos contabilizados por atos de vandalismo, no Carnaval. No caso da Praça do Coco, as matérias apresentavam a versão dos moradores que defendiam que aqueles que praticavam os arrastões, que os sons de carros que infringiam a lei do Pancadão e que promoveram as brigas entre participantes dos blocos de Carnaval, não eram as pessoas que frequentavam o distrito de Barão Geraldo, tampouco a Praça do Coco. Na realidade, pelo cunho cultural e tradição do Carnaval, o distrito atrai pessoas de toda cidade de Campinas e região que, na maioria das vezes, não se reconhecem no espaço e/ou se sentem segregadas em razão da condição social ou estilo de vida. Na Praça Roosevelt os conflitos são mais antigos, a desarmonia entre moradores e frequentadores/proprietários dos bares e teatros se dá em razão do barulho que se estende ao longo da madrugada, além do lixo produzido que fica à cargo da prefeitura de São Paulo. Isto fica exposta na matéria do dia 28 de novembro de 2015 sobre o fechamento do Parlapatões pela lei do PSIU.
A partir destas matérias de jornais, também foi identificado expressões ou palavras que apresentaram traços de Hospitalidade e hostilidade. O que se observou foram pontos comuns em ambas categorias. Em se tratando da Praça do Coco, no enunciado “toda e qualquer manifestação de Hospitalidade por parte dos moradores e/ou frequentadores, ou seja, fatos que representassem expressões de identidade e sentimento de pertencimento de moradores e/ou frequentadores entre si no ambiente das praças ou para com as praças” o que se viu foram diversas referências à ocupação do espaço público, mobilização da população, acesso à experiência artística, conscientização e união da população e promoção de encontro. Aqui pode-se observar a predominância das subcategorias de Hospitalidade, tais como: sociabilidade, qualidade de vida e pertencimento, o que comprova o que foi observado anteriormente na pesquisa survey e entrevista com os proprietários do quiosque Praça do Coco em relação ao perfil e motivações dos moradores e frequentadores do Distrito de Barão Gerado.
Já na Praça Roosevelt, para este mesmo enunciado, observou-se mais matérias retratando protestos pacíficos na praça, reuniões entre moradores, skatistas e frequentadores dos bares e teatros, atividades artísticas na rua e atos de demonstração de afeto para com à praça por parte dos seus frequentadores. Algumas das palavras e/ou expressões identificadas que apresentavam traços de Hospitalidade foram: “a praça é nossa”, zeladoria da praça, abraço coletivo de admiradores, aula pública, protesto na praça e espaço público. Neste caso as subcategorias de Hospitalidade mais observadas foram: sociabilidade, identidade, cidadania e pertencimento. Nota-se aqui uma linha tênue entre relações de Hospitalidade e hostilidade, especialmente porque, grande parte das matérias que retratam identidade, pertencimento e cidadania tem como origem conflitos entre moradores e frequentadores da Roosevelt, o que também foi visto nas entrevistas e pesquisa survey, com resultados próximos para questões voltadas à sentimento de pertencimento e identidade com o local.
Em relação ao enunciado “toda e qualquer manifestação de hostilidade por parte do frequentador e/ou morador, ou seja, fatos que representassem um conflito, segregação ou não reconhecimento destes entre si no ambiente das praças ou para com as praças”, observou-se resultados similares para as praças. As subcategorias de hostilidade mais marcantes foram conflito, não reconhecimento e segregação, o que mostra traços observados anteriormente de ausência a prática da alteridade, e não reconhecimento ao outro. Isto posto, a tese de Caldeira (2000) e Milton Santos se apresenta novamente, os espaços públicos da atualidade precisam se adaptar à nova realidade da sociedade que é visivelmente marcada por individualismo e desigualdade. Logo, não é de todo ruim trabalhar por políticas públicas que promovam o encontro entre seus moradores e frequentadores e estimulem o turista cidadão, mas é ingênuo achar que as cidades terão suas praças e ruas livres sem qualquer tipo de encontros impessoais ou hostil, afinal, são essas ambivalências presentes no cotidiano que formam as cidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Objetivou-se, nesse trabalho, destacar a importância dos espaços públicos, das ruas e das praças como locais de Hospitalidade e sociabilidade num mundo bastante marcado pela hostilidade, em que a Hospitalidade possível, acontece, como proposto por Camargo (2015), nos interstícios da Hospitalidade. Viu-se diferentes impactos das intervenções públicas sobre os espaços examinados e o resultado que podem ter as intervenções públicas e privadas, nas reformas que atuam sobre a preservação ou não das características iniciais das praças.
No caso da Praça Roosevelt, emblemática para a cidade de São Paulo e que por gerações, tem desempenhado importante papel na preservação da memória social, musical e arquitetônica da cidade de São Paulo, assistiu-se no decorrer de décadas, intervenções que interferiram diretamente na Praça como local de convivência e sociabilidade. Depoimentos evidenciaram a persistência desses espaços nos momentos em que a praça foi descaracterizada e na atualidade, em que ela readquire a vitalidade pela presença dos teatros, bares e restaurantes, que não trazem de volta a vida cultural das décadas de 1960 e 1970, mas revitalizaram-se e permitiram que as pessoas, moradores, turistas, visitantes, voltassem a frequentar a praça. Quanto à Praça do Coco, cuja dinâmica é bastante diferente, permite também refletir sobre o papel que espaços públicos abertos à população podem ter na manutenção de relações de que, se não criam por si só, vínculos sociais, permitem sua recriação.
As matérias de jornal permitiram um certo dimensionamento do contraponto entre a Hospitalidade e seu reverso, a hostilidade. Matérias que abordaram principalmente conflitos provocados por festas de carnaval e barulhos provenientes de bares, são bem menos numerosas do que as que se referem às ações que indicam a convivência e a abertura ao outro que caracterizam a Hospitalidade pública nas relações de alteridade. Como sugere Augé (1994): “Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que não pode se definir como identitário, nem relacional, nem histórico, define o não-lugar” (p. 73). Sem pretender esgotar essa discussão com os espaços analisados, suas experiencias mostram que a Hospitalidade urbana se fundamenta nos lugares de proximidade, produtores ou indutores de criação de vínculos e, portanto, espaços antropológicos.
REFERÊNCIAS
Archer, F. (2010). Os novos princípios do urbanismo. São Paulo: Romano Guerra.
Augé, M. (1994) Não-lugares. Introdução à Antropologia da super modernidade. Campinas: Papirus.
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Notas