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Comensalidade, Hospitalidade e Convivialidade: Um Ensaio Teórico
Commensality, Hospitality and Conviviality: A Theoretical Essay
Rosa dos Ventos, vol. 11, núm. 3, pp. 634-652, 2019
Universidade de Caxias do Sul

Artigos



Recepção: 05 Junho 2018

Aprovação: 25 Fevereiro 2019

DOI: https://doi.org/10.18226/21789061.v11i3p634

Resumo: A comensalidade é uma prática de relevância social ligada à identidade cultural, à sociabilidade e à socialização humana, tanto em relações de hospitalidade como de convivialidade. Como suas práticas são influenciadas diretamente por mudanças sociais e culturais, revelando informações importantes sobre um grupo ou sociedade, é de grande relevância buscar uma melhor compreensão dos conceitos relacionados a esta temática. Este ensaio tem como objetivo discutir teoricamente o conceito de comensalidade atrelado a estudos de práticas alimentares contemporâneas no contexto da hospitalidade e da convivialidade. A partir de uma pesquisa bibliográfica envolvendo livros de referência e artigos publicados em periódico, concluiu-se que: a comensalidade é compreendida como uma manifestação de um sistema alimentar; o exercício da comensalidade é considerado um dos pilares dos rituais de admissão e acolhimento do estrangeiro/hóspede da hospitalidade e um ritual central no sentimento de pertencimento da convivialidade; a comensalidade desempenha papeis relacionados à sociabilização, à socialização e à identidade cultural.

Palavras-chave: Hospitalidade, Comensalidade, Convivialidade.

Abstract: Commensality is a very important social practice associated to cultural identity, human sociability and socialization in hospitality relations as in conviviality relations. Once that their practices are influenced directly by social and cultural changes and being able to reveal important information about a group or society, a better understanding and articulation of the concepts concerning this theme is of great relevance. This essay aims to discuss theoretically the concept of commensality connected to contemporary eating practices studies in the context of hospitality and conviviality. From a literature search involving reference books and articles published in journal was concluded that: commensality is understood as a manifestation of a food system; the practice of commensality is considered one of the pillars of the rituals of admission and reception guest from hospitality and a central ritual in the sense of belonging from conviviality; commensality plays roles related to sociability, socialization and cultural identity.

Keywords: Hospitality, Commensality, Conviviality.

INTRODUÇÃO

A alimentação humana é um ato sociocultural onde a escolha e o consumo de alimentos articulam diversos fatores de ordem ecológica, histórica, cultural, social e econômica relacionados a uma rede de representações, simbolismos e rituais (Alvarez, 2002). Neste sentido, decisões relacionadas ao que se come, quando e com quem se come são construídas em um contexto cultural mais amplo, onde as preferências individuais são exercidas a partir de um panorama socialmente sancionado (Gimenes-Minasse, 2013), dinâmica que também interfere diretamente nas práticas de comensalidade.

Etimologicamente, a palavra comensalidade deriva do latim comensale [com: junto, mensa: mesa], significando o ato de comer junto, partilhar do mesmo momento e local das refeições (Poulain, 2013). A comensalidade relaciona-se não apenas à ingestão de alimentos, mas também aos modos de comer, envolvendo hábitos culturais, atos simbólicos, regras de organização social, além de compartilhamento de experiências e valores (Fischler, 2011). Fischler (2011) e Poulain (2013) apontam que a comensalidade estabelece e reforça a sociabilidade e socialização humana; e sua importância simbólica é abordada também como um elemento-chave no estudo acadêmico da hospitalidade (Lashley, 2004; Montandon, 2011) e apresenta um papel central no sentimento de pertencimento da convivialidade (Grignon, 2001; Schechter, 2004; Carneiro, 2005).

Tendo em vista tratar-se de práticas culturais, os padrões alimentares e de comensalidade não podem ser reduzidos a um inventário de fórmulas ou combinações de elementos cristalizados no tempo e no espaço, pois estão sujeitos a constantes transformações, até mesmo a uma recriação (Maciel, 2004). Desta forma, compreender as práticas de comensalidade é um exercício complexo, que pressupõe uma atenção às mudanças e adaptações motivadas por mudanças socioculturais, bem como uma clareza das articulações da comensalidade com outros conceitos teóricos. Buscando contribuir para este debate, este ensaio tem como objetivo discutir teoricamente o conceito de comensalidade atrelado a estudos de práticas alimentares contemporâneas no contexto da hospitalidade e da convivialidade. De forma específica, busca-se: (a) discutir teoricamente o conceito de comensalidade atrelado a estudos de práticas alimentares no contexto da hospitalidade; (b) discutir teoricamente o conceito de comensalidade atrelado a estudos de práticas alimentares no contexto da convivialidade; (c) explorar como estão relacionados os conceitos de cultura alimentar, identidade cultural, sistema alimentar, sociabilidade e socialização com o conceito de comensalidade.

Para tanto foi realizada uma revisão teórica a partir de um levantamento nas bases de dados Scopus, Web of Science, Portal Capes e Google Academics no primeiro semestre de 2017 entre os meses de maio e junho. Os termos de busca utilizados foram: ‘comensalidade’, ‘commensality’, ‘hospitalidade’, ‘hospitality’, ‘convivialidade’, ‘conviviality’ e palavras complementares ao conceito de comensalidade, como ‘cultura alimentar’, ‘meal’, ‘refeição’, ‘eating practices’ e ‘práticas alimentares’. Como não se tratava de um estudo bibliométrico ou de um mapeamento de toda a produção sobre o tema, o critério de seleção dos artigos foi o de pertinência à discussão que se pretendia realizar. Observa-se que, apesar de serem identificáveis pesquisas que tratam de práticas de comensalidade em diferentes contextos [turísticos e não turísticos; em ambientes comerciais ou domésticos; relacionados à saúde ou à compreensão de subculturas ou de comportamentos de grupos específicos], há poucos artigos dedicados à discussão teórica da comensalidade no contexto da hospitalidade e da convivialidade. Embora não tenha como objetivo discutir teoricamente a comensalidade, o artigo de Soares e Camargo (2015), sobre produção científica relativa a comensalidade no Brasil, considerando dissertações e teses publicadas em diferentes áreas do conhecimento, merece destaque. Desta forma, diante das lacunas percebidas e considerando que muitas das construções teóricas relacionadas à hospitalidade e à comensalidade são divulgadas no formato livro, também foram utilizadas obras de referência, com destaque para as dos autores Lashley (2004), Montandon (2011), Contreras e Gracia (2011) e Poulain (2013).

COMENSALIDADE, CULTURA ALIMENTAR E SISTEMA ALIMENTAR

A alimentação pode ser considerada um tema consolidado nas ciências sociais, porém estudos crescentes nos últimos anos retomam a temática trazendo um diálogo com outras áreas, de forma multi e transdisciplinar, abordando o assunto dos mais variados ângulos, tratando desde a fome à gastronomia. Por isso, como alerta Maciel (2004), é necessário um cuidado especial com o uso de certos conceitos e categorias. Reflexões relacionadas ao tema da alimentação remetem a questões fundamentais da relação do homem com a natureza e dos valores biológicos, sociológicos, históricos e culturais do ato de comer. A alimentação é um ato essencial, uma questão de sobrevivência, uma atitude biológica diretamente ligada à vitalidade e à necessidade de ingerir nutrientes capazes de manter o corpo em funcionamento.

Para Fischler (1995), contudo, o homem se nutre também de imaginário e de significados, partilhando representações coletivas. Além do valor nutritivo do alimento, o ato alimentar implica também em um valor simbólico. Maciel (2001,) evidencia esses fatores sociais e a questão do valor simbólico: “o alimentar-se é um ato vital, [...] mas, ao se alimentar, o homem cria práticas e atribui significados àquilo que está incorporando a si mesmo, o que vai além da utilização dos alimentos pelo organismo” (p. 145). Todos os seres humanos atribuem significado aos alimentos sem ser necessário um processo de pensamento formal e acadêmico para que isso aconteça. Neste sentido, pode-se dizer que a grande contribuição das ciências sociais para o estudo da alimentação é se debruçar sobre os aspectos simbólicos relacionados a estas práticas, procurando desvendar seus significados.

[...] nessa perspectiva nenhum alimento está livre das associações culturais e, sendo parte de um sistema cultural, a comida e seus contextos são repletos de símbolos, sentidos e classificações. Compreender as práticas ligadas à alimentação enquanto ação simbólica nos possibilita o acesso a outras dimensões da vida em planos - social, político, econômico, psicológico (Maciel & Canfield, 2013, p. 323).

Vários autores discutem a diferença entre o alimento bruto, de função biológica, e a comida como produto social e cultural (Carneiro, 2005; DaMatta, 1986; Fischler, 1995; Maciel, 2004; Montanari, 2008; Poulain, 2013; Wrangham, 2010). A alimentação humana, como uma prática social e cultural, implica em representações e imaginários, envolve escolhas, classificações e símbolos que organizam as diversas visões de mundo no tempo e no espaço (Maciel, 2004). Desta forma, esse ‘sistema simbólico’ foi descrito e conceituado por diversos autores de formas distintas, sendo que alguns de seus conceitos, pertinentes nas discussões aqui desenvolvidas, serão apresentadas a seguir. DaMatta (1986), por exemplo, propõe uma distinção entre comida e alimento, onde o alimento é definido como toda substância nutritiva que o indivíduo ingere para se manter vivo, e a comida é um modo, estilo e um jeito de se alimentar, definindo uma identidade pessoal e de grupo. Para Montanari (2008), além de saciar a necessidade biológica, comida é cultura quando produzida, preparada e consumida.

O ser humano, apesar de ser onívoro, não come apenas o que a natureza oferece, nem consome o alimento em sua totalidade; ele escolhe quais alimentos considera comida de acordo com escolhas moldadas em hábitos e regras que orientam o indivíduo ou grupo com critérios ligados às expressões da história, da geografia, do clima, da organização social e das crenças e valores de um povo. Em entrevista para Mirian Goldenberg (2011), Claude Fischler ressalta a presença inconsciente dessas regras da alimentação, que incluem também decisões relacionadas à comensalidade:

Existem regras que estão implícitas no ato de comer, que os comedores seguem sem ter consciência que estão seguindo, como as coisas que se pode comer ou não, as horas em que se deve comer, o número de refeições diárias, com quem se deve comer, qual a etiqueta que se deve seguir, etc. Regras que todos seguem sem saber que estão seguindo. Existe, portanto, uma gramática e uma sintaxe quando se come (p.236).

Estes hábitos e regras são definidos por Contreras e Gracia (2011) como cultura alimentar, um conjunto de crenças, práticas e representações herdadas ou aprendidas e compartilhadas por um grupo social a respeito do que se come. Portanto, como ressalta Carneiro (2008), o gosto alimentar é um produto cultural, resultado de uma realidade coletiva e partilhável, em que as predileções e as excelências se destacam não de uma suposta análise sensorial da língua, mas de uma complexa construção histórica e social. A questão do gosto foi abordada por Bourdieu (1983; 2007) como uma estratificação de hábitos, uma tradição que se tornou critério na apreciação gustativa. Ou seja, o gosto é caracterizado como uma “propensão e uma aptidão à apropriação material e simbólica de uma determinada categoria de objetos ou práticas classificadas e classificadoras” (Bourdieu, 1983 p. 83), formando um conjunto normativo de condutas que regem as práticas sociais de cada grupo. Desta forma, o indivíduo exercita seu paladar, sua preferência individual, dentro de um quadro sancionado culturalmente que lhe diz dentre quais alimentos ele pode escolher, tendo em vista que o gosto alimentar é construído em um arcabouço cultural que orienta as escolhas individuais (Gimenes-Minasse, 2013). E as práticas da comensalidade não escapam desta perspectiva.

As escolhas alimentares são, portanto, culturalmente estabelecidas, definindo além de ‘o que’ se come, mas também ‘como’, ‘quando’, e ‘com quem’ se come. Todos esses aspectos estão relacionados formando um sistema alimentar, ou seja, um conjunto de elementos, produtos, técnicas, hábitos e comportamentos relativos à alimentação (Maciel, 2001). O sistema alimentar é definido por Poulain (2013) como um conjunto de estruturas tecnológicas e sociais que, desde a colheita até a cozinha, passando por todas as etapas de produção-transformação, permitem que o alimento chegue até o consumidor e seja reconhecido como comestível. Os valores de base do sistema alimentar se definem como resultado e representação de processos culturais que preveem a domesticação, transformação e reinterpretação da natureza (Montanari, 2008). Este sistema contempla produção [caça, coleta, cultivo], distribuição [centralizada ou não], transação comercial [compra e venda, troca, oferenda], preparo [comer cru ou cozido, e de que forma transformar esse alimento], combinação de ingredientes [estilo culinário] e consumo [sozinho, com companhia, à mesa de jantar, em frente à televisão, na lanchonete] da forma que o comensal compreende como mais adequada, sendo, desta forma, a representação cultural alimentar de um grupo ou sociedade (Contreras & Gracia, 2011; Poulain, 2013; Maciel, 2001).

Outro termo pertinente para a compreensão do comportamento alimentar é ‘cozinha’. A cozinha pode ser descrita como práticas alimentares diversificadas que compreendem não apenas certos itens alimentares consumidos mais frequentemente, mas um conjunto de alimentos que se relacionam às representações coletivas, ao imaginário social, às crenças do grupo, enfim, às suas práticas culturais (Maciel, 2001). Pode-se compreender, assim, as cozinhas como formas culturalmente estabelecidas, codificadas e reconhecidas de alimentar-se, sendo que cada cozinha traz regras particulares de como, quando e onde executar as tarefas de escolha e produção alimentar e diferentes significados atrelados a elas. Desta forma, o conceito de sistema alimentar comporta, dentre outras práticas, as práticas culinárias e as práticas de comensalidade. Poulain (2013) relaciona claramente à cozinha e à comensalidade funções sociais e valores simbólicos: “é pela cozinha e pelas maneiras à mesa que se produzem as aprendizagens sociais mais fundamentais e que uma sociedade transmite e permite a interiorização de seus valores” (p.17). Maciel (2004) também descreve a cozinha como um vetor de comunicação, um código complexo que permite compreender os mecanismos da sociedade à qual se pertence.

Para Flandrin e Montanari (1998), a comensalidade é percebida como um elemento fundador da civilização humana em seu processo de criação. A partir das contribuições de Poulain (2013), Fischler (2011), Carneiro (2005) e Maciel (2001), a comensalidade pode ser definida como o ato de compartilhar a mesa ou a refeição com outro, ou seja, é o alimentar-se em conjunto, um momento de interação entre duas ou mais pessoas em uma situação cotidiana ou festiva. Para Danesi (2011) a comensalidade é crucial para a compreensão da organização social das sociedades. Carneiro (2005) ressalta que a comensalidade ajuda a organizar as regras de identidade e da hierarquia social, assim como serve para tecer redes de relações e para impor limites e fronteiras sociais, políticas e religiosas. Nota-se, a partir daí, as conexões entre a comensalidade, a sociabilidade, a socialização, a identidade cultural e a hospitalidade, aspectos que serão discutidos nos próximos itens.

A partir das contribuições expostas, defende-se que a comensalidade pode ser entendida como um momento - um recorte temporal e espacial - e uma manifestação de um sistema alimentar. Assim, analisar como um grupo pratica a comensalidade é analisar uma representação de um sistema alimentar. Quando a mesa é dividida com o outro, a representação do sistema alimentar é demonstrada por meio de ações e escolhas que caracterizam aquele indivíduo, permitindo, assim, observar características e valores do grupo ao qual pertence. Essas escolhas relacionadas ao sistema alimentar estão indiretamente presentes no momento da concretização da comensalidade. A temática da comensalidade, tanto no âmbito da hospitalidade quanto nos estudos da antropologia e sociologia da alimentação ganha destaque na literatura principalmente por três funções principais na sociedade: a solidariedade comunal ligada ao conceito de identidade e alteridade; a socialização da moralidade de um grupo e de sua compreensão de mundo; a sociabilidade, que permite o estabelecimento de novas relações e a promoção de relações estabelecidas construindo e reforçando laços mútuos de reciprocidade (Danesi, 2011). Neste contexto, é possível apontar algumas funções simbólicas e sociais da comensalidade, papeis desempenhados pela comensalidade, com destaque para questões relacionadas à sociabilidade, à socialização e à identidade cultural.

COMENSALIDADE, SOCIABILIDADE, SOCIALIZAÇÃO E IDENTIDADE CULTURAL

A comensalidade é considerada por vários autores uma das características mais significativas no que se refere à sociabilidade humana (Fischler, 2011; Montanari, 2008; Poulain, 2013). A sociabilidade é entendida como a capacidade humana de estabelecer e fortalecer laços sociais e redes, conectando, mesmo que momentaneamente, os indivíduos envolvidos (Baechler, 1995). A sociabilidade é, portanto, a origem da construção de relações sociais mais complexas, dos laços que unem os indivíduos e que são capazes de dar coerência e coesão aos grupos sociais. A sociabilidade, por meio da alimentação, sempre se manifesta na comida compartida, revelando a estrutura da vida cotidiana do seu núcleo mais íntimo e mais compartilhado (Moreira, 2010). Para Danesi (2011) comer juntos permite a integração social dos comensais proporcionando o aprendizado da estrutura social e das normas pela interiorização da moralidade do grupo e da percepção local de mundo.

Flandrin e Montanari (1998) citam a comensalidade como um elemento de diferenciação do homem civilizado dos outros animais. Consideram que o homem civilizado além de comer para satisfazer uma necessidade física, também transforma essa ocasião em um momento de sociabilidade, em um ato carregado de forte conteúdo social e de grande poder de comunicação. Para Boutaud (2011), o ‘comer simbólico’ pode ser compreendido em dois níveis: o primeiro nível é a incorporação, a ingestão de valores ligados aos alimentos; e um segundo nível ligado ao valor simbólico dos alimentos tomados em comum e ao vínculo simbólico da refeição em grupo. Desta mesma forma, Simmel (1998) aborda o paradoxo fundamental da comida: apesar do ato de comer ser essencialmente um ato individual, representa ao mesmo tempo um catalisador da vida social. A comida é incorporada pelo comedor e passa as barreiras do corpo para se tornar o próprio comedor; o comedor se torna o que come, e, comendo, é integrado a uma esfera cultural. A palavra “companheiro” provém da expressão cum panem [os que compartilham o pão], evidenciando como a comensalidade reforça a coesão de um grupo social, uma vez que ao partilhar a comida também se compartilha de uma experiência sensorial mútua, promovendo a integração (Maciel, 2001).

Boutaud (2011) evidencia que comer com alguém é um ato que compromete porque cria laços com a outra pessoa: comer e beber em conjunto favorece a empatia, a compreensão mútua, a comunhão de sentimentos. Fischler (1995) também aborda o consumo alimentar, dando destaque para as bebidas alcoólicas, como um ritual carregado de significado, uma ocasião coletiva que possibilita a troca e a comunicação permitindo, assim, que se crie momentos de sociabilidade. Como observa Sobal (2000), compartilhar alimentos pela comensalidade constrói e reforça laços mútuos de reciprocidade; as interações interpessoais das refeições fornecem oportunidades para uma infinidade de tipos de comunicação, incluindo a sociabilidade e socialização, mas também representam uma ocasião onde o conflito pode ser revelado. A socialização, por sua vez, pode ser compreendida como a integração de um indivíduo a um grupo, acompanhada por uma mudança em seu comportamento pelo aprendizado de regras explícitas e implícitas deste grupo. O conceito de socialização é definido por Bauman (2001) como a interação do indivíduo com a sua estrutura social.

Como observa Fischler (1995), as práticas alimentares não são apenas formas de expressão e afirmação da identidade, estas estão no cerne da construção da identidade e da aprendizagem da estrutura da vida social de cada indivíduo. Relacionando também a socialização com as práticas alimentares, Danesi (2011) ressalta que tanto a comida como a partilha desta são fundamentais na vida social, quanto a refeição regula a vida social e os comportamentos individuais em ambos níveis, simbólico e biológico:

Food is redistributed to the group in accordance with implicit or explicit rules of solidarity and social justice. Rules about allocation, sharing, meal composition and behaviors govern eating. There are clearly rules governing commensality because there are rules governing society and the relationship between the gods and humans, between members of a society and between different societies (p.156).

Carneiro (2005) também defende que comer é a origem da socialização, visto que “nas formas coletivas de se obter a comida, a espécie humana desenvolveu utensílios culturais diversos, talvez até mesmo a própria linguagem” (p.71). O alimento é o primeiro e o maior dos paradigmas do comportamento moral aceito pela sociedade. Desde o aprendizado do choro para a obtenção do seio materno até a incorporação de todas as regras alimentares, horários, quantidades, qualidades e formas de sua ingestão, o alimento marca a formação das regras na infância. Mais tarde, o disciplinamento alimentar envolve o aprendizado do autocontrole, da comunicação e da sociabilidade (Carneiro, 2005). Fischler (1995) ressalta que as sociedades têm códigos muito complexos e elaborados sobre a comida e sobre o ato de comer: maneiras à mesa, culinárias, regras sobre os pratos, o que pedir primeiro, o que pedir como prato principal, o que pedir como sobremesa, como comer, o que combina com o que, o que não combina com o que, o que beber, entre outras. Cada cultura e cada grupo apresentam regras e leis implícitas sobre o que alguém deve ou não comer e um sistema de socialização por meio da comensalidade. Para Ochs e Shohet (2006), comer com pessoas socializa os participantes para a concretização sociocultural da idade, sexo e outras posições sociais.

Dois processos são fundamentais para a estruturação cultural da socialização durante a refeição: a aprendizagem e a socialização da linguagem. A aprendizagem se dá por um processo de observação ativa e participação direta nas atividades em conjunto com um participante mais experiente; e a socialização da linguagem é o processo de adquirir competência sociocultural pela linguagem e outras modalidades semióticas. Principalmente por meio da comunicação durante as refeições, participantes mais experientes interagem com menos experientes na construção colaborativa da ordem social e da compreensão cultural. Em alguns casos, as mensagens socioculturais são transmitidas explicitamente pelas atividades de discurso como diretrizes, correções e avaliações; em outros casos, essas orientações são transmitidas por meio de estratégias menos diretas como ironia, inferência, pressuposto pragmático, metáfora e silêncios perceptíveis (Ochs & Shohet, 2006).

Para Ochs e Shohet (2006), as refeições são ‘locais culturais’ [cultural sites] onde membros de diferentes gerações e gêneros vêm para aprender, reforçar, enfraquecer ou transformar os modos de agir, pensar e sentir uns dos outros persuadindo, implorando, sondando, elogiando, negociando, dirigindo, ignorando ou somente interagindo com o outro nesse momento de comensalidade. Embora acentuada em festas e ocasiões rituais, a aprendizagem cultural e a socialização da linguagem decorrem e são desenhadas nas concessões e compromissos mútuos nas interações das refeições do cotidiano. Carvalho, Bastos e Gimenes-Minasse (2017) também reforçam que a partir do compartilhamento do alimento e da própria mesa, regras sociais de convivência vão sendo absorvidas e tendem a nortear o comportamento global do indivíduo, não apenas suas escolhas alimentares. O entendimento das práticas de comensalidade como vetores da formação de laços entre indivíduos e de aprendizagem de regras sociais relacionadas a determinados grupos permite uma melhor compreensão da construção e fortalecimento de identidades culturais por meio do compartilhamento da mesa. De forma sintética, identidade cultural pode ser descrita como o conjunto de atributos culturais capazes de distinguir um grupo de outro.

Sobre a relação entre identidade cultural e práticas alimentares, Maciel (2004) defende que, mais que hábitos e comportamentos alimentares, as cozinhas implicam formas de perceber e expressar um determinado modo ou estilo de vida que é particular a um determinado grupo. A alimentação, estabelecida em um padrão específico de uma determinada cozinha, ou ampliando esse conceito para determinado sistema alimentar, torna-se símbolo de uma identidade - atribuída e reivindicada – por meio da qual os homens podem se orientar e se distinguir. Montanari (2008), por sua vez, defende que a comida pode ser considerada um elemento central da identidade humana e, por meio de seus hábitos alimentares, os grupos residentes em cada país ou região conseguem sinalizar suas distinções culturais. Citando Brillat-Savarin (1995): “Dize-me o que comes e te direi quem és” (p.19).

Lévi-Strauss (1968) também considera os hábitos alimentares como uma forma de distinção e percepção de diferenças culturais, estabelecendo uma analogia entre a linguagem e a cozinha. Neste raciocínio, a cozinha pode ser percebida como vetor de comunicação, um código cultural complexo de escolhas e proibições que permite compreender os mecanismos da sociedade à qual pertence, ou seja, assim como a linguagem, a cozinha também pode ser uma forte referência da identidade. Sobre esta analogia, Fischler (1995) evidencia a importância da relação entre a universalidade e a particularidade dos sistemas alimentares: “todos os humanos falam uma língua, mas existe um grande número de línguas diferentes; todos os humanos comem um alimento cozido, mas existe um grande número de cozinhas diversas. A cozinha é universal assim como as cozinhas são diversas” (p.34).

A comida, além de marcar um território, é uma identidade ligada a uma rede de significados locais, que também envolve emoção, trabalha com a memória e com sentimentos. Alguns pratos são considerados ícones de determinadas culturas alimentares, como, por exemplo, a macarronada que está ligada à imagem da família italiana em torno da mesa ou o sushi associado à cultura japonesa. Esta relação, inclusive, é aproveitada turisticamente: muitas cidades e regiões divulgam suas especialidades culinárias como atrativos e marcas de destinos turísticos, como é o caso do Galeto Al Primo Canto em Caxias do Sul-RS, o Barreado no litoral paranaense e o Acarajé em Salvador-BA. Da mesma forma, expressões ‘comida da mãe’ ou ‘comida caseira’, segundo Maciel (2001) ilustram a evocação da infância, do aconchego, da segurança, da ausência de sofisticação ou do exotismo. Ambas expressões também remetem ao ‘familiar’, ao próximo, ao frugal e, até mesmo, a lembranças pessoais. Recentemente, o termo ‘comfort food’ ganhou destaque, designando alimentos e bebidas com direta associação emocional relacionados a momentos significativos da história pessoal do comensal, uma ligação com o passado percebido como mais feliz do que a realidade vivenciada naquele momento. Embora exista uma tendência que aponte o consumo de ‘comfort foods’ como individual, o seu vínculo memorial com situações de comensalidade é evidente, podendo funcionar também como um mecanismo de reforço identitário, sendo acionado para fortalecer o vínculo a um determinado grupo (Gimenes-Minasse, 2016).

Outro aspecto de importância fundamental quanto à alimentação humana, segundo Maciel (2001), relaciona-se a com quem comemos; e essa partilha de valores por meio da comensalidade implica em divisões por sexo, família, idade, status social, entre outros parâmetros. No contexto de seus sistemas alimentares, todas as culturas apresentam regras e costumes claros regulando a disposição dos comensais, a distribuição e a partilha, bem como as maneiras à mesa; impondo, resumidamente padrões de comensalidade (Fischler, 2011). As práticas alimentares e de comensalidade, uma vez que identificam e sinalizam o modo de vida e os valores inerentes a um determinado grupo, relacionam-se, consequentemente, à hierarquia, à inclusão e à exclusão social. Desta forma, a comensalidade ajuda a organizar as regras de identidade e da hierarquia social, nos permitindo identificar outros valores (Carneiro, 2005):

O costume alimentar pode revelar de uma civilização desde a sua eficiência produtiva e reprodutiva, na obtenção, conservação e transporte dos gêneros de primeira necessidade e os de luxo, até a natureza de suas representações políticas, religiosas e estéticas. Os critérios morais, a organização da vida cotidiana, o sistema de parentesco, os tabus religiosos, entre outros aspectos, podem estar relacionados com os costumes alimentares (p. 72).

O costume alimentar demonstra seu poder identitário e de segregação principalmente quando relacionado à identidade religiosa. Como ressalta Boutaud (2011), os estímulos identitários do cenário alimentar são muito presentes nos rituais profanos e sagrados, prescrições e proibições religiosas. Um exemplo é descrito por Carneiro (2005): “ser judeu ou muçulmano implica, entre outras regras, não comer carne de porco; ser hinduísta é ser vegetariano; o cristianismo ordena sua cerimônia mais sagrada e mais característica em torno da ingestão do pão e do vinho” (p.72). Para o mesmo autor, à mesa ou durante o ritual da refeição em comum estão em jogo dois eixos essenciais de nossa humanização, horizontal e vertical. O eixo horizontal é a força de agregação e de coesão que a comensalidade alimenta, quando a comunidade se forma, se encontra, se reconhece; expressa sua unidade, seus vínculos. No caso do eixo vertical, a comensalidade convida ao respeito das hierarquias, dos lugares, dos papeis e grupos, apresentando um papel de segregação:

Através das épocas e das culturas, ela concebe essa comunhão ao preço de excomunhões. Segundo o princípio vertical, ela reúne tanto quanto separa, provocando afastamentos identitários, entre civilizados e bárbaros, elites e pessoas comuns, quando não entre homens e mulheres deixados à distância (Boutaud, 2011, p. 1215).

Como observado anteriormente, cada cultura define o que é considerado adequado para cada uma das refeições do dia, assim como quantas e quais são estas refeições e como se distribuem ao longo do dia, tanto na alimentação do cotidiano como nas que marcam momentos especiais, prescrevendo o que e com quem, em determinada situação, pode ou não ser consumido (Maciel, 2001). Essas funções simbólicas da comensalidade estão muito presentes nos estudos da hospitalidade; nos quais a refeição é um rito de integração: ser excluído da mesa é, em muitos aspectos, ser excluído de uma sociedade (Montandon, 2011; Pitt-Rivers, 2012). A mesa reúne e exclui; ela fixa uma ordem social, forma uma comunidade de eleitos reunidos por uma etiqueta de mesa e de conversação que estabelece, fundamentalmente, a distinção social (Grassi, 2011). Por exemplo, na hospitalidade homérica, assim como nas mesas principescas das cortes europeias do Renascimento ao final do século XVII, a comensalidade dos banquetes é um gesto aristocrático. Trata-se de ser escolhido, admitido, solicitado. As luxuosas e requintadas mesas delimitam o perímetro social daqueles que não somente são admitidos como seus semelhantes à partilha de uma refeição, mas também se distinguem dos outros, pela partilha do bom gosto, da distinção em todos os aspectos (Grassi, 2011).

COMENSALIDADE, HOSPITALIDADE E CONVIVIALIDADE

A discussão associando os conceitos de comensalidade, de hospitalidade e de convivialidade são aqui apresentadas por último, pelo entendimento de que estas relações também se respaldam nas discussões já realizadas sobre sociabilidade, socialização e identidade cultural. As manifestações de comensalidade transitam entre a convivialidade e a hospitalidade. Uma refeição pode apresentar significados diferentes dependendo de suas circunstâncias, do momento de seu acontecimento: comer cotidianamente e comer em eventos especiais ou comer em casa e comer fora de casa. Como ressalta Woortmann (1985), o caráter simbólico-ritual da comensalidade pode ser observado claramente no hábito de convidar pessoas para jantar em casa, no restaurante em determinadas ocasiões especiais ou no ‘almoço de domingo’.

Independente dos momentos, das formas de relações ou dos espaços da comensalidade, comer junto assume um significado ritual e simbólico superior à simples satisfação de uma necessidade alimentar; uma forma de partilha, de troca e de reconhecimento. Compartilhar sua mesa ou sua refeição com alguém é uma das formas mais reconhecidas de hospitalidade em qualquer época e em todas as culturas (Boutaud, 2011). Para Boff (2006), a comensalidade está ligada à essência da natureza humana e consiste na culminância da hospitalidade e da convivência, respeito e tolerância. Para o autor, a comensalidade remete diretamente à familiaridade humana, pois é à mesa que se fazem e refazem continuamente as relações que sustentam a família. A mesa, neste contexto, é mais do um item de mobiliário: ela representa o lugar privilegiado da família, da comunhão e da irmandade.

A hospitalidade pode ser reconhecida como forma atenuada da dádiva, um vínculo entre dois homens estabelecido pela obrigação de compensação de uma dádiva e contra dádiva (Benveniste, 1995; Godbout, 1999). A dádiva, por sua vez, pode ser compreendida como “qualquer prestação de bem ou de serviço, sem garantia de retorno, com vista de criar, alimentar ou recriar os vínculos sociais entre as pessoas” (Godbout, 1999, p.29). Ela está relacionada à obrigatoriedade da contra dádiva, a assimetria dos atores e a reciprocidade como tentativa de igualdade entre eles, formando um ciclo que se analisa em três momentos, ou também conhecida como a tríplice obrigação da dádiva: o dar, o receber e o retribuir. Montandon (2011) aponta que as sociedades ocidentais modernas conservam vestígios das práticas do ciclo das trocas, o exercício das dádivas e contra-dádivas das sociedades ‘primitivas’; e o que se troca não são apenas bens de consumo, mas cortesias, banquetes, ritos, danças, festas. Godbout (1999) também afirma que a lógica da dádiva é perdurável, então ela deve esclarecer não só o passado, mas também o presente e o futuro.

A definição de hospitalidade utilizada por Benveniste (1995) se fundamenta no conceito maussiano de fato social total e na tríplice obrigação, e evidencia a formação de vínculos por meio de sua prática, como pode ser observado pela citação: “termos muito diferentes entre si levam ao mesmo problema: o das instituições de acolhida e reciprocidade graças às quais os homens de um povo encontram hospitalidade entre outro povo e as sociedades realizam alianças e trocas" (p.100). Segundo Montandon (2011), assim como para Mauss (1974) e Benveniste (1995), a relação interpessoal instaurada pela hospitalidade implica em uma relação, um vínculo social, valores de solidariedade e de sociabilidade. Desta forma, a hospitalidade pode ser considerada uma das formas mais essenciais da socialização e, até mesmo, como uma forma própria da hominização. Para Grassi (2011), a hospitalidade pode ser compreendida como um rito de passagem, uma dádiva temporária de um espaço, somente uma etapa de iniciação dos vínculos sociais. É fundamentalmente um ritual de acolhida e de admissão, no qual as regras de polidez e cortesia são estabelecidas para amenizar o caráter hostil da intrusão do hóspede, por mais que seja uma intrusão desejada. Neste ritual a refeição se apresenta como seu rito fundamental: sem a partilha da comida não existe a admissão do estrangeiro.

Entrar no círculo do outro é renunciar se impor, dar prova de submissão e de obediência ao grupo em questão. Em particular, o convidado não pode recusar o que lhe oferecem, a começar pelo alimento e pela bebida, que, consumidos em comum, marcam o nascimento da comunidade. Ele deve saber receber e aceitar os presentes da hospitalidade, apreciá-los e degustá-los, valorizando assim o dono do espaço (Montandon, 2011). Pitt-Rivers (2012) ressalta que o hóspede é obrigado a aceitar principalmente a comida, pelo seu valor simbólico, e que a sua recusa implica em desagrado, depreciação e equivale a um insulto ao anfitrião. Apesar da polêmica associada à aplicação dos conceitos de hospitalidade e da lógica da dádiva em uma sociedade capitalista, Lashley, Lynch e Morrison (2007) defendem que a hospitalidade pode ser concebida como um conjunto de comportamentos originários da própria base da sociedade, da mutualidade, da reciprocidade e da troca, relacionados ao senso de comunidade e aos sentimentos de altruísmo e de beneficência; e pode ser analisada através dos domínios social/cultural, privado/doméstico e comercial, que representam aspectos da oferta de hospitalidade de maneira independente e sobreposta.

De fato, verifica-se uma forte presença de princípios da hospitalidade e da comensalidade em locais comerciais de alimentação, tais como restaurantes, bares, lanchonetes, muitas vezes utilizados como local de encontro por comensais contemporâneos. Em muitas das atividades realizadas nestes espaços as regras de polidez e cortesia, e até mesmo alguns rituais de hospitalidade doméstica, são reproduzidos ou adaptados, objetivando a regulação da relação entre o anfitrião/prestador de serviço e o hóspede/cliente. Camargo (2004) também acredita que a hospitalidade pode ser analisada através dos diferentes espaços sociais: o público, o doméstico e o comercial. E tanto Lashley (2004) quanto Camargo (2004) defendem que a melhor compreensão dos domínios social/público e doméstico trazem valores importantes para o sucesso no domínio comercial.

Para Gotman (2009), a hospitalidade no domínio comercial se opõe constantemente à hospitalidade no domínio doméstico, principalmente pela oposição do paradigma da dádiva e do paradigma do comércio, que isenta a obrigatoriedade da contra-dádiva pelo pagamento em forma de contrato. Porém, ambas estão simultaneamente se referindo à outra; a hospitalidade comercial, também denominada de encenada, recorre e se baseia na hospitalidade doméstica, denominada autêntica, para estabelecer suas práticas e padrões (Gotman, 2009). Independe de uma hospitalidade autêntica ou encenada praticada nos locais comerciais, a utilização de restaurantes, bares e outros serviços de alimentação para a rituais da hospitalidade por diversos grupos sociais cresce no contexto da alimentação contemporânea, principalmente em grandes centros urbanos.

É importante ressaltar que momentos de hospitalidade e convivialidade se alternam e coexistem em vários cenários, principalmente quando falamos do partilhar a mesa. O processo de admissão e acolhimento são descritos como ritos de hospitalidade, porém uma vez admitido pelo grupo podemos dizer que uma relação de convivialidade foi instaurada. Para Ashby (2004) a convivialidade é alcançada pela maioria apenas por meio de um processo pelo qual a “non-conviviality” (a “não convivialidade” – tradução livre) é reforçada para a minoria. Observa-se uma alternância de poder e papeis entre indivíduos e grupos, assim grupos minoritários e majoritários se formam em um processo dinâmico e temporal, pessoas de fora são excluídas ou forçam sua entrada (Ashby, 2004), assim como descrito na hospitalidade.

A palavra convivialidade deriva do latim ‘convivere’ [viver junto com ou comer junto com] e se manifesta em um lugar ou grupo de convívio em que os indivíduos são bem-vindos e se sentem à vontade, pertençam a aquele grupo/local, como, por exemplo, o núcleo familiar (Schechter, 2004). Segundo o Grand Dictionnaire Terminologique (2017), a convivialidade pode ser descrita como um conjunto de relações positivas entre as pessoas e os grupos que formam uma sociedade, com ênfase na igualdade e na vida comunitária ao invés de funções hierárquicas. Para Illich (1973), a convivialidade é o alicerce da sociedade, do grupo que dá a seus membros os meios e as ferramentas para alcançar seus objetivos pessoais. Esta significa um valor ético intrínseco que permite a manifestação da liberdade individual manifestada na interdependência pessoal dentro do grupo. O autor complementa dizendo que uma "convivial society would be the result of social arrangements that guarantee for each member the most ample and free access to the tools of the community and limit this freedom only in favor of another member's equal freedom” (p. 12).

Illich (1973) define a aprendizagem pela convivialidade como um aprendizado baseado na troca de papeis, alternando-se o papel de professor e aprendiz, enfatizando, desta forma, a importância do conceito de reciprocidade como componente chave para a convivialidade, assim como observamos na hospitalidade. Para Schechter (2004) a convivialidade é uma forma social de interação humana, uma forma de reforçar a coesão do grupo através do reconhecimento de valores comuns. A autora também vincula a experiência física da convivialidade em uma experiência de aprendizado e de partilha de conhecimentos. As relações de convivialidade, como observado anteriormente, se manifestam nas relações entre pessoas que dividem um mesmo código, permitindo, assim, criar uma ligação entre seu conceito e a noção de cultura; um sistema acordado interativo de signos, significantes e significados. Para Grignon (2001), as regras implícitas das rotinas e dos rituais das refeições fazem parte de um consenso comum ao conjunto dos integrantes de cada cultura; estes se comportam de acordo com tais regras sem na maioria das vezes ter consciência e se distinguem por meio destas. A partilha de comida e/ou bebida pode ser vista como uma maneira de criar e reforçar um grupo social através de um sentimento positivo de pertencimento [ser incluído e/ou fazer parte do grupo], no qual é baseada a consciência comunal de sua identidade (Schechter, 2004).

Para Carneiro (2003), a convivialidade manifesta-se sempre na comida compartida. A onipresença da alimentação em todas as sociedades lhe atribui o papel de uma chave mestra, de uma prática universal que pode revelar os demais aspectos, ideias e conflitos de todos os povos em todas as épocas. Além das questões políticas ou econômicas, a alimentação revela a estrutura da vida cotidiana, do seu núcleo mais íntimo e mais compartilhado. Por exemplo, a refeição familiar, idealmente compartilhada pela família como uma família, ou seja, todos os membros devem comer juntos sentados em volta da mesa conversando entre si e aproveitando a comida e companhia um do outro, é considerada por Mestdag (2005) e Poulain (2002) um arquétipo da comensalidade.

A convivialidade, portanto, depende da sociabilidade, entendida como a capacidade humana de estabelecer laços sociais. Por sua vez, por pressupor uma interação ativa entre sujeitos, a convivialidade estabelece momentos facilitadores da socialização, processo de aprendizagem das regras sociais de um determinado grupo. Os momentos de comensalidade e de convivialidade, por consequência, podem se constituir como oportunidades para o compartilhamento de alimentos e rituais permeados de significado, que remetem ao comer simbólico e permitem o fortalecimento de laços identitários e de pertencimento a um grupo. Verifica-se, a partir dos argumentos apresentados neste artigo, que a comensalidade está presente no processo de admissão e acolhimento da hospitalidade e no processo de pertencimento da convivialidade relacionada aos papéis de socialização, sociabilidade e identidade cultural.

CONCLUSÃO

As práticas alimentares e de comensalidade são construídas a partir de um contexto cultural mais amplo e, portanto, se constituem em uma forma privilegiada de leitura de um grupo ou sociedade. Mais do que o ato mecânico de compartilhamento de um alimento ou refeição, é a compreensão das relações sociais que envolvem esta partilha – bem como de seus aspectos reguladores – que permite uma melhor compreensão da complexidade da comensalidade. Parte desta complexidade reside no fato da comensalidade desempenhar um papel de fomentador das relações sociais. Um convite à mesa integra o indivíduo a um grupo e cria uma proximidade, mesmo que temporária, que pode ser convertida em um vínculo mais duradouro. Este papel de sociabilização da comensalidade é também fundamental para outro papel relevante, o de socialização. Nas refeições compartilhadas aprende-se regras de comportamento que remetem não apenas às boas maneiras ou cuidados com a higiene, mas também à hierarquia social e aos comportamentos que são aceitáveis ou não em relação aos outros indivíduos.

Por manifestar-se de forma cotidiana, mas também celebrativa, conectando pessoas em refeições diárias ou em acontecimentos dedicados à comemoração de datas e situações percebidas como especiais, a comensalidade também desempenha um papel fundamental na construção e manifestação de identidades culturais. As regras assimiladas a partir da socialização e as redes de relacionamento construídas a partir da sociabilidade contribuem diretamente para a construção de uma noção de quem se é e à qual grupo se pertence, ao ponto de serem desenvolvidas práticas de comensalidade específicas para determinadas circunstâncias e situações que sejam capazes de reforçar ainda mais os laços entre os comensais.

Uma vez que a hospitalidade é uma maneira de viver em conjunto, uma forma de se instaurar uma relação interpessoal, constituída por ritos e regras que variam de acordo com o grupo social em que se está inserido, a manifestação da comensalidade nas relações de hospitalidade pode ser considerada um dos pilares dos rituais de admissão e acolhimento. O valor simbólico do compartilhamento da comida oferecida proporciona a instauração de um vínculo, e quando convidado à mesa, o hóspede deve saber aceitar a dádiva concedida e agir de acordo com as regras implícitas do anfitrião ou grupo social para que não ocorra a recusa deste vínculo. Quando já admitido e pertencendo ao grupo a comensalidade não apenas reforça o vínculo estabelecido, mas também demonstra a dinâmica social deste.

Nota-se que momentos de hospitalidade e convivialidade podem se alternar e coexistir em vários cenários e os papéis desempenhados pela comensalidade, como a sociabilização, a socialização e o seu caráter identitário estão presentes tanto na cena hospitaleira como entre convivas. Desta forma, o papel do partilhar a mesa fica evidenciado. Conclui-se que entender as mudanças das práticas de comensalidade ajuda a compreender em parte as mudanças sociais que ocorrem hoje em um contexto social mais amplo, e ressalta-se que discutir os conceitos de hospitalidade, de convivialidade e sua relação com a comensalidade é uma possibilidade de enriquecer a compreensão das práticas contemporâneas de comensalidade em transição fomentando mais estudos nessas áreas.

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