Resumo: As disputas envolvendo as políticas sociais durante a pandemia de COVID-19 estão sendo intensas. No âmbito educacional, as medidas de distanciamento social resultaram no fechamento das escolas e na consequente necessidade de adoção de políticas emergenciais para enfrentar os desafios educacionais impostos. Este artigo busca contribuir para a análise dessas políticas, indicando como consequência o risco de avanço da privatização da educação. Consideramos que o Estado desempenha papel central nesse processo, portanto a privatização deve ser entendida em sua complexidade, não como mero deslocamento de fronteiras entre público/estatal e privado/não-estatal. Para a análise, coletamos informações a partir dos pareces emitidos pelo Conselho Nacional de Educação e de documentos divulgados por organismos do setor privado – nacional e internacional – que influenciaram os debates e decisões.
Palavras-chave: Educação, Privatização, Ensino Remoto, Ensino Híbrido, EdTech.
Abstract: Disputes over social policies during COVID-19 pandemic have been intense. In the educational ambit, social distancing measures resulted in the closure of schools and the subsequent need to adopt emergency policies to confront the educational challenges arising. This article aims to contribute to the analysis of these policies. One consequence is the risk of advancing the privatization of education. We consider that the State’s role in this process is central and that privatization must be understood in its complexity, not just as a redefinition of the border between public/state and private/non-state. For the analyses, we gathered information from official papers produced by Conselho Nacional de Educação and from documents released by national and international private organizations who influence the debates and decisions.
Keywords: Education, Privatization, Remote learning, Blended Learning, EdTech.
Artigos Temáticos
Políticas educacionais em tempos de pandemia
Educational policies in pandemic times

Recepción: 31/10/2020
Aprobación: 24/02/2021
A disseminação da COVID-19 em diversas partes do globo fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) a caracterizasse como pandemia em março de 2020. Desde o surgimento do vírus, ainda no final de 2019 na China, líderes de diferentes países têm tomado medidas diversas para tentar barrar o alastramento da doença, optando por seguir ou não as recomendações da OMS ou de instituições supranacionais e nacionais que se debruçaram sobre a questão. No Brasil, o presidente da república, Jair Messias Bolsonaro, minimizou a doença denominando-a gripezinha e afirmou existir uma histeria; ademais, foi responsável por gerar diversas situações de aglomeração social. As medidas negligentes e irresponsáveis adotadas pelo presidente e seus aliados representaram uma política genocida diante da pandemia, resultando em quase 160 mil mortos no final de outubro de 2020.
A compreensão da pandemia, bem como seus impactos nas políticas sociais não pode estar dissociada do contexto mais amplo de reprodução social, numa relação dialética entre as mudanças envolvendo a natureza e os aspectos culturais, sociais, econômicos e políticos. Concordamos com Harvey (2020), quando este afirma que
O capital modifica as condições ambientais de sua própria reprodução, mas o faz num contexto de consequências não intencionais (como as mudanças climáticas) e contra as forças evolutivas autônomas e independentes que estão perpetuamente remodelando as condições ambientais. Deste ponto de vista, não existe um verdadeiro desastre natural. Os vírus mudam o tempo todo. Mas as circunstâncias nas quais uma mutação se torna uma ameaça à vida dependem das ações humanas (HARVEY, 2020, p. 15).
A pandemia, portanto, não está alheia à crise estrutural do capital e às consequentes políticas que vem sendo adotadas no sentido de reverter a queda na taxa de lucro capitalista. No capitalismo contemporâneo, caracterizado pela centralidade do capital fictício e por intensos movimentos de concentração e centralização de capitais, assistimos a uma retração constante do Estado e à consequente ampliação da margem de controle dos espaços estatais pela lógica do capital (CARCANHOLO; SABADINI, 2009). Para garantir as oportunidades de acumulação e realização do valor, o Estado apresenta sua dimensão coercitiva e repressiva por meio da criminalização crescente da pobreza e da questão social (PINASSI, 2011); além disso, a redução das funções públicas do Estado representa a perda de direitos conquistados pelos trabalhadores (HARVEY, 2012). Essa situação é ainda mais grave quando se considera o caso brasileiro, já que a particularidade do nosso desenvolvimento capitalista – um capitalismo dependente e periférico – materializa-se em formações sociais limitadas do ponto de vista das conquistas sociais historicamente possíveis (FERNANDES, 2005). A pandemia parece indicar a intensificação desse processo, acirrando as contradições existentes entre as classes sociais.
No âmbito das políticas educacionais, as disputas no período da pandemia de COVID-19 estão sendo intensas, haja vista a necessidade de fechamento das escolas e as consequentes tomadas de decisão sobre o que fazer diante do novo cenário imposto. O objetivo desse artigo é contribuir para a análise das políticas educacionais adotadas nesse período, apontando para o risco de uma intensificação dos processos de privatização da educação.
Os estudos de Gramsci (2007) sobre o significado que as instituições da sociedade civil alcançaram nos processos de disputa por hegemonia possibilitam compreender a importância que as escolas adquiriram a partir do final do século XIX. Por um lado, elas são parte da estrutura ideológica de uma classe dominante e são organizadas para manter sua hegemonia. Por outro lado, elas podem constituir-se como espaço para construção de uma nova hegemonia. É evidente que mudanças estão acontecendo no mundo, em todas as esferas da vida social, mas elas seguem reforçando a educação escolar como meio privilegiado para veicular valores, ideologias e conhecimentos. Não à toa, a educação tem se caracterizado como um intenso espaço de disputas.
Consideramos que tais disputas somente podem ser entendidas a partir da análise concreta do aparelho estatal. É a partir da análise histórica que Gramsci (2007) amplia a compreensão do conceito de Estado, entendendo-o como a junção dialética entre sociedade política e sociedade civil, isto é, “como hegemonia couraçada de coerção” (GRAMSCI, 2007, p. 244). Ao fazê-lo, o autor reconhece a existência da luta entre classes antagônicas, que irá determinar se o Estado será mais hegemônico-consensual ou mais coercitivo, e que o Estado desempenha um papel importante nessa luta, não ignorando que tal papel “[...] é de classe e responde às determinações de valorização do capital e às exigências da sociabilidade burguesa” (DANTAS; PRONKO, 2018, p. 73).
No caso das políticas educacionais e das disputas que as envolvem, trata-se de compreender a complexidade da atuação estatal em seu funcionamento. Em estudo anterior, afirmamos que três tendências caracterizam a privatização da educação no capitalismo contemporâneo: centralidade do capital fictício, movimentos de concentração e centralização de capitais e disputas pelos fundos públicos (GALZERANO; MINTO, 2018). O Estado exerce papel primordial nessa lógica, por isso discordamos das análises que tomam a privatização da educação apenas numa perspectiva jurídico-formal, como mero deslocamento de “fronteiras” entre o público/estatal e o privado/não estatal. A reforma do Estado Nacional nos anos 1990, impulsionada pela chamada Nova Gestão Pública, colaborou para a institucionalização de uma identidade rígida e mecânica entre público e estatal. Essa identidade busca legitimar que Estado, sociedade civil e mercado são setores distintos e independentes, escamoteando o fato de que as contradições entre interesses públicos e privados estão presentes em cada um deles (MONTAÑO, 2008).
Também buscamos compreender a privatização da educação em um sentido amplo, qual seja, a sobreposição de interesses privados sobre a educação pública. É evidente que as disputas que acontecem no âmbito educacional envolvem diferentes frações da classe burguesa; não se trata de homogeneizar o setor privatista que atua na educação, mas compreendê-lo em sua totalidade, o que significa asseverar a relação dialética entre a privatização, em seu clássico sentido mercantil, e a privatização em uma dimensão mais abrangente, remetendo à definição privada dos fins educacionais e dos meios para atingi-los. Recordemos que as investidas da burguesia na educação pública envolvem um duplo interesse: por um lado, buscam maximizar a geração e realização de valor em todas as esferas onde seja possível a atuação do Capital, por outro, objetivam controlar ideologicamente todos os processos educacionais e pedagógicos, das políticas centrais às unidades escolares.
No Brasil, as disputas pelas políticas educacionais foram se intensificando, sobretudo a partir do período da redemocratização. As transformações ocorridas diante da transição rumo ao capitalismo monopolista, aliadas ao aprofundamento das contradições causado pela ditadura empresarial-militar, exigiam novas formas de participação da sociedade civil e de relação com o Estado. Apesar da proclamada transição democrática não ter rompido com os laços de subdesenvolvimento e dependência que marcam a história brasileira, resultando na construção de uma democracia sui generis (FERNANDES, 1986), os movimentos sociais intensificaram-se e havia um conjunto de forças representado por professores, operários, trabalhadores sem-terra, profissionais da saúde e setores progressistas da igreja católica em defesa das reformas democráticas. No âmbito educacional, mesmo com divergências internas, setores da esquerda uniram-se na luta em defesa da escola pública e participaram ativamente das disputas no processo Constituinte, o que levou à conquista de direitos no âmbito da democracia burguesa.
Entretanto, nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 1990, a crise estrutural do capital e o consequente avanço das ideias neoliberais, aliada às questões conjunturais brasileiras, tornaram mais complexa a correlação de forças envolvendo as políticas educacionais no país. Essas mudanças fortaleceram interesses privatistas, enfraquecendo entidades e organizações da sociedade civil que protagonizaram esses debates noutros períodos (FONTES, 2010).
Frações da classe burguesa têm atuado em órgãos educacionais decisórios, como Secretarias, Conselhos e até mesmo no MEC e no Congresso Nacional. Além disso, contam com apoio da mídia, de fundações, institutos privados e de ONGs para disseminar e legitimar suas propostas. Trata-se de uma longínqua construção que objetiva influenciar a definição e implementação da agenda educacional (FREITAS, 2014). Em nível global, Shiroma e Evangelista (2014) argumentam que a articulação entre Estados Nacionais e aparelhos privados de hegemonia constituíram redes de políticas públicas que resultam na harmonização de interesses de governos, do capital nacional e internacional, com objetivo de instituir novas formas de gerir a questão social.
Em países de capitalismo dependente e periférico, como o Brasil, as políticas educacionais das últimas décadas seguem reforçando os laços entre subdesenvolvimento e dependência que caracterizam nossa história. A burguesia nativa[1] se alia aos interesses das burguesias de capitalismo central, do que resultam tentativas de impor tais interesses à sociedade brasileira, formas de adequação do campo educacional àquilo que é proposto por tais países e por organismos internacionais, distanciando-se das reais necessidades do povo brasileiro.
Na ausência de vacinas e de tratamentos eficazes para a COVID-19, instituições científicas e a OMS afirmaram que o distanciamento social era a medida mais recomendável para conter o avanço da pandemia. No âmbito educacional, isso significou a suspensão das atividades em escolas e universidades, ainda que de modo desigual nos diferentes países e regiões. Desde então, organismos internacionais já disponibilizaram diversos documentos com recomendações frente aos desafios educacionais impostos pela pandemia. Banco Mundial (BM), Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Harvard Global Education Innovation Initiative e HundrED se juntaram para produzir e disseminar pesquisas e materiais que possam auxiliar nas respostas à crise.
Documento elaborado pela OCDE, em parceria com a Harvard Global Education Innovation Initiative (REIMERS; SCHLEICHER, 2020) afirma que a ausência de atividades escolares por um longo período acarreta prejuízos não apenas pela suspensão do tempo de aprendizagem, mas também pela possibilidade de perda dos conhecimentos já adquiridos. Nesse sentido, pretendeu orientar as respostas educacionais à pandemia por meio de uma lista contendo 25 tarefas a serem adotadas pelos países. Dentre elas, destacamos: flexibilização curricular; aprendizagem online; parcerias com organizações da sociedade civil e com o setor privado; revisão do marco regulatório para viabilizar a educação online.
O BM também afirmara estar preocupado com as perdas educacionais causadas pelo fechamento das escolas, sobretudo pelo contexto de suposta crise de aprendizagem, em que as crianças não estariam aprendendo as habilidades necessárias à vida[2]. Para orientar políticas educacionais brasileiras, o Banco divulgou documento contendo experiências internacionais que podem servir de aprendizado às nossas práticas; a educação à distância é apresentada como solução para que se promova aprendizagem de forma equitativa, mesmo com as escolas fechadas (THE WORLD BANK GROUP, 2020b).
As orientações dos organismos internacionais têm sido traduzidas para a realidade brasileira por meio das instituições privadas. O Movimento Todos pela Educação (TPE) iniciou a campanha #Todoscontraocorona; criou e vem divulgando estudos para apoiar o poder público. Seus representantes, sobretudo a diretora-executiva Priscila Cruz, estiveram à frente dos debates chamados pela mídia e participaram ativamente das elaborações do Conselho Nacional de Educação (CNE) para esse período. Em 8 de abril de 2020, o TPE, em parceria com BM e CNE, realizaram um seminário para discutir o ensino remoto e os desafios regulatórios durante e pós a pandemia (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020b). Também, em abril, foi produzida uma Nota Técnica (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020a) para disseminar a visão do TPE sobre o ensino à distância na educação básica.
No Brasil, o Decreto Legislativo nº 6/2020 (BRASIL, 2020b) reconheceu a ocorrência do estado de calamidade pública. Desde então, estados, municípios e o Distrito Federal lançaram suas respectivas normativas para suspender as atividades escolares. A Medida Provisória nº 934, de 1º de abril de 2020 (BRASIL, 2020a), dispensou, excepcionalmente, a obrigatoriedade do cumprimento do mínimo de dias letivos no ano de 2020 na educação básica e no ensino superior. Nesse contexto, a reorganização das atividades escolares tornara-se urgente, levando o CNE a emitir três documentos: Parecer CNE/CP nº 5, de 28 abril de 2020 (BRASIL, 2020e), Parecer CNE/CP nº 9, de 8 de junho de 2020 (BRASIL, 2020f), Parecer CNE/CP nº 11, de 7 de julho de 2020 (BRASIL, 2020g)[3]. Em 18 de agosto, foi sancionada a Lei nº 14.040/2020 (BRASIL, 2020c), que converteu a Medida Provisória em lei e definiu que o CNE editaria as diretrizes nacionais para implementação do disposto na lei. Em 6 de outubro, por meio do Parecer CNE/CP nº 15/2020 (BRASIL, 2020h), o Conselho propôs diretrizes que estivessem de acordo com pareceres elaborados anteriormente[4] (BRASIL, 2020d).
Os documentos foram construídos com a participação de entidades nacionais (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME), dentre outros) e tiveram como base as experiências internacionais e pesquisas e materiais disponibilizados por organismos internacionais (BM, OCDE, Unicef, Unesco) e por instituições privadas de atuação nacional (Itaú Social, Fundação Lemann, Instituto Unibanco, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Fundação Roberto Marinho, além do TPE, que aglomera diversas organizações e fundações). Foram desconsiderados os estudos e pesquisas desenvolvidos por universidades públicas brasileiras, tampouco foram ouvidas as recomendações das entidades e associações científicas da área[5].
As recomendações de organismos internacionais, traduzidas para a realidade brasileira pelas instituições privadas, foram atendidas pelos pareceres elaborados pelo CNE: utilização de diferentes materiais e recursos pedagógicos (mediados ou não pelo uso das TICS), foco no ensino remoto e flexibilização curricular, com base nas competências consideradas mais essenciais – no caso brasileiro, expressos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
A BNCC, aliás, adquiriu ainda mais centralidade no processo educativo nesse período, sendo reforçada nos documentos divulgados pelas instituições privadas brasileiras. A Fundação Lemann (2020b), por exemplo, produziu um roteiro para orientar as secretarias de educação quanto à flexibilização curricular demandada pela pandemia. De modo geral, os pareceres elaborados pelo CNE indicaram que as atividades não presenciais a serem desenvolvidas deviam ser realizadas com vistas ao cumprimento do disposto na Base. No Parecer CNE/CP nº 5/2020, consta a compreensão do sentido da escola, reduzindo-a ao mero cumprimento de currículos e normativas existentes:
A principal finalidade do processo educativo é o atendimento dos direitos e objetivos de aprendizagem previstos para cada etapa educacional que estão expressos por meio das competências previstas na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e desdobradas nos currículos e propostas pedagógicas das instituições ou redes de ensino de Educação Básica ou pelas Diretrizes Curriculares Nacionais e currículos dos cursos das instituições de educação superior e de educação profissional e tecnológica (BRASIL, 2020, p. 4).
Com a pressão pela reabertura das escolas[6] e a disseminação das supostas experiências de sucesso do ensino remoto, ganhou destaque a discussão de propostas envolvendo o ensino híbrido. Grosso modo, trata-se de uma combinação entre as modalidades de ensino presencial e à distância, integrado ao uso da tecnologia. A difusão do ensino híbrido como a única solução plausível para recuperar os danos educacionais causados pela pandemia, legitimadas por políticos e por setores da mídia, demonstram o fôlego atingido por esse projeto. Não à toa, em julho de 2020, foi fundada a Associação Nacional de Educação Básica Híbrida[7], cujo objetivo declarado é promover a educação híbrida em todas as etapas e modalidades da educação básica; para tanto, irão promover a formação de profissionais da educação por meio da disseminação de experiências nacionais e internacionais de educação híbrida (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE EDUCAÇÃO BÁSICA HÍBRIDA, 2020). No Brasil, a possibilidade do cumprimento da carga horária mínima de modo híbrido está prevista nas diretrizes elaboradas pelo CNE (Parecer CNE/CP n. 15/2020).
Embora tenha se destacado durante a pandemia, em especial nas discussões da reabertura das escolas, o debate envolvendo o ensino híbrido e o consequente uso da tecnologia na educação já vinha se intensificando ao longo dos últimos anos. O BM possui setor específico que atua no sentido de descobrir, difundir e implementar novas tecnologias; durante a pandemia afirmara que a COVID-19 mudou o debate envolvendo EdTech[8], pois não se trata de analisar se iremos adotá-la, mas como o faremos (THE WORLD BANK GROUP, 2020a). Dentre os documentos produzidos neste período, há uma lista com recursos e plataformas para auxiliar a implementação do ensino remoto em diferentes contextos. Ademais, foi elaborada com priorização de gratuidade, possibilidade de uso offline e disponibilidade em mais de um idioma. Destacamos algumas que são utilizadas em território brasileiro: Khan Academy, Stoodi, Moodle, Google Classroom, Jitsi (WORLD BANK’S EDTECH TEAM, 2020).
No Brasil, a Fundação Lemann destaca-se nessa questão, divulgando estudos e pesquisas e apoiando iniciativas que relacionam educação e tecnologia; também atua no sentido de influenciar os debates públicos sobre a temática. Mencionamos algumas de suas iniciativas: desde 2013 possui o Programa Desafio Start-Ed, que objetiva financiar projetos que desenvolvem soluções tecnológicas para a educação; em 2015, junto ao Instituto Península, publicou um livro com os resultados das reflexões do Grupo de Experimentações em Ensino Híbrido; nos anos de 2017 e 2018, em parceria com o laboratório de inovação do Massachusetts Institute of Technology, nos EUA, lançou o Desafio Aprendizagem Criativa Brasil; fornece apoio técnico e financeiro ao Programa Educação Conectada, anunciado pelo MEC em 2017, e que objetiva a implementação de tecnologias digitais nas salas de aula; criou material com orientações para que empreendedores adequem suas tecnologias digitais à BNCC (FUNDAÇÃO LEMANN, 2016, 2018a, 2018b, 2018c, ©2020).
Os dizeres de Jorge Paulo Lemann de que a crise traz oportunidades é representada pelas iniciativas da Fundação durante a pandemia. Junto a outras organizações privadas, como Instituto Natura, Fundação Itaú Social, Fundação Roberto Marinho e Instituto Unibanco, tem colaborado com o trabalho do MEC, do Consed e da Undime para propor ferramentas que fortaleçam o ensino remoto. Com parcerias ou de forma individualizada, criou diversas plataformas, além de intensificar o uso daquelas que já existiam. Destacamos Aprendendo Sempre, Aprendizap, YoutubeEdu, Simplifica, Vamos Aprender e Plataforma de Apoio à Aprendizagem. As referidas plataformas disponibilizam conteúdos alinhados à BNCC gratuitamente. Além disso, a Lemann apoia o Centro de Mídias da Educação de São Paulo e lançou editais para fornecer apoio técnico a redes de ensino (FUNDAÇÃO LEMANN, 2020a).
É lícito recordar que Lemann é o principal acionista da Eleva Educação, composta por escolas de educação básica, plataforma e sistema privado de ensino. Em agosto de 2020, o grupo educacional afirmou que fará uma oferta pública inicial de ações (IPO), provavelmente em bolsa de valores americana; o valor estimado de arrecadação é entre U$300 e U$350 milhões (FILGUEIRAS, 2020). Durante a pandemia, a Eleva e a Estácio criaram o Resolve Sim, plataforma com foco na preparação para o ENEM e vestibulares (IDEIA..., 2020). Os limites entre os negócios de Lemann e sua Fundação parecem tênues e difíceis de ser identificados, ainda que se afirme oficialmente não haver qualquer relação entre ambos[9].
Além da influência das instituições privadas autodeclaradas sem fins lucrativos nas discussões sobre os rumos da educação brasileira durante a pandemia, observamos o alastramento de iniciativas tecnológicas nas redes públicas e privadas de ensino. A venda de materiais e serviços educacionais de todos os tipos já se constituía em um importante nicho de mercado para grupos empresariais, sobretudo aqueles listados em bolsa de valores. O advento do ensino remoto e do ensino híbrido abriu uma janela de oportunidades ainda maiores para a atuação de empresas cujo interesse primeiro é o lucro. Vale lembrar que os conglomerados atuantes no ensino superior estão atentos a isso e já começaram a alterar suas estratégias de expansão; essa situação demonstra um possível deslocamento da financeirização também para o âmbito da educação básica (GALZERANO; MINTO, 2018).
A Somos Educação constitui um exemplo dessa lógica. Era o principal grupo empresarial brasileiro atuante na educação básica e, ao ser adquirida pela Cogna em 2018, passou a integrar um dos maiores grupos educacionais do mundo[10]. Desde 2013, a Somos possui a plataforma Plurall, utilizada como ferramenta complementar às aulas presenciais de alunos dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Ao notar o potencial de mercado desse segmento, investiu R$ 42 milhões entre os anos de 2017 a 2019. Em julho de 2020, o Plurall tornou-se a maior plataforma de ensino digital do país, atendendo cerca de 1,3 milhão de alunos das escolas privadas. Desde março até o começo de julho, mais de dois milhões de aulas ao vivo foram ministradas. O número de estudantes atendidos mais que triplicou se comparado ao período anterior à pandemia (SAMPAIO, 2020). Sobre a plataforma, a Somos declarou: “Nesse momento de incertezas e distanciamento, o Plurall é mais do que uma plataforma, é a escola acontecendo online, com uma educação de perto, mesmo de longe” (BATISTA, 2020, não paginado, grifos do autor). Neste período de pandemia, a Somos Educação divulgou diversos materiais gratuitamente em seu site, sendo uma das responsáveis pela difusão e legitimação das recomendações de organismos internacionais.
Para além das grandes empresas que já atuavam no ramo educacional, a pandemia provavelmente causará um crescimento vertiginoso de startups ligadas à tecnologia. Para se ter ideia, levantamento feito pela Associação Brasileira de Startups entre agosto e outubro de 2019 mostrou que há 449 EdTechs ativas no Brasil, representando um aumento de 23% se comparados ao ano anterior. Dessas, mais de 70% são voltadas para a educação básica (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE STARTUPS; CENTRO DE INOVAÇÃO A EDUCAÇÃO BRASILEIRA, 2020). O uso de recursos digitais estava mais restrito às redes privadas de ensino e, em 2019, a inserção no setor público era visto como um desafio e uma necessidade pelas startups de educação; uma das estratégias para tal era a cessão gratuita dos serviços para um período de testes (WOLF, 2019). A pandemia parece ter resolvido esse problema, haja vista os contratos de doação firmados entre secretarias estaduais e municipais de educação e empresas para uso de suas plataformas e recursos nas escolas públicas.
Embora as empresas e organizações que se debruçam sobre o ensino híbrido e EdTech afirmem que a tecnologia não substitui o trabalho do professor, é inegável que há uma transformação em seu papel no processo pedagógico e, em determinados contextos, os recursos digitais ganham centralidade. A afirmação do BM ilustra essa ideia:
EdTech não pode substituir professores, pode apenas ampliar o ensino [...] Tecnologia irá substituir algumas das tarefas que os docentes realizam atualmente, ao mesmo tempo em que irá apoiá-los nas novas e sofisticadas funções e responsabilidades assumidas como resultado da mudança tecnológica. Professores podem ser facilitadores de ensino, parte da equipe de aprendizagem, um colaborador com mentores especialistas externos, um líder de equipe numa atividade baseada em projetos etc. Concomitantemente, em circunstâncias em que há escassez de professores ou professores de baixa capacidade, a tecnologia pode desempenhar um importante papel auxiliando os alunos e, em parte, compensando essa ausência. (THE WORLD BANK GROUP, 2020a, não paginado, tradução nossa).
Embora as discussões envolvendo recursos digitais na educação já estivessem acontecendo ao longo dos últimos anos, é evidente que a COVID-19 intensificou o debate. Ao determinar as respostas educacionais frente à pandemia, os organismos internacionais transformaram o ensino remoto e o consequente uso da tecnologia em necessidade, mesmo que essa não se constitua na necessidade imediata da população dos diferentes países. A pretexto da pandemia e disseminado e legitimado por políticos, instituições privadas e setores da mídia, o ensino híbrido não se apresenta apenas como medida temporária, mas torna-se um projeto para a educação nacional.
A tendência de privatização da educação em escala mundial já estava em curso, ainda que com diferenças nos diversos países. A pandemia de COVID-19 parece intensificar esse processo, atingindo um elevado grau de maneira mais ágil e eficaz. No Brasil, as decisões envolvendo as políticas educacionais para o período da crise foram tomadas com base em interesses privados de empresas, fundações e organizações nacionais e internacionais representados por supostos especialistas técnicos e neutros. Na ausência de diálogo com os principais envolvidos no processo (profissionais da educação, estudantes, funcionários da escola e famílias), não é possível caracterizar as decisões como coletivas e de interesse público. Além disso, ao excluir as vozes de pesquisadores das universidades públicas, de representantes das associações científicas e sindicais da área e dos diversos coletivos de professores, observa-se uma negação do conhecimento educacional historicamente acumulado.
Nas políticas emergenciais adotadas, observamos uma redução do significado da educação e da instituição escolar. Prevaleceram questões burocráticas e, em grande medida, as justificativas para a adoção do ensino remoto foram expressas pela obrigação de se manter o calendário escolar, as avaliações de larga escala e os vestibulares, como se a escola fosse mera sucessão de dias letivos. Na melhor das hipóteses, sua função foi caracterizada como o cumprimento das normativas envolvendo um currículo esvaziado, expresso pela BNCC.
À definição privada dos fins educacionais durante a pandemia soma-se o crescimento vertiginoso no uso de recursos ofertados por grupos empresariais em todo o território nacional – plataformas digitais, conteúdos veiculados pela TV ou pela rádio, cursos para formação de professores, materiais didáticos, apostilas, dentre outros[11]. Ainda que não haja lucro imediato para algumas das empresas, já que muitas delas ofereceram os serviços gratuitamente para o setor público, não podemos afirmar que a gratuidade será mantida no futuro próximo. Se políticas como o Programa Nacional do Livro Didático e a adoção de Sistemas Privados de Ensino já se apresentavam como um dos principais nichos de mercado para os grandes grupos, representando quase metade da receita líquida deles (GALZERANO, 2016), a pandemia reforçou o potencial de mercado advindo do setor de produção e venda de materiais e recursos didáticos. Lembremos que a padronização gerada por políticas de esvaziamento curricular, como a BNCC e a Reforma do Ensino Médio, também contribui para tal.
Em um processo de utilização crescente de recursos digitais, sem qualquer questionamento no que se refere aos fundamentos da adoção desse tipo de prática pedagógica, há uma inversão da lógica entre os meios e os fins educacionais. Na ânsia de atender às determinações impostas pelo ensino remoto, primeiro se escolhe a plataforma, posteriormente decide-se quais são os objetivos possíveis de serem alcançados com seu uso. Evidentemente a opção por determinada plataforma não é mero acaso, tampouco foi realizada com a participação dos principais envolvidos no processo. Nessa lógica, Minto (2020) afirma que o trabalho educativo é crescentemente controlado pelas máquinas. Embora se afirme que o professor continua desempenhando papel central no processo educativo, seu trabalho é significativamente transformado, produzindo efeitos similares aos da substituição. Não à toa, a própria nomenclatura professor vem sendo substituída por facilitador, tutor, mediador, dentre outros.
O avanço da privatização da educação durante a pandemia é notável, portanto, tanto no que se refere ao seu sentido mercantil, isto é, diretamente relacionado à comercialização de produtos e serviços que geram lucros – inclusive fictícios (CARCANHOLO; SABADINI, 2009) –, quanto numa dimensão mais ampla, representada pela sobreposição de interesses privados sobre a educação pública. Não há dúvida de que os interesses da burguesia nativa e internacional estão sendo atendidos pelas políticas emergenciais adotadas; ao mesmo tempo em que determinam os fins e os meios educacionais, objetivando controlar todo o processo de trabalho pedagógico, permitem a acumulação de valor por meio da comercialização de qualquer recurso educacional, tecnológico ou não. Os efeitos da privatização também deverão ser sentidos no período após pandemia.
As orientações de organismos internacionais como BM e OCDE estão cada vez mais naturalizadas, não havendo críticas sequer quanto à sua adequada tradução para a realidade brasileira. Essa subordinação direta àquilo que é recomendado por frações da burguesia internacional aliada ao desprezo de setores da burguesia nativa às reais necessidades da população brasileira reforçam os laços de dependência e subdesenvolvimento que nos acompanham historicamente. É fato que a pandemia nos afetou a todos, mas seus impactos não são os mesmos nas diversas regiões do globo, tampouco as soluções podem ser idênticas. No caso brasileiro, enfrentamos um problema concreto de acesso à tecnologia e à internet. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua referente ao último trimestre de 2018, 46 milhões de brasileiros com 10 anos ou mais não acessaram a internet no período. Os números também demonstraram a desigualdade ao comparar os alunos das redes privadas e públicas de ensino; nas escolas privadas, 1,8% não acessaram a internet e 8,5% não possuíam celular para uso pessoal, na rede pública, os percentuais sobem para 18,3% e 37,2%, respectivamente (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, 2018). As desigualdades são estruturais, inerentes à lógica capitalista, e não serão resolvidas com a mera distribuição de chips e tablets.
As políticas educacionais adotadas para enfrentar os desafios impostos pela pandemia de COVID-19 demonstram que diferentes frações da classe burguesa aproveitaram a situação emergencial para disseminar e legitimar seus projetos para a educação, projetos que já vem sendo defendidos há quase três décadas: esvaziamento curricular, padronização de conteúdos e métodos, estratégias de privatização, controle do trabalho docente. E, a pretexto da pandemia, o ensino híbrido.
Evidentemente a contradição existe e se fez presente durante esse período de crise sanitária. No âmbito educacional, assistimos à criação de coletivos docentes e estudantis, ao engajamento em greves virtuais, à realização de debates e estudos, dentre outros. Compreender e admitir a existência da contradição, entretanto, significa analisar a correlação de forças de determinado período, compreendendo o papel que o Estado tem desempenhado historicamente nessa lógica. Num contexto em que o Estado está cada vez mais imbricado ao setor privado, contribuindo direta e indiretamente para o lucro capitalista, torna-se primordial recuperar a discussão sobre o significado da educação e das instituições escolares e realizar a defesa da escola pública com sentido público.