Resumo: Esse artigo tem por objetivo traçar o histórico das relações da Organização Mundial da Saúde (OMS) com os atores não estatais desde a sua criação até a aprovação do Marco de Cooperação da Organização Mundial da Saúde com Agentes Não Estatais. foi realizada, uma pesquisa documental exploratória, de abordagem qualitativa, com revisão de literatura e de documentos institucionais encontrados na Biblioteca da OMS. Como resultados, verificou-se um aumento no número de atores no Sistema Internacional e uma redução no poder da OMS e na oferta de recursos financeiros por parte dos Estados ao longo da história da Organização e encontrou-se relação entre a maior diversificação nos tipos de atores no sistema internacional e a menor influência OMS nos processos de governança global em saúde.
Palavras-chave: Saúde GlobalSaúde Global,Organização Mundial da SaúdeOrganização Mundial da Saúde,Organizações não GovernamentaisOrganizações não Governamentais,GovernançaGovernança.
Abstract: This study aims to trace the history of the World Health Organization's engagement with non-state actors from its inception to approval of the World Health Organization's Framework of Engagement with Non-State Actors. Exploratory documental research, with a qualitative approach, was carried out, with a review of the literature and institutional documents found in WHO Library. Findings showed an increase in number of actors in the International System and a reduction in the power of the World Health Organization and in the provision of financial resources by its Member States throughout the Organization's history. A relationship was also found between the diversification in the types of actors in the international system and a reduction of World Health Organization's influence in the processes of global health governance.
Keywords: Global Health, World Health Organization, Non-Governmental Organizations, Governance.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo rastrear la historia de las relaciones de la Organización Mundial de la Salud (OMS) con actores no estatales desde su creación hasta la aprobación del Marco de Cooperación de la Organización Mundial de la Salud con Agentes No Estatales. Se llevó a cabo una investigación documental exploratoria con enfoque cualitativo, con revisión de la literatura y documentos institucionales encontrados en la Biblioteca de la OMS. Los resultados muestran un aumento en el número de actores en el Sistema Internacional y una reducción en el poder de la OMS y en la provisión de recursos financieros por parte de los Estados a lo largo de la historia de la Organización. También se encontró una relación entre la diversificación de los tipos de actores en el sistema internacional y una reducción de la influencia de la Organización Mundial de la Salud en los procesos de gobernanza sanitaria mundial.
Palabras clave: Salud global, Organización Mundial de la Salud, Organizaciones no gubernamentales, Gobernancia.
Artículo de revisión
HISTÓRIAS DA SAÚDE GLOBAL: A ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE E A COOPERAÇÃO COM ATORES NÃO ESTATAIS
HISTORIAS DE LA SALUD MUNDIAL: LA ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD Y LA COOPERACIÓN CON ACTORES NO ESTATALES
GLOBAL HEALTH STORIES: WORLD HEALTH ORGANIZATION AND COOPERATION WITH NON-STATE ACTORS
Recepção: 19 Março 2019
Aprovação: 15 Junho 2020
A Paz de Westphalia (1648) inaugura a ideia de Sistema Internacional com a criação do conceito moderno de Estado, unidades políticas centralizadas com as seguintes características: uma população, um território e soberania (Castro, 2012). Até o Século XX, o grande palco das relações internacionais era marcado por um sistema estatocêntrico internacional, ou seja, com Estados como únicos protagonistas (Marques, 2008). Com as transformações do Século XX, não apenas novos Estados surgiram, como também houve a emergência de uma gama de atores diversa, conformando ao sistema internacional uma heterogeneidade de componentes entre Estados e atores não estatais - um quadro complexo e dinâmico no qual toda tentativa de regulagem é difícil (Merle, 1981).
No campo da saúde, Kickbusch e Berger Berger (2010) entendem que essa dinamicidade do contexto global, que muda muito rapidamente, exige esforços integrados envolvendo diversificada gama de atores estatais e não estatais: um cenário desafiador para os tradicionais Estados-Nações no que à tange a coordenação da governança em saúde. Por décadas, a Organização Mundial da Saúde (OMS) apresentou-se como uma liderança quase absoluta na governança global em saúde, porém, esse papel encontra-se cada vez mais compartilhado com outros agentes.
A dinâmica de coordenação e funcionamento da OMS é caracterizada pela relação que a Agência mantém com uma série de atores não estatais, além daquelas mantidas com seus Es-tados-Membros. O envolvimento de agentes não estatais com a OMS não é um fenómeno recente, estando previsto em sua Constituição e a proposta desse artigo é traçar o histórico dessas relações da OMS com os atores não estatais desde a sua criação até a aprovação, em maio de 2016, na 69a Assembleia Mundial da Saúde, do Marco de Cooperação da OMS com Agentes Não Estatais (FENSA)1.
Trata-se de uma pesquisa documental subsidiada por materiais elaborados pela OMS desde a sua constituição. De caráter exploratório, uma vez que busca maior familiaridade ao fenómeno a ser investigado, para sua realização, foram pesquisados documentos de trabalho e resoluções das Assembleias Mundiais da Saúde e das sessões do Conselho Executivo da OMS relativos à atuação de agentes não estatais nas suas políticas e ações.
A pesquisa documental busca, de forma indireta, apreender modos e processos de existência, de relacionamento e de emergência de determinado tema em meio a um contexto social. Além disso, analisar documentos é encará-los como artefatos históricos, sociais e singulares, passíveis de críticas e problematizações (Silva et al., 2009; Silveira Lemos et al., 2015).
Para a coleta dos documentos, foi utilizado o Repositório Institucional para Compartilhamento de Informação, mantido pela Biblioteca da OMS. Foram pesquisados os termos "World Health Assembly" e "Executive Board ", no campo "autor", o que retornou documentos produzidos para todas as Assembleias Mundiais da Saúde e, também, todas as reuniões dos Conselhos Executivos. Dessa forma, foi possível localizar documentos relacionados ao tema de pesquisa, ou seja, decisões e resoluções da OMS referentes à atuação dos atores não estatais. O busca no Repositório se deu em dezembro de 2017 e retornou um total de 155 produções.
Diante desse conunto, foram selecionados documentos seguindo quatro critérios: (1) decisões e resoluções da OMS referentes ao tema, (2) relatórios dos Diretores-Gerais, (3) relatórios do Comitê Permanente para Organizações não Governamentais da OMS e (4) listas de participantes-para entender quem foram os agentes e como foram se modificando nos quase 70 anos de história. Foram também adotados dois critérios de escolha dos documentos analisados: (1) fator temporal e (2) documentos-chave, ou seja, aqueles que trouxeram mudanças significativas para as relações entre a OMS e os agentes não estatais.
Dessa forma, chegou-se a um total de 33 documentos produzidos pela OMS que serviram como base para esse artigo, os quais se encontram listados no quadro abaixo:
Os documentos selecionados foram analisados buscando identificar (1) o contexto histórico no qual foram elaborados, (2) o número e os tipos de atores citados no documento, (3) o discurso ou a linguagem utilizada no documento e (4) que tipos de interações entre a OMS e os atores não estatais foram descritas ou estavam previstas no documento. Além disso, a literatura científica foi utilizada como auxiliar na compreensão dos discursos e contextos apreendidos dos documentos.
Para melhor apresentar os resultados, foi feita uma divisão conforme proximidade temática entre os documentos: (a) a influência da OMS na Governança Global em Saúde no período, (b) a autonomia da OMS naquele momento e (c) a nomenclatura utilizada para denominar os atores não estatais.
Os resultados desse artigo apresentam uma história naturalmente inacabada. Cada ato representa um período da história da OMS sob a ótica de sua atuação com os demais atores da governança global em saúde. Os atos são apenas uma tentativa de, didaticamente, trazer as características de cada período. Não se pode, no entanto, esquecer a dinamicidade desse grande teatro, no qual os atores se renovam e se reinventam, conformando um concerto cujos próximos atos dificilmente poderiam ser previstos com precisão.
A Conferência Internacional da Saúde (CIS), ocorrida em 1946, na cidade de Nova Iorque e que criou a OMS, contou com a participação, além dos atores estatais, da Liga de Sociedades da Cruz Vermelha, da Federação Sindical Mundial e da Fundação Rockefeller. Os trabalhos da CIS de elaboração da Constituição da OMS levaram quatro semanas e meia e o documento, de acordo com a publicação OMS - Os 10 Primeiros Anos (WHO, 1958a), refletiu a importância atribuída aos arranjos de ação conjunta próprios do período pós Segunda Guerra Mundial. Assim, a colaboração com as Nações Unidas e com organismos especializados de determinadas áreas e o fomento da cooperação com grupos científicos e profissionais com potencial de contribuir para a melhoria da saúde aparece como uma das funções da Organização. O capítulo XVI autoriza a consulta e a cooperação com organizações internacionais não governamentais e mesmo nacionais desde que com a autorização de seu país de origem (WHO, 1958a).
Na primeira Assembleia Mundial de Saúde (WHA, em inglês), foi constituído um Comitê de Relações que ficou encarregado de estudar a natureza e o alcance das atividades de colaboração que se estabeleceriam. Da mesma forma, a Comissão Interina pensou especificamente nas relações com as organizações não governamentais e criou um subcomitê especial com o objetivo de elaborar critérios de admissão para uma organização não governamental estabelecer relações oficiais com a OMS, para estabelecer procedimentos de admissão dessas organizações e para definir os privilégios conferidos por essas parcerias (WHO, 1973).
O Conselho Executivo, estabelecido pela primeira WHA, criou o Comitê Permanente de Organizações Não Governamentais, composto por cinco integrantes indicados pelos Estados-Membros (1973). O Comitê Permanente viria a se encontrar, até o ano de 2016, por períodos que variaram ao longo da história da OMS a cada 2 ou 3 anos, além de analisar anualmente, em janeiro, os pedidos de estabelecimento de relações por parte de organismos não governamentais (WHO, 1958b). Para presidência do Comitê, foi escolhido o brasileiro Geraldo Horácio de Paula Souza (1948-1950). Formado em Farmácia e Medicina, estudou Saúde Pública na John Hopkins University, nos EUA, como bolsista da Fundação Rockefeller e, antes da criação da OMS, atuara como técnico da Seção de Higiene da Liga nas Nações (Rodrigues, 2008).
A terceira WHA, em 1950, definiu as características que as organizações deviam reunir para manter colaboração com a OMS, os privilégios e as obrigações impostas como consequência (WHO, 1958b). Esses princípios viriam a ser alterados substancialmente apenas na quadragésima Assembleia Mundial da Saúde, em 1987 (WHO, 2014). O quinto Conselho Executivo reafirmou que a Agência, ao estabelecer relações com organizações não governamentais, deveria atuar em conformidade com as resoluções da Assembleia Geral ou do Conselho Económico e Social das Nações Unidas. Entre os critérios que a organização deve cumprir, destacavam-se (WHO, 1950a; 1950b): ocupar-se de questões de competência da OMS; ter objetivos e propósitos que estejam em conformidade com o espírito, os propósitos e os princípios da Constituição da OMS; ter autoridade reconhecida e representar uma proporção considerável das pessoas interessadas na sua esfera de atividade.
As candidaturas poderiam se dar espontaneamente ou a convite da OMS e passavam pela análise do Comitê Permanente de Organizações Não Governamentais. O Comitê analisava, recomendando o aceite ou a recusa da solicitação, cabendo a ele a decisão definitiva. A lista de organizações não governamentais em relações oficiais com a OMS era revisada em períodos que variaram de dois a quatro anos (WHO, 1958b; 1968), quando se determinava se ainda era conveniente à Agência manter essa colaboração. Cada organização tinha o direito de designar um representante para participar, sem direito a voto, das reuniões da Agência, podiam fazer uso da palavra sobre algum assunto no qual tivessem interesse particular, ter acesso a documentos que não fossem confidenciais e apresentar notas ao Diretor-Geral da OMS, que decidia sobre a índole e a amplitude que a divulgação poderia ter.
Dessa forma, a sexta reunião do Conselho Executivo (junho de 1950), seguindo as recomendações do Comitê Permanente de Organizações Não Governamentais, entendeu que uma estrutura de organizações internacionais não governamentais em relações oficiais com a OMS já estava estabelecida (WHO, 1950). Baseados nos relatórios do Comitê Permanente para Organizações não Governamentais, os Conselhos Executivos 1 e 2 aprovaram as primeiras colaborações entre a OMS e atores não estatais. Assim, no final do ano de 1948, 16 organizações não governamentais passaram a manter relações oficiais com a OMS (WHO, 1948a; 1948b). No ano de 1957, a Agência mantinha relações oficiais com 43 organizações não governamentais (WHO, 1958b).
A gestão do brasileiro Marcolino Candau, segundo Diretor-Geral da OMS, foi responsável por melhorias na infraestrutura e na equipe de profissionais, tendo marcado também um momento de grande prestígio da OMS. Coube também a Marcolino Candau adaptar o funcionamento da agência à competição no mundo bipolar daquela época, no contexto de disputa pela liderança entre os Estados Unidos da América e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) (Cueto, 2015).
Em 1955, o Conselho Executivo solicitou ao Diretor-Geral a preparação de um relatório sobre a atuação dos organismos não governamentais na Organização (WHO, 1955a; 1956). Entre as preocupações do Conselho Executivo, estavam questionamentos sobre a utilidade para a OMS das atividades desenvolvidas com as Organizações não Governamentais em Relações Oficiais com a OMS e o custo oriundo desses processos. Marcolino Candau apresentou uma síntese relativa ao funcionamento dessas parcerias desde a criação da Agência e indicou que estabelecimento e a manutenção desses arranjos colaborativos não implicavam grandes despesas adicionais para a Organização. Além disso, apontou benefícios para seu trabalho, ajudando a tornar mais conhecidos os princípios de sua Constituição e o papel da OMS no mundo, contribuindo, também, em campos específicos de atividade nos quais não seria possível atuar sem assistência de uma organização não governamental (WHO, 1956; 1955b).
Já a decisão 56 do 29° Conselho Executivo da OMS (EB29/56, de 1962) tratou da ampliação das atividades colaborativas com as organizações não governamentais através de alguns mecanismos como: participação de funcionários dessas organizações em painéis consultivos de especialistas; estímulo do contato próximo e intercâmbio de visões entre organizações de campos específicos e a equipe técnica da OMS; apoio dessas organizações no desenvolvimento de nomenclaturas, metodologias e atividades similares; realização de conferências conjuntas entre a OMS e as organizações não governamentais e regulamentação para conceder auxílios financeiros a fim de apoiar estudos ou pesquisas realizadas em nome da OMS.
O número de entidades não governamentais seguiria aumentando, e, em 1967, 71 mantinham relações oficiais com a OMS e enquadravam-se em duas categorias principais: aquelas "envolvidas em algum ramo particular das ciências ou da pesquisa médica" e as que representavam "um interesse mais geral, como a Federação Mundial das Associações das Nações Unidas, a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha ou o Conselho de Organizações Internacionais de Ciências Médicas" (WHO, 1968, p. 298).
No período pós-guerra, os EUA foram os principais financiadores da OMS e suas contribuições ultrapassavam os 33% do orçamento total da agência, desfrutando também de boa influência na Organização, o que era evidenciado pelo fato de o país, geralmente, ter a maioria de votos nas WHA (Cueto, 2015). A questão do financiamento ainda era motivo de preocupação nos anos 1970. Em 1972, o Conselho Executivo solicitou ao Diretor-Geral que mantivesse seus esforços para obter mais contribuições voluntárias, tanto de fontes governamentais, quanto de não governamentais (WHO, 1973).
Em 1977, Halfdan Theodor Mahler, terceiro Diretor-Geral da Agência, apresentou um relatório ao Conselho Executivo com um sumário da colaboração com as organizações não governamentais no período de 1975 a 1977 (WHO, 1977). De acordo com o relatório, havia recursos inexplorados que poderiam ser utilizados nos programas da OMS e entusiasmo das organizações em auxiliar nessas atividades. No ano seguinte, em 1978, na 63a Reunião do Conselho Executivo, Mahler informou que estava aperfeiçoando o regramento já existente referente à admissão de organizações não governamentais na lista de relações oficiais com a OMS em um relatório no qual manifestava suas intenções de "intensificar e melhorar a colaboração entre a OMS e as organizações não governamentais" (WHO, 1979, p. 136). O documento apresentado por Mahler que informava ainda que, naquele ano, 118 organizações não governamentais mantinham relações oficiais com a OMS, gerou a decisão de 1978 (WHO, 1978; 1979), a qual definiu os procedimentos para as solicitações das entidades, como mostrado no Quadro 2.
Essa discussão ocorria concomitantemente à organização da Conferência de Alma Ata, realizada em 1978 (WHO, 1978), que contou com a presença de representantes de 134 países, de organizações do Sistema das Nações Unidas, de agências especializadas (WHO, 1978) e de 70 organizações não governamentais em relações oficiais com a OMS, como participantes, não apenas como observadores (WHO, 2011). Como preparação para o evento, foram realizadas diversas reuniões nacionais, regionais e internacionais e a "World Federation of Public Health Associations" foi convidada para redigir um documento que representasse os entendimentos das organizações não governamentais em relação à Atenção Primária à Saúde (APS) (WHO, 2008). Promoveu-se, dessa forma, o Congresso Internacional de Organizações Não Governamentais sobre APS (WHO, 1978) que discutiu o futuro papel e a responsabilidade do setor não governamental privado em proporcionar cuidados de saúde em áreas em desenvolvimento. O encontro revisou o conceito da APS, identificando questões centrais, especialmente no setor público e definindo abordagens alternativas para aumentar o apoio do setor privado, além de propor estratégias e objetivos nacionais para a APS (WHO, 2008). A versão final do relatório conjunto do Diretor-Geral da OMS e do Diretor Executivo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) sobre as discussões ocorridas em Alma Ata indica responsabilidades das organizações não governamentais na APS:
Elas têm a mesma responsabilidade que as organizações governamentais internacionais, na medida em que fornecem suporte técnico e financeiro aos países e fariam bem em assegurar que estes fossem canalizados para a promoção da atenção primária à saúde e seu sistema de apoio. (WHO, 1978, p. 132)
Celebrada por muitos, a aprovação da APS não foi unanimidade. A proposta foi criticada por ser muito ampla e idealista e, em 1979, a Rockefeller Foundation organizou a conferência "Health and Population in Development", na qual estavam presentes diretores de instituições como o Banco Mundial, a Fundação Ford, o Centro de Desenvolvimento do Canadá e a "United States Agency for International Development" (USAID). O evento foi baseado no documento "Selective Primary Health Care, an Interim Strategy for Disease Control in Developing Countries" e logo, a estratégia de Atenção Primária à Saúde Seletiva conseguiu o apoio de alguns doadores, estudiosos e agências (Cueto, 2004; 2015).
A década de 1970 marca o colapso do sistema de Bretton Woods, com o Presidente Nixon unilateralmente suspendendo a convertibilidade do dólar em ouro. Houve também um processo de diminuição do Estado-nação tradicional e das organizações internacionais financeiras. Novos atores começam a ser importantes nos processos de governança global em saúde, competindo com a OMS. Alguns desses novos personagens não eram originalmente organismos ligados a questões sanitárias, como, por exemplo, o Banco Mundial (Cueto, 2004).
O final dos anos 1970 marcou o auge da OMS (Cueto, 2004), no entanto, os anos seguintes não seriam tranquilos para a organização. De acordo com Cueto (2004, p. 16), os anos 1980 foram um período de declínio da liderança e da capacidade de resposta da OMS, que teria ficado "ofuscada pelas mudanças mundiais provocadas pela transnacionalização das finanças e pelas agressivas atividades empreendidas por outros organismos internacionais". Já Godlee (1994) relata uma série de confrontos envolvendo os Estados Unidos da América (EUA), sua indústria farmacêutica (contraria ao programa de medicamentos essenciais) e a Nestlé (fórmulas preparadas para substituírem o leite materno), que teriam colaborado para agravar a situação.
Em um contexto de aumento da autoridade do Banco Mundial e de diminuição do prestígio da OMS, em 1985, os EUA diminuíram suas contribuições obrigatórias em todas as agências da ONU que não adotassem um sistema de votos proporcionais (Godlee, 1994) e suspenderam sua contribuição ao orçamento regular da OMS, em parte, para protestar contra o "Essential Drug Program "De repente, a OMS estava fora do abrigo silencioso do consenso técnico e firmemente dentro da arena política, sendo agressivamente pressionada pela indústria, por um lado, e por grupos de pressão, por outro" (Brown et al., 2006, p. 1492).
Criado em 1946 para apoiar a reconstrução europeia no pós-guerra, o Banco Mundial passou a ofertar empréstimos e assistência técnica para países em desenvolvimento, sendo que, nos anos 1970, passou a investir no controle populacional, na educação e na saúde sob o argumento de que melhorias na saúde e na nutrição acelerariam o crescimento económico. Os empréstimos vinham atrelados a exigências de uso mais eficaz dos recursos e o Banco Mundial iniciou uma discussão sobre o papel dos setores público e privado no financiamento à saúde com uma tendência a favorecer mercados livres e com pouca intervenção estatal (Brown et al., 2006).
Uma mudança no padrão do financiamento da Organização Mundial da Saúde também exerceu pressões: houve um crescimento de fundos extraorçamentários, nos anos de 1986 e 1987, esses fundos estavam quase atingindo o valor do orçamento regular e, no início da década de 1990, eles haviam passado o financiamento regular da OMS. Para Brown, Cueto e Fee (2006, pp. 635-636), como consequência, prioridades definidas pela WHA contavam somente com o valor do orçamento regular, que estava congelado desde o início dos anos 1980, enquanto que "países doadores ricos e agências multilaterais, como Banco Mundial, podiam ter amplo controle sobre o uso dos fundos orçamentários com os quais contribuíam", tendo criado uma série de programas verticais, relativamente independentes do restante da OMS.
Essa nova conjuntura causou uma reação da Organização e, em 1987, a resolução WHA40.25 revisou os princípios e procedimentos que regem a colaboração com as organizações não governamentais em relações oficiais com a OMS e substituiu, assim, as resoluções anteriores. Pelo novo texto, os objetivos da colaboração com as ONGs passaram a ser
promover as políticas, estratégias e programas decorrentes das decisões dos órgãos de governo da Organização; colaborar com os programas da OMS em atividades acordadas para implementar suas estratégias; e desempenhar um papel apropriado para assegurar a harmonização dos interesses entre os diversos órgãos setoriais envolvidos nos cenários nacional, regional ou global (WHO, 2014, p. 103).
Em meio a debates intensos entre a Atenção Primária Integral à Saúde e a Atenção Primária Seletiva à Saúde, uma parceria com a "Rotary International" e a Cruz Vermelha levou ao quase desaparecimento da Poliomielite na região das Américas (Cueto, 2004). Além da pólio, a Oncocercose foi controlada nas zonas centrais e oeste da África no final dos anos 1980 (Fee et al., 2008), sendo considerada como controlada no continente africano através de ações que envolviam a OMS e a Merck, Sharp & Dohme, que desenvolveu o medicamento Ivermectin, e lhe oferecia gratuitamente sob o nome comercial de Mectizan (Fee et al., 2008); além desta empresa, muitas outras organizações não governamentais internacionais e nacionais e diversos países do Oeste da África e 25 nações doadoras participaram nos esforços de combate à doença (Africa Renewal, 2003).
Em 1988, ocorreu a eleição de Hiroshi Nakajima, médico japonês, indicado pelo Escritório da Região do Pacífico, do qual fora Diretor Regional por dois mandatos (WHO, 2013). No mesmo Conselho Executivo que elegeu Nakajima, houve uma polémica envolvendo algumas organizações não governamentais, relativa a uma situação ocorrida na sessão anterior, a EB80, em maio de 1987. Em documento para o Comité Permanente para Organizações não Governamentais (WHO, 1987, p. 24), o DIRETOR-GERAL da OMS, Halfdan Mahler, relata que dois membros do Conselho reclamaram sobre a distribuição, por parte de uma ONG de material que seria "propaganda comercial "inapropriada, provocativa, de mau gosto e um abuso das relações oficiais que haviam sido estabelecidas". O Diretor-Geral relembrou que, de acordo com os Princípios e Diretrizes aprovados no ano anterior, os privilégios concedidos às organizações em relações oficiais com a OMS incluíam declarações expositivas, a pedido do presidente da reunião; apresentar um memorando ao Diretor-Geral, que determinaria a natureza e o alcance da circulação do material. Por fim, Mahler solicitou que qualquer organização que infringisse as normas estabelecidas para sua participação tivesse seu vínculo com a OMS. O Conselho Executivo aceitou a proposta encaminhada pelo Comité e, em janeiro de 1988, aprovou a decisão EB81(18) (WHO, 1993). Não constam na documentação do 83° Conselho Executivo qualquer menção ao acontecimento.
Um Relatório do "Centre International d'Information du Tabac" afirma que as organizações mencionadas seriam a "Infant Baby Food Action Network" (INFOTAB), a "Health Action International", a "International Organization of Consumer's Union" e o "Action Group to Halt Advertising and Sponsorship of Tobacco". O documento da INFOTAB ainda faz um relato de um dos primeiros compromissos de Hiroshi Nakajima como Diretor-Geral eleito: a participação em reunião da "Global Business Forum", com representantes da indústria. No evento, Nakajima afirmou que seu desejo de começar um diálogo com esse setor não tinha relação com ter sido diretor da subsidiária asiática da "La Roche", mas seria motivado pela importância do setor privado nos desenvolvimentos tecnológicos (Centre International d'Information du Tabac, 1988).
Nakajima, diante das grandes restrições financeiras, era aparentemente mais conciliador com os EUA e mais preocupado com a organização técnica e gerencial, que seu antecessor; contudo, suas gestões foram marcadas por tensões dentro da Organização e sua liderança foi contestada nas eleições do Conselho Executivo de 1993 para o mandato seguinte, além de ter recebido acusações de favoritismo e corrupção (Brown; Cueto; Fee, 2006, p. 42). A OMS, no início da década de 1990, enfrentava dificuldades de coordenação e continuidade de ações, imprevisibilidade financeira e dependéncia da satisfação de doadores particulares (Walt, 1993). Em 1992, as vésperas da reeleição de Nakajima, 170 organizações não governamentais mantinham relações oficiais com a OMS (WHO, 1993).
O final do Século XX e o início do Século XXI foram marcados pela inserção de novos atores - nem todos da área da saúde. Durante sua segunda gestão, Hiroshi Nakajima apresentou em seu relatório trienal (WHO, 1996) proposta de discussão sobre o trabalho com organizações não governamentais de setores não relacionados à saúde para ampliar o tipo e o escopo das ONGs que poderiam ter relações formais com a Agência. Nakajima lista exemplos de interações entre a OMS e as ONGs: consultoria, "advocacy", coordenação e provisão de serviços, coleta de dados e gerenciamento de informações sanitárias, ações humanitárias e de emergência, finanças, desenvolvimento de recursos humanos, participação em reuniões das organizações não governamentais, formação em saúde, publicações, revisão científica e apoio clínico, padronização e desenvolvimento de nomenclaturas.
O mesmo Conselho Executivo que acolheu seu relatório, indicou através da resolução EB101. R11 como nova Diretora-Geral da Organização a norueguesa Gro Harlem Brundtland (WHO, 2008). Sua eleição, em 1998, "foi uma demonstração de que a OMS buscava uma liderança para que pudesse restaurar a credibilidade da organização e trazer-lhe uma nova visão" (Cueto, 2015, p. 81). Assim, conforme indica Cueto (2015), a 51a WHA buscou fora dos quadros da OMS uma personalidade que pudesse reconstruir a confiabilidade da instituição.
Brundtland ampliou as ações iniciadas por Nakajima em relação à atuação dos organismos não governamentais - através de parcerias e fundos globais, buscou o fortalecimento das finanças da OMS reunindo as partes interessadas (doadores particulares, governos, agências bi e multilaterais) para se concentrarem em alvos específicos: Malária (Roll Back Malaria, em 1998), vacinas e imunizações (GAVI, em 1999) e Tuberculose (Stop TB, em 2001). Foi também em sua administração que um importante ator passa a atuar na OMS, a "Gates Foundation".
Através do relatório EB107/7 do Secretariado, relativo às parcerias com organizações não governamentais (WHO, 2000), Brundtland anuncia uma nova era na OMS e na governança em saúde: a era das parcerias com a iniciativa privada, das parcerias público-privadas - "global health partnerships" (parcerias para a saúde global) ou "global health initiatives" (iniciativas para a saúde global). O relatório ainda cita as mudanças políticas e económicas que começaram no início da década de 1980-transição das economias planejadas para mercado, redução da intervenção do Estado nas economias nacionais - e afirma, nesse novo contexto, o desenvolvimento do setor privado era encorajado e que a organização dos sistemas de saúde estava em um momento de mudanças consideráveis (WHO, 2000).
Brundtland estabeleceu a Iniciativa da Sociedade Civil (CSI, do inglês "Civil Society Initiative") para "para identificar e desenvolver proposições para interfaces e relações mais efetivas e úteis entre a sociedade civil e a OMS" (Civil Society Initiative, 2002, p. 2). O relatório "WHO's interactions with Civil Society and Nongovernmental Organizations" contextualizou as intera-ções entre a OMS e os atores da sociedade civil, apresentou os diversos tipos de agentes que interagiam com a Organização e sugeriu uma proposta de modificação dos princípios de colaboração. Pretendia-se substituir os "Princípios que regem as relações entre a OMS e ONGs", estabelecidos em 1987 pela resolução WHA40.25, por uma nova política que melhor respondesse ao cenário, caracterizado por "um aumento dramático" no número e na influência que organizações não governamentais exerciam na OMS e na arena internacional (WHO, 2002, p. 1).
A proposta foi discutida ao longo de alguns anos em Conselhos Executivos e Assembleias Mundiais da Saúde, mas não foi aprovado um texto que substituísse as normas definidas pela resolução WHA40.25. Apenas em 2010, através da resolução WHA63.10, houve a aprovação de políticas relativas às parcerias, mas, diferentemente do que se ensejava inicialmente, essa resolução foi complementar à WHA40.25, não substitutiva (WHO, 2010). Os documentos deixaram claro que se buscava também adaptar a Organização para interações com as parcerias e os fundos globais. Em 2009, na primeira gestão de Margaret Chan, o relatório do secretariado sobre as parcerias da OMS, sumarizou as discussões dos anos anteriores e, além de sugerir linhas gerais para esse tipo de cooperação, trouxe uma definição para o termo "Global Health Partnership" como "uma relação colaborativa e formal entre organizações múltiplas em que riscos e benefícios são compartilhados em busca de um objetivo compartilhado" (WHO, 2009, p. 1).
Levantamento da OMS de dezembro de 2014, indicou um total de 95 parcerias ou arranjos colaborativos que contam ou já contaram com o apoio da Organização-o mais antigo, o Sistema Global de Vigilância e Resposta à Influenza, foi criado em 1952. A concentração de iniciativas é dos anos 1990 e 2000 (WHO, 2014). Entre participantes e financiadores de diversas iniciativas, destacam-se fundações como "Rockefeller" e a "Bill & Melinda Gates". Em meio a parcerias globais, fundações e gigantes da indústria farmacêutica, começou a se delinear a cena para o último ato - até agora - dessa história da OMS com os atores não estatais: o Marco para Colaboração com Atores Não Estatais.
As discussões sobre as colaborações com atores não estatais viriam, em 2010, a serem incorporadas à pauta daquela época: o processo de reforma da Organização Mundial da Saúde. Inicialmente com o objetivo único de enfrentar a questão da insuficiência do financiamento, a então Dire-tora-Geral, Margaret Chan, convocou uma reunião consultiva, em janeiro de 2010, para discutir o futuro financeiro da Organização. Os desdobramentos dessa consulta apontaram para questões mais amplas, relativas ao funcionamento e às funções da OMS, dando início ao seu atual processo de Reforma (WHO, 2010).
Nesse contexto, iniciaram-se os debates sobre a elaboração do "Marco para a Colaboração com Agentes Não Estatais" (também conhecido como FENSA, do Inglês "Framework of Engage-mentwith Non-State Actors"), aprovado na 69a Assembleia Mundial da Saúde, em maio de 2016 (WHO, 2016a; 2016b). O FENSA aborda questões contemporâneas das relações da OMS com os chamados atores não estatais, dividindo-lhes em quatro categorias:
O marco regulatório define princípios que devem reger as relações com atores não estatais, possíveis benefícios dessa cooperação, riscos, tipos de interações (participação, recursos, evidências, "advocacy" e colaboração técnica) e ferramentas para lidar com conflitos de interesse. Traz também uma definição de "relações oficiais". O FENSA dissolveu o Comitê Permanente para a Colaboração com Organizações Não Governamentais e incumbiu ao Comitê de Programa, Orçamento e Administração a coordenação de solicitações e demais ações relativas aos atores não estatais (WHO, 2016b).
Entre os riscos previstos das interações da OMS com atores não estatais está a questão de conflitos de interesses. As modalidades de atividades desenvolvidas incluem a participação dos atores não estatais em reuniões e consultorias, o fornecimento de recursos financeiros, doações de medicamentos ou oferecimento de serviços gratuitamente, a pesquisa para a elaboração de dados e informações técnicas, "advocacy" e colaborações técnicas através do desenvolvimento de produtos, formação de profissionais, colaboração operacional em casos de emergência e contribuição na implementação das políticas da Organização. O marco também prevê a participação da OMS em reuniões conjuntas e coorganizadas, apresentações de funcionários da Organização em reuniões organizadas pelos agentes não estatais e a suas participações em reuniões desses atores (WHO, 2016).
De acordo com o Marco para a Colaboração com Atores não Estatais (WHO, 2016), os procedimentos para admissão na lista de atores não estatais que mantém relações oficiais com a OMS são as seguintes:
O FENSA foi elaborado para entrar em vigor imediatamente após sua aprovação com um período de implementação total de dois anos (até maio de 2018). Foi estabelecido que uma avaliação inicial deveria ser realiza em 2019 (WHO, 2016b). O Escritório de Avaliação da OMS revisou documentos relativos ao tema, realizou entrevistas e grupos focais com funcionários da organização e elaborou pesquisas aplicadas aos Estados Membros e a atores não estatais que mantêm relações oficiais com a OMS (WHO, 2019a).
Os resultados dessa avaliação foram apresentados em um relatório ao Conselho Executivo de fevereiro de 2020 (WHO, 2019b). O Relatório indica que o FENSA é um instrumento coerente e integrado, especialmente quando comparado a tentativas passadas de ordenamento das ações com atores não estatais. Entretanto a avaliação revela a ausência de uma estratégia abrangente e de um plano de implementação para alcançar os objetivos gerais do FENSA nos três níveis da OMS (WHO, 2019b). Os resultados da avaliação recomendam a melhoraria da comunicação interna e externa relativa ao conteúdo do marco e o estabelecimento de melhores mecanismos de monito-ramento, avaliação e aprendizado. De acordo com o Relatório, o nível de conhecimento sobre o marco entre os funcionários da OMS ainda não é suficiente (WHO, 2019a).
A atuação de agentes não estatais com a Organização Mundial da Saúde esteve em debate na OMS desde sua criação. A primeira versão de seus princípios e diretrizes foi lançada na primeira Assembleia Mundial da Saúde e passou por pequenas emendas em 1950, 1958, 1968 e uma alteração maior no ano de 1987, que substituiria por completo as regras anteriores (resoluções WHA1.130, WHA3.113, WHA11.14, WHA21.28). A estrutura viria a ser alterada por completo, novamente, em 2016 com o Marco para Colaboração com Atores Não Estatais (resolução WHA69.10).
A leitura dos documentos evidencia que as relações com atores não estatais foram objeto de discussão desde a formação da Agência, quando ainda eram poucas as organizações que com ela interagiam. Esse número cresceria praticamente durante todo o período analisado (Quadro 1), ou seja, de 1948 a 2017. No primeiro ano, 16 organizações não governamentais mantinham relações oficiais com a OMS (com uma lista de espera para próxima rodada de avaliações), já em 2017 esse número chegou a 186 organizações em relações oficiais. No ano de 2014, 729 instituições não estatais mantinham algum envolvimento com a OMS: 298 organizações não governamentais, 44 entidades do setor privado, 24 fundações filantrópicas e 363 instituições acadêmicas (WHO, 2014). Essa diferença numérica é explicada pela distinção existente entre organizações em relações formais e entidades que mantém algum tipo de atividade considerada não oficial com a OMS.
As áreas de atuação dos atores não estatais, como era de se esperar, também estão mais diversificadas. A resolução WHA1.130 previa a participação de organizações não governamentais que se dividiam em duas categorias principais, a das áreas de ciências médicas ou de investigação e a que representava interesses mais gerais. A resolução WHA40.25 ampliou essa tipologia de atores, mas foi apenas o FENSA que instituiu a possibilidade de entidades que visem diretamente ao lucro estabelecerem relações com a OMS, já que as resoluções anteriores aceitavam apenas entidades sem fins lucrativos. A primeira parceria na OMS surgiu ainda na década de 1950, no combate à influenza, porém, os padrões desse tipo de iniciativa mudaram consideravelmente ao longo dos últimos 70 anos. Até os anos 1980, o setor privado usualmente não se envolvia com doadores e beneficiários. Ao longo do tempo, o número de atores no cenário internacional aumentou, assim como o interesse do setor privado no campo das políticas públicas de saúde. Novas formas de atores foram surgindo, como as parcerias público-privadas globais, doadores multilaterais (não apenas as tradicionais cooperações bilaterais) e as fundações ressurgiram na governança.
Se as ações em saúde da Fundação Bill & Melinda Gates no começo desse século são comparáveis às da Fundação Rockefeller no início do século passado (Reich, 2013), com o FENSA, a Gates teve seu pedido de estabelecimento de relações formais com a OMS aprovado na primeira sessão de avaliação de solicitações, no 140° Conselho Executivo, após a aprovação do marco para colaboração com atores não estatais, em janeiro de 2017 (WHO, 2017). A Fundação Rock-feller nunca constou nas listas de Organizações Não Governamentais em Relações Oficiais com a OMS, no entanto, ela de certa forma, exercia expressiva influência em diversos aspectos: os quadros da Organização em boa parte eram formados por ex-bolsistas ou ex-funcionários da Fundação Rockefeller. Marcolino Candau e Frederick Soper, por exemplo, trouxeram para a OMS e para a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), respectivamente perspectivas oriundas de seus estudos e de seus trabalhos na Fundação, que diferiam das ideias de Brock Chisholm de como coordenar a saúde no mundo. Dessa forma, ao se afirmar que a participação de atores não estatais na OMS ocorre desde sua fundação, não se fala tão somente das regras estabelecidas em sua Constituição, mas, em alguma medida, de maneiras mais sutis, como nas diversas escolhas do como definir políticas de saúde.
Em relação à nomenclatura, ela alterou-se nesses setenta anos. "Organizações não governamentais" ou seu acrónimo "ONGs" foi a denominação mais utilizada até o início da década de 2000. No final da década de 1990, começa-se a falar mais usualmente em parcerias, para se referir a determinadas ações com alguns atores e, em meados da década de 2000, a expressão "atores não estatais", entra no vocabulário da governança global, muito provavelmente por ampliar a gama de agentes, em um contexto mais diversificado-não esquecendo, das Organizações da Sociedade Civil, mais comum a partir dos anos 1970. Classicamente o termo "organizações não governamentais" se referia a entidades sem fins lucrativos, já "atores não estatais" é mais abrangente. De acordo com Thales de Castro (2012) "os atores internacionais são os entes que exercem, influenciam ou amoldam, direta ou indiretamente, o cenário internacional por meio da interação de inputs e outputs" (p. 428). O FENSA justamente engloba uma variedade de atores maior do que apenas organizações sem fins lucrativos.
Por outro lado, o FENSA busca essa ampliação de atores também para aumentar a quantidade de recursos disponíveis para a OMS executar suas atividades. A ideia de maior proximidade com o setor privado e possíveis doadores não é nova, já era anunciada, em certa medida por Mahler, por Nakajima, sendo mais explícita nas gestões de Brundtland e Chan. Pode-se dizer que diversos movimentos levaram à situação atual, na qual muitos atores não estatais estão em um nível igual ou mesmo superior, em influência, à OMS e aos governos no que se refere à formulação de políticas públicas e financiamento de ações sanitárias. As ONGs do passado, usualmente, rela-cionavam-se com os governos de seus países, os atores não estatais da atualidade debatem com a OMS - os arranjos institucionais do passado não fazem mais sentido no mundo contemporâneo.
Esse artigo buscou contar a história da colaboração dos agentes não estatais com a OMS e, para isso, baseou-se, principalmente, na leitura de decisões e resoluções da Agência. O palco segue o mesmo, os atores, no entanto, aumentaram intensamente em número e em interações. A OMS não está mais sozinha na coordenação da saúde no mundo. Seus documentos indicam que a influência da Agência na governança global em saúde é cada vez mais compartilhada e a Organização não usufrui mais da mesma autonomia do passado. Em 2020, com a crise pandêmica gerada pela covid-192, a OMS parece, mais uma vez, estar sendo ameaçada, sobretudo em função da decisão de alguns líderes mundiais. Dentre eles (ou encabeçados por ele), se destaca o atual Presidente dos Estados Unidos da América, Donald Trump, que anunciou a saída do seu país da OMS, em retaliação à forma como a Agência agiu (ou vem agindo) no caso da pandemia ocasionada pelo coronavírus.
A questão financeira também mostrou-se relevante, pois a OMS depende cada vez mais de dinheiro de organismos não estatais. Esse quadro tende a se agravar muito com a efetiva saída dos Estados Unidos da OMS, atualmente o maior financiador da Organização. Com a saída dos EUA, o posto de maior financiador da OMS deverá ser, a partir de 2021, ocupado por um ator não estatal, a Fundação Bill & Melinda Gates. A questão financeira mostrou-se relevante, pois a OMS depende cada vez mais de dinheiro de organismos não estatais. O FENSA foi elaborado para, de certa forma, auxiliar a OMS a lidar com essa questão relativa à perda da autonomia, mas, apesar de ser um documento extenso ainda deixa brechas para interpretações diversas sobre alguns assuntos, como, por exemplo, definições mais claras sobre os conflitos de interesses.
Organizações não governamentais, organizações da sociedade civil, parcerias globais, atores não governamentais - são nomes diferentes para entidades que também se modificaram ao longo da história, que também buscam cada vez mais espaço, que pressionam. Não existe homogeneidade nos atores não estatais da atualidade: entidades de base buscam defender seus representados, a indústria farmacêutica, por outro lado, também tem seus interesses e cada segmento conta versões diferentes da mesma história. A vantagem do momento atual é que a mesma globalização que pode ser opressora também propicia ferramentas de conexão, de troca de ideias, de crescimento. Os movimentos sociais, atualmente, não estão mais restritos a uma zona geográfica ou a um país. A Internet encurta distâncias, conecta pessoas e pensamentos diversos. Os desafios de Alma Ata ainda seguem relevantes no cenário atual. Houve diversos avanços na área da saúde, mas o momento atual é crítico. A OMS tem um novo Diretor-Geral, Tedros Adhanom, e agora está em suas mãos escrever o próximo ato dessa história.