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Apontamentos basilares para os estudos da tradução feminista na América Latina
Luciana Carvalho Fonseca; Liliam Ramos da Silva; Dennys Silva-Reis
Luciana Carvalho Fonseca; Liliam Ramos da Silva; Dennys Silva-Reis
Apontamentos basilares para os estudos da tradução feminista na América Latina
Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción, vol. 13, núm. 2, pp. 210-227, 2020
Universidad de Antioquia
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Editorial

Apontamentos basilares para os estudos da tradução feminista na América Latina

Luciana Carvalho Fonseca
Universidade de São Paulo, Brazil
Liliam Ramos da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brazil
Dennys Silva-Reis
Universidade Federal do Acre, Brazil
Mutatis Mutandis. Revista Latinoamericana de Traducción, vol. 13, núm. 2, pp. 210-227, 2020
Universidad de Antioquia

Os estudos da tradução feminista já se afirmaram como área atual e necessária. O pioneirismo teórico da Escola Canadense continua com a Escola Europeia de Estudos de Tradução Feminista, impulsionada pela pesquisadora e professora Olga Castro, a qual tem mobilizado e reunido muitas pesquisadoras e pesquisadores.1 Os contornos dos Estudos da Tradução Feminista se ampliaram para a América Latina2 e outras geografias3. As interlocuções têm sido profícuas graças, sobretudo, aos avanços do pensamento feminista e aos movimentos impulsionados pelo ativismo das mulheres (Cypriano, 2013). As noções metateóricas “interseccionalidade”, “transnacionalismo”, “decolonialidade” e “pós-colonialismo” têm iluminado e complexificado cada vez mais as categorias de análise dos estudos feministas (Sánchez, 2018), tais como: “mulher”, “identidade”, “diferença”, “gênero”, “patriarcado”, “pedagogias”.

Segundo Harding (1986), as categorias analíticas feministas devem ser instáveis, pois o mundo é também instável e incoerente, fazendo com que categorias estáveis e coerentes possam representar obstáculos para a compreensão e práticas sociais. Por outro lado, para teóricas latino-americanas como a socióloga feminista Heleieth Saffioti (2015, p. 59), ignorar categorias como “patriarcado” (em prol da categoria “gênero”, por exemplo) e colocá-la “na sombra significa operar segundo a ideologia patriarcal, que torna ‘natural’ essa dominação-exploração” e a invisibiliza. Saffioti convida ainda à indagação: “a quem serve a teoria do gênero utilizada em substituição à do patriarcado?” (2015, p. 147).

Já Catherine Walsh (2013) e Rita Segato (2018), teóricas do pensamento decolonial, empregam o termo “pedagogia” para se referir a estratégias, práticas e metodologias que se entretecem e constroem tanto na resistência e na oposição como na insurgência, na cimarronagem, na afirmação, na (re)existência e na (re)humanização. Desenvolvidas na luta contra as relações de subalternidade para questionar e desafiar a razão única moderna e o poder colonial ainda presente na América Latina, as pedagogias decoloniais se esforçam em transgredir, deslocar e incidir na negação ontológico-existencial, propondo uma reinvenção da sociedade. O decolonial denota, portanto, um caminho contínuo de luta, no qual se pode identificar, visibilizar e alentar lugares de exterioridade e construções alternativas.

Para Segato (2018), as pedagogias de la crueldad são definidas como atos e práticas que ensinam, habituam e programam sujeitos para atuar em uma “coisificação” da vida - com destaque à exploração sexual das mulheres -, apontando que as relações de gênero e patriarcado têm um papel relevante como cena prototípica deste tempo. Ao considerar que as formas de dominação da história colonial se mantêm na atualidade e que essas formas fazem com que o homem camponês ou indígena, bem como o homem das massas urbanas de trabalhadores precarizados tendam a seguir o mesmo padrão hierárquico-social, as novas formas de guerra4 na América Latina intervêm no âmbito dos vínculos domésticos de gênero. A partir do debate sobre o patriarcado nas sociedades latino-americanas, a autora apresenta uma proposta de contra-pedagogias da crueldade, todas elas relacionadas à questão de gênero: atuação em uma contra-pedagogia do poder, portanto, do patriarcado; busca da experiência histórica das mulheres com o objetivo de encontrar outra forma de pensar e atuar coletivamente; fala aberta sobre o mandato da masculinidade que torna também os homens reféns dessa estrutura violenta e, por fim, reflexão sobre um projeto histórico dos vínculos, no intuito de instalar uma reciprocidade que produz comunidade e afetos. Nesse âmbito, ao colocarmos em circulação - por meio da prática e dos estudos da tradução - narrativas e experiências femininas na intenção de construir pedagogias decoloniais relacionadas ao gênero, a mediação cultural assume um papel substancial nos encontros culturais decorrentes da aspiração em construir uma sociedade mais receptiva e menos violenta.

A tradução tem sido essencial para o deslocamento teórico, analítico e crítico dos feminismos. A localização geopolítica, o posicionamento do sujeito (Mouffe, 1993), o conhecimento situado (Haraway, 2009) e o ponto de vista particular (Collins, 1997) desse tráfego de teorias (e igualmente de ativismo e de militância) se unem para compor o horizonte de tradução feminista.5 E, como não existe um único e inequívoco horizonte de tradução feminista, há ainda o trabalho de identificar - ou ao menos apontar - o que viria a ser o “horizonte latino-americano da tradução feminista”. É a partir desse limiar que se pode refletir e esboçar a tradutologia feminista na e da América Latina e de suas múltiplas designações Abya Yala, Anáhuac e Tawantinsuyu.

Para refletir sobre mulheres e tradução no eixo sul do continente americano, nos valeremos do conceito de “experiência” de Joan Scott (1999). A partir de três experiências históricas das mulheres latino-americanas - colonização, catolicismo e autoritarismo - e seus entrelaçamentos com os fios do “nó” em Heleieth Saffioti (2013), demonstraremos como essas experiências de opressão estiveram sempre marcadas por resistência na forma de tradução.

A experiência

Segundo a historiadora Joan Scott (1999):

Experiência não é uma palavra sem a qual podemos passar, apesar de ser tentador, dado seu uso corrente para essencializar a identidade e reificar o sujeito, abandoná-la totalmente. Mas experiência faz parte da linguagem cotidiana, está tão imbricada nas nossas narrativas, que seria em vão querer eliminá-la. Ela serve como uma forma de se falar sobre o que aconteceu, de se estabelecer diferenças e semelhanças, de defender um conhecimento “irrefutável” (Pierson, 1989, p.32)6. Dada a ubiquidade do termo, parece mais útil trabalhar com ele, analisar suas operações e redefinir seu significado. Isso exige um enfoque nos processos de produção da identidade, uma insistência na natureza discursiva da “experiência” e na política da sua construção. Experiência é, ao mesmo tempo, já uma interpretação e algo que precisa de interpretação. O que conta como experiência não é nem auto-evidente, nem definido; é sempre contestável, portanto, sempre político. [...] Experiência é, nessa abordagem, não a origem de nossa explicação, mas aquilo que queremos explicar. Esse tipo de abordagem não desvaloriza a política ao negar a existência de sujeitos; ao invés, interroga os processos pelos quais sujeitos são criados, e, ao fazê-lo, reconfigura a história e o papel do/a historiador/a, e abre novos caminhos para se pensar a mudança (pp. 47-49).

As mulheres latino-americanas elaboram suas experiências individuais e coletivas a partir de experiências históricas, sociais e culturais que marca(ra)m e molda(ra)m suas gerações. Mais abaixo, destacamos três dessas experiências históricas: colonização, cristianismo e autoritarismo. Mas não sem antes afirmar que qualquer tentativa generalizante ou monolítica dessas experiências está fadada à incompletude, pois não há “uma” mulher latino-americana em uma geografia com 626 milhões de habitantes em um território de 19.2 milhões de km2 composto por vinte e cinco países.7

Apesar de não ser possível falar de todas as mulheres latino-americanas, reconhecemos que sua experiência é diferente da dos homens qualitativamente. Em outras palavras, não se trata de afirmar que a mulher trabalhadora e negra, por exemplo, é triplamente discriminada (devido a gênero, raça e classe); mas de reconhecer que gênero, raça e classe são qualidades que tornam a situação dessas mulheres muito mais complexa (Saffioti, 2013). Na teoria do nó elaborada por Heleieth Saffioti na década de sessenta, as três categorias racismo, gênero e classe social não são somáveis, mas integradoras de uma “realidade compósita e nova que resulta desta fusão” (2013, p. 122).

Antes de Kimberlé Crenshaw cunhar o termo “interseccionalidade” em 1989, Heleieth Saffioti já havia publicado em 1969 A mulher na sociedade de classes. Nessa obra, desenvolveu a metáfora do nó “para dar conta da realidade da fusão patriarcado-racismo-capitalismo” (2015, p. 139) e demonstrar como não é possível separar dominação (patriarcal) da exploração (capitalista). O nó de Saffioti é formado pelas três subestruturas ou três fios entrelaçados: gênero, raça e classe social. Gênero é a subestrutura mais antiga e, conforme a autora, as classes sociais e o racismo são, desde sua gênese, fenômenos gendrados, pois o tratamento dispensado a homens e mulheres é distinto. A fusão das três subestruturas contraditórias é regida por uma lógica distinta da que rege cada subestrutura em separado:

O importante é analisar estas contradições [subestruturas] na condição de fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó. Não se trata da figura do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes. (Saffioti, 2015, p. 133)

Em nenhum momento, raça, gênero ou classe atuam livremente pois, na dinâmica do nó, cada qual se condiciona de acordo com as circunstâncias.8 As análises que tendem a separá-los não levam em conta a estrutura de poder em que tudo se move o tempo todo:

E esta motilidade é importante reter, a fim de não se tomar nada como fixo, aí incluída a organização dessas subestruturas na estrutura global, ou seja, destas contradições no seio da nova realidade - novelo patriarcado-racismo-capitalismo - historicamente constituída. (Saffioti, 2015, p. 134)

Tendo reconhecido a impossibilidade de afirmações generalizantes e exposto a influência das categorias estruturantes da sociedade, passamos agora às três experiências históricas que até hoje moldam o que é ser mulher na América Latina: (a) a colonização, (b) o cristianismo e o (c) autoritarismo. As três são atravessadoras das mulheres da região, nas múltiplas complexidades definidas pelo “nó frouxo” de Saffioti, concorrendo para operar com muita eficiência e precisão a relação de dominação patriarcal e exploração capitalista. Entretanto, é importante lembrar que “sempre que há relações de dominação-exploração, há resistência, há luta” (Saffioti, 2015, p. 139), a tradução compõe estas últimas.

a) Colonização: corpos e línguas de mulher

A colonização de exploração que marca a história de todos os países da América Latina atingiu o nível mais profundo da mentalidade dos latino-americanos por meio da colonização do ser (Maldonado-Torres, 2007), do poder (Mignolo, 2010, 2013), do saber (Maldonado-Torres, 2006) e de gênero (Lugones, 2014). A colonialidade oriunda da experiência do colonialismo na região marca a exploração e normatização de comportamentos, corpos e culturas. A sexualização da exploração fez com que:

durante séculos, os continentes incertos - África, Ásia, as Américas - [fossem] concebidos pelo saber europeu como libidinosamente eróticos. As estórias dos viajantes estavam eivadas de visões da monstruosa sexualidade de terras distantes, onde, segundo a lenda, os homens exibiam pênis gigantescos e as mulheres copulavam com macacos (McClintock, 2010, p. 44).

As histórias dos colonizadores faziam uma imagem da Terra como corpo de mulher e a “fantasia do seio em Colombo [...] segue uma longa tradição de viagens masculinas como uma erótica do alumbramento” (McClintock, 2010, p. 43). Mulheres devassas e corpos negros de apetite sexual insaciável faziam da colônia um lugar de excessos e aberrações sexuais que precisavam ser contidas e “o conhecimento do mundo desconhecido [foi] mapeado como uma metafísica da violência de gênero” (McClintock, 2010, p. 47). No controle da natureza pela ciência, estava a subordinação das mulheres e dos negros, ambos combustíveis queimados pelo motor do capital mercantil. Desde os primeiros momentos da “conquista” espanhola, cujos fatos históricos registrados em documentos oficiais exaltaram as peripécias de homens que vieram ao continente em busca de ganhos inalcançáveis em uma Europa bélica, conservadora e doente - repleta de guerras por disputas de territórios, peste negra, Santa Inquisição, entre outras formas de controle da vida -, destacam-se as atuações de mulheres indígenas como tradutoras e intérpretes: “De muitíssimas maneiras, as mulheres serviam como figuras mediadoras e liminares por meio das quais os homens se orientavam no espaço, como agentes do poder e do conhecimento” (McClintock, 2010, p. 48).

A mais conhecida delas, ou a primeira - e uma das poucas - a constar em registros oficiais, foi Malinche, Malintzin, Malinalli ou Doña Marina, também chamada de La Lengua (A Intérprete). Sua função era traduzir os diálogos dos encontros entre Montezuma e Hernán Cortés. O resultado foi a tomada de Tenochtitlán, a capital do Império Asteca pelos europeus. Malinche, até hoje, tem seu nome relacionado ao complexo de inferioridade, que os mexicanos chamam malinchismo9. Referenciada por muitos séculos como símbolo de traição à pátria, condição acentuada por seu relacionamento com o conquistador Cortés, somente na contemporaneidade haveria uma ruptura da imagem de Malinche como traidora e esta passaria a ser vista como um símbolo da mestiçagem, além do reforço de sua importância enquanto intérprete desse momento brutal da história latino-americana.10

Seguindo na busca de registros de mulheres indígenas tradutoras na época colonial, a pesquisadora Ana Rona, em sua tese de doutorado Formación de intérpretes y políticas linguísticas en la província jesuítica del Paraguay (2014), afirma que foram frequentes os casos de mulheres intérpretes na região missioneira. Mesmo não tendo formação e educação pela Companhia de Jesus,11 tais mulheres poderiam ser, inclusive, remuneradas por seus serviços, como é possível observar na Relación de la fundación del Pueblo de San Javier de Mocobíes (1743-1762). Numa passagem dessa Relação, o missionário jesuíta Francisco Burgués explica suas dificuldades com o trabalho com os intérpretes, queixando-se, entre outras coisas, da resistência deles tanto para ensinar a língua mocoví aos espanhóis quanto para falar com os indígenas. Chama a atenção o destaque que dá a uma mulher intérprete - cujo nome não sabemos - e os questionamentos quanto à “qualidade” do seu trabalho, suas dúvidas quanto ao que realmente a mulher estaria falando:

Estiveram comigo dois desde o princípio: uma moça casada e um rapaz solteiro; mas posso afirmar com toda segurança que não me deram tanto trabalho e tantos desgostos os mocovis infiéis e bárbaros como esses dois linguarudos cristãos e espanhóis. À mulher que melhor sabia a língua e ganhava bem por seu ofício era mister pedir muito para que me ensinasse algumas palavras e para que falasse com os índios o que eu dizia; e mesmo depois de insistir ela o fazia de má vontade e sabe Deus o que lhes dizia12. (Furlong como se citou em Rona, 2014, p. 120)

O padrão eurocêntrico se torna o ápice do que seria ser mulher dentro do contexto de colonialidade. Tal realidade trouxe como consequências: a herança das línguas colonizadoras como línguas nacionais13, a morte ou quase extinção das línguas dos povos originários, a supervalorização e necessidade de uso dos instrumentos culturais europeus14 e a hierarquização da mulher dentro do mundo feminino: quanto mais branca e burguesa, mais próxima do padrão europeu, quanto mais negra e pobre mais longe dele. Resquícios dessa colonialidade permanecem até a atualidade, apesar dos avanços das teorias decoloniais.

No que tange a tradução, a colonialidade nega à primeira vista toda tradutografia15 realizada por mulheres, especialmente as indígenas.16 Em seguida, ela põe em jogo a assimetria entre tradutoras e teóricas da tradução do Sul e do Norte. Por conseguinte, o monolinguismo - tanto das políticas educacionais quanto das pesquisas e propostas científicas - permanece como algo normatizado. Daí decorrem muitas das motivações de movimentos de historiografia da tradução, bem como os de emancipação teórica das teorias feministas da tradução, os quais passam cada vez mais a ser decolonizados e firmados no contexto latino-americano.

b) Cristianismo: Maria, Oxum e subversão

Junto à colonização, o cristianismo, valendo-se do marianismo católico, é outra experiência latino-americana feminina coletiva. O marianismo é o culto a Maria - mãe de Jesus (Stevens, 1973) - e de representações locais dessa figura como: La Virgen de Guadalupe no México e Nossa Senhora de Nazaré no Estado do Pará-Brasil, que representam a santidade da mulher. O catolicismo é uma religião que atingiu toda a América Latina e trouxe Maria como paradigma de mulher: silenciada pela história de um homem, sem voz própria em sua narrativa, símbolo da maternidade e da feminilidade, passiva, submissa e realizada em seu papel. À imagem de Maria, a mulher latino-americana é socializada para a docilidade17: ela é vinculada ao seio do lar, à maternidade e à família. Quando não associada à figura de “santa” - ou se dela se “desvia” - a mulher latino-americana pode ocupar a posição da Malinche, taxada de traidora, concubina, mãe de filhos bastardos. Assim, no imaginário tradicional, nesse caso ilustrado pela cultura mexicana (Alarcón, 1983), ser mulher latino-americana18 é uma jornada entre extremos e nela as próprias mulheres operam o patriarcado contra outras mulheres, mães se voltam contra suas filhas.

Em sociedades cruéis em que a maternagem é fardo e as críticas à mulher-mãe residem na culpa, as mulheres latino-americanas são, em grande parte, órfãs de mãe viva, pois estas aniquilam suas filhas politicamente no processo de socialização. Nessa dinâmica, elas também são órfãs de uma “comunidade matrilinear de afetos políticos” (Santos, 2014, p. 220). Na ausência de “mães” é necessário buscar nossas múltiplas “mães simbólicas19”, nossas mães na literatura e na tradução, de modo a conectar mulheres a uma genealogia da tradução. A metáfora da tradução feita por mulheres como uma busca por mães simbólicas foi articulada por Pilar Godayol (2011), no contexto da ausência de literatura e tradução de mulheres lésbicas na Catalunha, mas as mulheres latino-americanas também podem ser consideradas órfãs de mães vivas.

A experiência religiosa contribui até hoje para manter as mulheres latino-americanas longe da esfera pública e política, enclausurando-as em situações nas quais a saída mais dignificada socialmente é a devoção à maternidade20 e à família (Saffioti, 2013). A religião valoriza mulheres socializadas para sofrer, para não extrair prazer da relação sexual e aguentar abusos sexuais de companheiros e genitores (Saffioti, 2015).

Retroalimentado pelo machismo, o marianismo é uma marca experiencial muito forte no cotidiano feminino latino-americano. A metáfora do cenáculo, na Bíblia, demonstra como homens e mulheres recebem as línguas do Espírito Santo:

13. Tendo entrado no cenáculo, subiram ao quarto de cima, onde costumavam permanecer. Eram eles: Pedro e João, Tiago, André, Filipe, Tomé, Bartolomeu, Mateus, Tiago, filho de Alfeu, Simão, o Zelador, e Judas, irmão de Tiago. 14. Todos eles perseveravam unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos dele. 1. Chegando o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. 2. De repente, veio do céu um ruído, como se soprasse um vento impetuoso, e encheu toda a casa onde estavam sentados. 3. Apareceu-lhes então uma espécie de línguas de fogo, que se repartiram e pousaram sobre cada um deles. 4. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito Santo lhes concedia que falassem. 5. Achavam-se então em Jerusalém judeus piedosos de todas as nações que há debaixo do céu. 6. Ouvindo aquele ruído, reuniu-se muita gente e maravilhava-se de que cada um os ouvia falar na sua própria língua (At: 1, 13-14; 2, 1-6) (Bíblia Sagrada, 2000).

Os apóstolos recebem as línguas de fogo e cada um começa a falar línguas diferentes e a entender-se com outros povos. Maria, mãe de Jesus, igualmente. Ela também estava presente naquele mesmo momento e local, a partir do qual os apóstolos passam a pregar nas línguas dos povos. Mas, nada mais é narrado sobre Maria. Seria essa uma metáfora para indicar a invisibilidade da tradução por ou de mulheres? Independentemente da resposta, o que se pode afirmar é que, aos poucos, o comportamento mariológico começa a ser identificado e revisto na vida de todas as mulheres, incluindo na das tradutoras e teóricas da tradução na América Latina.21 Apesar de toda a força hegemônica do catolicismo, a figura de Maria e das demais mulheres santas foram recebidas, mas também transformadas e subvertidas, pois nelas estão sincretizadas: Yemanjá (Virgem Maria, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Conceição), Oxum (Nossa Senhora Aparecida), Iansã (Santa Bárbara), Nanã (Sant’Ana), etc.

Da força sincrética da umbanda e do candomblé surge outra metáfora, aplicada à tradução por Tatiana Santos, em sua tese de doutoramento sobre tradução e teoria lésbica negra. Santos entende a tradução como o espelho de Oxum, o abebé:

Oxum, a orixá que reina nas águas doces correntes (rios, cachoeiras, fontes, córregos...), carrega consigo um espelho, o abebé. Muitas vezes ela é chamada, por isso, de vaidosa. Diferentemente dessa leitura tradicional, na qual o espelho é associado à vaidade e beleza física, proponho a compreensão desse espelho como fonte de autoconhecimento e reconhecimento, onde uma se mira para mais se compreender [...]. Oxum também é uma orixá relacionada ao discurso, pois é ela quem cuida daquelas que vão nascer até que, depois de nascidas, possam “usar o raciocínio e se expressar em algum idioma” (Buonfiglio, 1995, p. 65). Sendo senhora das águas doces de rios e cachoeira, é frequentemente associada à fertilidade. (Santos, 2014, pp. 14-15)

Não a uma fertilidade “em um sentido heterocentrado e reprodutivista” (Santos, 2014, p. 15), mas uma fertilidade de autoconhecimentos e também de afetos entre mulheres, pois a orixá Oxum se deitou com a orixá Iansã, fazendo com que a primeira se refugiasse nas águas. De acordo com essa metáfora, traduzir é uma mulher que mira para dentro, para si, e também uma mulher que mira outra mulher. É uma mulher que busca se conhecer e se dá a conhecer. Traduzir é mirar para dentro das mulheres latino-americanas, para as mulheres latino-americanas; é conhecer e dar a conhecer as mulheres latino-americanas. E quando cada mulher segura seu abebé e se reflete no abebé da outra, as imagens refletidas e possibilidades de conhecimentos são infinitas.

Nesse aspecto, voltar ao século XIX e reconhecer as mulheres que subverteram o marianismo ao circular pela América Latina, refletiram, escreveram e publicaram sobre processos sociais, políticos e históricos; sendo, por vezes, castigadas por seus escritos com a perseguição política e com a expulsão de seus países (como os casos de Juana Manuela Gorriti e Clorinda Matto de Turner, entre outras), faz parte de um resgate de textos e de narrativas femininas de mulheres que pensaram o subcontinente e se fizeram ouvir. Cabe destacar a circulação da escritora Juana Manso: argentina, exilou-se em Montevidéu por conta da perseguição política a seu pai, que se posicionou contra a ditadura de Juan Manuel de Rosas. Publicou no El Nacional da capital uruguaia e fundou o Ateneo de Señoritas, espaço educativo onde ensinava francês e geografia, iniciando, dessa forma, seu grande projeto de vida: a emancipação moral da mulher americana. Devido ao alinhamento político do presidente Oribe às ideias de Rosas, novamente a família migra de país, desta vez, à cidade do Rio de Janeiro, onde a autora se casa com um violinista brasileiro. Segundo Souza (2017), é desconhecido se Manso, ao chegar ao Brasil, possuía conhecimento da língua portuguesa ou se a aprendeu em seu convívio com brasileiros e portugueses.

Após ter vivido nos Estados Unidos e em Cuba, retorna ao Brasil e, por volta de 1852, funda o Jornal das Senhoras: Modas, Literatura, Belas-Artes, Teatros e Crítica, que se propõe a educar o público feminino bem como o convida a atuar por meio da escrita. Com duração de dois anos de publicação periódica, a cada edição do Jornal, apresenta um capítulo de Misterios del Plata, romance histórico contemporâneo. Quando retorna à Argentina, em 1854, ela funda uma versão portenha do exitoso jornal Álbum de Señoritas: Periódico de Literatura, Modas, Bellas Artes y Teatros. No entanto, a cidade de Buenos Aires não compra a ideia de Manso: não há interesse nem de leitoras nem de autoras. Como não recebe contribuições externas, é Manso quem escreve todos os textos, com pseudônimos ou em anonimato e o Álbum acaba tendo apenas oito números publicados.

Souza (2017) aponta que no Álbum de señoritas a autora publica os primeiros capítulos de seu segundo romance: La familia del comendador, que traz como cenário a sociedade escravocrata do Rio de Janeiro. Surpreende a atitude de publicar capítulos de um romance sobre a Argentina em jornal brasileiro e capítulos de um romance sobre o Brasil em jornal argentino. Trata-se, portanto, mesmo antes da concepção da ideia e do termo, de uma pedagogia decolonial, de um caso prático e efetivo de mediação cultural, visto que Manso “traduziu” a Argentina para as leitoras brasileiras e o Brasil para leitoras argentinas. Ao publicar ambos romances de denúncia social não no país correspondente ao tema denunciado e através dos jornais que cria, percebe-se a utilização do mundo da imprensa como mediador dessas trocas interculturais, possibilitando à escritora a influência em sistemas literários diferentes: a narrativa de La familia del comendador se passa nas ruas e casas cariocas, no entanto, atua como um instrumento de denúncia sobre a escravidão e a mesquinhez dos homens e mulheres ricos, temáticas que dizem respeito não só ao Brasil, mas às jovens nações americanas que estavam se formando e que podem ser compreendidas pelas leitoras e leitores argentinos familiarizados com essas questões. Da mesma forma, a leitora e o leitor brasileiro pode atrair-se por Misterios del Plata, já que a discussão sobre um projeto de futuro para o país era um tema também importante para a jovem nação brasileira, na qual havia, igualmente, uma grande desigualdade entre os centros culturais mais intelectualizados e as tantas regiões brasileiras, às quais a “ilustração” ainda não havia chegado: “Manso, consciente ou inconsciente disso, a partir da sua incansável busca pela criação e propagação de jornais para mulheres, conecta o sul da América Latina, reverberando temas centrais para essa região.” (Souza, 2017, p. 25)

Assim, as formas de transformação e subversão do ideal de mulher pregado pelo marianismo católico representam resistência à dominação e exploração por parte das mulheres latino-americanas, além disso fazem nascer agência e conexão entre as mulheres no curso de suas lutas no continente.

c) Autoritarismo: ditaduras, democratização e retomada autoritária

O terceiro recorte da experiência das mulheres latino-americanas neste texto: o autoritarismo corresponde aos períodos de ditadura em vários países da América Latina, entre as décadas de 60 e 80. A tradutora, autora, jornalista, crítica literária e professora universitária, Ida Vitale, agraciada com diversos prêmios, entrevistada especialmente para este número (Smaldone, 2020), foi uma das intelectuais obrigadas a exilar-se com seu marido no México devido ao golpe militar no Uruguai em 1973. Em 1984, findo o regime militar, volta a seu país, onde continua a produzir até hoje. A trajetória de Vitale demonstra como é impossível falar sobre períodos autoritários sem relacioná-los a movimentos de resistência e às novas ondas de autoritarismo que varrem atualmente a região.

Os anos que se sucederam ao Golpe de 1964 no Brasil, por exemplo, são conhecidos por “Anos de chumbo” devido à violência da política do governo militar, que envolveu prática institucionalizada de tortura, milhares de desaparecimentos e homicídios não levados à justiça. Evidentemente, a época foi de limitações a avanços em matéria de direitos das mulheres22 e, nesse contexto, é fundamental destacar que a violência do Estado militar também foi marcada por práticas sexualizadas de tortura contra as mulheres (Teles, 2011). Aliás, ser mulher politizada e contrária ao regime nas décadas de 60 e 70 correspondia a ser, no mínimo, prostituta, como destaca Heleieth Saffioti, socióloga marxista feminista brasileira: “mulher sozinha era puta direto e mulher casada não recebia esse sobrenome, mas era no mínimo comunista, a não ser que fosse uma reacionária daquelas para não ser considerada comunista” (Gonçalves e Branco, 2011, p. 77).

Os primeiros anos da ditadura militar23 no Brasil coincidem com o período em que Saffioti finalizava A mulher na sociedade de classes24, publicado pela primeira vez em 196925. Durante uma entrevista concedida em 2011, Saffioti fez as seguintes declarações detalhadas sobre as referências às quais teve acesso ao redigir a obra de mais de quinhentas páginas, a qual circulou como tradução nos Estados Unidos e na França:

E o que eu lia? O que havia para ler no Brasil? Era um desastre. Havia Grandes damas do ii Império e coisas assim desse estilo. Havia um livro da Rose Marie Muraro [...] adotado por colégio de freiras. [...] Então, as ideias não batiam. (Gonçalves e Branco, 2011, p. 77)

Saffioti menciona a ausência de traduções, especificamente, no seguinte trecho:

O que eu li? No Brasil não havia nada de interessante. Eu li O Segundo Sexo, da Simone [de Beauvoir]; li um livro da Alva Myrdal e Viola Klein26. Estes textos existiam ou em francês ou em inglês, em português nada. O Segundo Sexo, sim. Mas o da Alva Myrdal e Viola Klein, não. E o outro [...] era em francês. O nome dela era Evelyne Sullerot27. E havia aqueles textos clássicos da [Alexandra] Kollontai, [...] da Clara Zetkin [...]. (Gonçalves e Branco, 2011, p. 77)

Ida Vitale também destaca a ausência de traduções na entrevista a este número, nesse aspecto mostra o paralelismo entre os contextos brasileiro e uruguaio: “Quería leer un libro, por interés, pero al estar en francés, italiano, inglés o portugués, por ejemplo, tenía que traducirlo para saber qué decía” (Smaldone, 2020, p. 532). Vitale menciona ainda que as edições e traduções que se encontravam no Uruguai eram feitas na Argentina e no México, o que sinaliza o “isolamento” do Brasil em matéria de circulação de textos traduzidos na região. Entretanto, findo o regime militar, houve um incremento das traduções disponíveis com a abertura democrática. A redemocratização foi um momento único de busca de luta por direitos em todos os âmbitos da sociedade, além de representar mudanças de paradigmas comportamentais (Jaquette, 1989; Alvarez et al., 1998).

No que concerne à tradução e à circulação de textos traduzidos, o período da redemocratização traz à tona a influência estadunidense tanto do ponto de vista teórico quanto comportamental e cultural. Prevalecem as relações Norte-Sul, e as políticas de integração linguísticas incluem o inglês em detrimento mesmo das próprias línguas nacionais da América Latina. Isso significa um tráfego menos privilegiado de conhecimento cultural, social, teórico, empírico e político entre as mulheres latino-americanas, ou mesmo a negação ou baixa valorização da alteridade mais próxima de uma mulher latino-americana: outra mulher latino-americana. Assim, com a abertura democrática, houve um aumento de material em língua inglesa a partir dos anos 80, traduzido e difundido na região, por exemplo: livros de Aline Rousselle, Charlotte Wolff, Camille Paglia.

A partir do fortalecimento da “consciência” emanada das experiências latino-americanas mencionadas, nasce a percepção de uma identidade, a produção de um conhecimento e uma história protagonizada pelas mulheres. A unidade das experiências das mulheres latino-americanas orienta a determinação de uma sujeita com todas as pluralidades possíveis e forma igualmente a singularidade subjetiva (Putois, 2005).

Em termos tradutórios, é a consciência sobre a identidade das mulheres latino-americana que orienta os modos de tradução, o agenciamento ativista, crítico, protagonizador e analítico tanto do ato de traduzir quanto da reflexão sobre tradução. Possivelmente, poderíamos dizer que a “proximidade cultural” dos países na América Latina pode trazer benefícios para o entendimento e as correspondências culturais, linguísticas e discursivas entre traduções realizadas nas línguas latino-americanas (Silva-Reis, 2018), incluindo as línguas dos povos originários. Os benefícios da proximidade cultural são nítidos quando comparados à tradução realizada a partir de culturas e línguas muito distantes da zona geográfica Centro-Sul do continente americano. Sobre a proximidade cultural, a teórica dominicana Ochy Curiel afirma:

Considero que, embora nós mulheres negras devamos fazer mais traduções de outras mulheres negras, não se trata de essencializar este exercício. Existem pensamentos, teorias, conceitos tanto de mulheres negras e mulheres brancas que são críticos e interessantes para nossos projetos políticos e que é importante traduzir. O que creio é que as mulheres brancas têm maior acesso e privilégio e muitas vezes tomam as experiências das mulheres negras como meros testemunhos ou matérias primas para seus créditos acadêmicos, por isso é importante que as mulheres afrodescendentes e indígenas façamos tradução da produção de nossas companheiras para evitar a utilização e a instrumentalização de nossas experiências e pensamentos (Curiel e Silva-Reis, 2019, p. 243).

Ou seja, traduzir-se e traduzir na América Latina também é um exercício ético, à medida que as experiências tragam consciência e importância sobre o fazer tradutório localizado e gendrado. É a tomada de consciência da experiência de tradução da mulher latino-americana que produz o conhecimento desta sujeita e o quão fundamental é seu compartilhamento. Este “compartilhamento de saberes” oriundo de uma consciência produz tanto prescrições (princípios) quanto proscrições (banimentos).

Na proposta de compartilhamento de saberes, não podemos deixar de relatar a experiência da criação de uma das maiores instituições culturais latino-americanas: a Casa de las Américas, situada em Havana-Cuba. Fundada em 1959, quatro meses após a revolução que alteraria profundamente o modo de viver cubano - e as relações políticas da ilha com os demais países americanos -, teve como primeira diretora, criadora e orientadora Haydee Santamaría, partícipe destacada da revolução cubana e pessoa de confiança do então presidente Fidel Castro. Diretora da Casa de 1959 a 1980, funda e dirige o primeiro grande espaço continental onde confluíam as vanguardas estéticas latino-americanas e, de acordo com Campuzano (2020), identificado e conhecido como uma das mais transitadas portas de comunicação de Cuba com as forças políticas progressistas da América Latina e do Caribe. Além de coordenar os trabalhos da Casa de las Américas, também fundou e dirigiu em 1967 a olas (Organização Latino-Americana de Solidariedade), confirmando, assim, seu papel de instigadora à ampliação da luta contra o imperialismo estadunidense, além de expandir os preceitos da revolução a outros países latino-americanos.

Para Campuzano (2020), Santamaría foi uma mulher capaz tanto de organizar uma grande equipe de trabalho quanto de ser a melhor e mais autorizada receptora para aquelas e aqueles que precisavam não somente de asilo, mas de companhia e de emprego. À medida em que os contextos históricos e políticos iam se alterando, possibilitou a inovação e a criação de espaços na Casa de las Américas que abrangessem as mudanças que estavam ocorrendo na América Latina: ao receber diversos artistas e escritores exilados, como o guatemalteco Manuel Galich, o haitiano René Depestre, o uruguaio Mario Benedetti, entre outros, criou junto a mulheres departamentos como a Dirección de Música, que incluiu o Centro de la Canción Protesta com a documentarista estadunidense Estela Bravo; ao receber Miria Contreras, secretária e companheira de Salvador Allende após o golpe de Pinochet em 1977, apresenta em conjunto com sua irmã Mitzi Contreras a Dirección de Artes Plásticas; e ao fazer surgir, em 1994, o Programa de Estudios de la Mujer, destinado a recuperar a história e a cultura das mulheres latino-americanas e caribenhas e hoje coordenado por Luisa Campuzano. Além da criação de departamentos focados nos estudos latino-americanos, é importante destacar tanto a participação da Casa de las Américas na publicação de traduções, em especial do francês e do português para o espanhol, o que possibilitou um trânsito literário latino-americano no espaço caribenho, quanto o Prêmio Casa de las Américas, que reúne um heterogêneo e multilíngue grupo de jurados e de obras analisadas que, em idiomas diferentes, vão contando a história da literatura e da cultura na América Latina.

Rita Schmidt, já em 2006, aponta que fora do circuito de suas praticantes, a crítica feminista nem sequer existe e, quando mencionada, é considerada com descrédito e muitas vezes com preconceito explícito. A especialista brasileira afirma que a maior contribuição que a crítica feminista pode oferecer é a produção de um deslocamento em relação ao modelo de democracia instalada no Brasil, o que vai ao encontro da proposta das pedagogias decoloniais, que propõe uma ruptura com os modelos sociais patriarcais na intenção de pensar uma sociedade menos violenta nas questões sociais, étnicas e de gênero.

Para nós, editoras brasileiras e editor brasileiro deste número, é extremamente desafiador pensar uma sociedade menos violenta quando enfrentamos uma nova onda de autoritarismo. O primeiro movimento dessa mais recente onda autoritária - cujas proporções ainda estão sendo definidas - teve início com o procedimento de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, efetivamente impedida em 2016 com base em acusações que não se comprovaram judicialmente. Além das acusações políticas e criminais, Rousseff - como mulher latino-americana - foi alvo de misoginia explícita por parte da população, da mídia e da classe política brasileiras. Uma mulher sem marido, sem religião, sobrevivente da tortura do regime militar, forte e decidida foi alvo de ataques à sua aparência física e sexualidade.

Hoje, no Brasil, ocorre um recrudescimento do autoritarismo por parte do governo Bolsonaro, com políticas discriminatórias explícitas de gênero, raça e classe. Mais um golpe está em curso no país, cujo poder executivo se encontra marcado pela presença massiva de militares. Há notícias diárias de violência policial, genocídio da população negra, genocídio dos povos indígenas e quilombolas, violência contra as mulheres, além das violências contra o meio ambiente. Tendo o atual governo adotado uma política negacionista em relação à pandemia de Covid-19, ele se exime de tomar medidas para proteger a população, combater desigualdades, garantir acesso à saúde, combater o aumento dos índices de violência (étnica, doméstica, policial...). Promove, assim, uma verdadeira política da morte em que diversos corpos e sujeitos se encontram ameaçados: mulheres, negros, pobres, indígenas, quilombolas, idosos, crianças estariam todos relegados a serem meras estatísticas. Mas nem às estatísticas estão sendo esses corpos destinados, já que recentemente o governo brasileiro decidiu não mais divulgar os números de mortos na pandemia e recategorizar outras. Trata-se de um regime autoritário em franca expansão, fazendo o que o define como tal: matar e ocultar corpos em prol da relação de dominação e exploração capitalista.

Palavras finais

Como já afirmado ao longo deste texto, em havendo poder, há resistência (Saffioti, 2015; Federici, 2019). E como traduzir corresponde também a resistir, a prática da tradução feminista está vivendo um momento de fortalecimento como ação política individual e/ou coletiva/colaborativa/comunizante. No caso individual, chamam atenção as autotraduções e traduções publicadas por editoras independentes com conhecida agenda política28. O trabalho de diversos coletivos29 de tradutoras tem buscado engajar leitoras, influenciar e transformar contextos políticos. O espaço coletivo criado pela tradução feminista vai aos poucos transformando a lógica capitalista, segundo a qual a tradução corresponde a um mero “serviço prestado” ou “produto a ser comprado”, para estabelecer novas formas de produção e circulação em que edições impressas à venda convivem com versões eletrônicas gratuitas. Em uma perspectiva colaborativa da tradução, mulheres integram e convivem em movimentos políticos (militantes e/ou ativistas) de lutas por justiça social, ao mesmo tempo em que desobstruem o caminho para alianças entre si e para os fluxos de epistemologias feministas e celebram - em uma época de trevas para o país - o processo criativo da tradução colaborativa de modo a forjar uma comunidade de experiências e afetos políticos transformadores.

No campo teórico, princípios como subjetividade latino-americana ou banimentos como invisibilidade da mulher latina são temáticas que começam a emergir nos Estudos da Tradução, visto que a subalterna fala e fala às iguais, às diferentes e entre si30. Apesar de intensa, a tradução feminista latino-americana ainda é comparativamente pouco vislumbrada, especialmente em termos teóricos. Todavia a escrita dessa tradutologia feminista está tomando corpo, crescendo a seu tempo, a cada novo avanço reflexivo sobre o tema e em conjunto com pesquisadoras motivadas e interessadas em pensar o gênero, em especial a categoria não monolítica da mulher latino-americana e sua relação com o patriarcado e o capitalismo.

Tendo em vista que todo gênero textual tem lugar em um tempo-espaço social e histórico e se insere em uma determinada prática, os textos que compõem este número, bem como as traduções realizadas por mulheres latino-americanas (individual e/ou coletivamente), fazem parte do movimento feminista latino-americano que alimenta e dialoga com os Estudos da Tradução Feminista. Esses textos e traduções, ainda que não se declarem explicitamente políticos, contribuem para que os Estudos da Tradução Feminista ganhem corpo próprio, latino-americano e decolonizado.

A reunião e compartilhamento dos trabalhos dispostos neste número da revista Mutatis Mutandis representam cruzamentos de estudos e reflexões sobre mulheres e tradução que ocorrem na direção Sul-Norte, Norte-Sul e Sul-Sul, além de destacar as experiências únicas de mulheres tradutoras na região, as recepções de traduções de obras de mulheres nesse espaço geográfico e a circulação de textos de mulheres latino-americanas em outras geografias.

Agradecemos o espaço discursivo e de pensamento cedido às editoras e ao editor, os quais foram convidados pela professora Paula Montoya, a todas e todos os pareceristas e, principalmente, às colaboradoras e aos colaboradores que nos brindaram seus saberes. Desejamos às leitoras e aos leitores inspiração, respiração, existência e resistência.

Material suplementar
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Notas
Notas
1 Ver: Castro e Spoturno (2020); Castro, Ergun, Flotow e Spoturno (2020); Castro e Ergun (2017); Castro-Vázquez (2009); Alvira (2010).
2 Todas as menções à América Latina neste texto compreendem o Caribe.
3 Obras como Translating feminism in China: Gender, sexuality and censorship, de Zhongli Yu, publicado em 2015 pela Routledge. O livro, além de traçar um panorama dos Estudos da Tradução Feminista a partir da Escola Canadense, denuncia casos específicos de censura às traduções chinesas de obras feministas.
4 Proliferação do controle mafioso da economia, da política e de amplos setores da sociedade.
5 Ver:Araújo e Silva-Reis (2019a); Costa (2006, 2014); Costa e Alvarez (2013,2014); Alvarez (2014).
6 Referência na própria citação, ver: Pierson (1991).
7 Contando com os países de língua oficial inglesa ou francesa. Além de uma dezena de Estados não soberanos.
8 Um exemplo do nó em movimento em uma experiência individual é a história da “neguinha atrevida”, narrada por Lélia González (1983, p. 233): “Foi então que uns brancos muito legais convidaram a gente pra uma festa deles, dizendo que era pra gente também. Negócio de livro sobre a gente. A gente foi muito bem recebido e tratado com toda consideração. Chamaram até pra sentar na mesa onde eles estavam sentados, fazendo discurso bonito, dizendo que a gente era oprimido, discriminado, explorado. […] E a gente foi se sentar lá na mesa. Só que tava tão cheia de gente que não deu para gente sentar junto com eles. Mas a gente se arrumou muito bem, procurando umas cadeiras e sentando bem atrás deles. Eles tavam tão ocupados, ensinando um monte de coisa pro crioléu da plateia, que nem repararam que se apertasse um pouco até que dava pra abrir um espaçozinho e todo mundo sentar junto na mesa. […] A gente tinha que ser educado. E era discurso e mais discurso, tudo com muito aplauso. Foi aí que a neguinha que tava sentada com a gente deu uma de atrevida. Tinham chamado ela pra responder uma pergunta. Ela se levantou, foi lá na mesa pra falar no microfone e começou a reclamar por causa de certas coisas que tavam acontecendo na festa. Tava armada a quizumba. A negrada parecia que tava esperando por isso pra bagunçar tudo. E era um tal de falar alto, gritar, vaiar, que nem dava mais pra ouvir discurso nenhum. Tá na cara que os brancos ficaram brancos de raiva e com razão. […] Se eles sabiam da gente mais do que a gente mesmo? Teve uma hora que não deu pra aguentar aquela zoada toda da negrada ignorante e mal educada. Era demais. Foi aí que um branco enfezado partiu pra cima de um crioulo que tinha pegado no microfone pra falar contra os brancos. E a festa acabou em briga... Agora, aqui pra nós, quem teve a culpa? Aquela neguinha atrevida, ora. Se não tivesse dado com a língua nos dentes... Agora tá queimada entre os brancos. Malham ela até hoje. Também quem mandou não saber se comportar?”.
9 Segundo a Real Academia Española (rae), o termo provém de Malinche, “esclava mexicana que desempeñó un papel importante en la Conquista española de México como intérprete, consejera y amante de Hernán Cortés.”. Para a rae, o termo denota “Actitud de quien muestra apego a lo extranjero con menosprecio de lo propio.” (Malinchismo, 2020). Note-se que, embora destaque que desempenhou um papel importante na conquista espanhola, não deixa de mencionar sua condição com relação a Cortés.
10 Não há registros de Malinche, sobre sua vida e/ou sua atuação como intérprete, sendo esta sempre representada por discursos de terceiros. Somente com a chegada do século xx e a prática de reescrita de histórias dos vencidos, dos invisibilizados e, por sua vez, do acesso progressivo das mulheres às letras, Malinche será reposicionada em seu lugar de (quase) chefe de Estado e valorizada enquanto possuidora do dom da palavra. Ver: Janaína Aguiar (2013) para um estudo de fôlego sobre a representação histórica e literária de Malinche/Malinalli.
11 Tradutores e intérpretes oficiais passavam por formação, visto que dentre suas funções estavam incluídas as tarefas de negociação com indígenas, evangelização, administração de sacramentos, escrivão de requerimentos, orientação e guia na abertura de novos caminhos etc.
12 Tradução dos autores.
13 Sobretudo espanhol, português e francês.
14 Tais como roupas, penteados, produtos de beleza, produtos domésticos, trabalhos artesanais e artísticos, profissões sexualizadas.
15 Tradutografia vem do francês tradutographie, conceito utilizado nos últimos estudos historiográficos da tradução para designar pedaços da história da tradução que ainda não possuem narrativa disponível, ou, parafraseando Jean-René Ladmiral (2014, p. 256), a ciência da tradução que sempre inclui observação e descrição (traductografia) da prática real da tradução, assim como a etnologia pressupõe a etnografia.
16 Ver Metcalf (2005), Silva-Reis e Fonseca (2018).
17 Saffioti (2015, p. 37) se refere às mulheres socializadas para a docilidade como “mulheres amputadas” do uso da razão e do exercício do poder.
18 O “gênero não é tão somente social, dele participando também o corpo, quer como mão de obra, quer como objeto sexual, quer, ainda, como reprodutor de seres humanos, cujo destino, se fossem homens, seria participar ativamente da produção, e, quando mulheres, entrar com três funções na engrenagem descrita” (Saffioti, 2015, p. 133).
19 Segundo Godayol (2013, p. 220, tradução de Tatiana Nascimento), a mãe simbólica está “longe do mito maternagem-fardo de uma biologia inescapável heterocentrada. Ela celebra o processo criativo entre escritoras e reescritoras/tradutoras, o qual forja uma comunidade matrilinear de afetos políticos, literários e sexuais inclusive”.
20 A maternidade implica aumento do trabalho doméstico não remunerado e trabalho reprodutivo. Este último corresponde à produção e socialização de mão de obra para o capitalismo. A igreja tem importante papel na perpetuação desse trabalho ao, por exemplo, impedir que as mulheres tenham total controle sobre seu corpo e sua sexualidade.
21 No Brasil, trabalhos como os de Blume (2010) e Dépêche (2000, 2002) são exemplos contra a invisibilidade histórica e teórica das tradutoras.
22 Só em 1977 o divórcio passou a ser permitido no Brasil. A partir daquele ano, a pessoa poderia se divorciar e casar novamente uma única vez. Só em 1988, com a abertura democrática, o direito brasileiro passou a não limitar o número de vezes que uma pessoa divorciada poderia casar-se.
23 Destaca-se que durante a ditadura de Getúlio Vargas, no Brasil, várias editoras se formaram e muitas obras políticas e literárias ligadas à esquerda foram traduzidas pela primeira vez, na esteira da greve anarquista de 1917 em São Paulo, dos acontecimentos na União Soviética, da formação do Partido Comunista no Brasil, etc. Esse movimento editorial-tradutório teve importante papel na formação da esquerda de modo geral. Depois, durante a ditadura militar brasileira, muitas outras obras também foram traduzidas pela primeira vez, como as obras inéditas de Karl Marx.
24 Traduzido para o inglês e publicado com o título Woman in Class Society (1978) e prefaciado por Eleanor Burke Leacock.
25 Como tese foi defendida em 1967.
26 Trata-se de Woman’s two roles, Routledge & Kegan Paul Ltda de 1962.
27 Os títulos são: Demain les femmes, La presse féminine e La vie des femmes.
28 Entre as quais estão: Tinta Limón, na Argentina, e Bazar do Tempo, Boitempo, Elefante, Ema Livros, Nosotros Editorial, Polén, Relicário, Timo e Zouk, no Brasil.
29 Entre os coletivos estão: as traduções realizadas pelo Grupo Latinoamericano de Formación y Acción Feminista (glefas) e o Coletivo Sycorax. Este último vem traduzindo diversas obras da feminista Silvia Federici, com traduções disponibilizadas gratuitamente online.
30 Dois dos exemplos no Brasil são a reflexão de Matos, Barboza e Santos (2018) sobre as teses e dissertações produzidas no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução (pget) e a publicação, em 2019, do número dedicado a “Tradução e Feminismos negros” da revista Ártemis, organizado por Cibele Araújo, Luciana de M. Silva e Dennys Silva-Reis (2019b).
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