Resumo: Este trabalho expõe o resultado de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se dos métodos dedutivo, para fins de abordagem, e monográfico, a título procedimental, sobre a temática do controle de convencionalidade, tendo por objetivo principal analisar a aplicação deste controle pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), a fim de proteger a dignidade da mão-de-obra humana. Para tanto, realizou-se um estudo dos principais aspectos referentes ao tema, objetivando-se, ao final, demonstrar que o controle da convencionalidade dos atos do Poder Público deve ser realizado pelo Judiciário brasileiro e, no caso da Justiça do Trabalho, as convenções e recomendações da Organização Internacional do Trabalho (OIT) demonstram-se relevante instrumento de efetivação dos direitos humanos, o que ficou transparente no case Carneiro Távora versus Telemar Norte Leste e Contax. No decorrer do trabalho, buscou-se o esclarecimento de questões importantes ao tema, como o seguinte problema: como pode ser operacionalizado o controle de convencionalidade e como se deu sua aplicação pelo TST como forma de proteção à dignidade da mão de obra humana frente à possibilidade de terceirização de atividade-fim? Por derradeiro, dentre os resultados, conclui-se que o controle de convencionalidade ainda é uma prática pouco utilizada, sendo até desconhecida por muitos, necessitando de operacionalização, mas que, no case em análise, o TST, com o objetivo de proteção ao trabalhador, aplicou o controle em reverência ao compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro por ocasião da ratificação da Constituição da OIT, dando interpretação convencional ao dispositivo legal interno, no sentido de que não se pode abstrair qualquer sentido que venha a permitir a terceirização de atividade-fim.
Palavras-chaves: Caso Carneiro Távora versus Telemar Norte Leste e ContaxCaso Carneiro Távora versus Telemar Norte Leste e Contax,controle de convencionalidadecontrole de convencionalidade,convenções e recomendações da OITconvenções e recomendações da OIT,inconvencionalidade da terceirização de atividade-fiminconvencionalidade da terceirização de atividade-fim,Tribunal Superior do TrabalhoTribunal Superior do Trabalho.
Abstract: This paper presents the results of a bibliographical investigation, using the deductive method, having as main objective to analyze the application of conventionality control by the Superior Labor Court (TST) in order to protect the dignity of human labor. Therefore, was developed a study about the main aspects related to the topic, aiming to, at the end, demonstrate that conventionality control of state acts must be held by the Brazilian judiciary and, in the case of the Labor Court, the conventions and recommendations of the International Labour Organisation (ILO) have demonstrated to be a relevant instrument for realization of human rights, which was clear in the case Carneiro Távora versus Telemar Norte Leste and Contax. The article aims to clarify important issues about the theme, particularly the role of conventionality control and its application by the Brazilian Superior Labor Court in ways to protect the dignity of human labor. At the end, it is concluded that the conventionality control requires more operation, but, in the particular case under review, the Court, with the aim of protecting the worker, applied control in reverence to the international commitment made by the Brazilian state on the occasion of the ratification of the ILO Constitution, by giving conventional interpretation to the internal legal provision in the sense that one can not extract any interpretation that allows the outsourcing of core business.
Keywords: Case Carneiro Távora versus Telemar Norte Leste and Contax, conventionality control, ILO conventions and recommendations, unconventionality of the outsourcing of core business, Superior Labor Court.
Artigos
O controle de convencionalidade e o Judiciário brasileiro: a sua aplicação pelo Tribunal Superior do Trabalho como forma de proteger a dignidade da mão-de-obra (vedação de terceirização de atividade-fim) no case Carneiro Távora v. Telemar Norte Leste e Contax*
The conventionality control and Brazilian Judiciary: their application by the Superior Labor Court in order to protect the dignity of human labor (ban on outsourcing of core business) in case Carneiro Távora v. Telemar Norte Leste and Contax
Recepção: 23 Agosto 2016
Aprovação: 12 Fevereiro 2017
O presente estudo expõe o resultado de uma pesquisa bibliográfica, utilizando-se dos métodos dedutivo, para fins de abordagem, e monográfico, a título procedimental, sobre a temática da aplicação do controle de convencionalidade pelo Judiciário brasileiro, tendo por objetivo principal analisar, sob os contornos do constitucionalismo contemporâneo, como ocorreu sua utilização pelo Tribunal Superior do Trabalho, que manteve a decisão do juízo a quo, a fim de reconhecer a ilicitude da terceirização de atividade-fim (serviço de Call Center), no Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº TST-AIRR-1269-81.2013.5.03.0011, neste trabalho denominado case Carneiro Távora v. Telemar Norte Leste e Contax.
O controle de convencionalidade nasce da necessidade de observância dos instrumentos internacionais de que o Estado é parte, calcado em princípios do direito internacional, como liberum voluntatis arbitrium, pacta sunt servanda e bonam fidem, compatibilizando o ordenamento jurídico interno não só à Constituição, mas também aos acordos, tratados e convenções de que o Brasil seja signatário1.
Como se verá adiante, há um controle de convencionalidade externo, realizado de forma concentrada nos Tribunais encarregados da observância e interpretação da norma internacional, e um controle interno, que, aplicado ao Brasil, poderá ocorrer de modo difuso, pelos juízes e tribunais da justiça ordinária, e concentrado, no Supremo Tribunal Federal.
Dentre os Tribunais Superiores pátrios, o TST vem se destacando nessa atuação, seja na aplicação própria do controle de convencionalidade, seja em deferência às decisões dos Tribunais a quo que o aplicam, principalmente frente às Convenções Internacionais da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Assim, constantemente o referido tribunal tem dado interpretação convencional, em respeito aos instrumentos internacionais, como ocorreu no caso em análise, frente à Declaração da Filadélfia de 1944, parte integrante da Constituição da OIT.
Assim, muito embora o Art. 94, inciso II, da Lei nº 9.472/97, que dispõe, dentre outros fins, sobre os serviços de telecomunicações, permita que a concessionária contrate com terceiros inclusive o desenvolvimento de atividades a ela inerentes, a interpretação não poderá ocorrer de forma simplesmente gramatical, senão em conformidade com a Constituição e com as Convenções internacionais.
Formado o contexto, a pesquisa justifica-se pela necessidade de desenvolvimento de um estudo que esclareça pontos importantes acerca desta temática, como o seguinte problema: como pode ser operacionalizado o controle de convencionalidade e como se deu sua aplicação pelo TST como forma de proteção à dignidade da mão de obra humana frente à possibilidade de terceirização de atividade-fim?
Para isso, são abordados os principais aspectos referentes ao tema, como o controle de convencionalidade, sua aplicação no sistema brasileiro e as convenções e recomendações da OIT como instrumento de efetivação dos direitos humanos, com a análise de sua aplicação pelo TST no case, corroborando a decisão proferida pelo TRT/3, objetivando-se, ao final, demonstrar que o sistema jurídico interno não mais deve compatibilizar-se só à Constituição, mas também aos instrumentos internacionais, o que impediu que o trabalho humano fosse tratado como mercadoria, sinalizando o entendimento jurisprudencial brasileiro, principalmente frente à possibilidade de aprovação do polêmico Projeto de Lei nº 4.330/2004, que permite que as empresas possam terceirizar a atividade-fim.
O controle de convencionalidade ainda é um instrumento relativamente pouco conhecido da doutrina brasileira e dos operadores do direito de um modo geral.2 Ainda pouco estudado nos bancos escolares no cenário brasileiro e seu desuso nada mais demonstra do que a dificuldade de compreensão de um direito como sistema, advinda de uma cultura de fragmentação3.
Ele nasce da necessidade de observância das normas internacionais (pactos, tratados, convenções, acordos, dentre outros) de que o Estado seja parte (pacta sunt servanda), constituindo-se como um meio de dar-lhes efetividade diante da manifestação de vontade (liberum consensus) e seu natural comprimento (bonam fidem) por parte do signatário. Estes princípios, universalmente reconhecidos, são as bases preambulares da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados4.
Frente a isso, entendemos que o Estado está diante de um novo paradigma vertical de conformação de suas normas. Significa dizer que, além da conformidade à norma constitucional, os atos legislativos, administrativos e judiciais devem conformar-se também às normas convencionais, as quais, tratando-se de direitos e garantias, ou possuem status de normas materialmente constitucionais5 (Art. 5º, § 2º, da Constituição) ou formalmente equivalentes às emendas constitucionais (Art. 5º, § 3º, da Constituição).
Concordando-se com Mazzuoli, embora fosse possível defender a desnecessidade de um controle específico de convencionalidade, pois se estaria falando, em última análise, de controle de constitucionalidade, uma vez que as normas internacionais sobre direitos humanos teriam status (materialmente ou formalmente) constitucional, dizemos que é necessária a sua sistematização. Isso porque, mesmo que ele também deva ser aplicado pela jurisdição constitucional, a referência à expressão “controle de constitucionalidade” deve ocorrer quando se tratar de norma propriamente constitucional (diga-se: do texto constitucional em sentido estrito)6.
Muito embora se reconheça a dificuldade de um controle preventivo de convencionalidade, especialmente no sistema federativo adotado pela República brasileira, com competências legislativas exclusivas, privativas, concorrentes, comuns e suplementares, entre todos os entes federativos7, os instrumentos internacionais que versem sobre direitos humanos devem ser objeto paradigmático por ocasião da produção legislativa.
Da mesma forma, os atos administrativos, que até pouco tempo eram dotados de mera legalidade e que, a muito custo, passaram a ser objeto de análise (administrativa e jurisdicional) de constitucionalidade (em virtude do recente fenômeno da constitucionalização do direito administrativo), devem ser compatibilizados às normas convencionais, que estão abrangidas pelo conteúdo do princípio da juridicidade.
Não se pode desconsiderar que o Estado brasileiro, ao estabelecer em sua Constituição (Art. 5º, § 2º), que os direitos e garantias nela expressos “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, comprometeu-se a observar e cumprir os dispositivos internacionais de que é signatário, no sentido da máxima efetivação dos direitos e garantias ali previstos.
O parágrafo 3º, inserido pela Emenda Constitucional nº 45/2004, operacionalizou a incorporação dos instrumentos que versem sobre direitos humanos8, estabelecendo que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”9.
A presença de normas de reconhecimento e aceitação do direito internacional nestas Constituições reforçam a força normativa dos direitos previstos e assegurados nos instrumentos de que os respectivos Estados são partes, os quais são assegurados não apenas pela jurisdição interna, mas também por tribunais internacionais - incluindo-se os de atuação regional10.
Assim é que, como se pode falar em um controle interno preventivo11 de convencionalidade dos atos normativos (realizado pelo Poder Legislativo - por ocasião do recebimento da propositura do projeto; análise pela CCJ; análise pelo plenário - e pelo Poder Executivo - por ocasião da possibilidade de veto), pode-se inferir também um controle interno repressivo concentrado e difuso de convencionalidade, como se passará a expor.
O controle interno difuso de convencionalidade é aquele aplicado internamente pelos juízes e tribunais nacionais, dentro de sua respectiva competência e em conformidade com os procedimentos previstos na ordem jurídica, confrontando-se a norma pátria às convenções internacionais de que o Estado seja parte12. Isso porque a inobservância às normas convencionais ou à interpretação dada a estas pelos Tribunais Internacionais responsáveis pelo zelo de sua efetividade e cumprimento (a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos), acarretará a responsabilização estatal13.
No Brasil, todo e qualquer juiz ou tribunal, mesmo em sede de jurisdição ordinária, tem o dever (ex officio) de analisar a convencionalidade da norma interna14. Salientamos, porém, que, no caso brasileiro, a não arguição da inconvencionalidade da norma por parte do advogado pode ferir, em tese, princípio imperativo à sua conduta, qual seja, o de “empenhar-se na defesa das causas confiadas ao seu patrocínio, dando ao constituinte o amparo do Direito e proporcionando-lhe a realização prática de seus legítimos interesses”15.
Reconhecemos que o direito convencional causa impactos em um contexto não familiarizado. O primeiro (objetivo) é de ordem normativa, que impõe o desafio de sua aplicação/aceitação no ordenamento interno (a exemplo da hierarquia dos tratados). O segundo (subjetivo) é a imposição de que os operadores do direito, os juízes, por exemplo, devem se preparar e conhecer, para poder operar o corpus iuris convencional. Estes dois marcos conduzirão a outros dois impulsos, que constituem-se na aplicação de ofício do direito convencional por parte do juiz e o afastamento da aplicação de normas nacionais julgadas inconvencionais16.
O controle difuso vem, todavia, sendo aplicado, ainda que timidamente e de forma corajosa17, pelos juízes e tribunais. Dentre os Tribunais Superiores, o destaque se dá ao Tribunal Superior do Trabalho, o qual tem apreciado a convencionalidade das normas pátrias, frente às convenções da Organização Internacional do Trabalho, a exemplo da decisão objeto de análise do presente artigo.
Já o controle interno concentrado de convencionalidade, por sua vez, deve ser realizado pela jurisdição constitucional brasileira, de forma complementar ou principal. A primeira deve ser realizada por ocasião da apreciação das ações de controle concentrado de constitucionalidade, como a Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI ou ADO) e a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC). Neste caso, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar a questão constitucional, não poderá deixar de, conjuntamente, mesmo que de forma complementar, apreciar também a convencionalidade da norma atacada, por força do § 2º, do Art. 5º, da Constituição Federal.
Não nos parece haver possibilidade de propositura de ADI ou ADC com propósito específico de apreciar a (in)convencionalidade, por si só, de norma pátria, frente aos tratados internacionais sobre direitos humanos não aprovados conforme o procedimento especial previsto no § 3º, do Art. 5º, da Constituição Federal, diferentemente do que ocorre com aquelas aprovadas na forma mencionada, uma vez que passarão a ter equivalência às emendas constitucionais18.
Isso porque, concordando-se com Mazzuoli, o Art. 102 da Constituição, após a inserção do referido parágrafo no art. 5º, deve ser interpretado de forma extensiva, a fim de contemplar a “guarda da constituição” e, logicamente, as normas a ela equivalentes19. Assim, restaria possível a propositura das ações de controle concentrado tendo como parâmetro a norma internacional, equivalente à constitucional (atualmente, só a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, eis que o coro especial foi inserido pela Emenda Constitucional nº 45/2004)20.
Já a aferição da convencionalidade da norma infraconstitucional frente aos tratados internacionais anteriores à inserção do Art. 5º, § 3º (antes, portanto, à supra referida emenda), a nosso ver, pode se dar por meio de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), ou seja, pode ser arguida de forma concentrada, junto ao Supremo Tribunal Federal, como objeto principal da ação, por força do § 2º do Art. 5º da Constituição Federal21. Isto porque, em razão da natureza da ADPF, podem ser levados à apreciação do STF tanto os atos normativos federais, quanto estaduais e municipais22.
Em outras palavras, significa dizer que, por intermédio da ADPF, se poderia realizar um controle de convencionalidade concentrado interno no Supremo Tribunal Federal, no sentido de apreciar a convencionalidade de ato do Poder Público, proposta especificamente com esse fim, tendo como base não apenas a violação de preceito fundamental constante em tratado incorporado pelo Art. 5º, parágrafo 3º (com equivalência às normas constitucionais e, portanto, merecedoras da mesma proteção), mas também aos relativos aos direitos e garantias previstos em tratados internacionais de que o Brasil seja parte, por força do § 2º, do Art. 5º, tudo da Constituição Federal de 1988.
Defendemos que, por intermédio da ADPF, utilizando-se do preceito fundamental contido nessa cláusula de abertura constitucional (Art 5º, § 2º) - que serve como uma “porta” ao “bloco de constitucionalidade”23, se aferiria a compatibilização da norma pátria ao dispositivo convencional paradigmático, o qual integra o referido bloco. Dito de outro modo, não se estaria a confrontar a norma infraconstitucional ao § 2º, mas à norma internacional constante no bloco, utilizando-se como fundamento não a violação do § 2º, mas a norma material constante no tratado, conforme exposto na figura exposta na figura abaixo:
De outro lado, o controle externo concentrado de convencionalidade é aplicado pelas Cortes Internacionais, a exemplo da Corte Interamericana de Direitos Humanos - no caso da Convenção Americana sobre Direitos Humanos24, que o realiza tanto em sede consultiva quanto contenciosa, a fim de determinar a compatibilidade ou não do direito interno (ou atos gerais dos agentes pertencentes aos Estados-partes) às disposições convencionais, determinando, por sentença, que o Estado-parte, como obrigação de resultado, modifique, suprima ou derrogue suas normas ou atos julgados inconvencionais25.
Afirmamos, por conseguinte, como tem sido construído pela CIDH, que o controle de convencionalidade implica a necessidade de uma hermenêutica de integração entre a norma internacional e o ordenamento jurídico interno, a fim de reconhecer e efetivar os direitos e compromissos assumidos pelo Estado-parte26, no momento da sua ratificação27. Nesse sentido, o Art. 2º do Pacto de San José da Costa Rica prevê expressamente o dever de adotar disposições de direito interno (legislativas ou de outras naturezas) para que os Estados-partes tomem as medidas necessárias para efetivar os direitos e liberdades pactuados28.
Como se disse na nota explicativa anterior, mesmo que os instrumentos internacionais tragam cláusula específica sobre a compatibilização do ordenamento interno, como norma geral, o artigo 27 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de que o Brasil é signatário, já impõe este dever. Assim ocorre com as convenções da Organização Internacional do Trabalho, as quais têm sido, cada vez mais, utilizadas como fundamento de decisões pelo Tribunal Superior do Trabalho, as quais serão objeto de estudo na seção a seguir.
O Brasil é membro fundador da Organização Internacional do Trabalho (OIT), a qual é resultante do Tratado de Versalhes, assinado em 28 de julho de 1919 e promulgado pelo Decreto nº 13.990, de 12 de janeiro de 1920. Desde então, o Estado brasileiro ratificou 96 convenções internacionais da OIT, tratados internacionais abertos à ratificação dos Estados-membros, elaborados nas Conferências Internacionais do Trabalho, conforme o exposto da Constituição da OIT, aprovada na 29ª Conferência Internacional do Trabalho em 1946, promulgada no Brasil pelo Decreto nº 25.696, de 20 de outubro de 194829.
Mazzuoli destaca que a Conferência Internacional do Trabalho poderá adotar, além das Convenções, as Recomendações e Resoluções (anexas àquelas)30. O diferencial entre as Convenções e as Resoluções é que, enquanto as primeiras constituem-se em tratados internacionais sujeitos à ratificação, para surtirem efeitos normativos internos, as segundas são sugestões aos Estados-membros, para que procedam às devidas alterações legislativas, no sentido de compatibilizar a ordem interna aos preceitos da OIT.
Há de se dizer que “as convenções ratificadas (e em vigor internacional) constituem fonte formal de Direito, gerando para os cidadãos direitos subjetivos, que podem ser imediatamente aplicáveis”31, seja perante os seus respectivos órgãos de aplicação, seja por qualquer tribunal ou juízo.
Reconhece-se, todavia, que “a aplicação imediata das convenções ratificadas tem maior possibilidade jurídica de concretização nos países cujas Constituições adotam o monismo jurídico na regência das relações entre o Direito interno e o Direito Internacional (como é o caso do Brasil)”32.
Sem adentrar na discussão acerca de se todos os direitos trabalhistas (fundamentais) são direitos humanos33, resta patente que as convenções internacionais da OIT são tratados sobre direitos humanos, possuindo papel essencial na sua internacionalização34.
No Brasil, a posição hierárquica dos tratados internacionais que versem sobre direitos humanos, que antes dividia monistas e dualistas35 foi assentada pela Constituição Federal (Emenda Constitucional nº 45/2004). Mesmo assim, o debate continuou, referente aos tratados ratificados pelo Estado brasileiro em momento anterior à vigência da referida Emenda, sem o quórum especial, a exemplo da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
O Supremo Tribunal Federal atribuiu, por sua vez, a estes instrumentos, após intensos debates, o status de supralegalidade. Tratou-se do julgamento, pelo Plenário, do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP, ocorrido em 3 de dezembro de 2008, de relatoria do Ministro Cezar Peluso. A controvérsia centrava-se no status assumido pelo Pacto de San Jose da Costa Rica no ordenamento jurídico pátrio, pois havia sido incorporado antes da promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004.
Para o Ministro Gilmar Mendes, o primeiro a enfrentar e introduzir o debate acerca do tema, a introdução do §3º no Art. 5º da Constituição não deixa outra interpretação senão “uma declaração eloquente de que os tratados já ratificados pelo Brasil, anteriormente à mudança constitucional, e não submetidos ao processo legislativo especial de aprovação no Congresso Nacional, não podem ser comparados às normas constitucionais”36.
Assim, Gilmar Mendes desenvolveu sua tese no sentido de que “parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos” aprovados sem o coro especial, sendo este o status atribuído ao Pacto de San José da Costa Rica37. O Ministro alerta, entretanto, que o legislador constitucional não fica impedido de submetê-lo, “além de outros tratados de direitos humanos, ao procedimento especial de aprovação previsto no Art. 5º, § 3º, da Constituição, tal como definido pela EC nº 45/2004, conferindo-lhes status de emenda constitucional”38.
Assentou-se, com esse julgamento, que, em silenciando a Constituição acerca da posição normativa dos tratados internacionais de direitos humanos aprovados antes da Emenda Constitucional nº 45, devido a sua importância, seu caráter é de supralegalidade39. Tornou-se visível, a partir dos votos dos Ministros, que a principal questão do julgamento assentou-se no estabelecimento de uma posição hierárquica entre os dispositivos internacionais e a Constituição, predominando, inclusive, sobre a construção de uma solução para o caso concreto sub judice (no caso, a prisão civil do depositário infiel).
Já o caso em análise no presente trabalho retrata o acórdão proferido pela 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho, no Agravo de Instrumento em Recurso de Revista nº TST-AIRR-1269-81.2013.5.03.0011, julgado em 30 de abril de 2014, de relatoria da Ministra Dora Maria da Costa, apresentado pelas empresas Telemar Norte Leste S.A. e Contax S.A., questionando a decisão proferida pelo tribunal a quo (Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região), que inadmitiu Recurso de Revista contra acórdão proferido em favor do trabalhador Maurício Carneiro Távora, que reconhecia como ilícita a terceirização do serviço denominado call center, por entender que este se relaciona à atividade-fim das concessionárias dos serviços de telecomunicações.
As empresas agravantes fundamentaram seu recurso basicamente no argumento de que a terceirização em atividade-fim não pode ser considerada ilícita, eis que encontra autorização no Art. 94, inciso II, da Lei nº 9.472/97 (que dispõe, dentre outros fins, sobre os serviços de telecomunicações). O dispositivo prevê que, no cumprimento de seus deveres, a concessionária poderá “contratar com terceiros o desenvolvimento de atividades inerentes, acessórias ou complementares ao serviço, bem como a implementação de projetos associados”40.
A Ministra relatora foi deferente à decisão do TRT/3, que desconstituiu a argumentação legalista das recorrentes, explanando que “a análise da licitude de qualquer conduta não se esgota com a singela leitura de leis ordinárias, é mister que o aplicador do direito se debruce sobre a Constituição e, também, sobre as normas internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”41. Com isso, estabeleceu-se que, além do crivo de constitucionalidade, as leis devem passar pelo crivo de convencionalidade, estabelecendo-se, assim, uma dupla aferição de compatibilidade vertical.
No julgado, destacou-se que, muito embora a Lei 9.472/97 autorize a terceirização de atividades inerentes, a interpretação destas atividades não pode ser meramente retirada de dicionários, mas sim do objeto social da empresa, sendo que, caso venha a encontrar-se a atividade terceirizada nesse cerne, a contratação será ilícita42.
Significa que a compatibilização da lei ordinária encontra parâmetros constitucionais e convencionais. Muito embora se compreenda que o fundamento do TRT/3 baseou-se, sobretudo, na hierarquia Constitucional, ao destacar que “no ápice da pirâmide de Kelsen, encontramos a Constituição”43, o tribunal invocou como paradigmas constitucionais os fundamentos republicanos da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os quais foram mantidos pelo TST44.
A fundamentação do acórdão atacado baseou-se principalmente na dignidade do trabalhador, a qual o faz “merecedor de respeito pela ordem jurídica e pelos demais sujeitos de direito, ou ainda, a não instrumentalização do ser humano, isto é, sua não utilização como simples meio de aquisição de riqueza”45.
O Tribunal a quo assentou o entendimento de que a terceirização em atividade-fim fere o valor social do trabalho, “pois o empreendimento econômico transmite para um terceiro os fins que se propôs a executar, utilizando a mão de obra alheia em seus próprios misteres, o que acarreta extremada instrumentalização dos trabalhadores”46, argumentação mantida pela Relatora do Agravo de Instrumento no TST.
Além disso, entendeu-se que a terceirização de atividade-fim, utilizando-se a mão de obra humana como mercadoria, conforme o julgado, além de afrontar a Constituição, deve ser analisada pelo crivo da convencionalidade, frente à Constituição da OIT, aprovada, como já referido neste trabalho, na 29ª Conferência Internacional do Trabalho47.
Assim, o TST manteve inalterada a decisão do TRT/3, a qual reforçou que, seguindo-se os precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 87.585/TO e RE 466.343/SP), os tratados e convenções sobre direitos humanos de que o Brasil seja parte possuem, no mínimo, posição supralegal48, fazendo com que as normas ordinárias que os afrontem não sejam aplicáveis49.
Nesse sentido, surge, além da Constituição, a norma paradigmática convencional, prevista na primeira parte da Declaração da Filadélfia de 1944, parte integrante da Constituição da OIT, a qual torna-se ponto impeditivo para que o trabalho humano seja tratado como mercadoria50.
Dessa forma, os Ministros da 8ª Turma do TST mantiveram a decisão a quo que reconheceu a ilicitude do contrato entre as empresas, uma vez que fundado em norma ordinária visivelmente inconstitucional e inconvencional, conhecendo do agravo interposto pelas empresas Telemar Norte Leste S.A (tomadora de serviços) e Contax S.A (prestadora de serviços), mas não lhe dando provimento, mantendo a decisão favorável ao trabalhador Maurício Carneiro Távora.
Percebeu-se, por fim, que, além dos fundamentos republicanos da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho, previstos na Constituição, o TRT/3 buscou a vedação contida na norma internacional, que não encontra dispositivo semelhante na Constituição da República, sendo ponto fundamental para reconhecer a incompatibilidade e aplicar efeito paralisante à norma ordinária, realizando, assim, um controle interno difuso de convencionalidade no caso concreto.
Como visto, o controle de convencionalidade é um instrumento que, muito embora timidamente, vem sendo desenvolvido por parte da doutrina e aplicado (em algumas decisões, como é o caso analisado no presente trabalho) por juízes e tribunais brasileiros. Ele decorre da necessidade de observância dos instrumentos internacionais de que o Brasil seja parte, uma vez que estes são incorporados ao direito pátrio, seja como normas com status materialmente ou formalmente constitucional.
A operacionalização desta espécie de controle ainda carece de estudos que elucidem aos operadores do direito a forma de sua aplicação, mormente em um sistema complexo como o brasileiro, que admite, além do controle concentrado de constitucionalidade - exercido pelo Supremo Tribunal Federal, em nível federal, e pelos Tribunais de Justiça dos Estados, em nível estadual - o controle difuso, aplicado pelos juízes e tribunais ordinários.
Nesse sentido, impera dizermos que a norma internacional, tenha ela status constitucional ou supralegal, deve ser levada em consideração, quando da apreciação da compatibilidade da legislação ordinária. Significa expressar que, além de seu controle frente à Constituição, deve ocorrer seu controle frente às convenções internacionais de que o Estado brasileiro seja parte (controle de convencionalidade).
Dentre os Tribunais Superiores brasileiros, o Tribunal Superior do Trabalho vem se destacando na aplicação do controle de convencionalidade, principalmente ao se utilizar das Convenções Internacionais da OIT como fundamento para suas decisões. Foi assim ao reconhecer a possibilidade de percepção simultânea dos adicionais de insalubridade e periculosidade e, no caso analisado neste trabalho, ao julgar inconvencional norma ordinária que, em tese, permitia a terceirização de atividade fim.
Conforme apontado, a Declaração da Filadélfia, parte integrante da Constituição da OIT, veda terminantemente que o trabalho humano seja tratado como mercadoria. Se fosse permitida a terceirização de atividade fim, entendeu o TST, corroborando com o TRT/3, que se estaria dando este tratamento à mão de obra humana. Isso revela outro ponto visível no cenário brasileiro: a falta de interlocução entre os Poderes. Dizemos isso porque, ao apreciar o polêmico projeto de lei nº 4.330/04, que versa sobre a possibilidade de terceirização de atividade-fim, este posicionamento do Tribunal não foi levado em conta pela Câmara dos Deputados.
Por derradeiro, verificamos que no case Carneiro Távora v. Telemar Norte Leste e Contax, o Tribunal Superior do Trabalho brasileiro, corroborando com a decisão proferida pelo TRT/3, manteve a decisão que, com o objetivo de proteção ao trabalhador, aplicou o controle de convencionalidade em reverência ao compromisso internacional assumido pelo Estado brasileiro por ocasião da ratificação da Constituição da OIT, dando interpretação convencional ao dispositivo legal (inciso II, do artigo 94, da Lei nº 9.472/94), no sentido de que não se pode abstrair qualquer sentido que venha a permitir a terceirização de atividade-fim.