Resumo: O presente artigo estuda o problema proposto no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4439, de autoria da Procuradoria Geral da República. Versa a demanda a respeito do polêmico acordo entre o Estado brasileiro e a Santa Sé, que consiste na expressão categórica pela via do Decreto Legislativo que o ensino religioso católico constitui disciplina regular de matrícula facultativa no ensino fundamental das escolas públicas. O parquet argumenta que tal situação vai de encontro ao ditame constitucional da laicidade estatal e aponta descompasso frente a configuração plural do direito à educação constitucionalmente delineada. Após considerações doutrinárias, foi possível concluir que a laicidade aparece como limite à interferência estatal no âmbito da intimidade-autonomia da pessoa, daí a necessidade de um ensino religioso não-confessional. Na ausência de um plano pedagógico que comporte um ensino plural, não há o que falar na possibilidade de oferta da disciplina.
Palavras-chave: Ensino religiosoEnsino religioso,escolas públicasescolas públicas,pluralismo educacionalpluralismo educacional,laicidade estatallaicidade estatal,autonomia individualautonomia individual.
Abstract: This paper studies the problem proposed under the direct unconstitutionality action nº 4439, filed by the Attorney General of the Republic. It is regarding the controversial agreement between the Brazilian State and the Holy See, which is the categorical expression by means of Legislative Decree that Catholic religious education must be a regular discipline of voluntary enrollment on primary education in public schools. The parquet argues that this situation goes against the constitutional rule of the secularity of state and points the mismatch forwards the plural configuration of the right to education as outlined in the Constitution. After doctrinal considerations, it was concluded that the secularity appears as limit face state interference within the intimacy-autonomy of the personal sphere, hence the need for a non-denominational religious education. In the absence of a pedagogical plan that presents a plural education, there is nothing to talk about the possibility of offering the course.
Keywords: Religious education; Public schools, Educational pluralism, Secularity of state, Personal autonomy.
Artigos
O STF e o ensino religioso em escolas públicas: pluralismo educacional, laicidade estatal e autonomia individual
The STF and the religious education in public schools: educational pluralism, secularity of state and personal autonomy
Recepção: 07 Agosto 2017
Aprovação: 27 Agosto 2017
Em 02 de agosto de 2010, a Procuradoria-Geral da República - PGR propôs Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 4439) para questionar o acordo firmado entre o Estado brasileiro e a Santa Sé. Tem por objeto o art. 11, §1º do Decreto n. 7107/2010 que dispõe: “O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental (...)”.
Em síntese, a Procuradoria Geral da República - PGR argumenta que apesar de não ser viável - em nome da laicidade estatal - a adoção de uma perspectiva que impeça ou limite em demasia o ensino religioso em escolas públicas, também não é possível fazer uma leitura unilateral do art. 210, §1o da Constituição1 onde a escola pública acabe transformada em um espaço de catequese e proselitismo religioso de qualquer ordem.
Defende o parquet que2:
Pede, para conformar a questão, que o Supremo Tribunal Federal - STF adote a técnica da interpretação conforme a Constituição do art. 33, caput e §§ 1º e 2º da Lei 9.394/963 para assentar que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser ministrado quando de natureza não confessional.
Com relatoria do Min. Luís Roberto Barroso, foi convocada audiência pública com representantes de entidades educacionais e religiosas para exposição e debate do objeto da demanda. Realizada em 15 de junho de 2015, contou com posicionamentos que podem ser destacados em três grandes grupos, a saber: (i) os totalmente contrários ao ensino religioso em escolas públicas, entendimento manifestado por Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação - CNTE, Confederação Israelita do Brasil - CONIB, Convenção Batista Brasileira - CBB e Federação Espírita Brasileira - FEB; (ii) os que são contrários ao ensino de natureza confessional, que se viram representados pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação - CONSED; (iii) e os que são totalmente a favor do ensino confessional ou ecumênico, voz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB e da Federação das Associações Muçulmanas do Brasil - FAMBRAS.
O presente estudo tem por finalidade contribuir para o debate em torno do problema ensino religioso em escolas públicas, e, para tanto, faz uso de abordagem metodológica indutiva, onde foi possível alcançar uma regra geral a partir do caso específico. Os argumentos suscitados pela PGR na inicial da ADI 4439 são problematizados com elementos da teoria dos direitos fundamentais e o âmbito de proteção dos interesses envolvidos em juízo, quais sejam, liberdade religiosa, estado laico, pluralismo educacional e autonomia individual do aluno em cursar ou não a disciplina. Para então, ao fim, atingir uma proposta de modelo funcional para o problema em questão.
O direito à educação é fetiche institucional desde a primeira vez em que apareceu escrito no texto constitucional brasileiro de 19344. Desde então pronunciado como de claro âmbito prestacional do Estado em solidariedade com a família e a sociedade em geral, a educação no Brasil foi objeto de grandes projetos legislativos com ideário revolucionário, e até mesmo do mero controle militar repressivo, com o processo de sucateamento do ensino público e dos marcos de lei e ordem5 - doutrinação militaresca que nesse particular se opunha ao ensino de caráter emancipatório e plural.
O Estado Constitucional quando voltado a um modelo de justiça social é de especial relevância quando do trato da materialização do direito à educação, isto pois:
“cada esfera de la vida social se ve influida em mayor o menor medida por la actividad estatal”, no que a “existencia material de todos depende considerablemente de los efectos queridos, asumidos o invitables de la política estatal”, sendo que “facultades personales y el mérito no bastan para el logro de los próprios objetivos existenciales”, é necessário “apoyo estatal, a menudo de instituciones estatales para poder realizar a la libertad constitucionalmente garantizada de ejercer una profesión y para obtener la formación necesaria a tal fin6.
Daí a necessidade de um sólido arcabouço constitucional que seja capaz de materializar os ditames do Estado Social e permitir, assim, um sistema educacional minimamente bem estruturado e de qualidade, que permita a realização de perspectiva subjetiva e objetiva dos direitos sociais7.
O art. 205 da Constituição dispõe que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família, e visa o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania, além da qualificação para o trabalho8. Também no corpo constitucional, o art. 214 determina que legislação própria deve estabelecer o Plano Nacional de Educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação para assegurar a manutenção e desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis, etapas e modalidades e que tem por finalidade: (i) erradicar o analfabetismo; (ii) universalizar o atendimento escolar; (iii) melhorar a qualidade do ensino; (iv) formar para o trabalho; (v) a promoção humanística, científica e tecnológica do país; (vi) aplicação dos recursos públicos em educação conforme proporção ao Produto Interno Bruto do país. Para materializar o ditame constitucional, foi estabelecido um complexo normativo (legislações ordinárias e planos nacionais para o desenvolvimento) que apresenta na Lei de Diretrizes e Bases da Educação o núcleo infraconstitucional do sistema de proteção e eficácia, enquanto que o Plano Nacional de Educação funciona como princípio informativo e meta de realização.
Em 25 de junho de 2014, a Lei nº 13.005 promulgou o primeiro Plano Nacional de Educação decenal do Brasil, e estabeleceu vinte metas a serem cumpridas num plano interfederalizado para o aperfeiçoamento do ensino no país, todas as quais passam a compor o núcleo mínimo de proteção do direito à educação. Destaca-se a meta nove: “elevar a taxa de alfabetização da população de quinze anos ou mais para 93,5 por cento até 2015 e, até o final da vigência deste PNE, erradicar o analfabetismo absoluto e reduzir em 50 por cento o analfabetismo funcional”9.
Ao lado do direito fundamental à saúde10, o direito à educação é também comum espaço proativo de atuação dos tribunais superiores para a garantia dos efeitos constitucionalmente delineados, o Supremo Tribunal Federal já decidiu, nessa matéria - para fins exemplificativos - que: é inconstitucional a cobrança de taxa para matricula ou rematrícula no ensino superior em universidades federais11, que resultou na edição da Súmula Vinculante nº 12; é direito fundamental e indisponível dos cidadãos e por isso o dever do Estado é propiciar meios adequados para o seu exercício, no que a omissão administrativa importa afronta à Constituição12; é direito público subjetivo de crianças até cinco anos de idade disporem de vagas em creches e pré-escolas sob a tutela do poder estatal sem prévia avaliação administrativa13 meramente discricionária; é constitucional a política de cotas raciais para acesso ao ensino superior14-15; dentre muitos outros.
No plano internacional, diversos são os pactos, convenções e tratados - dos quais o Brasil é signatário - que incluem a educação como direito humano de todo e qualquer indivíduo, apresentado como de caráter universal - é fator indispensável para o desenvolvimento da pessoa e do país, seja a nível social ou mesmo científico-tecnológico. É dizer, “não há país no mundo que não garanta, em seus textos legais, o acesso de seus cidadãos à educação básica”, isto, pois “a educação escolar é uma dimensão fundante da cidadania, e tal princípio é indispensável para políticas que visem à participação de todos nos espaços sociais e políticos e à (re)inserção no mundo profissional”16.
Porém, não somente: insistir no conjunto solidário Estado-sociedade-família para materialização da educação no espaço cívico, é meio próprio de reconhecer que há uma interligação necessária entre os sentidos constitucionalmente atribuídos ao instituto jurídico educação. Isto é, os objetivos e princípios informadores - preparo da pessoa para o exercício da cidadania, pleno desenvolvimento, qualificação para o trabalho - são de ordem antropológica-cultural, política e profissional17, configuração somente possível de obter êxito num contexto de participação solidária, no qual o Poder Público, a sociedade em geral, e a família do cidadão estejam de mãos dadas voltados a garantir o melhor sistema possível18 para o pleno desenvolvimento da pessoa19, capaz de abranger a maior quantidade possível de aspectos da vida escolar, desde a formação dos professores20, até o comportamento do aluno21. O resultado tem impacto direto no livre desenvolvimento da personalidade do cidadão22 e no desenvolvimento do país23.
Na Constituição brasileira, o Estado Social de típica prestação pública fundado num modelo marxista solidário (art. 6º) convive com a livre iniciativa enquanto fundamento da ordem econômica (art. 170), é também o espaço em que a propriedade é garantida (art. 5º, XXII) mediante o cumprimento da função social (art. 5º, XXIII), onde a proteção ao meio ambiente equilibrado (art. 225, caput) divide espaço com o desenvolvimento nacional (art. 3º, II), dentre tantas outras contradições ideológicas aparentes. Tal configuração só é possível porque o Brasil é estruturado e fundado como uma República federativa de ordem pluralística (art. 1º, V), no sentido de permitir uma pluralidade de concepções políticas que buscam respaldo constitucional na representação de seus interesses24, bem como em visões diversas de mundo político-institucional ou de caminhos diferentes para alcançar um bem comum público.
A proposital confusão ideológica do texto constitucional reflete de modo perceptível na estruturação do direito à educação quando estabelece o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas e a coexistência de instituições públicas e privadas25 como princípio norteador do ensino (art. 206, III):
O princípio do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas está compreendido no princípio da liberdade de ensinar e divulgar o pensamento, visto que a ideia mesma de liberdade implica o respeito à diversidade de pensamento. São diversos os aspectos que envolvem o princípio do pluralismo, desde o reconhecimento das diferenças regionais e sociais, disposto no art. 3º da Constituição, passando pelas garantias do ensino religioso facultativo e das línguas indígenas maternas no ensino fundamental, constantes do art. 210, § 1º e 2º da Constituição, e pelo ensino da História do Brasil a partir das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia (...)26.
Para além disso, o pluralismo pode ser ideológico que “designa a variedade de crenças, de concepções éticas e de valores que os indivíduos ou os grupos têm por fundamentais”27, e institucional que se refere ao desenvolvimento das autonomias individuais e o “reconhecimento dos direitos das ‘formações sociais’, quais sejam, a família, as confissões religiosas, comunidades de trabalho, a escola, etc.”28. Ao consagrar tal modelo:
A Constituição opta, pois, pela sociedade pluralista, que respeita a pessoa e sua liberdade, em lugar de uma sociedade monista, que mutila os seres e engendra as ortodoxias opressivas. O pluralismo é uma realidade, pois a sociedade se compõe de uma pluralidade de categorias sociais, de classes, grupos sociais, econômicos, culturais e ideológicos. Optar por uma sociedade pluralista significa acolher uma sociedade conflitiva, de interesses contraditórios e antinômicos. O problema do pluralismo está, precisamente, em construir o equilíbrio entre as tensões múltiplas, e por vezes contraditórias; em conciliar a sociabilidade e o particularismo; em administrar os antagonismos e evitar divisões irredutíveis (…). De tudo isso se deduz a importância de ter a Constituição conjugado a concepção de uma sociedade pluralista com as de uma sociedade livre, justa, fraterna e solidária (preâmbulo e art. 3º, I), pois, se o pluralismo é uma concepção liberal, o solidarismo, de fundo socialista, aponta para uma realidade humanista de fundo igualitário, que supõe a superação dos conflitos, e, assim, fundamenta a integração social, que evita antagonismos irredutíveis que destroem o princípio pluralista. Forma-se, assim, uma sociedade integrada (…). Se tais pressupostos faltarem, o pluralismo resultará desastroso e não se manifestará como um princípio democrático29.
Só é possível crer na manutenção de uma sociedade plural dentro de um sistema constitucional capaz de materializar a educação enquanto direito fundamental igualmente pluralista, que forme um ser político qualificado em todas as esferas possíveis de realização da vida pública e privada - ao fim de ordenar o caos ideológico típico de um modelo democrático crítico30, aberto, livre e, portanto, laico.
Por ser temática de ordem sensível ao íntimo das pessoas, não pode ser tratada de modo maniqueísta31, judaico-cristão32, falacioso e tendencioso a uma determinada religião, vez que resulta em incursões de mera opinião e que por isso mesmo fogem do caráter científico da escrita33, algo que a doutrina sobre o tema precisa evoluir, sob pena de parecer folhetim que expressa a crendice do autor34. Da mesma forma que não podem partir da revisão bibliográfica da doutrina lusitana ou espanhola, vez que ambas são fortemente influenciadas - até os dias atuais - pela Igreja Católica35. A liberdade religiosa como ponto de partida e manutenção de todo sistema jurídico de natureza laica é fruto do estado liberal (burguês)36, e é um dos componentes do mito do Direito37. Propor constitucionalmente uma organização estatal sem religião oficial38 e ir além ao declarar a liberdade de crença (e descrença)39, implica em congregar os cidadãos a um projeto de estado sem privilégios por força do mero credo de um grupo de pessoas, ainda que majoritário no seio da sociedade40. Já se foi o tempo em que eram exigidos certificados de catolicidade para o exercício da advocacia ou de qualquer outra profissão41.
Ainda no mesmo sentido, a escolha do constituinte originário brasileiro é justificada pois:
A religião é um dos fenômenos que dificulta a internacionalização do direito, especialmente nos hard cases diretamente ligados aos direitos humanos, como no caso do aborto e da eutanásia, por terem relação com os domínios da vida. Vários são os mecanismos ou formas de internacionalização do direito, mas em qualquer delas se verifica que, quando o tema que se pretende internacionalizar se relaciona de forma mais direta com a religião, há uma dificuldade maior no processo.42
A religião é fenômeno que aproxima somente aqueles que compartilham de uma crença determinada, do contrário, provoca o desacordo moral razoável43, tensão paradoxal, sem resolução que possa pender para um dos lados conflitantes, daí a necessidade de afastá-la do espaço público, o que visa manter um mínimo razoável de harmonia e liberdade conforme a moral individual dentro do âmbito de conformação da juridicidade pública44, o que Waldron designaria como um desacordo filosófico sobre o bem em uma sociedade pluralística45.
A questão central é que “religious beliefs aren’t reasonable, [they] are categorical, it’s not a matter of being reasonable”46, e por tal motivo, a acomodação da crença religiosa no espaço público - seja por meio da produção legislativa ou da argumentação jurídica - é de problemática severa para fins de preservação da razão pública47, vez a dificuldade de universalização quando dentro de uma sociedade pluralística (de conflito ideológico).
A preocupação com o fenômeno religioso foi introduzida - no plano constitucional - em larga escala em textos do século XIX48, onde era possível notar um padrão franco-americano de separação total entre Estado e Igreja49 que se opunha ao modelo espanhol (que ainda era fortemente influenciado pela história inquisitiva50) de Estado confessio,51 que hodiernamente apresenta raízes profundas no constitucionalismo italiano, em especial na forma de diálogo entre Igreja e Estado, mesmo que formalmente separados52.
Iniciado ao final do Século XVII53, a contínua expansão do processo de secularização da Europa levou a Corte Europeia de Direitos Humanos - com competência para preservar a normatividade da Convenção Europeia de Direitos Humanos - a se manifestar a respeito da temática visando a melhor delimitação entre os espaços de influência da religião, no que restou claro que54:
(...) freedom of thought, conscience and religion, which went hand in hand with pluralism, was one of the foundations of a “democratic society” and that in its religious dimension that freedom was an essential part of any believer’s identity, as well as being a precious asset for atheists, agnostics, sceptics and the unconcerned. It had already held that freedom to manifest one’s religious beliefs included an individual’s right not to reveal his faith or his religious beliefs and not to be obliged to act or refrain from acting in such a way that it was possible to conclude that he did or did not have such beliefs - and all the more so when aptitude to exercise certain functions was at stake. In this case, the Court held that there had been a violation of Article 9 of the Convention, finding that requiring the applicants to reveal their religious convictions in order to be allowed to make a solemn declaration had interfered with their freedom of religion, and that the interference was neither justified nor proportionate to the aim pursued. The Court also held that there had been a violation of Article 13 (right to an effective remedy) of the Convention55.
No plano internacional, o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais estabelece que: Art. 13: 1. Os Estados Partes do presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa à educação. Concordam em que a educação deverá visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e fortalecer o respeito pelos direitos humanos e liberdades fundamentais. Concordam ainda em que a educação deverá capacitar todas as pessoas a participar efetivamente de uma sociedade livre, favorecer a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e entre todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
E vai além ao determinar a autonomia laica dos estudantes e do poder familiar:
Art. 13: 1. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais de escolher para seus filhos escolas distintas daquelas criadas pelas autoridades públicas, sempre que atendam aos padrões mínimos de ensino prescritos ou aprovados pelo Estado, e de fazer com que seus filhos venham a receber educação religiosa ou moral que esteja de acordo com suas próprias convicções.
O plano normativo acima parece integrar, por força do art. 5o § 2o da Constituição56, os direitos e garantias fundamentais - norma materialmente constitucional - e que deve funcionar, in casu, como um desdobramento/complemento lógico do art. 210, § 1o57, no que a leitura do dispositivo deve constar da seguinte forma:
A disciplina “religião” no ensino fundamental de escolas públicas é matéria de matrícula facultativa, sendo direito dos pais (e dever do estado) verem os filhos receberem educação (também) conforme a sua própria convicção religiosa, dentro de um conteúdo mínimo previamente fixado pela autoridade competente.
Tal configuração somente é possível de existir no Estado laico:
Com razão em parte, aponta o Min. Barroso que, “após a Segunda Grande Guerra, a dignidade tornou-se um dos grandes consensos éticos do mundo ocidental, materializado em declarações de direitos, convenções internacionais e constituições”58. De fato, a dignidade da pessoa humana aparece consagrada em diversas declarações e convenções internacionais de direitos59. Porém, a utilização do termo não aparece somente em textos constitucionais ocidentais. Ao contrário, são diversas as constituições que, mundo afora, expressam a preocupação em preservar o entendimento do que esteja caracterizado como dignidade, elevando tal conceito ao patamar jurídico-constitucional60. A proteção à dignidade da pessoa humana é o fundamento ético mínimo de validade compartilhado por quase todos os ordenamentos jurídicos constitucionalmente organizados no pós-Segunda Guerra, por isso mesmo, integra o núcleo do constitucionalismo contemporâneo61.
Jeremy Waldron62 compila as principais vertentes doutrinárias sobre o tema da seguinte forma:
A figura 1 representa o fundamento de validade que resulta na dignidade da pessoa humana, funcionaria como uma fonte de direitos, na qual todos os demais (vida, liberdades em geral, etc.) estariam fundamentados por ela. Tal argumentação, explica o autor, é bastante comum na teoria divina (judaico-cristã) dos direitos humanos, defendida por um grupo de acadêmicos que entendem que a dignidade é um atributo divino aos seres humanos. Neste sentido, o fundamento de validade seria o valor divino concedido para a espécie.
A figura 2 apresenta a dignidade enquanto status, uma condição inseparável da humanidade. Trata-se de afirmar que existe uma relação intrínseca entre o ser humano e a dignidade. A dignidade da pessoa humana funcionaria como fundamento de validade enquanto condicionante de existência dos demais direitos, ou seja, a razão e finalidade destes seria satisfazê-la. Porém, esta não necessariamente seria a ideia subjacente a todos os direitos. Neste cenário, a dignidade da pessoa humana aparece como um direito fundamental autônomo.
A figura 3 aponta ao cenário em que a dignidade enquanto conceito jurídico seria uma condição humana baseada num entendimento filosófico-humanista, o qual também fundamentaria os demais direitos. Dessa forma, existiria uma correlação entre a dignidade e todos os demais direitos humanos no sentido de integração e satisfação mútua, coexistência hierárquica e concorrência normativa, até “transmitir a ideia de que todos os direitos são co-fundados”63.
Existe um consenso mínimo de que o conceito jurídico de dignidade humana apresentaria três status categóricos: (1) todos os seres humanos apresentam um valor intrínseco (característica interna); (2) o valor intrínseco de cada um deve ser reconhecido e respeitado pelos demais (característica externa); (3) o Estado deve existir para a satisfação do indivíduo (característica dos estado-limitado)64. Cuida-se de afirmar a existência de um entendimento consolidado na doutrina de que a dignidade da pessoa humana é constituída pelos elementos: ontológico, que reconhece o valor intrínseco do ser humano; relacional-comportamental que impõe a conduta de reconhecimento e respeito aos seres humanos uns para com os outros; e estatal, que vincula o Estado a ter o mesmo respeito e consideração pela dignidade de todos os seres humanos.
Na doutrina brasileira, Ingo Sarlet65 conceitua da seguinte maneira:
(...) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.
Também dentro dessa concepção, leciona o Min. Barroso66 que:
Para finalidades jurídicas, a dignidade da pessoa humana pode ser dividida em três componentes: valor intrínseco, que se refere ao status especial do ser humano no mundo; autonomia, que expressa o direito de cada pessoa, como um ser moral e como um indivíduo livre e igual, tomar decisões e perseguir o seu próprio ideal de vida boa; e valor comunitário, convencionalmente definido como a interferência social e estatal legítima na determinação dos limites da autonomia pessoal.
O valor intrínseco da pessoa humana vincula os particulares, o Estado e o próprio indivíduo a reconhecer e proteger um status diferenciado na convivência social. É uma espécie de direito-dever de tratamento e consideração para consigo e perante aos demais. A autonomia precisa ser entendida enquanto ação ou omissão de autodeterminação pessoal que não possa causar prejuízo à bem jurídico alheio, em conformidade com os ditames constitucionais e a legislação pertinente. Valor comunitário expressa um dever da máquina estatal de legislar o mínimo possível na esfera íntima das pessoas, conforme os ditames de proporcionalidade e razoabilidade, em adequação aos direitos fundamentais e bens jurídicos relevantes de proteção. O valor comunitário limita a autonomia individual na mesma proporção em que esta limita o primeiro. A relação é circular. Quanto maior for a expressão comunitária, menor será a liberdade do cidadão nas ações em conformidade com o ordenamento jurídico67.
Essas considerações são especialmente relevantes no estudo dos chamados casos controversos, que envolvem a ingerência estatal no âmbito íntimo das pessoas, onde o “papel adequado do Estado não é tomar partido e impor uma visão, mas permitir que os indivíduos realizem escolhas autônomas”68-69. Daí o que leva Glensy a dizer que “the right to dignity best reflects, more than any other right, the essence of being human”70, vez que comporta no núcleo de proteção aspectos caracterizadores da pessoa humana - projetos de vida, sonhos, realizações, etc. Neste sentido, a dignidade humana leva a um círculo de constante interação entre os valores intrínseco e comunitário e a autonomia individual de forma a completar a razão e o alcance do instituto jurídico.
Com tais considerações, é possível notar que a disponibilidade do ensino religioso de nível fundamental em escolas públicas é expressão da autonomia dos pais e dos alunos, vez que o conteúdo da disciplina deve ser capaz de transmitir - em alguma medida - a livre crença religiosa dos pais educada no seio familiar para os filhos. A matrícula facultativa, parece, nesse caso, uma forma de controle externo do ensino ministrado em escolas públicas, isto é, não confiando no plano de ensino da matéria, podem os pais optar pela não matrícula do filho.
O ensino ou não da disciplina reflete na apreensão de conhecimento do aluno, e tem, portanto, resultado no valor intrínseco - vez que a religião atua na forma como o ser humano se percebe no mundo - e comunitário - pois atua também de modo a interferir no comportamento/convívio da pessoa no mundo - da pessoa humana. Porém, a questão central reside na influência que o problema pode exercer na dignidade enquanto autonomia - que significa, prima facie tomar decisões conforme suas experiências e convicções plenas de vida, aspecto este fortemente determinado pela religião que a pessoa tem para si.
Caso o Estado não seja capaz de ofertar um ensino de natureza plural, contendo os mais diversos valores da maior quantidade de religiões existentes, melhor não ofertar a disciplina, visto que o direcionamento a uma ou outra religião poderia atuar de modo a conduzir a crença do aluno para doutrina determinada, o que teria reflexo direto na autonomia individual que nesta configuração restaria violada por ação - pela oferta de somente uma visão de mundo na disciplina ensino religioso - e omissão - ao não fornecer uma pluralidade de doutrinas da religião - do próprio Estado.
O presente estudo cuidou de temática extremamente sensível no âmbito jurídico brasileiro, a liberdade religiosa não somente integra o corpo dos direitos e garantias fundamentais da Constituição - como também costuma aflorar sentimentos e emoções incompatíveis com o caráter científico da pesquisa. Dentro desse universo de inúmeras variáveis possíveis, o trabalho se concentrou no problema “ensino religioso em escolas públicas” tendo por parâmetro os argumentos suscitados pela Procuradoria Geral da República na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4439, ainda sem decisão de mérito71.
Ao longo da jornada, foi possível demonstrar que a configuração do direito fundamental à educação apresenta no seu cerne o pluralismo. Tal conceito possui diversas concepções doutrinárias e desdobramentos sociais, no que concerne ao sistema educacional, implica num conjunto de visões de mundo que devem obrigatoriamente estar contidas no plano de ensino, no que veda a expressão de uma única forma de pensar.
Ao reconhecer que o ser humano não poderia restar preso a uma só ideologia, filosofia ou visão de mundo, foi instituído no Brasil - por escolha política - o “respeito à liberdade e apreço à tolerância” como um dos princípios estruturantes (art. 3º, IV da Lei 9.394/96) de uma educação plural. Nesse contexto, a laicidade aparece como limite a interferência estatal no âmbito da intimidade-autonomia da pessoa, daí a necessidade de um ensino religioso não-confessional. Na ausência de um plano pedagógico que comporte um ensino plural, não há o que falar na possibilidade de oferta da disciplina: a sala de aula não pode ser meio de pregação ou doutrinação, é, ao contrário, espaço da liberdade criativa e da autonomia do indivíduo.