Resumo: O artigo visa contribuir para o debate sobre o lugar dos Centros de Referência de Aten- dimento às Mulheres em Situação de Violência na política de enfrentamento à violência de gênero. Busca problematizar, a partir dos documentos que definem as diretrizes de atendimento às mulheres em situação de violência nas relações afetivo/conjugais e da literatura sobre relações étnico/raciais e interseccionalidade, de que modo a abordagem interseccional de gênero e raça/etnia pode se fazer presente nas práticas desses equi- pamentos. Conclui pela importância deste serviço para visibilizar as especificidades dos diferentes grupos de mulheres, segundo os marcadores de raça/etnia, e os limites de uma política pública que não incorpora esta diversidade.
Palavras-chave:Lei Maria da PenhaLei Maria da Penha,InterseccionalidadeInterseccionalidade,Violência contra mulheresViolência contra mulheres,Centro de referênciaCentro de referência.
Keywords: Lei Maria da Penha, Intersectionality, Violence against women, Center of reference
Artigos
Políticas de atendimento às mulheres em situação de violência doméstica: os centros de referência de atendimento às mulheres e a abordagem interseccional
Políticas de atendimento às mulheres em situação de violência de gênero
As políticas de atendimento às mulheres em situação de violência tiveram seu início, no Brasil, no começo da década de oitenta do século XX. Desde o trabalho pioneiro do SOS Mulher de São Paulo até os dias atuais, com a promulgação da Lei 11.340 (Lei Maria da Penha) em agosto de 2006, um longo caminho foi per- corrido. Nesse período, foram criados, em todo o país, serviços específicos para o atendimento dessa demanda. Eles, atualmente, integram a rede de atendimento às mulheres em situação de violência, segundo as diretrizes da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres4.
As lutas e mobilizações dos movimentos feministas contra a impunidade dos autores de assassinatos de mulheres e o processo de luta pela redemocratização do país, foram contexto propício para a criação do primeiro SOS Mulher do Brasil, em outubro de 1980. Esta iniciativa logo se estendeu a outros estados, como Rio de Janeiro e Minas Gerais. Os SOS eram organizações não-governamentais feministas e tiveram grande importância numa época em que ainda não havia qualquer polí- tica pública de atendimento às mulheres em situação de violência. Seu modelo de atendimento às mulheres foi incorporado pelo poder público a partir da década de noventa e inspirou a criação de vários centros de referência, governamentais ou não, com equipe multidisciplinar e profissionalizada (GREGORI, 1993).
Para Silveira (2006), a experiência do SOS paulista evidenciou contradi- ções e desafios, presentes até os dias de hoje nos serviços de atendimento às mulheres em situação de violência: a ambiguidade das mulheres em relação ao parceiro agressor, que deve ser incorporada no atendimento, para superar a posição antagônica vitimista; o tratamento dado pelo Judiciário e pelo aparato policial às denúncias das mulheres; o sofrimento emocional dos profissionais que atendem nos serviços – cuidar de quem cuida; e finalmente a necessidade
de atender demandas concretas, tais como alternativas de trabalho, acesso à creche, moradia, etc. Nas palavras síntese da autora, trata-se da “reivindicação de políticas públicas que reconheçam a violência contra a mulher em situação de vulnerabilidade social, o que justifica uma política pública de caráter inter- setorial” (SILVEIRA, 2006, p.55).
A autora citada informa que, atualmente, a infraestrutura e as práticas desen- volvidas nos centros de referência são diversas, mas a maior parte deles ainda se limita ao acolhimento inicial e ao encaminhamento dos casos para uma rede de atendimento, na maioria das vezes desarticulada ou estabelecida de modo infor- mal. Entretanto, enfatiza que os centros são lugares estratégicos na articulação da rede de serviços e o seu propósito é se configurarem como espaços de subjetiva- ção, ao colocar em questão o processo de vitimização feminina e as possibilidades de sua superação (SILVEIRA, 2006).
Vale ressaltar que até o final da década de noventa o modelo central das políti- cas públicas de gênero era o binômio delegacias/casas abrigo, sendo que somente após este período é que os centros de referência para o atendimento às mulheres ganharam destaque nas políticas de enfrentamento à violência.
No plano legal, a Lei 11.340/06 trouxe inúmeras inovações e impôs um novo tratamento do sistema de justiça à violência doméstica e familiar contra a mulher. A Lei Maria da Penha incorpora, em seu quadro normativo, os diversos tratados e convenções internacionais de proteção aos direitos humanos, ratificados pelo Brasil, tais como a Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discri- minação contra a Mulher – CEDAW, 1984 e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, 1995.
A Lei Maria da Penha define as diversas formas de violência – violência física, psicológica, patrimonial, sexual e moral; cria medidas protetivas de urgência; define os procedimentos para o atendimento dos agentes policiais; prevê a prisão preventiva e/ou em flagrante do agressor; dispõe sobre o encaminhamento do parceiro agressor para programas de recuperação e reeducação; propõe medidas integradas de prevenção da violência doméstica e familiar; assegura a inclusão da mulher em situação de violência no cadastro de programas assistenciais de trans- ferência de renda em todas as esferas de governo; ressalva que, para efeitos da lei, as relações íntimas independem de orientação sexual; retira a competência da Lei 9.099/95 para julgar os casos de violência doméstica e proíbe que os crimes se- jam punidos com pagamento de cestas básicas ou multas, dentre outras medidas.
Este novo instrumento legal cria, ainda, o Juizado deViolência Doméstica e Fami- liar, com competência cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorren- tes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher (BRASIL, 2006a). O artigo 2º da Lei 11.340/06 estabelece seu alcance para toda mulher, “indepen- dentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião”, considerando que devem ser assegurados os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana para todas as mulheres. Para tanto, enfatiza a lei, devem ser criadas condições e oportunidades para uma vida sem violência, a preservação da sua saúde física e mental e o seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.(BRASIL, 2006a). Entretanto, verifica-se que marcadores de raça/etnia, classe social, orientação sexual ou idade potencializam a vulnerabilidade das mulheres em situação de violên- cia, tornando necessário que a implementação das políticas públicas de gênero con-
temple medidas e mecanismos a partir de uma perspectiva interseccional.
A Lei Maria da Penha significou um avanço, especialmente em relação à Lei 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Criminais, e cujos efeitos eram a descriminalização, a banalização e a perpetuação das situações de violência. Ela é o resultado de uma ampla mobilização crítica, principalmente por parte do movi- mento feminista, em relação à forma como a violência doméstica contra a mulher era tratada nos Juizados Especiais Criminais.
Em 2006, no contexto da promulgação da Lei Maria da Penha, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – SPM elaborou uma norma técnica para os centros de referência de atendimento às mulheres em situação de violência (BRASIL, 2006b). O objetivo desta norma é a padronização de seus procedimen- tos gerais de funcionamento e o estabelecimento de suas diretrizes e princípios.
A norma técnica estabelece que os centros de referência sejam estruturas es- senciais da política de prevenção e enfrentamento da violência contra a mulher e funcionem como porta de entrada especializada para o atendimento às mulheres vítimas de violência física, psicológica e sexual, ocorrida no contexto das relações de afeto/conjugais, de trabalho ou por desconhecidos. Seu objetivo é:
Promover a ruptura da situação de violência e a construção da cidadania por meio de ações globais e de atendimento interdisciplinar (psicológico, social, jurídico, de orien- tação e informação) à mulher em situação de violência. Devem exercer o papel de articuladores dos serviços de organismos governamentais e não-go- vernamentais que integram a rede de atendimento5 às mulheres em situação de vulnerabilidade social, em função da violência de gênero (BRASIL, 2006b, p.11).
Os centros de referência devem oferecer: aconselhamento em momentos de crise, atendimento psicossocial (individual e/ou em grupo), aconselha- mento jurídico, atividades de prevenção,considerando as necessidades de cada mulher,e avaliar“o impacto de cada ação de acordo com as circunstancias da mulher atendida e do(a) agressor(a), tais como: situação econômica, cultural, étnica, orientação sexual, dentre outras” (BRASIL, 2006b, p.17). A norma téc- nica orienta também sobre a metodologia de atendimento da equipe multidisci- plinar. O marco conceitual que fundamenta os atendimentos/acolhimentos é “o questionamento das relações de gênero baseadas na dominação e opressão dos homens sobre as mulheres, que tem legitimado e perpetuado as desigualdades e a violência de gênero” (BRASIL, 2006b, p.15).
Os princípios e diretrizes norteadores dos serviços prestados nos centros de referência são o de intervir para fazer cessar a situação de violência, sem ferir o direito de autodeterminação da mulher, oferecendo meios para que ela fortaleça sua autoestima e decida sobre os encaminhamentos posteriores à situação de violência sofrida. A intervenção nestes centros, portanto, deve basear-se no respeito às escolhas das mulheres e na defesa dos seus direitos, assegurando o atendimento integral das suas necessidades (abrigo, serviços de saúde, creche, trabalho etc.), a partir da articulação do centro de referên- cia com os equipamentos e serviços da rede de atendimento local e do fomen- to de ações intersetoriais. Também devem pautar-se na responsabilização do agressor, por meio do encaminhamento dos casos para o sistema de segurança pública e de justiça, dentre outros.
As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher também foram cria- das na década de oitenta, tendo sido a primeira instalada em São Paulo, em 1985. Sua criação também é fruto da grande mobilização feminista de incentivo à denúncia contra a violência e da constatação da inadequação das delegacias comuns em acolher tal demanda.
As delegacias de mulheres propiciaram grande visibilidade à violência contra a mulher e à magnitude do fenômeno, mas evidenciaram também as ambivalências e dilemas das mulheres em relação aos seus parceiros e à ruptura com a situação de violência. Tais ambivalências têm, ainda hoje, impacto na interlocução entre policiais e usuárias, muitas vezes com prejuízo para estas últimas, pois são utiliza- das para reforçar os estereótipos e preconceitos dos agentes policiais sobre a mu- lher que vive uma relação afetivo/conjugal violenta, impedindo, com frequência, uma resposta penal para as agressões sofridas.(GREGORI, 1993).
Em 2006,também no bojo da implementação da Lei Maria da Penha, a Se- cretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, criou uma norma técnica de padronização dos procedimentos e atendimento nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAM, em consonância com este novo dispositivo legal.
Outro equipamento importante na política de atendimento são as casas-
-abrigo. Elas foram criadas para os casos em que a mulher corre risco de morte iminente, ou seja, quando a permanência na sua residência pode resultar em situ- ações extremas de grave ameaça e risco à sua integridade física e a de seus filhos. É um serviço que oferece moradia protegida, em geral de caráter sigiloso6 e de permanência temporária.
A sanção da Lei Maria da Penha, com a previsão de medidas protetivas (arti- gos 22 e 23 da Lei 11.340/06), fez a questão do abrigamento das mulheres em situação de violência doméstica tomar nova dimensão. Em 2011, foi publicado o documento “Diretrizes Nacionais de Abrigamento às Mulheres em situação de Violência”(BRASIL, 2011 a), que definiu um conjunto de orientações sobre o abrigamento de mulheres em situação de violência e o fluxo de atendimento na rede de serviços. O documento amplia o conceito de abrigamento para além dos serviços propriamente ditos (albergues, casas-abrigo, casas-de-passagem, casas de acolhimento provisório de curta duração etc.), incluindo medidas de acolhi- mento traduzidas em programas e benefícios A ampliação do conceito, com a diversificação dos serviços e das medidas de acolhimento, veio também para dar conta de outras demandas relativas ao enfrentamento à violência, como as vítimas do tráfico de mulheres ou os casos de mulheres em situação de violência, cujos parceiros são ligados ao tráfico de drogas. O documento citado define que o pro- cesso de desabrigamento seja acompanhado pelos centros de referência que, em conjunto com as casas-abrigo, devem articular estratégias para garantir às mulhe- res acesso aos programas sociais, de habitação, geração de renda etc., em parceria com as políticas setoriais envolvidas.
Entretanto, ainda hoje, as casas-abrigos levantam várias contradições, prin- cipalmente, porque é a mulher que é obrigada a romper com toda a sua vida cotidiana, abandonar a casa, muitas vezes o emprego, mudar a escola dos filhos, se afastar da sua rede de amigos e familiares etc. Acerca do tema, já afirmava Silveira:
Os abrigos ainda se constituem em um mal necessário, diante das inconsistências das políticas públicas para as mulheres. Muitas vezes servem para encobrir a inefi-
ciência do Estado em oferecer outras respostas às mulheres, numa perspectiva de proteção à sua vida e aos seus direitos. (SILVEIRA, 2006, p.67)
Além dos equipamentos descritos acima, criados especificamente para aten- der a demanda das mulheres em situação de violência, compõem a rede de ser- viços especializados para o atendimento, conforme a Política Nacional de En- frentamento à Violência contra a Mulher (BRASIL, 2011b): serviços de saúde da rede pública voltados para o atendimento dos casos de violência sexual e do- méstica, núcleos das defensorias públicas de atendimento à mulher, Promoto- rias Especializadas, centrais de atendimento telefônico (Ligue 180);Ouvidoria da Mulher,serviços de Responsabilização e Educação do Agressor e os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, instituídos por determinação da Lei 11.340/06.
Integram também a rede de atendimento às mulheres em situação de violên- cia os serviços não especializados, que se configuram como porta de entrada na rede: Centros de Referência de Assistência Social/CRAS, Centros de Referência Especializados de Assistência Social/CREAS, hospitais gerais, programa saúde da família, delegacias comuns, polícia militar etc (BRASIL, 2011b, p.16).
A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher estabelece que os serviços especializados e não especializados que fazem parte da rede de atendimento devem atuar de forma articulada, a partir da perspectiva interseto- rial, o que se apresenta como um enorme desafio para a sua consecução. Desafio necessário para abarcar a complexidade da violência de gênero, cujo enfrenta- mento requer intervenções que propiciem a autonomia das mulheres, conside- rando suas diferentes demandas e inserções sociais.
Pougy (2010b) assinala que a Lei Maria da Penha além de criar um tipo cri- minal e definir medidas de assistência e proteção, englobando as áreas da saúde, segurança pública e assistência social, impôs a necessidade de reestruturação dos diversos serviços e instituições em consonância com o novo arcabouço legal. En- tretanto, isso trouxe vários questionamentos no que se refere à articulação das diretrizes das políticas públicas de gênero com a sua operacionalização cotidiana:
São numerosos os exemplos: centros de referência órfãos de projetos políticos in- terdisciplinares, casas-abrigo totais, delegacias especializadas resistentes ao cum- primento das medidas previstas na Lei Maria da Penha, juizados renovando prá- ticas conciliatórias banidas pelo referido instrumento legal e mais recentemente
o envolvimento dos equipamentos da proteção básica e especial da assistência social, uma importante inflexão no foco da ação (POUGY, 2010b, p. 2).
Para Pougy, no que tange aos centros de referência de atendimento à mulher, é primordial afirmar seu caráter de atenção interdisciplinar e de articulador do acesso aos demais entes (governamentais e não-governamentais) da rede de aten- dimento e de “polo de referência da tentativa de ruptura da situação de violência de gênero [...] com base em orientação e apoio, que poderá potencializar o res- gate da sua condição cidadã” (POUGY, 2010a,p.82).
O artigo de Santos (2010) contribui para a reflexão relativa a esse hiato entre a formulação das políticas de gênero e a sua implementação. Para a autora, o modo como o Estado absorve/traduz as demandas feministas se inscreve no con- texto político em que acontece a capacidade de pressão e de diálogo dos movi- mentos de mulheres. Santos (2010) analisa que o advento da Lei Maria da Penha significou a adoção integral das reivindicações feministas pelo Estado, favorecida pela incorporação das normas internacionais de direitos humanos nos dispositivos jurídico-normativos nacionais. Mas a autora discorre sobre a sua implementação eivada de controvérsias, principalmente junto aos operadores do judiciário, que podem restringir seu alcance no âmbito discursivo e nas práticas cotidianas. Em especial, no contexto neoliberal, que impõe a redução da capacidade de investi- mentos públicos em instituições e redes de serviços.
Mas se a Lei Maria da Penha define uma nova política criminal de gênero, quan- do estabelece “uma mínima intervenção punitiva e uma máxima intervenção social” (CAMPOS, s.d.), por meio de políticas públicas abrangentes destinadas a prevenir e a erradicar a violência e de medidas de caráter extrapenal, o foco de atuação dos Juizados criados por este marco legal é o julgamento da violência contra a mulher exclusivamente no contexto doméstico e familiar. Para Debert e Oliveira(2007) este aspecto merece cuidados. As autoras questionam se as decisões dos juízes serão orientadas pela concepção da mulher como sujeito de direitos ou pelas condutas esperadas para homens e mulheres nas relações de conjugalidade.
A partir desse questionamento , sobre qual concepção de mulher pode orien- tar as decisões do judiciário, a discussão relativa à interseccionalidade gênero e raça/etnia também pode trazer elementos importantes para buscar a efetivação das politicas de enfrentamento à violência doméstica para todas as mulheres. O estudo de Silveira e Nardi (2015) demonstra que nos espaços judiciários e poli- ciais circulam entendimentos de que o marcador social raça é irrelevante nas situ-
ações de violência de gênero contra as mulheres nas relações afetivas. Ao mesmo tempo, os autores observaram uma prevalência de mulheres negras que acessa- ram à justiça, ao lado da queda na quantidade destas mulheres que prosseguiram com os processos judiciais, “apontando a disparidade de acesso à justiça entre a raça branca e a raça negra nos níveis avançados dos procedimentos jurídicos” (SILVEIRA; NARDI, 2015, p.75).
A interseccionalidade de classe social,raça/etnia e gênero.
Em relação ao reconhecimento das demandas das mulheres pelo Estado e sua tradução em políticas públicas, percebe-se que a mulher negra, enquanto constructo político,é um grupo que pauta inúmeras questões, em função da ampla gama de vulnerabilidades a que está exposta. Seja advinda da dificuldade de acesso aos recursos institucionais, da pobreza ou das relações de poder, que quando articuladas com outros marcadores sociais e culturais fomentam ou produzem um fosso nas desigualdades entre mulheres brancas e negras. Assim, iremos encontrar, nas mulheres negras, aspectos de vulnerabilidades sociais, que quando combinados entre as inúmeras expressões da questão social (habita- ção, saúde, desemprego), implicam em fragilidades que vão repercutir na vida destas mulheres e podem afetá-las, de modo particular, nas situações de violên- cia doméstica. Acrescenta-se a isso, a ausência de entendimento das especifici- dades que envolvem as imbricações da questão racial com outros marcadores, tais como gênero e classe social, conforme já observado por algumas autoras (CARNEIRO, 2002; CRENSCHAW, 2002). A intersecção de raça/etnia com outras categorias (como gênero e classe social) evidencia fortes contrastes na sociedade brasileira. Estes contrastes incidem transversalmente em distintas esferas da vida social, com impacto no acesso à educação, à saúde, à qualidade de vida, saneamento básico, inserção no mercado de trabalho, acesso à informa- ção, à justiça e à cidadania (SEGATO, 2006).
Desta forma, “o recorte de raça e gênero apresenta diversas especificidades” (CARNEIRO, 2002, p. 210) que podem aumentar a exclusão social, observada em vários indicadores sociais. São mais de 41 milhões de mulheres negras no Brasil, que representam 23,4% do total da população brasileira (IBGE, 2000). São elas que sofrem com o fenômeno da dupla discriminação, ou seja, estão sujei- tas às múltiplas formas de discriminação social, em consequência da conjugação perversa do racismo e do sexismo, que resultam em uma espécie de asfixia social, com desdobramentos negativos sobre todas as dimensões da vida dessas mulhe-
res, sobretudo no trabalho (CARNEIRO, 2002).E o trabalho pode ser o principal aliado na garantia de sua manutenção pessoal e familiar e, em alguns casos, possi- bilitar certa autonomia e independência financeira.
A ação da sobrevivência está diretamente relacionada ao ser social, dito de outra forma, o trabalho é uma ação necessária para indivíduos descapitalizados. Convém lembrar que se o trabalho propicia certa autonomia em determinadas situações, em outras favorece a liberdade. Ainda que a liberdade pensada por cada mulher apresente diferenças quanto ao tempo, espaço, idade, raça ou classe so- cial, pode-se inferir que, de modo geral, as mulheres que estejam ou que tenham vivenciado alguma situação de violência doméstica ficam mais vulneráveis quan- do são dependentes financeiramente dos cônjuges ou do agressor. No entanto, também é um dado para análise, e talvez aqui exista um paradoxo, que 69% dos domicílios de famílias pobres são chefiados por mulheres negras (IPEA,2011), embora esta realidade não seja suficiente para livrá-las da violência.
Cabe registrar que, a partir da vigência da Lei 11.340/06,as informações relativas à violência contra as mulheres no Brasil devem ser notificadas, o que permitiu levantar dados para o diagnóstico da violência, subsidiar e acompanhar os efeitos das políticas de gênero e visibilizar as características das mulheres vi- timizadas. O documento “A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil: violências e violações”(WERNECK; IRACY, 2016) informa que a Lei Maria da Penha não foi capaz de reduzir a vitimização das mulheres negras de forma direta. E que, ao longo da década de 2003-2013, aumentou em 190% a vitimização de mulheres e meninas negras. Obviamente que este indicador care- ce de dados mais substanciados, mas é uma informação importante, pois leva à reflexão sobre os aspectos que envolvem a questão interseccional nas relações de raça, classe e gênero no Brasil.
O conceito de interseccionalidade foi amplamente discutido e apresentado por Kimberlé Crenschaw (2002) e se refere à busca para capturar as consequên- cias estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordina- ção. (CRENSCHAW,2002, p.177). Assim, classe social, gênero e raça envolvem categorias que produzem processos de subjetivação e conformam as relações so- ciais.Vale ressaltar que raça é aqui definida como marcador social, conforme dis- cutido por Guimarães (2003). O autor avalia que o sentido analítico da categoria raça revela pelo menos dois significados: um reivindicado pela biologia genética e outro pela sociologia. Sinaliza ainda que a biologia e a antropologia física criaram a ideia de raças humanas, significando que a espécie humana poderia ser dividida
em subespécies, a exemplo do mundo animal. Guimarães (2003) defende que raça é um conceito nativo que tem sentido no mundo prático, tendo em vista que possui um significado próprio e específico para um determinado grupo humano. O autor afirma que “[...] é impossível definir geneticamente raças humanas que correspondam às fronteiras edificadas pela noção vulgar nativa de raça” (GUIMA- RÃES, 2003, p.45). Para ele, a construção de raças baseada em traços fisionômi- cos de fenótipo ou de genótipo é algo que não tem o menor respaldo científico.
Guimarães (2003) observa que a terminologia raça é uma construção social, devendo ser estudada por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais que trata sobre o assunto das identidades sociais. Portanto, pensar a questão da violência de gênero contra a mulher, principalmente nas relações afetivas e de intimidade é compreender que raça é um marcador social que incide diretamente na construção da identidade e nos processos de subjetivação. Da mesma forma, a introdução da categoria gênero marcou um esforço do feminismo em transcender a discussão re- lativa ao reducionismo biológico, conforme nos lembra Pinto (2007):
Problematizar a ideia de que a biologia é o destino e interpretar as relações entre homens e mulheres como formulações culturais resultantes da imposi- ção de significados sociais, culturais e psicológicos sobre identidades sexuais (PINTO, 2007, p. 29).
Embora as mulheres negras ainda não tenham alcançado,de fato, algumas das conquistas feministas, no que se refere, por exemplo,à ocupação dos espaços pú- blicos, a luta pelo reconhecimento das suas especificidades é permanente. Fonse- ca; Pagnoncelli e Magalhães afirmam que “a história das conquistas do movimento feminista corresponde à da construção da mulher enquanto um novo ‘sujeito co- letivo’ – através da categoria gênero – um processo que se consolidou apenas na década de 1980” (FONSECA; PAGNONCELLI; MAGALHÃES, 2008, p.4). No
entanto, no que diz respeito à luta das mulheres negras no Brasil, pode-se dizer que ela teve início ainda no período da escravidão, quando as mesmas desenvol- veram estratégias de sobrevivência por meio do corpo, do trabalho à resistência, fato que condicionou este segmento a uma maior exclusão social na sociedade brasileira (RODRIGUES, 2008).
Para Crenschaw (2002), torna-se necessário considerar a complexidade das vulnerabilidades a que as mulheres estão expostas, pois as desigualdades de gênero, raça e classe social se entrecruzam e se potencializam. Uma vez que se
potencializam, incidem de forma direta nas mulheres negras que, ao viver uma situação de violência doméstica e ao procurar assistência para suas demandas, poderão sofrer discriminação de toda ordem, principalmente se não forem ob- servadas as especificidades que envolvem as questões de raça e gênero. Não se trata de vitimar mais as mulheres negras, mas entender que as discriminações seguem uma sequência muito particular, onde o olhar do “outro” vai definir as condições de acesso para esse grupo. Algo que suscita questionamentos: são discriminadas por serem mulheres negras? Ou por serem mulheres negras so- frem violência? Evidentemente, este assunto é complexo e necessita de um amplo e profundo debate sobre como a interseccionalidade atravessa a realida- de das mulheres que sofrem violência doméstica. E, por se tratar de dinâmicas e estruturas diferentes, também se faz necessário um olhar que contemple o atendimento a essas mulheres na sua integralidade.
Os centros referência de atendimento às mulheres em situação de violência e a abordagem interseccional: quem são as
mulheres atendidas?
Quando uma mulher consegue chegar até um centro de referência para aten- dimento, em regra pode ter passado por outras instâncias, como por exemplo, as delegacias da mulher ou outros serviços. Os centros de referência, por seu lugar de articulador da rede de atendimento e por ser um serviço especializado para atender, exclusivamente, mulheres em situação de violência de gênero, podem se organizar de modo a oferecer atividades/ações que contemplem as especificidades e singularidades das demandas das diferentes mulheres que os acessam. (MELO, 2008). A escuta sensível da equipe multiprofissional para os processos que deter- minam as desigualdades de gênero, sendo a violência contra as mulheres sua forma grave de expressão, pode ser acompanhada da reflexão sobre a intersecção que as relações raciais produzem nas situações de violência. Em especial, em relação ao acolhimento dessas demandas por parte dos outros equipamentos da rede de atendimento, para onde as mulheres poderão ser necessariamente encaminhadas.
Por exemplo, no que diz respeito ao sistema de justiça, alguns estudos con- firmam práticas de caráter seletivo, preconceituosas e racistas. Pesquisa de Adorno (2007), ao avaliar pessoas que cometeram crimes nas delegacias de São Paulo, tornou evidente que os homens negros são, em geral, criminalizados e as mulheres negras são ainda mais penalizadas. Verifica-se aí como o marcador de raça e gênero também acompanha as leituras “Lombrosianas”, que consideram
o negro “um criminoso nato”. E o que se observa é que se não for considerada a situação de subordinação presente nas relações raciais e sociais brasileiras, os atendimentos já saem “viciados”. Nestes casos, pode-se ter uma denúncia que não será recepcionada, já que a mulher negra pode não ser percebida como vítima de violência de gênero.
Como afirma Saffioti (2004), as mulheres não estão em igualdade de condições com os homens, em função de se configurar uma sociedade fundada em práticas racistas e patriarcais. O que implica em considerar o modo distinto de como se dão as relações de dominação, nas quais estão inseridas as mulheres negras, “a partir de referenciais que não levam em conta os aspectos que envolvem seu constante pro- cesso de afirmação-negação de identidades e direitos” (SILVA, 2009, p. 45).
Uma política integral, comprometida em assegurar os direitos para todas as mulheres, deve garantir que a demanda inicial acolhida nos centros de re- ferência possa ser acompanhada em etapas com início, meio e fim e com uma metodologia que subsidie estas etapas. Este processo deve ser construído com as mulheres, para desenvolver a capacidade de autonomia das mesmas frente às situações de violência e vulnerabilidades sociais. Cada mulher apresentará suas demandas e à equipe competirá fomentar novas oportunidades, visando a organização pessoal da mesma, vislumbrando outros caminhos longe da violên- cia. O Plano de Desenvolvimento Pessoal pode envolver outros integrantes da família, como por exemplo, a filha adolescente que está fora da escola, a mãe idosa que se encontra doente etc.
Outra atividade importante é a realização de grupos de reflexão com as mu- lheres assistidas. A criação de um espaço coletivo de discussão sobre violências de gênero e suas intersecções de raça/etnia e condição social, possibilita a escuta e o acompanhamento dos casos, valorizando a participação e o protagonismo das mulheres no percurso de rompimento das situações de violência. Seu objetivo pode ser a desconstrução de percepções naturalizadas sobre as relações e papéis de gênero, entrecruzadas com a questão racial, com efeitos no processo de subje- tivação e de construção de identidades.
Neste sentido, o lugar estratégico dos centros de referência de atendimento às mulheres para o enfrentamento da violência pode se afirmar na capacidade de articular os diferentes serviços da rede para as diferentes demandas, mas também nas práticas e no olhar cuidadoso sobre o impacto das intersecções de gênero, raça e classe social na produção da violência e no processo de ruptura das situa- ções de violação dos direitos das mulheres.
Considerações finais
A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, definida a partir da promulgação a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), estabelece uma série de princípios e recomendações para a organização da rede de atendimento às mulheres em situação de violência, em especial a violência doméstica e familiar. Define que os centros de referência de atendimento devem ocupar um importante papel como articulador da rede para o acolhimento das demandas das mulheres.
Os documentos que informam as diretrizes dessa política fazem menção aos aspectos que atravessam as desigualdades de gênero, tais como raça/et- nia, geração, orientação sexual, identidade de gênero e classe social, marcan- do que o acesso aos serviços e ações se dê pelo princípio da não discriminação. Propõem,assim,uma politica universal, mas que garanta as especificidades das diferentes mulheres, indígenas, negras etc.
No entanto, é na prática cotidiana dos serviços e instituições que a politica de enfrentamento à violência se realiza e, muitas vezes, o hiato entre a formulação das diretrizes e a sua implementação pode significar restrições à sua efetivação e alcance aos diferentes grupos de mulheres. As visões estereotipadas sobre as ques- tões relacionadas às relações de gênero, agravadas pelo preconceito e a discrimi- nação racial, potencializam as situações de violência e de violações de direitos.
Os estudos sobre interseccionalidade de gênero, raça/etnia e classe social apontam para o fato de que este entrecruzamento cria desafios singulares no pro- cesso de superação das situações de violência, no que diz respeito ao acesso à ga- rantia de direitos. Assim, em relação ao papel dos centros de referência na politica de atendimento, é possível afirmar seu lugar estratégico para visibilizar as espe- cificidades dos diferentes grupos de mulheres, segundo os marcadores de raça/ etnia, e os limites de uma política pública que não considere essa diversidade.