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Do trabalho doméstico à educação superior: a luta das mulheres trabalhadoras negras pelo direito à educação superior
Cibele da Silva Henriques
Cibele da Silva Henriques
Do trabalho doméstico à educação superior: a luta das mulheres trabalhadoras negras pelo direito à educação superior
O Social em Questão, vol. 20, núm. 37, pp. 153-172, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Na sociedade Brasileira, o lugar dos homens e mulheres negros nunca foi na escola, mas na lavoura, na casa grande, na senzala, nas ruas ou quando rebelde, na prisão. Assim, o di- reito dos negros, em especial, das mulheres negras à educação no Brasil foi fruto de lutas travadas pelos Movimentos Negros. Assim sendo, esse artigo visa refletir sobre as lutas das mulheres negras pela educação no Brasil, tendo como pressuposto que a educação da mulher negra foi preterida pelo poder público e pela sociedade, no interior da própria classe trabalhadora e que somente foi possível pela prossecução das ações afirmativas.

Palavras-chave:Mulheres negrasMulheres negras,Educação superiorEducação superior,Ações afirmativasAções afirmativas.

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Iniciais

Do trabalho doméstico à educação superior: a luta das mulheres trabalhadoras negras pelo direito à educação superior

Cibele da Silva Henriques
UFRJ, Brasil
O Social em Questão, vol. 20, núm. 37, pp. 153-172, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Do trabalho doméstico à educação superior:

153

a luta das mulheres trabalhadoras negras pelo direito à educação superior

Cibele da Silva Henriques¹

Resumo

Na sociedade Brasileira, o lugar dos homens e mulheres negros nunca foi na escola, mas na lavoura, na casa grande, na senzala, nas ruas ou quando rebelde, na prisão. Assim, o di- reito dos negros, em especial, das mulheres negras à educação no Brasil foi fruto de lutas travadas pelos Movimentos Negros. Assim sendo, esse artigo visa refletir sobre as lutas das mulheres negras pela educação no Brasil, tendo como pressuposto que a educação da mulher negra foi preterida pelo poder público e pela sociedade, no interior da própria classe trabalhadora e que somente foi possível pela prossecução das ações afirmativas.

Palavras-chave

Mulheres negras; Educação superior; Ações afirmativas

From domestic work to higher education: the struggle of black working women for the right to higher education

Abstract

In Brazilian society, the place of black men and women has never been in school, but in farming, in the big house, in the slave quarters, in the streets or when rebellious, in prison.Thus, the rights of blacks, especially black women to education in Brazil, were the result of struggles waged by Black Movements. Thus, this article aims to reflect on the struggles of black women for education in Brazil, assuming that the education of black women was deprecated by public power and by society, within the working class itself and which was only possible by pursuing Affirmative actions.

Keywords

Black women; College education; Affirmative actions

Introdução

No Brasil, desde o período colonial as meninas e as mulheres negras eram designadas para o trabalho doméstico, não eram educadas. Inicialmente realiza- da pelos clérigos e, posteriormente pelos preceptores, a educação era destinada aos jovens brancos das classes abastadas. Portanto, os mestiços e os escravos não tinham acesso à educação.

Entrementes, a abolição da escravidão, bem como a liberdade formal não pro- piciaram aos homens e mulheres negros o acesso à uma vida digna. Inclusive, para as mulheres negras libertas foi concedida a submissão e a exploração, inerentes à escravidão, pois somente lhes foram ofertadas as atividades domésticas, onerosas, mal remuneradas que exigiam apenas uma formação prática – não intelectual.

Desse modo, o não lugar dos negros na sociedade brasileira foi o fator essen- cial para que não lhes fossem concedidos direitos básicos, como por exemplo, o direito à educação e saúde. No caso das mulheres negras, tal fato se estendia para o âmbito doméstico, pois não podiam sequer criar seus filhos porque para sobreviver precisavam trabalhar como empregadas domésticas e ou babás, cuja função principal era a criação dos filhos das mulheres brancas, da classe média, que lutavam pela sua emancipação política e social.

Assim, pressupomos, a partir das leituras teóricas prévias realizadas para a construção desse estudo, que a instituição do trabalho livre no Brasil foi um en- godo para a população negra que habitava no país, na condição de escravo, pois não lhe permitiu de fato a emancipação das formas de opressão gênero, classe e etnia. Pelo contrário, a concomitância de formas análogas de trabalho escravo ao lado do trabalho livre, como por exemplo, o trabalho doméstico e o trabalho in- fantil, realizado por crianças e adolescentes negros, não contribui para a extinção dos resquícios da escravidão no país (BORGES e MOYORGA, 2012; CASTRO, 2002; SCHUELER, 1999; PENA, 1981; MATTOS, 2002; FREYRE, 2003; DO-

MINGOS, 2009; FERNANDES, 2008).

Tal opção social e política pela instituição do trabalho doméstico, em vez de políticas sociais para as mulheres, que as permitissem a conciliação “trabalho e família”, corroborou para a intensificação da exploração informal das mulheres negras na sociedade brasileira, pois elas somente dispunham de um único bem - seu corpo negro - para negociar, em troca de sua sobrevivência e da de seus filhos.

Portanto, nascer mulher, negra, pertencente à classe trabalhadora, se constituía em sinônimo de infortúnio, pois as chances de conseguir ter acesso à educação, ao trabalho bem remunerado, a um casamento, eram ínfimas às mulheres negras.

Schueler (1999) cita que a mulher trabalhadora não tinha direito à educação, nem sequer era mencionada na legislação que regulamentou o ensino primário e secundário, em 1854, através da promulgação da lei 1331-A. Essa legislação preconizou o acesso da população livre, vacinada e não portadora de doenças con- tagiosas às escolas criadas pelo Ministério do Império, porém, não era permitida a presença de escravos, sequer de mulheres negras ou mestiças livres.

No período republicano, foram realizadas algumas reformas educacionais que reconfiguraram as condições de acesso às modalidades de ensino primário e se- cundário, como mostra o quadro abaixo. No entanto, a educação dos trabalhado- res negros continuou a ser desvalorizada pelo poder público e pela sociedade, até mesmo no interior da própria classe trabalhadora, que concebia a expansão do ensino primário aos populares livres uma ameaça à manutenção dos privilégios das elites locais (SHUELER, 1999).

Quadro I - Tema: Educação – subtema: Reformas Educacionais no Período de 1889-1930. Brasil Metropolitano. (Total: 6 reformas).

Fonte: Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em: <http://www.camara.leg.br>. Acesso em 01/02/2016. Elaboração Própria.

Como descrito acima, a escolarização das trabalhadoras domésticas não foi objeti- vada em tais reformas educacionais, que apenas visavam à reorganização do sistema de ensino, bem como à instituição de exames de seleção para o acesso às modalidades de instrução que passaram a ser seriadas. Ademais, tal temática também não foi priori- zada pelos ideólogos da Escola Nova que, inspirados pelas ideias de Adolphe Ferriére, defendiam o combate às desigualdades sociais pela via da educação.

No que tange ao sentido político-ideológico dessas reformas, Vieira (2007) destaca que não objetivavam a democratização do ensino para a classe traba-

lhadora, pelo contrário, visavam seu disciplinamento para as necessidades do capital. Ainda, aponta que tais legislações acentuaram a diferenciação do ensino público ofertado para as elites daquele ofertado para os trabalhadores, a saber: os jovens das classes abastadas tinham como base uma educação humanística e científica, enquanto, os jovens e adultos da classe trabalhadora eram preparados para o mercado de trabalho.

A educação das mulheres trabalhadoras no Brasil: um direito a ser conquistado

Di Pierro (2005) cita que na transição dos anos de 1950 para 1960, os mo- vimentos sociais e os movimentos negros que lutavam pela educação popular, baseada nos pressupostos de Paulo Freire, passaram a questionar essa lógica de associação da educação atrelada ao trabalho para as classes trabalhadoras, que advinha desde a Era Vargas. Tais movimentos advogavam pela ampliação do acesso da classe trabalhadora à educação humanística e científica, historicamen- te reservada para a elite branca, bem como pelo processo de escolarização dos homens e mulheres negros.

Nesse ínterim, a partir dessa lógica freiriana foram organizados cursos popu- lares de alfabetização de jovens e adultos que tinham defasagem idade-série. No entanto, tais ações foram refreadas pelo golpe político engendrado por militares e civis em 1964, que instaurou um novo período de ditadura no país (DI PIERRO, 2005; FERNANDES, 1975).

A instituição do governo autocrático no país, no período de 1964 a 1985, foi marcada pelo severo processo de restrição dos direitos civis e políticos da população brasileira². Nesse período, as experiências populares e comunitárias, bem como aquelas realizadas pelas comunidades eclesiais de base (CEBs) foram abortadas.

Inclusive, as experiências de alfabetização de jovens e adultos que visavam à formação crítica foram forçosamente desmontadas em prol da instituição da ex- periência governamental do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), que tinha como objetivo principal a alfabetização da classe trabalhadora para sua inserção no mercado de trabalho, bem como a sua cooptação política (DI PIER- RO, 2005; FERNANDES, 1975).

Nesse entretempo, as reformas promovidas pelos militares na Educação, no ensino superior e na educação básica, respectivamente, por meio dos decretos-lei nº 5.540/68 e nº 5.692/67, visaram à adequação do sistema de ensino à parti- cipação da iniciativa privada. O acesso da classe trabalhadora à educação pública

não foi priorizado, pelo contrário, foi difundida a racionalização de recursos fi- nanceiros associada ao mote da flexibilidade que visou à participação da iniciativa privada no sistema de ensino médio e superior.

Em relação à Educação Superior, tal reestruturação promovida pelos militares nas universidades públicas, em especial nas federais, não agenciou o atendimen- to às camadas mais desfavorecidas³. Pelo contrário, a reorganização do sistema de ensino superior enfeixada pelos militares contribuiu para a instituição de um “modelo duplamente seletivo”, no qual os jovens e adultos das classes médias e altas continuaram a ocupar as vagas nas universidades públicas, enquanto, os jo- vens e adultos das classes trabalhadoras continuaram a ser encaminhados para o ensino profissionalizante, bem como às universidades privadas para que pudessem conciliar “o trabalho e o estudo” (MARTINS, 2009).

No que diz respeito às trabalhadoras domésticas, tais reformas governamen- tais não asseguraram sua capacitação profissional, nem tampouco fomentaram seu acesso à educação superior. Pelo contrário, as ações realizadas pelos militares para as trabalhadoras negras eram ações assistenciais e compensatórias, como por exemplo, as ações desenvolvidas pela Legião da Boa Vontade (LBV) que iam desde capacitação profissional por meio dos cursos de culinária, corte e costura e arte- sanato até a distribuição de leite e cesta básica.

Ademais, a sociedade não reconhecia o trabalho doméstico como um tra- balho digno de direitos e obrigações. Um exemplo disso foi a resistência dos patrões em conceder alguns direitos implementos pelos militares, em 1972, como possibilidade da carteira assinada, trinta dias de férias e o direito à pre- vidência para os trabalhadores domésticos, na modalidade de assalariado ou contribuinte individual (autônomo).

Essa leitura restrita do trabalho doméstico contribuiu para que as trabalha- doras domésticas negras, com baixa escolaridade, continuassem sem acesso às leis trabalhistas. Inclusive, na década de 80, a maioria das empregadas domésticas eram analfabetas e moradoras das periferias urbanas. Ademais, por ser uma pro- fissão de “classe” e “cor”, predominantemente exercida por mulheres negras da classe trabalhadora, as ações governamentais voltadas para esse público ficavam a mercê das intemperanças dos gestores, pois o governo somente intervinha nas re- lações entre domésticas e empregadores quando necessitavam de apoio político. Lima (2014) aclara que desde os anos de 1950 há dois projetos educa- cionais antagônicos em disputa no cenário educacional brasileiro: O projeto privatista,que defende a educação como um bem privado e enfeixado pelos

setores da iniciativa privada e o projeto que defende a educação pública, gra- tuita, laica e de qualidade, que foi ensejado pelos estudantes, trabalhadores, professores, centrais sindicais e movimentos sociais.

A disputa entre tais projetos educacionais antagônicos se acirrou no cenário político e social durante a constituinte de 1988. Após vários embates com os grupos políticos que defendiam a participação irrestrita da iniciativa privada no sistema de educação brasileiro, os movimentos sociais, sindicais e de tra- balhadores que militavam pela educação pública, gratuita, laica e de qualidade conseguiram assegurar a educação como um direito social, como prevê o Art. 5º da Constituição Federal de 1988.

A CF/88 afiançou a educação como um direito social. Inicialmente, tais in- vestimentos visavam à erradicação do analfabetismo e à diminuição da defasagem idade-série entre os alunos jovens e adultos da classe trabalhadora, ou melhor, ob- jetivava corrigir os influxos do sistema educacional, que ora acolhia, ora expelia os jovens e adultos da classe trabalhadora do processo de escolarização.

Ademais, a tardia implementação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996, contribuiu para que o ingresso dos jovens das classes trabalha- doras no mercado de trabalho formal ou informal ocorresse mais cedo.Tal fato se deu no momento em que a LDB tinha instituído a Educação de Jovens e Adultos como uma modalidade de ensino da educação básica, constituído de duas etapas: Ensino Fundamental e Médio.

Di Pierro (2005) aponta que a maior parte do público da Educação de Jovens e Adultos (EJA) era composta por estudantes com defasagem idade-série, que ocupavam postos de trabalho de menor prestígio na hierarquia social, como por exemplo, a população negra moradora da periferia urbana, principalmente, as trabalhadoras domésticas negras e as donas de casa que desenvolviam atividades informais para dar conta do cuidado da família, enfim, os trabalhadores negros para quem a educação pública foi historicamente negada.

Soma-se a esse cenário, a situação socioeconômica precária dos alunos tra- balhadores, negros, principalmente das mulheres chefes de família, que impedia que tais sujeitos deixassem de trabalhar para se preparar para o vestibular bem como pagar um curso preparatório particular.

Cabe esclarecer que o vestibular consistiu numa prova criteriosa de aferição dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental e médio. Um concurso público que selecionava os mais aptos a ingressar nas universidades públicas e ou privadas. Esse exame de seleção foi utilizado no Brasil até 2009, quando o minis-

tro da educação, Fernando Haddad, apresentou a proposta de unificar o vestibular das universidades federais utilizando um novo modelo de prova - o Exame Nacio- nal de Ensino Médio (Enem).

Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) citam que para os jovens e adultos da classe trabalhadora que possuem a defasagem educacional, por conta da escola- rização tardia, a relação entre educação e mundo do trabalho ocorre de forma contrária, pois é a inserção no trabalho, bem como as dificuldades advindas des- sa relação com o trabalho que fomentam o retorno à escola, justamente, para que possam se reinserir ou permanecer no mercado de trabalho. Por isso a luta pelo acesso à educação superior é fundante para a permanência no mercado de trabalho para os negros.

Da capacitação popular à universidade: a luta das mulheres negras pelas ações afirmativas no Brasil

Na década de 90, a luta dos movimentos negros em prol da instituição das ações afirmativas no Brasil, exponenciadas desde a década de 1980, ganha novo fôlego com a retomada da experiência dos pré-vestibulares comunitários no Rio de janeiro e na Bahia. Tais pré-vestibulares comunitários passaram a recrutar e qualificar os trabalhadores negros e carentes para o exame do vestibular, bem como prepará-los criticamente para a militância negra, em prol da democratiza- ção da educação superior pública no Brasil.

As mulheres negras, em especial, as trabalhadoras domésticas também passa- ram a frequentar tais cursos preparatórios populares para negros e carentes. A par- ticipação dessas mulheres nesses espaços de formação foi de extrema importância para o estreitamento de laços com os movimentos negros e sindicais, bem como para a coadunação de pautas históricas que envolvem trabalho, educação e raça.

Na cidade do Rio de Janeiro, nosso campo de análise, o primeiro pré-vestibu- lar criado para negros foi o Pré-Vestibular para Negros e Carentes (PVNC), loca- lizado no município de São João de Meriti. Esse curso era dirigido por lideranças religiosas católicas ligadas à Pastoral Negra e por militantes negros. Era compos- to por professores voluntários e/ou recém-formados que preparavam jovens e adultos negros, oriundos da baixada fluminense, para ingressar nas universidades públicas, bem como para a militância em prol da adoção de reservas de vagas nas universidades públicas brasileiras (SANTOS, 2015).

A partir de dessa lógica se gestaram outras experiências, como por exem- plo, a Associação Educação e Cidadania para Afrodescendentes (EDUCAFRO),

no Rio de Janeiro (1989), e o Pré-Vestibular para Negros e carentes do Institu- to Steve Biko, em Salvador/BA (1992). A ênfase desses preparatórios era a for- mação crítica e cidadã para a ocupação de vagas pelos negros nas universidades públicas (SANTOS, 2015).

Heringuer e Ferreira (2009 apud SANTOS, 2015) cita que os pré-vestibu- lares comunitários eram instrumentos de luta em prol pela democratização do ensino superior no Brasil, bem como se constituíam em importantes espaços de resistência e reivindicação que deflagravam o embate entre os alunos e o poder público, na busca por políticas públicas para um contingente de negros da classe trabalhadora que embora tivessem concluído o ensino médio, estavam alijados do ensino superior.

Ademais, no que tange ao aspecto educacional, tais cursos preparatórios cum- priram um importante papel social - a capacitação profissional do alunado negro com escassos recursos financeiros, em especial das trabalhadoras domésticas ne- gras para o ingresso no Ensino Superior, com vistas a uma inserção mais quali- ficada no mercado de trabalho. Nesse sentido, exerceram uma função que foi preterida historicamente pelo poder público.

Assim, a educação superior que fora historicamente negada para a população negra, em especial, para as trabalhadoras domésticas negras, passou a ser um horizonte de luta das mulheres negras, principalmente da juventude negra que assistiu a geração anterior, de seus pais, ter o direito à educação superior negado pelo poder público e pelas elites brasileiras.

Tais experiências populares de ensino ocorreram em concomitância com inú- meras ações realizadas pelos movimentos negros e movimentos sindicais no país em prol do reconhecimento da questão racial no Brasil, em especial, o reconheci- mento da questão da juventude feminina negra, como por exemplo, o I Encontro Nacional das Mulheres Negras e o I Encontro Nacional de Entidades Negras.

A principal denúncia dos movimentos negros, inclusive das mulheres, era às condições subumanas de trabalho e vida da população negra no Brasil. Tal de- núncia ganha sonoridade no cenário político a partir do evento da Marcha do Zumbi dos Palmares que ocorreu em Brasília, em 1995, na qual os representantes dos movimentos negros entregaram ao Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) o “Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial”.

Tal programa denunciava o racismo, bem como todas as formas de opressão e violação de direitos, as quais o povo negro foi historicamente submetido em prol do desenvolvimento da nação brasileira. Ademais, os movimentos negros

por meio deste documento requeriam o “desenvolvimento de ações afirmativas para acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta” (SANTOS 2007 apud SANTOS, 2015, p. 60).

Dentre outras ações ocorridas nesse período, a participação dos represen- tantes dos movimentos negros na Conferência Mundial Contra Racismo, Discri- minação Racial, Xenofobias e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, na África do Sul, foi decisiva para a estruturação de ações governamentais voltadas para o enfrentamento das questões raciais no Brasil.

Após a participação no, o Governo Federal se comprometeu internacional- mente em seguir as diretrizes dispostas na Declaração de Durban, bem como se- guir o plano de ação proposto em Durban, que realocou o tema da questão racial em nível mundial. Assim, o Brasil passou a ser signatário das ações internacionais para o enfrentamento do racismo, discriminação e intolerância que perpassava pela instituição de ações afirmativas ou positivas na educação, bem como pela implementação de ações assistenciais nas áreas da educação, saúde, habitação e assistência social.

No que tange à educação superior, nosso foco de análise, a Declaração de Durban preconizou a instilação de ações afirmativas ou positivas para a correção do sistema educacional “ultra-elitista” - como fora denominado pelo professor Florestan Fernandes (1975) - que alijou o acesso da população ne- gra à educação superior.

Junior (2010 apud ABREU e TIBLE, 2012) cita que as ações afirmativas são políticas que dão vida à Constituição Federal no que diz respeito à igualdade ma- terial, bem como são importantes instrumentos na luta contra a discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional e de compleição física. Aclara que as ações afirmativas devem ser contextualizadas a partir da compreensão de que:

Uma sociedade como a brasileira, desfigurada por séculos de discriminação ge- neralizada, não é suficiente que o Estado se abstenha de praticar a discriminação de suas leis. Incumbe ao Estado esforça-se para favorecer a criação de condições que permita a todos se beneficiarem da igualdade de oportunidades e eliminar qualquer forma de discriminação direta ou indireta. A isso se dá o nome de ação afirmativa ou ação positiva, compreendida como um comportamento ativo do Estado, em contraposição a atitude negativa, passiva, limitada à mera intenção de não discriminar (JUNIOR, 2010 apud ABREU e TIBLE, 2012, p. 114).

O quadro a seguir, elaborado por Borges e Moyorga (2012), mostra o percur- so empreendido pelos movimentos negros no cenário político e social brasileiro na busca pelo direito à igualdade racial, bem como sua articulação com os demais atores políticos para a implementação de ações afirmativas de inserção da juven- tude negra nas universidades públicas.

Quadro II - Tema: Momentos de Referência do Fortalecimento da Luta por Políticas de Juventude e pela Igualdade Racial no Brasil de 1978 a 2011.

Fonte: Síntese realizada por Borges & Moyorga (2012), inspirada na linha do tempo presente do

relatório de planejamento 2010 da JN13-PT.

A realização de tais ações pelos movimentos negros foi fulcral para dar visibi- lidade às questões raciais na sociedade brasileira. A articulação dos movimentos negros com atores políticos nacionais e internacionais também foi um ingrediente importante para o fomento das ações afirmativas no Brasil.

Nesse bojo, em 2001, foi aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio de Ja- neiro, a Lei n° 3.708/2001, que instituiu a reserva de vagas de até 40% para as populações negra e parda na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF).Tal legislação foi pionei- ra na implementação de políticas de ação afirmativa baseadas no critério de raça,

no Brasil. Porém, foi revogada pela Lei nº 4.151/2003, que redefiniu os benefici- ários da ação afirmativa, a saber, passou a ser 20% para egressos de escola pública, 20% negros e 5% para pessoas com deficiência. Mediante tais fatos, travou-se um intenso debate na sociedade brasileira sobre a constitucionalidade e legalidade do critério de raça para a seleção de aprovados no vestibular.

Inclusive, a Lei nº 4.151/2003, que institui as cotas na UERJ foi objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3197, ajuizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pela da Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Conafenen). Tal decisão de inconstitucionalidade foi revogada e, posteriormen- te, foram instituídas modificações no processo de implantação das cotas raciais na UERJ, bem como dispõem as Leis nº 4.680/2005; 5.074/2007 e 5.346/2008.

Apesar dos debates acalorados entre os movimentos negros e diversos inte- lectuais, aos poucos, foi ganhando a adesão da população que passou a apoiar o desmantelamento dos exames vestibulares, de caráter meritocrático, que alijavam os negros, os pobres, às mulheres, os indígenas, os quilombolas e os deficientes dos bancos universitários, bem como apoiaram a histórica necessidade de se im- plantar ações afirmativas para esses grupos.

Nesse entretempo, as ações afirmativas também se espraiaram para as de- mais universidades públicas. A Universidade Federal de Brasília foi a primeira universidade federal a adotar a política de cotas para negros. O sistema de reserva de vagas para negros foi implantado no segundo vestibular de 2004. Tal universidade foi pioneira em adotar o sistema de cotas exclusivamente para negros. Em entrevista à agência de comunicação da UnB, o professor José Jorge Carvalho, disse que “A UnB propôs as cotas para negros como uma resposta ao racismo” (UNB, 2015).

Somente, após dez anos de instauração das ações afirmativas, bem como de lutas dos Movimentos Negros, que o Governo Federal, por meio da Lei nº 12.711/12, implantou oficialmente a política de Cotas nas universidades fe- derais. Tal legislaçãodeterminou a reserva de 50% das vagas em instituições federais de educação superior e de educação profissional e tecnológica para candi- datos que tenham feito integralmente o ensino médio e o ensino fundamental em escolas públicas e ou obtenham a certificação do ensino médio através do ENEM.

Até 2008, o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja) era a prova responsável por avaliar adultos que pretendiam conseguir um certificado de conclusão do ensino médio. A partir de 2009, o Mi- nistro da Educação, Fernando Haddad, instituiu que essa função fosse repassada

ao ENEM. Assim, os jovens e adultos com mais de 18 anos (emancipados também precisam ter 18 anos) podem fazer apenas o Enem para obter a diplomação do ensino fundamental e médio (INEP, 2016)

De acordo com o INEP (2016), a cada edição o Enem recebe mais inscrições de brasileiros que desejam um diploma de ensino médio. No entanto, reitera que para isso os candidatos a tal diplomação precisam:possuir 18 anos completos na data do ENEM; indicar que desejam a certificação e escolher na inscrição do ENEM uma instituição certificadora na cidade em que reside ou nas proximida- des (instituições públicas ou particulares); ter obtido no mínimo, 450 pontos em cada uma das quatro provas objetivas do Enem e 500 na redação.

Assim, na educação superior, a metade das vagas deve ser destinada a estudan- tes com renda familiar inferior ou igual a um salário mínimo e meio por pessoa. No que tange à distribuição de vagas, as universidades federais e os institutos tec- nológicos federais deveriam alcançar o percentual de 50% de pretos, pardos e in- dígenas na composição da comunidade acadêmica e ou escolar, até o ano de 2016. Como podemos observar, a adoção das cotas raciais foi de suma importância para a construção social do lugar do negro na universidade brasileira, em especial das mulheres negras, pois elas têm acessado muito mais o ensino superior do que

os homens negros, que ainda são vitimados pela violência urbana (IPEA, 2013)

Considerações Finais

No que tange o ingresso das trabalhadoras domésticas na educação superior, pudemos verificar pelos dados do “Dossiê Mulheres Negras: retrato das condi- ções de vida das mulheres negras no Brasil”, produzido pelo IPEA (2013), que o número de jovens no trabalho doméstico tem diminuído, o que nos remete à hi- pótese de que essas mulheres tem tido outras oportunidades, principalmente no âmbito da educação, por meio da certificação de competência (EJA), pelo ENEM, bem como pela consolidação do sistema de cotas nas universidades federais.

Recentemente, em 2006, o IBGE realizou um estudo sobre o perfil dos tra- balhadores domésticos nas seis regiões metropolitanas investigadas pela pesquisa mensal de emprego (Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Porto Alegre). Tal investigação verificou que os trabalhadores domésticos representavam 8,1% da população ocupada no agregado dessas seis regiões metropolitanas, composto predominantemente por trabalhadoras do sexo feminino (94,3%), pretas e par- das (61,8%), com baixo índice de escolaridade e um alto índice de informalidade. Para além, tal pesquisa constatou que os jovens da classe trabalhadora, com até 17

anos de idade, representavam apenas 1,9% dos trabalhadores domésticos nas seis regiões metropolitanas investigadas (IBGE, 2006).

Em contraposição, dados recentes da Pesquisa Nacional de Domicílios (PNAD), divulgada pelo IBGE no primeiro trimestre de 2015, relatam que o trabalho doméstico voltou a aumentar no Estado do Rio de Janeiro. Ao todo, um quantitativo de 6.019 milhões de pessoas estava nessa ocupação no período. Em contraposição, no primeiro trimestre de 2016 eram 5.929 milhões de pessoas no trabalho doméstico (IBGE, 2015 apud REVISTA EXAME, 2015).

Portanto, apesar de tais números variarem em função da conjuntura de crise econômica do país, o acesso e a permanência das trabalhadoras domésticas negras na educação superior pode ser um disparador importante para entendermos se essas mulheres têm conseguindo a capacitação para ocuparem outros postos de trabalho, melhor remunerados.

Portanto, se faz necessário repensar a totalidade desse processo de mudanças na legislação educacional e na legislação trabalhista referentes ao trabalho do- méstico, como por exemplo, se o sistema de cotas e recente regulamentação do trabalho doméstico têm corroborado para o acesso dos trabalhadores domésticos aos direitos sociais, principalmente à educação superior

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Assistente Social. Doutoranda do Programa de Pós Graduação da Escola de Serviço Social da UFRJ. cibhenriques@gmail.com.
2 Os atos Institucionais promoveram a cassação dos direitos políticos e dos mandatos de líderes políticos, sindicais e intelectuais que se opuseram a esse sistema autoritário.
3 Desde o final dos anos 1960 até a década de 1970, a expansão do setor privado laico ocorreu basicamente através da proliferação de estabelecimentos isolados de pequeno porte. A partir da segunda metade da década de 1970, o processo de organização institucional do setor pri- vado sofreu uma transformação gradual. Num primeiro momento, alguns estabelecimentos isolados transformaram-se em federações de escolas, através de um processo de fusão. Num momento posterior, a partir do final da década de 1980, o movimento de transformação de estabelecimentos isolados em universidades se acelerou: entre 1985 e 1996, o número de universidades particulares mais do que triplicou, passando de 20 a 64 estabelecimentos (MARTINS, 2009, p.23). Artigo recebido no mês de dezembro de 2016 e aceito para publicação no mês de fevereiro de 2017.
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