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Seção livre: Políticas Públicas de Geração de Renda e Desenvolvimento: uma avaliação do microcrédito
Alcides Fernando Gussi; Raul da Fonseca Silva Thé
Alcides Fernando Gussi; Raul da Fonseca Silva Thé
Seção livre: Políticas Públicas de Geração de Renda e Desenvolvimento: uma avaliação do microcrédito
O Social em Questão, vol. 20, núm. 37, pp. 241-254, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Este trabalho avalia as políticas de microcrédito, seus limites e possibilidades, bem como seus impactos sociais. Partindo de uma discussão teórica sobre desenvolvimento, apre- senta os resultados de uma pesquisa avaliativa do Programa de Crediamigo do Banco do Nordeste. Tem como base os pressupostos da “avaliação em profundidade”, fundada em uma perspectiva etnográfica, que toma como referência as representações dos sujeitos institucionais e beneficiários sobre o Crediamigo. Como conclusão, a pesquisa aponta que o programa se orienta para a afirmação do desenvolvimento econômico, nos padrões universalizantes do mercado, com efeitos limitados ao desenvolvimento social e à erradi- cação da pobreza dos beneficiários.

Palavras-chave:MicrocréditoMicrocrédito,AvaliaçãoAvaliação,Políticas PúblicasPolíticas Públicas,DesenvolvimentoDesenvolvimento,Banco do NordesteBanco do Nordeste.

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Iniciais

Seção livre: Políticas Públicas de Geração de Renda e Desenvolvimento: uma avaliação do microcrédito

Alcides Fernando Gussi
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
Raul da Fonseca Silva Thé
Universidade Estadual do Ceará (UECE), Brasil
O Social em Questão, vol. 20, núm. 37, pp. 241-254, 2017
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Políticas Públicas de Geração de Renda e Desenvolvimento: uma avaliação do microcrédito1

Alcides Fernando Gussi2 Raul da Fonseca Silva Thé3

Resumo

Este trabalho avalia as políticas de microcrédito, seus limites e possibilidades, bem como seus impactos sociais. Partindo de uma discussão teórica sobre desenvolvimento, apre- senta os resultados de uma pesquisa avaliativa do Programa de Crediamigo do Banco do Nordeste. Tem como base os pressupostos da “avaliação em profundidade”, fundada em uma perspectiva etnográfica, que toma como referência as representações dos sujeitos institucionais e beneficiários sobre o Crediamigo. Como conclusão, a pesquisa aponta que o programa se orienta para a afirmação do desenvolvimento econômico, nos padrões universalizantes do mercado, com efeitos limitados ao desenvolvimento social e à erradi- cação da pobreza dos beneficiários.

Palavras-chave

Microcrédito; Avaliação; Políticas Públicas; Desenvolvimento; Banco do Nordeste.

Public Policy of Generation of Income and Development: an evaluation of microcredit

Abstract

This paper evaluates the micro-credit policies, its limits and possibilities, as well as its social impacts. From a theoretical discussion about development, presents the results of an evaluation research about the Crediamigo, program of Banco do Nordeste, as as- sumption of “evaluation in-depth” founded in an ethnographic perspective, that takes as reference the representations of institutional subjects and beneficiaries on Crediamigo. In conclusion, the research shows that the program is oriented towards the affirmation of economic development, in universalizing market standards, with limited effects on social development and the eradication of poverty of the beneficiaries.

Keywords

Microcredit; Evaluation; Public Policy; Development; Banco do Nordeste.

Introdução

Contemporaneamente, políticas públicas de microcrédito têm se apresentado como alternativas de geração de renda e emprego para famílias e comunidades em situação de exclusão social e pobreza.Tendo se alinhando, frequentemente, às políticas de desenvolvimento de vários países, dentre eles, o Brasil4.

Aqui se objetiva avaliar as experiências gestadas por esses programas e po- líticas de microcrédito, ao tempo que se reflete acerca de seus limites e pos- sibilidades. Do mesmo modo, busca-se compreender como os seus impactos sociais, em última instância, poderiam levar ao desenvolvimento por meio e com a erradicação da pobreza. Para tanto, inicia-se com uma discussão analítica em torno do desenvolvimento, enquanto se observa, empiricamente,em que medida essas experimentações contribuem para a melhoria das condições de vida das famílias alcançadas, levando, a partir disso, ao desenvolvimento.

Especificamente, pretende-se apresentar o resultado de pesquisa avaliati- va realizada sobre o Programa de Crediamigo do Banco do Nordeste, a partir dos pressupostos de uma “avaliação em profundidade” (RODRIGUES, 2008; 2011). Alicerçada em uma perspectiva etnográfica, que toma como ponto de partida as representações dos sujeitos institucionais e clientes sobre o Cre- diamigo em Fortaleza (CE), busca-se reconstruir a trajetória institucional do programa (GUSSI, 2008)5.

Para fins de exposição, o presente texto está dividido em quatro partes, na quais realizamos: (i) a discussão teórica sobre desenvolvimento; (ii) a descrição da perspectiva metodológica utilizada para a avaliação do Programa Credia- migo; (iii) os resultados alcançados com essa avaliação; e (iv)as considerações finais, refletindo acerca dos limites e possibilidades do alcance das políticas de microcrédito como política de desenvolvimento.

Uma discussão teórica sobre desenvolvimento

De acordo com os objetivos deste artigo, a fim de compreender as experi- ências de microcrédito como políticas de geração de emprego e renda no con- texto contemporâneo, realizamos um percurso visando discutir, teoricamente, noções de desenvolvimento.

A literatura sobre o tema do desenvolvimento permite que pensemos, antes de tudo, que se trata de uma noção que revela um caráter polissêmico, remeten- do à construções teóricas circunscritas aos seus diversos contextos históricos, políticos, institucionais e intelectuais. O que é importante destacar é que essas

noções de desenvolvimento orientam a formulação e implementação de políticas públicas nesses diversos contextos, como as de microcrédito, discutidas aqui.

A questão que colocamos em discussão é se o desenvolvimento é orientado por um caráter universal, válido para todas as sociedades, ou se é válido, de forma particular, tão somente às sociedades e a grupos sociais específicos. Como pressu- posto, para responder a essa questão, inspiramo-nos em Brandão (2005) segundo o qual não se pode estabelecer leis universais acerca de um processo multidi- mensional e de estruturas qualitativas que constitui o desenvolvimento. Partindo dessa questão e do pressuposto de Brandão (2005), discutimos acerca das noções de desenvolvimento por meio de um percurso entre abordagens e autores.

Inicialmente, situemos a teoria de Rostow (1981) que constitui um para- digma ainda muito presente nas políticas de desenvolvimento. O autor entende que existam etapas de desenvolvimento econômico pelas quais todas as socie- dades inexoravelmente tendem a passar6, sustentando sua teoria do caráter uni- versal e unidirecional do processo de desenvolvimento, que se apoia no modelo tecnológico e capitalista dos países centrais, em um processo unilateral e uni- direcional. Tal proposta estabelece uma teoria geral e universal do desenvolvi- mento, sobretudo baseada em critérios econômicos, tais como: renda, nível de preços, inversões e pagamento de salários.

A teoria economicista de Rostow (1981) que prevê uma historicização – abso- lutização de um caso histórico - dos processos de desenvolvimento humano, váli- dos para todas as sociedades, pode ser contraposta às teorias de Caio Prado Júnior (1968) e de Celso Furtado (1984). Ambos realizam uma crítica ao reducionismo da economia ortodoxa quanto aos processos de desenvolvimento, considerando a história de cada sociedade como redutora e que imprime particularidades ao processo de desenvolvimento, ancorado em dimensões “não econômicas”, como a dimensão social, da política e da cultura. Portanto, para os autores, o processo de desenvolvimento é multidirecional.

Consideramos, de passagem, Prado Jr. (1968). Este autor propõe a análise his- tórica para o entendimento do desenvolvimento, a qual não é realizada por Rostow, pois esse último não explica os fatores que levaram ao desenvolvimento. Para Prado Jr. (1968), Rostow não identifica fatos específicos atuais e sua interligação com os pro- cessos históricos não se ajustam “a modelos a priori” baseados na institucionalização das relações capitalistas de produção de países que foram seus pioneiros na formação capitalista. Prado Jr (1968) sustenta que é a partir da especificidade própria de cada país que se deve indagar sobre o seu desenvolvimento, como é o caso do Brasil7.

De mesma forma, situemos Furtado (BRANDÃO, 2005; FURTADO, 1984). Para Furtado, as dimensões históricas são também elementos chaves para a com- preensão dos processos de desenvolvimento. Contudo, o autor compreende que estes processos são resultados de condicionantes estruturais – condições econô- micas e sociais de reprodução das sociedades – e também históricas. Segundo Brandão (2005), na abordagem estrutural-histórica de Furtado há uma apreensão da estrutura e da história na teoria do desenvolvimento, e, pode-se dizer, entre a macroeconomia e a microeconomia, em que essa última revela campos de deci- sões que interagem com as determinações socioeconômicas estruturais. Trata-se de pensar “heterogeneidades estruturais” para situar, por exemplo, as economias periféricas e o subdesenvolvimento, e, como contraponto, as economias centrais. É neste sentido que Furtado (1984) reconstrói a ideia de que o desenvolvi- mento – “satisfação das necessidades básicas da coletividade” – constitui um pro- cesso endógeno de transformação como resultado da vontade coletiva e impul- sionado pelo poder político. Para Furtado, o desenvolvimento é uma “invenção”, pois deve combinar o encontro criativo entre a cultura dos povos – ou seja, ser ancorada na sua identidade cultural – e as possibilidades de transformação. Ainda, o Estado - legitimado politicamente em torno de vontades coletivas – constitui o agente privilegiado para conduzir macro decisões num contexto entre a macroe- conomia e a pluralidade de decisões no nível microeconômico; portanto, cabe ao

Estado promover políticas de desenvolvimento (BRANDÃO, 2005).

Ancorado na perspectiva de Furtado, Brandão (2004, 2005) faz algumas críti- cas sobre o debate atual acerca do desenvolvimento. Para este autor, o desenvol- vimento “adjetivado” (econômico, sustentável, social, ecológico, local, regional, etc.), presente em algumas teorias contemporâneas acerca do desenvolvimento, encontra-se focado no localismo e nas ações alternativas dos sujeitos, comunida- des e instituições, como nas propostas de desenvolvimento do Banco Mundial.

Todavia, ainda segundo as críticas de Brandão (2004, 2005), essas teorias ex- cluem as dimensões estruturais e multidimensionalidade do processo de desen- volvimento, desconsiderando aspectos, tais como, o ambiente macroeconômico, os conflitos políticos, a estrutura de classes e as conformações do espaço nacio- nal. Há enquadramentos e hierarquias de poder entre microprocessos e micro- decisões, e macroprocessos e macrodecisões, reveladoras de mediações entre o espaço local e o global.Trata-se de pensar a história e as especificidades nacionais como mediadoras dos processos de desenvolvimento e que devem nortear as li- nhas gerais da implementação de políticas públicas.

O debate entre os autores sobre as noções de desenvolvimento aponta para algumas variáveis analíticas contrapostas, apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1.Variáveis analíticas acerca do desenvolvimento

Fonte: Elaboração do autor

Resta saber em que medida as políticas de microcrédito, objeto de análise deste artigo, poderiam ensejar alternativas de desenvolvimento, entre a econo- mia e a cultura, que nos conduzam, sobretudo, a Furtado (1984) e a sua ideia do desenvolvimento entre a “transformação” e a “invenção”. É sobre esta pergunta analítica que nos orientamos na avaliação sobre o Programa Crediamigo do Banco do Nordeste, apresentada adiante.

A metodologia da pesquisa avaliativa sobre o Crediamigo

Como escopo metodológico para a avaliação do Crediamigo do Banco do Nordeste, tomamos a formulação de Rodrigues (2008;2011) sobre avaliação em profundidade, que orienta, paradigmaticamente, a nossa perspectiva avaliativa.

Nessa avaliação, Rodrigues (2008; 2011) privilegia a abordagem inter- pretativa, em especial pelo esforço de tratar dados de diferentes tipos levan- tados no contexto do campo da política em avaliação,como, por exemplo: entrevistas em profundidade, aliadas à observação, análise de conteúdo de material institucional e apreensão e compreensão dos sentidos e significados atribuídos no decorrer do processo descrito pela política ou programa. Por- tanto, alia-se a uma perspectiva teórico-metodológica que considera tanto a avaliação quanto a política ou programa de forma multidimensional, em uma leitura extensiva, detalhada e densa.

Sobre esse esforço avaliativo, a autora ainda apresenta a perspectiva et- nográfica, sob o horizonte disciplinar da antropologia, como expertise me- todológica privilegiada para avaliação de políticas públicas. Desse modo, se constitui por meio da construção de marcos em busca de uma “descrição densa” – tal como compreende Geertz (1978) – das políticas, programas e projetos.Assim, a avaliação em profundidade de Rodrigues(2008; 2011) aponta para quatro dimensões consideradas essenciais para uma avaliação, a saber: aanálise de conteúdo, o contexto da formulação, a extensão temporal e territorial e a construção detrajetórias institucionais.

Diante deste propósito metodológico, os desenvolvimentos e usos de cada uma das quatro dimensões são primordiais para os encaminhamentos do campo compreensivo em avaliação de políticas públicas. Neste intento, Gussi (2008), especificamente,passa a tratar a noção de trajetória como aporte fundamental para ampliação vertical da perspectiva avaliativa proposta por Rodrigues (2008).Tal no- ção é encontrada, empiricamente, no contexto da pesquisa de campo a partir das representações dos sujeitos envolvidos na política, como campo compreensivo pri- vilegiado para o desenvolvimento e problematizaçãoda pesquisa avaliativa.

Nesse intuito, em sua proposta, Gussi (2008) busca realizar um estudo so- bre a dimensão da trajetória coletiva-institucional das políticas e programas, entendendo-a como devir submetido à incessantes transformações advindas de forças e intencionalidades internas e externas, além de compreender que esta construção tem como base os aspectos culturais das instituições, que circuns- crevem osresultados das políticas, programas e projetos.

Assim, na pesquisa avaliativa, consideramos tanto os distintos posicionamen- tos dos sujeitos (e da instituição) no contexto social e histórico, como as interpre- tações destes acerca de tais posicionamentos, construindo suas trajetórias a partir de suas próprias representações. As trajetórias são entendidas como instrumento metodológico estratégico para a compreensão da processualidade e para a cons- trução do diálogo entre as temporalidades, discursos e compreensão histórica coletiva e social e a vivência singular e individual. Por meio das narrativas e de relatos de vida, é possível formular a compreensão do contexto social em que os sujeitos se inserem, assim como das representações de tais sujeitos a partir das evocações realizadas por estes, por exemplo, nas entrevistas.

A proposta metodológica aqui apresentada transpõe a noção de trajetória para considerar uma política pública ou um programa. A ideia está situada em entender a política/programa não em um sentido único, mas estando circunscrita às ressig-

nificações, segundo seus distintos posicionamentos nos vários espaços institucionais (ou fora deles) que percorre, ou seja, de acordo com seus deslocamentos na insti- tuição ou na comunidade destinatária desta política ou programa (GUSSI, 2008).

Nesse sentido, compreendemos que a avaliação em profundidade de uma po- lítica, programa ou projeto deve conhecer os diferentes atores institucionais e destinatários desta. Ao passo que um processo de imersão, no campo, no senti- do etnográfico, tem de se dedicar a construir uma “descrição densa” (GEERTZ, 1978). Assim, propomos, metodologicamente, que uma avaliação deva (re)cons- truir as trajetórias das políticas, compreendendo seus diversos sentidos.

Essas trajetórias circunscrevem os resultados das políticas, portanto, consti- tuem dimensões fundamentais para aprofundamentos da avaliação de políticas pú- blicas. A seguir, apresentamos os resultados da experiência avaliativa do Programa Crediamigo, em que utilizamos, metodologicamente, a noção de trajetória no escopo de uma “avaliação em profundidade” (RODRIGUES, 2008; 2011).

Avaliação da trajetória do Programa Crediamigo do Banco do Nordeste8

O Crediamigo iniciou-se com um projeto piloto em 1997, passando efe- tivamente a operar em 1998 com a abertura de 45 unidades. Atualmente está presente em toda a área de atuação do Banco do Nordeste (os nove estados da região, o norte de Minas Gerais e do Espírito Santo, além das cidades Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro). O programa tem por finalidade fornecer pequenos empréstimos de R$100 a R$6 mil, de acordo com a ne- cessidade e o porte do negócio. A realização do crédito se faz de forma não burocrática. O financiamento dos nanonegócios9 se dá por meio do chamado “aval solidário” que consiste de uma garantia, oferecida pelo grupo formado pela sociabilidade anterior ao crédito, de maneira que o empréstimo não é fornecido individualmente. Assim, a oferta de empréstimos a grupos de pes- soas tem como meta o aval mútuo, de forma a entregar aos próprios clientes a função de garantir, cobrar e monitorar o pagamento uns dos outros (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 2014).

O seu público-alvo, sobretudo, está na baixa renda. É constituído por autô- nomos, donos de pequenos negócios e trabalhadores informais que necessitam de crédito para gerar fonte de renda no setor da indústria (sapatarias, arte- sanato etc.), do comércio (mercadinhos, armarinhos, farmácias etc.), ou de serviços (salões de beleza, borracharias, oficinas mecânicas). Notadamente, os empréstimos concedidos são destinados à formação capital de giro, pelo pro-

duto Giro Solidário, à aquisição de máquinas, equipamentos e à realização de reformas (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 2014).

Atualmente, após dezoito anos de atuação, os resultados sobre o Crediami- go, divulgados pelo Banco do Nordeste do Brasil, indicam: um aumento sempre crescente nas contratações e nos clientes ativos do programa; que uma grande parte dos empréstimos tem sido destinada ao Giro Solidário de sua carteira ativa; que a maior quantidade de empréstimos é destinada às mulheres (62,35%); e, finalmente, que o estado do Ceará apresenta-se como o maior beneficiado e com um maior número de clientes do Crediamigo, com cerca de um terço destes. (BANCO DO NORDESTE DO BRASIL, 2014).

Como nosso objetivo avaliativo sobre o Crediamigo se encaminha a partir da busca por compreender os significados acerca do programa, realizamos o acompanhamento deste em seu contexto institucional e entre os clientes de Fortaleza. Visando, assim, construir uma trajetória multidimensional desta política mediante os sentidos e significados atribuídos reflexivamente pelos agentes inseridos neste campo.

A análise dos resultados da avaliação realizada aponta o programa como im- pactante na renda dos clientes, ampliador do crédito nas classes mais baixas, assim como um catalisador da ampliação e mudança do perfil laboral e de renda. Apesar desse quadro, a condição de vida desses clientes permaneceu estável, alterando-se apenas a condição de consumo doméstico das famílias envolvidas. Não houve, po- rém, mudança significativa em outros aspectos da vida, tais como: escolaridade, ca- pacitação profissional, moradia, saúde e lazer (SILVA, 2010; GUSSI e SILVA, 2011).

A apreensão dessas necessidades surge nos clientes no momento em que se afirma, por um lado, a perspectiva de uma cidadania comprada, em que a integração se dá pelo consumo. Enquanto, de outro lado, se pontua para a necessidade de um maior aprofundamento da política por meio de capacitação para o trabalho, qualidade de informação e conhecimento para as atividades e a melhoria das condições de vida em geral. Tendendo, assim, a acúmulos de capital para além do econômico e do consumo.

Nesse caminho, os sujeitos institucionais e clientes concordam na compre- ensão do Programa Crediamigo como aquele que mais representa a imagem atual do Banco do Nordeste. Isso porque este é o programa com mais clientes e o mais reconhecido nacional e internacionalmente, tornando-se a principal estratégia institucional de desenvolvimento para um grande setor da economia nacional e regional, o setor informal.

Outro ponto importante do Crediamigo, dentro da ótica dos sujeitos ins- titucionais no Banco do Nordeste, é seu significado como inflexão para uma mudança institucional, composta por dois matizes: um vinculado à entrada e à mudança de vida do cliente no programa, com um viés mercadológico de sucesso, envolvendo a bancarização, o aumento de renda e do faturamento; e o segundo, que entende a mudança como progressão nos perfis de clientes, em que pese o crescimento do empreendimento, tendendo o cliente a passar de Crediamigo Comunidade para Crediamigo Giro Solidário e, deste, para o Crediamigo Individual, até que o faturamento do empreendimento supere R$ 60 mil/ano e o cliente esteja apto a subir na pirâmide dos programas do Banco para Micro e Pequena Empresas.

Este segundo matiz, na verdade, apresenta-se de forma geral entre os pro- gramas do Banco do Nordeste, na visão institucional, como forma de angariar clientes em uma faixa de renda e promover seu crescimento de faturamento e, portanto, de renda. Estes clientes alcançam serviços bancários antes vedados a eles, havendo,neste processo, um crescimento econômico. Apesar disso, esse aporte maior de renda se realiza dentro de uma lógica de mercado, enquanto que os impactos sociais são postos em segundo plano, pois são entendidos na ótica institucional como decorrência do primeiro.

Ou seja, para as interpretações dos sujeitos institucionais, a bancarização é o primeiro passo do cliente para sua entrada no mercado, e esta entrada significa crescimento e desenvolvimento. Assim, o olhar da instituição opera de um ponto de vista mercadológico, em que mesmo a lógica solidária é ins- trumentalizada para a lógica de mercado.

Quanto aos clientes, suas narrativas relataram mudanças ocorridas em suas vidas após sua inserção no programa e o que eles veem de aspectos positivos e negativos, expressando o que o Crediamigo lhes oferece, não somente para seu próprio trabalho, mas para os clientes do Banco em geral, além de indicarem o que poderia melhorar. Tais aspectos mostram-se importantes, pois, por meio deles, os clientes manifestaram suas representações, visões, versões, inversões e perspectivas sobre o programa, em relação às suas próprias histórias de vida, o que possibilita refletir sobre os impactos do programa10.

As narrativas dos clientes elucidam a oportunidade que o programa de micro- crédito oferece a seus clientes, a de conseguirem um empréstimo com baixas taxas de juros, algo que outros bancos não lhes possibilitam. Esta facilidade, do ponto de vista dos clientes, assegura que possam montar um (nano)negócio próprio e/ou dar

continuidade aeste e podendo, assim, ter uma fonte de renda que se revela como alternativa para aqueles que não estão inseridos no mercado formal de trabalho.

Por outro lado, por meio de algumas críticas a determinados pontos do pro- grama, ou até mesmo do silêncio gerado após perguntas sobre os seus aspectos negativos, percebemos que os clientes consideram que o Crediamigo tem limites e não satisfaz completamente suas necessidades sociais.

Os resultados da pesquisa inferem a ideia de desenvolvimento dentro da qual o Crediamigo está inscrito no Banco do Nordeste. Qual seja: o Crediamigo orienta-se, primeiramente, para a dimensão econômica, com foco no aumento da renda e do consumo dos beneficiários, implicando um desenvolvimento vin- culado à integração laboral, ao consumo individual e o efeito indireto no pró- prio mercado. De outro lado, observam-se representações dos sujeitos institu- cionais e do próprio banco conflitantes acerca do Crediamigo. Particularmente, nelas é possível referenciar a importância, tanto para a pesquisa quanto para os próprios sujeitos institucionais, da ideia de desenvolvimento, ao afirmarem, alguns,que a instituição é um banco de desenvolvimento e que, por isso, deva atentar para além da dimensão econômica.

Considerações Finais

Como articulação conclusiva acerca da avaliação do Crediamigo realizada, faz-se necessário a compreensão comparada entre as interpretações dos clientes e dos sujeitos institucionais. Estas se pautam por um trânsito entre duas lógi- cas, a de solidariedade e a do mercado. Em relação à primeira, a percepção dos clientes passa pela dificuldade de mantê-la, pelo peso da dívida contraída pelo Crediamigo e pela cobrança mútua entre eles, enquanto que, para os sujeitos institucionais, a lógica da solidariedade constituiu-se como utilitária para a ar- ticulação instrumental de uma estratégia bancária do programa para garantia o crédito e ampliação da sua carteira de empréstimos.

Quanto à lógica do mercado, as visões se encontram no reconhecimento do processo de bancarização, via Crediamigo, como meio de oferecimento de servi- ços bancários aos clientes. Especificamente entre os sujeitos institucionais, ocorre a compreensão de que a oferta de crédito tem relevância mediante à inserção de pessoas no mercado, especialmente o bancário.

Em outro ponto, os clientes aproximam o Crediamigo às formulações de desenvolvimento socioeconômico, notando que o programa leva a uma amplia- ção da renda, ainda que haja uma estagnação em indicadores de melhorias nas

suas condições de vida, reveladoras de déficit no que consiste à busca por um desenvolvimento social. Enquanto os sujeitos institucionais valoram o cresci- mento financeiro do empreendimento e seu possível crescimento na escala dos programas do Banco, entendendo a dimensão social do Crediamigo como uma consequência da ampliação de renda.

Com isso, retomamos a problemática do desenvolvimento, a qual nos orien- ta analiticamente, finalizando com uma pergunta investigativa que pode vis- lumbrar futuros estudos e pesquisas no campo do microcrédito. Ou seja, em que medida o microcrédito pode, então, efetivamente, ensejar alternativas de desenvolvimento?Alternativas essas que reconduzam a pensar o desenvolvimento com Furtado (1984), da busca de satisfação das necessidades básicas da coletividade, em um diálogo entre a “economia” e a “cultura”, entre a “transformação” e a “inven- ção”, enquanto rompe com uma visão meramente econômica do desenvolvimento. As pesquisas avaliativas sobre o microcrédito e seus impactos socioeconô- micos, que ora realizamos, apontam mais para os limites que para as possibilida- des da consecução dessas perspectivas alternativas de Furtado. Por outro lado, estes programas reificam o desenvolvimento segundo uma lógica economicista e universal, e menos voltada para as reais necessidades dos sujeitos alcançados pelo programa. As possibilidades limitadas de redução efetiva da pobreza apre- sentam a necessidade de que outra perspectiva de desenvolvimento oriente o microcrédito, baseada em uma concepção que se atente às particularidades históricas e culturais dos sujeitos alcançados pela política/programa, especial-

mente daqueles em situação de total exclusão social.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
1 Primeira versão apresentada durante a VII Jornada Internacional de Políticas Públicas, realizada em 2015 na Universidade Federal do Maranhão. O presente artigo e a pesquisa que o precedeu recebeu apoio de fomento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
2 Pós-Doutorando em Avaliação de Políticas Públicas na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professor do Curso de Gestão de Políticas Públicas e do Mestrado de Avaliação de Políticas Públicas (MAPP) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenador do Núcleo Multidisciplinar de Avaliação de Políticas Públicas (Numapp). E-mail: agussi@uol.com.br
3 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Estadual do Ceará (UECE), atualmente bolsista de pós-graduação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Pesquisador vinculado ao Núcleo Multidisciplinar de Avaliação de Políticas Públicas (Numapp). E-mail: raulsilvathe@gmail.com.
4 Sobre a gênese contemporânea do microcrédito, remetemos aYunus (2000).
5 Trata-se de parte dos resultados do Projeto de Pesquisa “Políticas públicas de geração de renda & desenvolvimento: avaliação dos impactos do microcrédito em Fortaleza” Se possível informar outros dados do projeto. Projeto desenvolvido junto ao Núcleo Multidisciplinar Avaliação de Políticas Públicas (NUMAPP) da Universidade Federal do Ceará (UFC), com financiamento promovido pela própria universidade e apoiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), por meio do Projeto Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC).
6 Rostow enquadra as sociedades em suas dimensões econômicas em cinco categorias a partir dessas etapas, brevemente caracterizadas: 1) as sociedades tradicionais: trata-se das sociedades agrícolas que têm sua produção limitada e uma ciência de tecnologia pré-newtonianas, nas quais as mudanças sociais são lentas e a estrutura social e valores morais são bastante rígi- dos, sendo controladas pelos poderes locais; 2) Sociedades com pré-condições para o arranco: apresentam inovações tecnológicas, fruto da ciência moderna, e apresentam novas atividades econômicas, como o comércio e a manufatura, tratando-se de sociedades de transição - ou pré-capitalistas – submetidas ao Estado nacional; 3) Sociedades de arranco: apresentam uma revolução tecnológica que resulta na emergência das sociedades industriais e, em decorrência disso, de mudanças profundas na estrutura econômica, social e política; 4) Sociedades em mar- cha para a maturidade: calculadas para desenvolver-se nos sessenta anos 5) Finalmente, a “Era do Consumo de massa” em que o desenvolvimento é baseado na produção de produtos duráveis de consumos e no setor de serviços, produzindo excedente para recursos à assistência social.
7 Prado Jr (1968, p. 20) considera: “Na história é que se encontra o material básico para a compre- ensão da realidade brasileira atual e não nas abstrações da análise econômica que não se ajustam as situações da realidade, como a brasileira. Daí relacionar desenvolvimento e historiografia.”. Importar tabla
8 Para um maior aprofundamento da avaliação realizada sobre o Crediamigo na população de baixa renda de Fortaleza, remetemos a: Silva (2010); Gussi e Silva (2011).
9 Negócios com dimensões diminutas ou “nanicas”, vinculados aos seguimentos formal ou informal na dimensão da nanoeconomia. Sendo, assim, menores que a dimensão micro, ou seja, não são micronegócios, mas nanonegócios. (ver NERI e GIOVANINI, 2005).
10 Para detalhamento analítico das narrativas dos beneficiários, remetemos a Thé (2013) e Thé e Pereira (2012). Artigo recebido em junho de 2016 e aceito para publicação em agosto de 2016.
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