Crise do capital e impactos da reestruturação produtiva na produção de calçados
Crise do capital e impactos da reestruturação produtiva na produção de calçados
Haidée de Caez Pedroso Rodrigues.
Resumo
Este artigo é fruto de pesquisa realizada junto ao ramo de calçados na região do Vale dos Sinos/RS. Com base na teoria marxiana, o foco desta investigação voltou-se às principais conexões econômicas e políticas existentes entre as grandes e pequenas empresas e os sindicatos de trabalhadores. A metodologia empregada foi entrevista com representantes institucionais. Os resultados nos levam à reflexão sobre as par-ticularidades da produção do mais-valor, assim como às formas contemporâneas de subsunção do trabalho ao capital, conformando as atuais expressões da questão social, no universo das suas contradições, o que inclui desafios para organização sindical na atualidade.
Palavras chave
Trabalho. Reestruturação produtiva. Micro e pequenas empresas. Questão social.
Sindicato.
Capital crisis and impacts of productive restructuring on footwear production
Abstract
This article is the result of research carried out with the footwear industry in the Vale of Sinos/RS region. Based on marxian theory, the focus of this investigation has focused on the main economic and political connections between large and small businesses and labors unions. The methodology used was an interview with insti-tutional representatives. The results lead us to reflection on the particularities of the production of surplus-value, as well as to the contemporary forms of subsunción of labor to capital, conforming the current expressions of the social issue, in the univer-se of its contradictions, which includes challenges for trade union organization today.
Keywords
Labor. Productive restructuring. Small business. Social question. Unions.
Artigo recebido em novembro de 2019
Artigo aceito em dezembro de 2019
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Introdução
O presente artigo é fruto de acúmulos teóricos e empíricos de pes-quisa realizada junto aos sindicatos de trabalhadores e empresas na produção de calçados na região do Vale dos Sinos, localizada no estado do Rio Grande do Sul (RS). O foco desta investigação voltou-se às prin-cipais conexões econômicas e políticas existentes entre as grandes e as micro e pequenas empresas (MPEs) e os sindicatos de trabalhadores. Tal realidade nos fez refletir tanto sobre as atuais modalidades da produção do valor, via extração do mais-valor absoluto e relativo, como também as formas contemporâneas de subsunção do trabalho ao capital.
Nossos estudos têm como referência a teoria marxiana que parte do pressuposto teórico-metodológico de que a análise do desenvolvi-mento do capitalismo não é somente o estudo das leis tendenciais do seu modelo econômico, mas também das relações sociais que o con-formam e que lhe dão sustentação. Marx (1979) nos ensina que para apreensão dos fenômenos e do seu movimento é necessário partir do concreto, porque o concreto é a síntese de múltiplas determinações e, portanto, a unidade do diverso. Nas palavras de Marx:
[...] a investigação tem de se apropriar da matéria em seus deta-lhes, analisar suas diferentes formas de desenvolvimento e ras-trear seu nexo interno. Somente depois de consumado tal tra-balho é que se pode expor adequadamente o movimento real. (MARX, 2013, p. 90).
Na literatura pesquisada percebemos que o atual estágio do desenvolvimento do capitalismo tem cada vez mais acirrado as contradições entre classes, refletindo as principais expressões da questão social., tanto em seus aspectos econômicos, sociais e cul-turais.. Do ponto de vista da produção, uma das principais conse-quências da expansão do capital voltou-se à flexibilização da pro-dução, através de subcontratações, em especial através das Micro e Pequenas Empresas (MPEs).
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As principais questões que serviram de ponto de partida para esta investigação foram: Qual a relação produtiva entre as MPEs e as gran-des empresas? Quais as estratégias de gestão do trabalho por parte das MPEs? Quais as implicações políticas, econômicas e sociais dessa divisão do trabalho? Quais são as particularidades do desenvolvimen-to das cadeias produtivas a partir das MPEs na atualidade?
Este estudo teve por objetivo central contribuir para o acúmulo teórico da discussão sobre o mundo do trabalho no cenário con-temporâneo e das atuais expressões da questão social, investigando as principais conexões da produção na realidade das MPEs e suas relações com as grandes empresas e associações de classe, prin-cipalmente no que se refere à gestão do trabalho nas MPEs, em um contexto social, político e econômico da terceirização, flexibilização e precarização. do trabalho no Brasil.
Por se tratar da análise das expressões da questão social na atua-lidade, e sendo este o objeto de intervenção dos Assistentes Sociais, este estudo também buscou contribuir para o esclarecimento da re-alidade na atual correlação de forças entre classes no que tange às principais formas de gestão do trabalho que podem impactar a inter-venção do Serviço Social em determinados locais onde há uma es-pecialização produtiva, tanto da sua inserção em empresas como em políticas sociais ou em demais espaços socioinstitucionais.
Em termos metodológicos realizamos pesquisa bibliográfica e en-trevistas junto a representantes institucionais, como sindicatos de tra-balhadores e MPEs, através de questionário com perguntas abertas. As questões contidas nos questionários abrangeram temas diversos, como: dados de identificação e histórico de desenvolvimento das ins-tituições junto ao setor calçadista na região; relação com os poderes governamentais locais; análise sobre a relação entre a produção e o desenvolvimento local; visões sobre a terceirização e a rede de pro-dução; perfil e qualificação dos trabalhadores; gestão da força de tra-balho; trabalho em domicílio; prevenção de acidentes de trabalho e
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saúde do trabalhador; principais atuações dos sindicatos patronal e dos trabalhadores; impactos a partir da reforma trabalhista; particula-ridades do trabalho feminino; perspectivas futuras para a produção de calçados e direitos trabalhistas.
Na primeira parte deste artigo apresentaremos o debate teórico so-bre a crise do capital e as estratégias de reorganização produtiva que impactaram o mundo do trabalho. Num segundo momento, aborda-remos um breve histórico da constituição da produção de calçados na região do Vale dos Sinos/RS bem como as atuais estratégias da pro-dução flexível via interiorização e descentralização produtiva. Por fim, constam nossas principais conclusões.
Crise estrutural do capital e os impactos à classe trabalhadora
O sistema capitalista, ao longo de seu desenvolvimento, vivencia e supera crises que não possuem uma única causa, sendo se tratar do resultado da dinâmica contraditória do seu próprio modo de produ-ção. Existem diversas possibilidades de ocorrência dessas crises e há a propensão em produzir graves tensões no processo de acumulação. Tendem a ter o efeito de expandir a capacidade produtiva e de renovar as condições de acumulação.
Para Harvey (2005), as crises do capital podem desencadear os seguintes processos: (1) penetração do capital em novas esferas de atividade; (2) expansão dos pontos de troca dentro do sistema de pro-dução e diversificação da divisão do trabalho; (3) criação de novos desejos e novas necessidades; (4) facilitação e estímulo para o cres-cimento populacional num índice compatível com a acumulação em longo prazo; (5) expansão geográfica para novas regiões.
Embora saibamos que tenham ocorridos crises em diferentes paí-ses nas últimas décadas, há de se destacar que a crise do capital vi-venciada desde os anos de 1970 é fundamentalmente uma crise estru-tural que atingiu de forma particular as relações políticas e econômicas mundiais (MÉSZÁROS, 2011). Como resposta, observamos a ampliação
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da criação de aglomerados produtivos que visam minimizar os custos de circulação e o tempo de giro do capital a partir da descentralização produtiva e de uma maior racionalização da produção territorial.
Isso ocorre porque “a crise afeta o processo de trabalho e eleva seu grau de intensidade, constituindo-se assim num mecanismo impres-cindível para a recomposição do crescimento e acumulação do valor” (DAL ROSSO, 2008, p. 44). Portanto, a diminuição do tempo de ciclo do capital é fundamental para a aceleração da produção, o que é mais van-tajoso quando há a concentração da produção em determinadas loca-lidades que se especializam na fabricação de mercadorias específicas.
As estratégias para a superação dessa crise estrutural articularam medidas tanto no âmbito da reestruturação produtiva, financeiriza-ção da economia e políticas neoliberais. Ao que se refere especifi-camente à reestruturação produtiva, as principais mudanças volta-ram-se para a instauração de processos produtivos inovadores tanto na produção como nas relações de trabalho, sob forte influência do modelo japonês ohnista/toyotista.
Suas principais características são: institucionalização da polivalên-cia do trabalhador, em que o trabalhador passa operar várias máquinas simultaneamente e num nível máximo de intensidade; importação de técnicas de gestão tipo just in time e kanban tanto para as empresas “mãe” quanto para as subcontratadas, o que significa produzir somen-te o necessário e no menor tempo, cuja reposição de produtos ocorre somente após a sua venda; introdução de incrementos tecnológicos, provocando a extinção de milhares postos de trabalho; flexibilização dos processos de trabalho., dos mercados e dos padrões de consumo, em contraposição aos modelos de produção em massa que predomi-nou as formas de produção durante décadas; transferência da base industrial dos países desenvolvidos para localidades onde o custo da força de trabalho é mais barato (ANTUNES, 2006a).
Tais mudanças na esfera da produção impactaram também a subjeti-vidade dos trabalhadores visando a adesão deles aos ideários da acumu-
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lação do capital. O que envolve estratégias de incorporação de valores e práticas que misturam “repressão, familiarização, cooptação e coope-ração, elementos que têm que ser organizados não somente no local do trabalho como na sociedade como um todo” (HARVEY, 2014, p. 119).
Devido à descentralização produtiva, aos processos flexíveis de subcontratação e terceirização, cresceu o número das Micro e Peque-nas Empresas (MPEs) criadas. Muitas delas, inclusive, formadas por trabalhadores que foram expulsos das grandes empresas e que pas-saram a fornecer serviços para as mesmas só que sob a condição de pessoa jurídica e não mais como assalariado.
Os números de representatividade das MPEs sob a contratação da força de trabalho são de fato impactantes. Por exemplo, de 2000 a 2008 as MPEs foram responsáveis por aproximadamente 54% dos empregos formais no Brasil e em 2008, os pequenos negócios res-pondiam por 51% da força de trabalho urbana empregada no setor privado (MADI; GONÇALVES, 2012).
Apesar do aumento do grau de formalidade, isso não significa, ne-cessariamente, a garantia de proteção social e o aumento no padrão de vida dos trabalhadores nas MPEs. Inclusive porque “há indícios de que as pessoas ocupadas [nas MPEs] recebam remuneração média real inferior às ocupadas nas grandes empresas em todas as regiões do país” (SANTOS et. al. 2012, p. 10).
Os dados a respeito da qualificação dos trabalhadores empregados nas MPEs também revelam a predominância da baixa escolaridade, sendo muito pequena a participação dos trabalhadores cursando ou que tenham concluído o ensino superior. E é o segmento que possui o maior número de horas trabalhadas (MADI; GONÇAVES, 2012).
Vejamos a seguir as particularidades da produção na região do Vale dos Sinos/RS que expressam a adoção dessas medidas flexíveis como o exemplo da substituição da produção de uma empresa por várias pequenas unidades interligadas por rede, com expansão do trabalho em domicílio remunerado por peça/produção..
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Formação da cadeia produtiva do ramo calçadista no Vale dos Sinos/RS
Segundo a Associação Brasileira de Indústria de Calçados (ABICAL-ÇADOS, 2016) a origem da produção de calçados no Brasil ocorre no Rio Grande do Sul através dos colonizadores em 1824, em sua maio-ria de origem alemã, que se instalaram na região do Vale do Rio dos Sinos.. Possuíam já experiência na confecção de artigos de selaria e modelos rudimentares de calçados, como botas e sapatos, feitos prin-cipalmente com sobras de couro e outros utensílios.
Faziam inicialmente para o consumo interno e desenvolviam esse artesanato como atividade complementar às atividades agrícolas. Com o desenvolvimento da manufatura na capital e posterior divisão do trabalho artesanal, se ampliou o comércio de calçados. Emergindo inúmeros estabelecimentos familiares que trabalhavam com o benefi-ciamento do couro, que passaram a fabricar manufaturas em um pro-cesso basicamente artesanal. (HENRIQUES, 1999).
As mudanças tecnológicas na produção e no setor de transportes ocor-ridas no início do séc. XX impulsionaram a fabricação de calçados, mas ainda com a forte presença do trabalho artesanal (CARNEIRO, 1986). Ao final dos anos de 1950, o mercado nacional estava consolidado e aponta-va sinais de saturação. Foi o período em que começou o investimento na exportação da produção local e a região do Vale dos Sinos/RS se especia-lizou na produção de calçados femininos. Nos anos de 1960 a organização da produção ainda permanecia com forte conteúdo artesanal, de inten-sivo emprego de força-de-trabalho e com o predomínio de pequenas e médias empresas subcontratadas (COSTA, 2004).
Uma grande transformação no setor calçadista veio a se institucio-nalizar com o desenvolvimento da produção de calçados injetáveis de plásticos e solados injetados diretamente no cabedal (REICHERT, 2004). Do ponto de vista industrial, os calçados de plástico apresentavam al-gumas vantagens, pois eram produzidos em série, com custos mais bai-xos e utilizavam pouca força de trabalho. Inicialmente, sua produção
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seria destinada ao mercado interno, mas nas décadas seguintes passou a atingir também o mercado internacional (CARNEIRO, 1986, p. 141).
Os anos 1970 marcaram a internacionalização da produção e sua diversificação. Constituindo-se como um novo impulso ao crescimen-to. A incorporação dos métodos tayloristas-fordistas propiciou ganhos de escala e produtividade no trabalho. Porém, muitos trabalhadores foram expulsos das fábricas, gerando bolsões de miséria nas periferias das cidades da região. Entre o período dos anos 1980 a 1990 muitas das pequenas e médias empresas fecharam, sendo o mercado mono-polizado pelas grandes indústrias.
A maioria dos trabalhadores desempregados formaram pequenas empresas, as “fabriquetas” ou “ateliês”., onde os trabalhadores, que já sabiam o ofício da fabricação do sapato, produziam sapatos artesanais. Posteriormente, a maioria desses trabalhadores viraram subsidiários das grandes empresas, em geral de maneira informal e de caráter domiciliar, principalmente para realizar a costura do sapato e fornecer insumos.
Na década de 1990 ocorreram significativas mudanças econômicas que impactaram a comercialização dos calçados em escala mundial, principalmente com a concorrência direta dos produtos asiáticos, em especial os provenientes da China. A valorização da taxa de câmbio prejudicou a competitividade das exportações e barateou a importa-ção, afetando o setor (HENRIQUES, 1999).
Com o ingresso nos anos 2000 o mercado estava dividido entre os produtores de calçados de menor valor agregado que ficou a car-go dos países asiáticos, enquanto os países tradicionais, como a Itá-lia, ocupavam nichos de mercado com marca e design sofisticados (CAMPOS; CALANDRO, 2009). Diante deste cenário, abriu-se ainda mais espaço para as terceirizações e flexibilização do processo produ-tivo na região do Vale dos Sinos/RS, principalmente via descentraliza-ção da produção e subcontratação de força de trabalho. Em especial nas zonas rurais, onde se encontravam trabalhadores em abundância e sem a tradição de organização sindical.
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Manifestações da questão social frente a interiorização e descentralização da produção de calçados na região do Vale dos Sinos/RS
As estratégias de interiorização e descentralização da produção cal-çadista no Vale dos Sinos/RS é fruto das intervenções da reestruturação produtiva. É quando a produção se expande às microrregiões vizinhas com o objetivo de ampliar a terceirização. As empresas de produção verticalizadas foram substituídas por uma gestão horizontalizada com o predomínio de redes de subcontratação, na qual a subcontratante (em geral, representada por uma empresa de grande porte), solicita à outra, a subcontratada (representada às vezes por empresas pequenas, por indivíduos isolados ou conjunto deles), a elaboração ou beneficia-mento de um produto inteiro ou de parcela dele, sob a forma de peças ou componentes, ou até mesmo um serviço que vai compor de algum modo seu produto final. Essa relação pode ser formalizada via contrato convencional ou por acordo verbal (RUAS, 1993).
O processo de terceirização, em muitos dos casos, passa também pela quarteirização, em que a pré-fabricação é transferida para as MPEs, que por sua vez, deslocam parte das tarefas para os ateliês de menor porte ou para o trabalho nos domicílios. Um dos impactos so-ciais mais expressivos foi o aumento no ocultamento das situações de trabalho infantil historicamente já existentes, além das demais condi-ções precárias às quais os trabalhadores necessitam se submeter para garantia de sua sobrevivência.
A interiorização da produção permitiu a contratação precária de trabalhadores nas zonas rurais, pois a característica econômica e so-cial da região é marcada pela forte presença da agricultura familiar de origem colonial e, principalmente, sem histórico de organização sindi-cal (SCHNEIDER, 2004).
A parcialização da produção só pode ser realizada dessa maneira porque no ramo dos calçados as várias etapas do processo produtivo podem ser executadas de forma independente umas das outras. Além
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do que necessitam de poucos investimentos em capital fixo; deman-dam contratação de força de trabalho em abundância que em geral é de baixa qualificação; possibilita a fragmentação do processo produti-vo, favorecendo o surgimento de empresas especializadas em um ou mais partes do processo produtivo. Portanto, é um setor que possibilita a coexistência de empresas modernas de grande porte com pequenas empresas de produção artesanal (SOUZA, et. al., 2012), mesclando-se processos de acumulação de valor tanto via a extração de mais-valor relativo quanto de mais-valor absoluto10.
A combinação do trabalho em domicílio com a cultura de desmobi-lização política dos trabalhadores nas zonas rurais enfraquece a capa-cidade de luta, resistência e organização deles em prol de seus direi-tos. Essa “rede” de subcontratação ou de fornecedores está no modelo de desenvolvimento da produção flexível, uma vez que a forma de organização mais recomendada é a de pequenas unidades flexíveis, interligadas e organizadas de forma horizontal. Nesse sentido, a tercei-rização significa incluir outras empresas como parceiras na cadeia de criação de valor, mas sob o controle e comando das grandes empre-sas monopolizadoras do mercado (REICHERT, 2004, p. 59).
O cenário de contradições entre as necessidades de expansão do capital e as condições de pauperização dos trabalhadores foi alvo de reivindicações históricas por parte da organização sindical dos sapa-teiros. Em nossos estudos e pesquisas identificamos que a intervenção política dos sindicatos emergiu na região nos anos de 1930, caudatários de um contexto político de organização dos trabalhadores em âmbito nacional. Ampliaram sua mobilização nos anos de 1940 e 1950 com a criação também do sindicato dos trabalhadores do ramo de vestuário.
A formação dessas entidades surgiu a partir da necessidade de representação política dos trabalhadores principalmente para lutar por piso salarial e melhores condições de trabalho. A queda significa-tiva no número de trabalhadores sindicalizados ocorreu nos anos de 1990 quando também acontece a crise econômica no setor, gerando
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o aumento do desemprego devido ao fechamento de muitas fábricas e crescimento da subcontratação.
Ainda assim, atualmente os trabalhadores na região do Vale dos Sinos/RS contam com representação sindical que reivindicam di-reitos trabalhistas principalmente através de mecanismos de con-venções coletivas junto ao segmento patronal. O foco dessas reivin-dicações continua sendo a garantia de piso salarial e condições de trabalho para os trabalhadores formalizados nas grandes empresas e nas MPEs, porém, sem atingir o segmento dos trabalhadores infor-mais, o que inclui os das zonas rurais.
Temos que destacar que, apesar dos acordos coletivos serem en-tre o sindicato dos trabalhadores e o sindicato patronal, eles não são cumpridos na sua integralidade, sendo muitas vezes “flexibilizados” na relação entre os sindicatos dos sapateiros e as MPEs. Mesmo com as condições de trabalho preconizadas nos acordos coletivos, as MPEs argumentam não contarem com as mesmas estruturas das grandes empresas e que, por tais razões, não podem efetivar todas as determi-nações que constam nos acordos coletivos porque isso implicaria em possível demissão de funcionários.
As MPEs constituem o segmento que mais emprega a força de trabalho na região, devido às estratégias de subcontratação. Tal característica faz com que elas disponham de forte peso econômico e político local com os quais os sindicatos dos sapateiros possuem limitações nas negociações.
Observamos em nossa pesquisa que os representantes dos sindicatos dos sapateiros intervêm a partir de uma espécie de “negociação local” quando as MPEs não conseguem viabilizar as garantias consolidadas no acordo coletivo. Na prática, esses sindicatos são convocados para agir quando há resistência por parte de trabalhadores em aceitar a flexibili-zação de alguns direitos, geralmente ligados às condições de trabalho. As lideranças sindicais passam a atuar no sentido de estabelecimento de consensos entre trabalhadores e MPEs sob a justificativa de permanência dos empregos que, muitas vezes, ferem as garantias sociais.
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Em geral, esses acordos “locais” com as MPEs são de caráter in-formal e chega-se a um consenso coletivo sobre os limites e pos-sibilidades das MPEs têm em cumprir ou não as determinações das convenções entre sindicato de trabalhadores e sindicato patronal. Ha-bitualmente, o resultado desse processo é a flexibilização dos direitos dos trabalhadores. Em determinado momento as MPEs até são vistas pelos sindicatos como “funcionários” das grandes empresas.
Tal realidade expressa as atuais formas de subsunção formal e real dos trabalhadores ao capital. Marx (2004) afirma que, historicamen-te, em distintas fases de desenvolvimento do capitalismo ocorre-ram momentos de subsunção, a formal11 e a real12. O que permanece constante, do nosso ponto de vista, desde a subsunção formal e real quanto atualmente é a necessidade de estabelecimento de relações de dominação política, via consenso ou coerção, para além das rela-ções de dependência econômica.
Sabemos que a produção do valor ocorre através da exploração da força de trabalho, via extração de mais-valor no processo produtivo (MARX, 2013). A retirada e flexibilização de direitos sociais nas MPEs contribui para o rebaixamento dos custos com a força de trabalho, não somente em relação ao salário do trabalhador, mas a um conjunto de garantias sociais, ampliando as possibilidades de extração de mais--valor e, portanto, de acumulação de capital.
O que favorece a acumulação de capital tanto nas MPEs quan-to nas grandes empresas. O que há de “novo” é que a flexibilização dos direitos sociais ocorre com a anuência dos representantes da classe trabalhadora, os sindicatos. Esses, ao atuarem junto às MPEs acabam por favorecer uma postura passivizadora dos trabalhadores opondo-se a uma atitude de maior mobilização e enfrentamento às contradições entre classes.
Além do mais, parece o sindicato dos trabalhadores realizar uma distinção entre os “trabalhadores empregados nas grandes empresas”, com garantias sociais sólidas e aqueles “trabalhadores empregados nas
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pequenas e médias empresas” com garantias sociais flexíveis e, portan-to, sob a condição de trabalhadores precários. Parece-nos ter se crista-lizado, e que não é característica só da produção calçadista, mas uma tendência mundial, uma cisão entre a defesa dos direitos dos trabalha-dores em melhores inserções produtivas com emprego formal, o que inclui melhores salários, qualificações e serviços assistenciais por parte dos sindicatos, e os chamados trabalhadores precarizados.
Se os sindicatos dos trabalhadores por um lado ajudam na garan-tia de permanência dos postos de trabalho junto às MPEs, por ou-tro contribui para a flexibilização dos direitos sociais historicamente defendidos. Esta contradição está no centro das relações de classe conformando o que pode ser analisado como elemento novo des-sas relações nas atuais formas de subsunção do trabalho ao capital: “se, historicamente, o trabalho sempre esteve subordinado, o que de 'novo' emerge é a tentativa de obter o consentimento ativo dos tra-balhadores ao atual processo de recomposição do capital” (MOTA; AMARAL, 2010, p. 36) (grifos das autoras).
Do nosso ponto de vista, o consentimento ativo constitui-se en-quanto o aprofundamento da construção da hegemonia por meio das estratégias de coerção e consenso, mas sem, necessariamente haver intervenção direta do Estado. A coerção está posta pela de-pendência econômica, cada vez mais ampliada, do trabalho ao capi-tal e o consenso se institui a partir das escolhas e possibilidades que os representantes de classe adotam diante da correlação de forças possíveis a cada conjuntura histórica.
Na nossa análise, a representatividade política dos trabalhadores via organização sindical construída ao longo de décadas no ramo dos calçados na região do Vale dos Sinos/RS pode se encontrar ameaçada por duas ordens de questões: a primeira delas refere-se ao conjunto de medidas que atacam diretamente a classe trabalhadora e suas or-ganizações representativas e institucionais, com o exemplo da recente reforma na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); a segunda é uma
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crise de legitimidade dos sindicatos pelos mesmos não atenderem às expectativas do conjunto expressivo de trabalhadores “precários”.
Como consequência a representação sindical dos trabalhadores tende a assumir o discurso empresarial, ainda que somente nas MPEs, o que favorece a subordinação dos trabalhadores às mesmas e destas às das grandes empresas, pois os aspectos de tensionamento colo-cados pelas condições de trabalho precárias são “abafadas” dada a postura conciliatória assumida por esses sindicatos junto às MPEs.
Tal cenário político contribui para a diminuição de processos ideo--políticos de tomada de consciência de classe, dada a capacidade de direção e estabelecimento de consensos dos trabalhadores com os re-presentantes do capital. O que amplia as possibilidades de maior alie-nação dos trabalhadores perante o processo produtivo. Cada vez mais se distanciam as mediações que ligam o trabalhador enquanto sujeito histórico transformador da sociedade, tanto nas relações de produção social quanto de reprodução, fortalecendo o ideário da subjugação.
Considerações finais
Percebemos, ao longo da explanação, que as estratégias de su-peração da crise do capital impactaram sobremaneira as condições materiais e subjetivas dos trabalhadores, principalmente no que se refere à capacidade organizativa deles para a garantia dos seus direi-tos sociais. Na produção de calçados na Região do Vale dos Sinos/RS também não foi diferente, pois tais medidas intensificaram a subcon-tratação já existente e ampliaram parte considerável da produção para a modalidade de trabalho em domicílio.
Embora os sindicatos dos trabalhadores tenham conseguido man-ter o espaço da negociação coletiva com o segmento patronal, preva-lecem constantes ataques do capital à classe trabalhadora, ainda que sob formas veladas ou dissimuladas, configurando-se em formas con-temporâneas de expressão da questão social. Exemplo disso, men-cionamos as ações dos sindicatos dos sapateiros junto às MPEs, que é
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limitada, possibilitando a violação de garantias contidas nas negocia-ções dos acordos coletivos sob o argumento de garantia de empregos.
Portanto, é necessário resgatar a luta histórica da classe trabalha-dora para recompor as estratégias de luta e mobilização social com o intuito de ampliação da consciência de classe frente à conjuntura adversa, o que do nosso ponto de vista deve incluir a participação dos trabalhadores “precários”.
A manutenção do espaço das negociações coletivas é uma con-quista histórica para os trabalhadores, mas devem ampliar as pautas políticas tanto para incluir as desigualdades de gênero de forma mais contundente, quanto avançar em demais pautas que possam barrar os processos de terceirização que intensificam as formas de exploração da força de trabalho e aumentam a informalidade no setor.
Cabe aos profissionais de Serviço Social, que atuam diretamente nas expressões da questão social - enquanto contradições entre a classe tra-balhadora e o capital - realizarem leituras críticas sobre a realidade parti-cular da produção nas localidades onde estão inseridos. Para que possam agir em prol da defesa e ampliação dos direitos dos trabalhadores diante de conjunturas e correlação de forças adversas e,assim, consigam intervir em consonância com os princípios do projeto ético-político da profissão, mas com o devido olhar investigativo necessário na análise do real e pro-positivo no sentido da garantia e ampliação dos direitos sociais.