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Seção livre:Justiça Ambiental, direito à cidade e ciganos Calon
Erika dos Santos Tolentino
Erika dos Santos Tolentino
Seção livre:Justiça Ambiental, direito à cidade e ciganos Calon
O Social em Questão, vol. 21, núm. 40, pp. 333-360, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Este estudo tem o objetivo de articular os conceitos de justiça ambiental e direito à cidade para refletir a incidência da crise socioambiental na população de ciganos Calon. Considerando que questões socioambientais e de urbanização sobrevêm de maneira diferenciada em diversos grupos, entendemos que os ciganos Calon viven- ciam situações que os vulnerabilizam, onde identificamos que suas necessidades não estão na centralidade da discussão, tanto no meio público-político quanto aca- dêmico, comparada a outros grupos socialmente estigmatizados. Relacionar esses conceitos para conjecturar sobre essa etnia significa um esforço para que suas con- dições de existência possam ser cada vez mais descortinadas.

Palavras-chave:Ciganos CalonCiganos Calon,justiça ambientaljustiça ambiental,direito à cidadedireito à cidade,questões socioambientaisquestões socioambientais,população tradicionalpopulação tradicional.

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Artigos

Seção livre:Justiça Ambiental, direito à cidade e ciganos Calon

Erika dos Santos Tolentino
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Brasil
O Social em Questão, vol. 21, núm. 40, pp. 333-360, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Justiça Ambiental, direito à cidade e ciganos Calon

Erika dos Santos Tolentino.

Resumo

Este estudo tem o objetivo de articular os conceitos de justiça ambiental e direito à cidade para refletir a incidência da crise socioambiental na população de ciganos Calon. Considerando que questões socioambientais e de urbanização sobrevêm de maneira diferenciada em diversos grupos, entendemos que os ciganos Calon viven- ciam situações que os vulnerabilizam, onde identificamos que suas necessidades não estão na centralidade da discussão, tanto no meio público-político quanto aca- dêmico, comparada a outros grupos socialmente estigmatizados. Relacionar esses conceitos para conjecturar sobre essa etnia significa um esforço para que suas con- dições de existência possam ser cada vez mais descortinadas.

Palavras-chave

Ciganos Calon; justiça ambiental; direito à cidade; questões socioambientais; popu- lação tradicional.

Environmental Justice, right to the city and gypsies Calon Abstract

This study aims to articulate the concepts of environmental justice and the right to the city to reflect the incidence of the socioenvironmental crisis in the population of Calon gypsies. Considering that socio-environmental and urbanization issues arise in different ways in different groups, we understand that the Calon gypsies experience situations that make them vulnerable, where we identify that their needs are not in the centrality of the discussion, both in public-political and academic environments, compared to others socially stigmatized groups. To relate these concepts to conjec- ture about this ethnic group means an effort so that their conditions of existence can be more and more uncovered.

Keywords

Gypsies Calon; environmental injustice; right to the city; social-environmental issues;

traditional population.

Artigo recebido: outubro de 2017 Artigo aprovado: dezembro de 2017

Introdução

A contemporânea crise socioambiental, considerando o conceito de Porto e Porto (2015) e Vieira (2009), que relacionam sua gênese à atual crise estrutural do capital, resultante do modo de produção vigente com o esgotamento dos recursos do planeta e suas conse- quências, vem cada vez mais produzindo discussões acerca de direi- tos humanos, meio ambiente, dinâmicas das cidades, desigualdades sociais, econômicas, étnicas, racismo ambiental e justiça ambiental. A partir de Vieira (2009) consideramos a crise socioambiental a par- tir de fatores econômicos, socioambientais, políticos e culturais, que são uma combinação de interesses econômicos baseados no modo de produção capitalista. Essa forma de produção, pautada na acu- mulação, que explora o homem e o ambiente em busca de constante manutenção e aumento de lucros, contam com posicionamentos e disputas políticas em torno da defesa dos interesses dos proprietá- rios e tem um vasto universo de dominação cultural, que se apresen- ta na disputa da consciência e dos desejos dos indivíduos, fomen- tando o incentivo ao consumo como padrão de vida.

Diversas correntes permeiam o debate e embora as propostas de enfrentamento, bem como a própria apreensão do conceito de crise socioambiental seja distinto, um ponto em comum é o reconhecimento da incompatibilidade da atual forma de produção e reprodução humana na sociabilidade capitalista com a possibili- dade de continuidade de exploração da natureza. Como exemplo as teorias e soluções de matriz neomalthusianas, que entendem que o aumento populacional é um grande causador da crise so- cioambiental e ainda, as soluções pautadas no desenvolvimento sustentável, como alternativa à crise, a insustentabilidade do dis- curso sustentável, que prevê um uso racional do planeta visando o bem estar das gerações futuras, mas que, não pressupõe uma mudança radical no que tange a produção voltada para as neces- sidades de consumo.

O filósofo Leonardo Boff (2009), apresenta e desenvolve uma críti- ca sobre três tendências mundiais que visam propor uma saída para a crise da economia e da ecologia, resumidamente, são elas: o neocapi- talismo, que não concebe o fim do capitalismo, mas que entende a ne- cessidade de uma refundação, principalmente modificando as noções baseadas no capitalismo consumista norte-americano; o crescimento verde, que se funda nas premissas de incentivo a formas alternativas de produção, como pequenos agricultores e na produção industrial mais limpa, com o máximo de redução de carbono. Essas mudanças compõem uma alternativa a crise, que visa unir política, economia e ecologia. E, a terceira teoria apresentada é o ecossocialismo, uma pro- posta de ruptura radical com a atual ordem, com uma economia que respeite os ritmos da natureza e seja baseada em valores não mone- tários. A principal crítica do autor é que nenhuma dessas teorias prevê uma mudança da relação entre a humanidade e o planeta, que enten- da o homem como parte do sistema e que rompa com a relação de dominação deste com a natureza.

Outro ponto latente na sociedade é como a desigualdade social promove os impactos e os custos da crise socioambiental de maneira muito diferente nos diversos grupos sociais. E essa divisão desigual dos custos da exploração da natureza acaba por impactar mais uns grupos do que outros. Uma hipótese é que essa maior exploração e exclusão da apropriação da riqueza produzida ocorram devido à ca- pacidade de organização política e resistência de determinados gru- pos frente às questões vivenciadas. No que localizamos os ciganos Calon, reconhecidos como população tradicional brasileira, através do Decreto nº 6.040 de 2007 que institui a Política Nacional de Desenvol- vimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) e que por razões dos preconceitos, perseguições e estigmas vivenciados em toda sua história, percebe-se uma capacidade de mobilização de diferente expressividade comparada a outros grupos como os catado- res de materiais recicláveis, os indígenas, os quilombolas, o MST, entre

outros, considerando ainda que o “movimento cigano” no Brasil data da década de 1980, segundo Shimura (2017).

O conceito de estigma estudado pelo sociólogo canadense Erving Goffman, na obra Estigma (1963), contribui na análise da temática a partir de suas considerações acerca dos traços possuídos por deter- minada pessoa e/ou grupo e que lhe conferem uma série de conside- rações sociais pré-existentes que o desqualificam, enquanto totalida- de do ser para evidenciar o diferente. Essas características contribuem na construção da identidade social e na percepção que a sociedade construirá deste, numa relação discrepante entre a identidade social real, aquela aos quais os sujeitos se reconhecem enquanto comum e a identidade social virtual, aquela criada no imaginário popular e que se consolida na relação com a população estigmatizada.

A discussão de justiça ambiental, trazida por Acselrad (2009 e 2010), busca problematizar que nenhum grupo social sofra com maio- res e desiguais penalidades em decorrência da crise socioambiental. Tal conceito, nascido na década de 1970 nos Estados Unidos, segundo o autor, advém de uma ressignificação da interpretação da questão ambiental, onde os movimentos por justiça social passam a incorpo- rar a discussão ambiental em suas manifestações sociopolíticas, ten- do como ponto de partida o racismo ambiental sofrido por negros norte-americanos. Somamos a esse conceito, a temática do direito à cidade, defendida por Harvey (2014), que compreende as formas de construção do espaço urbano, os impactos do processo da urbaniza- ção, a construção e reconstrução dos sujeitos nas cidades e o acesso a serviços públicos, onde se evidencia que as injustiças ambientais in- fluenciam no desigual direito à cidade.

Relacionando com o caso dos ciganos Calon, considerando um grupo que vive em determinado espaço urbano do Rio de Janeiro, destacamos o próprio acesso a terra, no que tange a destinação de espaços para estabelecimento e permanência de acampamento; as condições de moradia, e acesso aos bens naturais e sociais do local

onde vivem, como uma das principais demandas reivindicativas que

caracteriza o direito à cidade.

Propomos a divisão deste artigo em dois itens. O primeiro tópico discutirá crise socioambiental, justiça e injustiça ambiental, articu- lando com a questão cigana de etnia Calon. Utilizaremos em nossa análise a base teórica de autores das Ciências Sociais, do Serviço Social, da Antropologia e da História. Empregaremos como base os estudos de: Porto e Porto (2015) e Acselrad (2006, 2009 e 2010) no campo das Ciências Sociais; Soares e Gomes (2013) e Silva (2010) referente ao Serviço Social; Souza (2013), Ferrari (2010) e Shimura (2017) são as contribuições antropológicas; e Teixeira (2008) da área de História. O segundo ponto partirá dos estudos de Harvey (2009) e (2014) para compreender a relação desta etnia com o direito à cida- de, focando no acesso a terra e a moradia, bens cada vez mais mer- cantilizados e apropriados pelo capital; o que impacta diretamente na expulsão das populações mais pobres para áreas da cidade mais suscetíveis aos impactos da crise socioambiental.

A proposta consiste em oferecer contribuições para o debate acerca dos custos desiguais da crise socioambiental, considerando seus impactos no direito à cidade e as injustiças a que certos grupos estão suscetíveis, incluindo a etnia cigana. Atendendo os limites a que este estudo está exposto e a própria complexidade da temáti- ca, não temos a pretensão de esgotar as questões em análise, mas oferecer problematizações que possam contribuir para o debate na arena política e acadêmica.

Crise socioambiental e justiça ambiental

Como ponto de partida de nossa discussão, torna-se pertinente demarcar o uso do termo socioambiental. Tal consideração é cabível, pois nenhum conceito é neutro, descolado de uma dimensão e posi- cionamento ético e político. Assim, a partir das contribuições de Soa- res e Gomes (2013) entendemos que socioambiental significa compre-

ender que as relações sociais e do meio ambiente estão conectadas. Toda ação humana gera um impacto na natureza e todas as mudanças da natureza refletem na condição de vida humana.

A relação homem–natureza é vital para a sobrevivência da espé- cie humana. Desde os primórdios da humanidade, o homem extrai da natureza o necessário para a sua sobrevivência. Contudo, nes- ses primórdios, essa relação metabólica, visando a sua subsistência, apesar de gerar algum tipo de impacto se desenvolvia de forma mais contrabalançada. Porém, com o início do modo de produção capita- lista, a industrialização e a urbanização, bem como toda a mudança nos modos de vida da população, a natureza passou a ser vista como fonte inesgotável de oferta de matéria-prima, tendo como função servir o homem. E essa serventia não se pautava mais na necessi- dade de subsistência, mas sim na necessidade de acumulação. De acordo com Vieira (2009), essa industrialização pesada, combinada com a evolução tecnológica e o estímulo a padrões de consumo ele- vados, resultou em graves desequilíbrios ambientais em todo o glo- bo, o que nos sugere a insustentabilidade desse padrão de produção, de vida e consumo. Segundo Silva (2010, p. 45): “Sob o signo do ca- pital, a humanidade vem aprofundando sua trajetória de destruição da natureza, em níveis cada vez mais inquietante”.

A crise socioambiental está diretamente relacionada aos claros si- nais de esgotamento do modo de produção capitalista, onde as crises sistêmicas são na verdade crises estruturais que, segundo Wanderley (2009, p. 21), “[...] são aquelas que abalam os alicerces, os fundamentos, os valores, as interpretações [...]”. O planeta dá sinais claros de que a ação de produção e consumo humano é incompatível à manutenção da vida. Segundo Boff (2009, p. 42), a humanidade ultrapassou em 2008, 30 % a capacidade de suporte e reposição do planeta, isso significa que estamos consumindo tudo que o planeta pode nos oferecer mais 30 %. A passagem do fordismo para o toyotismo mostrava o esgotamento de uma produção em massa para consumo em massa, o sistema se

reinventou com a produção atendendo às necessidades de consumo. Entretanto, apesar de se tratar de diferentes modos de produção, com mudanças estruturais no mundo do trabalho, vemos que o cerne da questão não se modificou e que na verdade a produção e o estímu- lo ao consumo continuam em massa (com outras roupagens como, a obsolescência programada de mercadorias), pois a produção do ca- pital não é para atender a necessidade humana, mas para atender a necessidade de acumulação. E essa produção em massa extrai cada vez mais os recursos da natureza.

Silva (2010) discute a crise socioambiental a partir da compreen- são de sua formação no modo de produção capitalista, recuperan- do a história desde o período de acumulação primitiva, descrito por Marx em O Capital, para chegar à mudança da relação entre indús- tria e agricultura e toda sua consequência na transgressão da relação entre o homem e a natureza. Uma delimitação importante trazida é sua demarcação ao uso do termo questão ambiental em detrimento de crise ambiental, onde expõe que crise ambiental é um termo em disputa, e que possui múltiplos sentidos; já questão ambiental seria mais apropriada por abranger uma dimensão mais ampla das ori- gens e consequências da crise. Segundo Silva (2010), o termo ques- tão ambiental refere-se:

[...] ao conjunto das manifestações da destrutividade da nature- za cujas raízes encontram-se no desenvolvimento das relações de propriedade e seus desdobramentos sociopolíticos, para os quais a ação dos movimentos ambientalistas teve importância fulcral (SILVA, 2010, p.82).

Outro ponto que destacamos das contribuições de Silva (2010) é a referência a David Harvey no livro O Novo Imperialismo, mas precisa- mente ao conceito de acumulação por despossessão. Esse termo pre- tende partir da análise de acumulação primitiva de Marx para entender como o capitalismo na sua atual fase de acumulação financeira inova

as formas de se apropriar dos bens e riquezas para continuar acumu- lando. Assim a ação de acumulação primitiva se mantém de maneira mais evoluída e se materializa, por exemplo, na total mercantilização da terra, na constante expulsão de populações tradicionais de sua área pelo capital, na mercadificação de recursos ambientais e no aumento de conflitos urbanos. Tal conceito é importante para articularmos o direito à cidade para a população Calon e os limites de acesso a esses direitos impostos pela disputa com o capital.

Porto e Porto (2015) contribuem para compreendermos a crise so- cioambiental como produção da sociedade industrial de consumo. Se- gundo o autor, o debate em torno dessa questão começa a ganhar o centro mundial e, sobretudo, o brasileiro já no fim do século XX, após a década de 1970. O autor destaca quatro importantes pontos que estão fazendo com que a crise esteja cada vez mais presente na arena política:

(i) A crescente degradação ambiental em várias regiões do planeta e o reconhecimento científico dos riscos ecológicos globais [...];

(ii) O agravamento dos problemas ambientais presentes nas re- giões e aglomerados urbano-industriais [...];

(iii) A previsão de escassez de recursos naturais básicos para a produção e consumo das sociedades industriais [...];

(iv) A crescente pressão política de novos movimentos sociais (PORTO; PORTO, 2015, p.155).

Em se tratando de Brasil, podemos trazer, como exemplo, o desma- tamento da Amazônia causado pelo agronegócio, extração clandestina de madeira, entre outros fatores. Tal situação é de tamanha gravidade, pois encontra anuência do próprio poder público, no caso o Estado brasileiro. Dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia., uma organização científica, não governamental e sem fins lucrativos, criada em 1995, revelam que foi aprovado no Congresso brasileiro no mês de maio de 2017 as Medidas Provisórias 756/2016 e 758/2016, que

aguardam sanção presidencial, as quais pretendem reduzir a extensão de unidades de conservação florestal. Segundo o Instituto, o caso mais grave do desmatamento ocorrerá na Floresta Nacional do Jamanxim, localizada no Pará, que possui uma área de cerca de 557.058,20 hec- tares, de acordo com o Instituto Chico Mendes, e que caso a medida realmente entre em vigor tende a perder até 2030 cerca de 280 mil hectares, o que equivale à emissão de 140 milhões de toneladas de gás carbônico na atmosfera. Sem contar a perda inestimável de flora e fauna e o impacto nas populações locais.

A chamada bancada BBB – Boi, Bala e Bíblia – do Congresso brasi- leiro, representantes dos interesses do capital, sendo correspondidos pelo atual governo, têm apresentado grandes retrocessos nas políticas ambientais. Além das medidas já pontuadas, destacamos a Lei 13.465 de 2017, que vem sendo duramente criticada por entidades de defesa ambiental, por extinguir áreas de proteção ambiental e o Decreto Nº 9.142/2017, assinado pelo presidente que extingue a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca), uma área de quase 47 mil km quadra- dos – maior que o território do Espírito Santo –, que inclusive possui populações indígenas residindo no local, localizada na Floresta Ama- zônica. Somam-se a isso, cortes no orçamento do Ministério do Meio Ambiente, que somente em 2017 teve 43% do seu orçamento cortado. e da Fundação Nacional do Índio, que perdeu 347 cargos do seu qua- dro de recursos humanos e 44 %. dos recursos orçamentários, somente em 2017, em meio a uma crescente violação de direitos e assassinatos de povos indígenas, quilombolas e diversos outros grupos tradicionais, por garimpeiros, pecuaristas, grileiros, entre outros. Tal contexto é de importante compreensão para se pensar os limites da possibilidade de demarcação de terra para ciganos acamparem, no cenário atual.

O agravamento das questões socioambientais nos aglomerados urbanos apresenta diversas facetas, como exemplo: a poluição do ar por indústrias e pelos meios de transporte; a poluição de rios, lagoas e mares; as enchentes; a falta d’água para consumo humano; o inade-

quado descarte de rejeitos; a piora na condição de vida da população, com destaque para as que residem em locais como acampamentos, assentamentos e favelas; os desastres e as segregações socioespa- ciais, como evidenciado no caso do grupo pesquisado.

A crise socioambiental presente na escassez de recursos naturais é um tema que apresenta uma vastidão de exemplos e alarma em nível máximo. Nota-se a crescente infertilidade do solo, a esgotabilidade do petróleo, a desertificação de florestas, as secas, as migrações, a crise de alimentos em algumas regiões e a crise hídrica, cada vez mais per- manente. A água é o bem fundamental para a vida no planeta e tende a se tornar cada vez mais privatizada e voltada para atendimento do capital. A crise hídrica ao redor do globo representará sem dúvida uma das maiores injustiças ambiental, pois afetará de maneiras muito dife- rentes ricos e pobres e as diversas nações e regiões do planeta. E já afe- ta inúmeras localidades onde se encontram populações tradicionais, devido ao não investimento público nesses espaços sócioterritoriais.

Todas essas expressões da questão socioambiental ganham des- taque a partir da publicização das ações dos movimentos por justiça ambiental. Tais movimentos lutam contra a desigual socialização dos riscos sociais provenientes da crise ambiental. No Brasil temos a Rede Brasileira de Justiça Ambiental, criada no ano de 2001, que congrega diversos desses movimentos. Em pesquisa no blog da RBJA. identifi- camos 97 entidades vinculadas, das quais não identificamos nenhuma entidade cigana representada.

A socialização dos custos da produção e as próprias consequências da crise ambiental impactam de forma mais intensas as populações mais pobres. Segundo Acselrad (2008):

Conforme indica o referido memorando do Banco Mundial, é para regiões pobres que se têm dirigido os empreendimentos econômicos mais danosos em termos ambientais. Do mesmo modo, é nas áreas de maior privação socioeconômica e/ou habitadas por grupos sociais e étnicos sem acesso às esferas

decisórias do Estado e do mercado que se concentram a falta de investimento em infraestrutura de saneamento, a ausência de políticas de controle dos depósitos de lixo tóxico, a mo- radia de risco, a desertificação, entre outros fatores, concor- rendo para suas más condições ambientais de vida e trabalho (ACSELRAD, 2008, p.8-9).

Considerando o estudo de Acselrad (2008), sobre as penalida- des sofridas por determinados grupos sociais e étnicos, destaca- mos as condições de vida dos ciganos Calon, etnia. cigana de gran- de expressividade no Brasil. Segundo dados do IBGE. existem no Rio de Janeiro 10 acampamentos ciganos, sem nenhuma área des- tinada pelo governo para isso. A partir dos dados do IBGE, a ONG Embaixada Cigana. estima que no Rio de Janeiro existam em torno de 1500 ciganos Calon. Os municípios que declararam ter acam- pamentos ciganos em 2011 são.: Angra dos Reis, Campo dos Goy- tacazes, Itaboraí, Itaperuna, Natividade, Porto Real, Resende, São Francisco de Itabapoana, Tanguá e Trajano de Morais. Esses grupos preservam em sua maioria, os costumes de acampar em terrenos públicos ou privados, arrendados, alugados ou cedidos. Como ca- racterísticas dessa condição de vida e do descaso do poder públi- co, geralmente os locais onde se fixam não dispõe de acesso à água potável e saneamento básico, quando não se localizam em áreas de risco e de proteção ambiental, em bairros longe dos centros ur- banos e com baixa infraestrutura, como evidenciado no território onde se encontra o acampamento pesquisado.

Considerando a realidade dos Calon, destacamos a justiça ambien- tal e sua relação com a vulnerabilidade que certos grupos vivenciam. Segundo Porto e Porto (2015), justiça ambiental diz respeito às lutas contra dinâmicas discriminatórias vivenciadas por determinados gru- pos sociais no que tange ao desenvolvimento e seus impactos no am- biente. Utilizando o conceito de justiça ambiental incorporado pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental, Porto e Porto (2015) nos trazem:

Já o conceito de justiça ambiental é entendido por um conjunto de princípios e práticas que asseguram que nenhum grupo so- cial, seja ele étnico, racial, de classe ou gênero, suporte uma par- cela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, decisões de políticas e de programas federais, estaduais, locais, assim como da ausência ou omissão de tais políticas (PORTO; PORTO, 2015, p. 164).

Porto e Porto (2015) nos apresentam que os movimentos por justiça ambiental surgem nos EUA, entre os anos de 1970 e 1980 a partir da articulação entre o ambientalismo emergente e as lutas por direitos civis e contra a discriminação racial e étnica. A luta começou contra o racismo ambiental e a contaminação química de populações negras em regiões altamente poluídas por indústrias químicas e depósitos de lixos tóxicos, locais que passaram a ser chamados de zona de sacrifí- cio. No ano de 1991 tem-se a ampliação do movimento para além da questão dos produtos químicos e do racismo, entendendo que esses casos não se restringiam a população negra. Essa ampliação propi- ciou o surgimento do conceito de justiça ambiental. Assim, a justiça ambiental prevê a defesa dos direitos humanos e a socialização dos custos da relação homem X natureza.

Acselrad (2006) em seus estudos relaciona os movimentos por justiça ambiental a processos de vulnerabilidade a que certos grupos sociais estão sujeitos. Segundo o autor, vulnerabilidade se compõe enquanto um processo constituído por fatores individuais, políticos e sociais e se constrói a partir de um conjunto de relações, assim considera que: “a vulnerabilidade é socialmente produzida e que práticas político-institucionais concorrem para vulnerabilizar certos grupos sociais [...]” (ACSELRAD, 2006, p.1). O conceito de Acselrad se faz importante para pensar o lugar que os ciganos Calon ocupam na gestão pública, nas três esferas de governo, mas, sobretudo na municipalidade considerando a descentralização federativa e a terri- torialização de ações.

Essa condição de vulnerabilidade socialmente produzida implica aos ciganos Calon o descaso e o afastamento do poder público, au- mentando sua propensão à injusta socialização da riqueza produzi- da que se traduzem ao acesso a bens como a água e os alimentos. Bem como na vulnerabilidade de acesso e usufruto dos direitos ci- vis, como o próprio direito de ir e vir e frequentar estabelecimentos sem ser importunado por agentes de segurança que identificam os ciganos negativamente; os direitos políticos, que se configuram na possibilidade de organização política que de fato represente e dê voz aos ciganos Calon; e os direitos sociais, nos quais é possível iden- tificar violações relativas a todos os direitos elencados no artigo 6º da Constituição Federal de 1988, sendo eles: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segu- rança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância e a assistência aos desamparados”.

Considerando a disputa acerca do termo vulnerabilidade, julgamos pertinente destacar a conceituação desenvolvida por Acselrad (2006) para trabalhar o termo, na qual nos identificamos para considerar o grupo em questão.

A vulnerabilidade é uma noção relativa – está normalmente associada à exposição aos riscos e designa a maior ou me- nor susceptibilidade de pessoas, lugares, infraestruturas ou ecossistemas sofrerem algum tipo particular de agravo. Se a vulnerabilidade é decorrência de uma relação histórica esta- belecida entre diferentes segmentos sociais, para eliminar a vulnerabilidade será necessário que as causas das privações sofridas pelas pessoas ou grupos sociais sejam ultrapassadas e que haja mudança nas relações que os mesmos mantêm com o espaço social mais amplo em que estão inseridos (AC- SELRAD, 2006, p.2).

Buscando outras fontes para a compreensão do conceito de vul- nerabilidade, temos o artigo de Janczura (2012). Nele a autora faz

uma análise do surgimento dos conceitos de risco e vulnerabilidade, buscando acentuar as diferenças entre ambos. Inicialmente pontua a dificuldade em se estabelecer uma definição única, devido ao fato de serem empregados em diversas ciências, com isso, ressalta que, para se buscar uma definição é importante atentar para o momento histórico e em qual área de estudo está sendo discutido. A autora expõe diversas teorias de abordagens de risco e vulnerabilidade, como as psicológicas, as culturais e econômicas. Em sua conclusão, Janczura explicita que risco deve ser entendido como uma situação de grupo e vulnerabilidade como uma situação fragilizada de indi- víduos. Seu entendimento pauta-se na teoria da sociedade de risco de Beck e Giddens (1997), que entende que a sociedade capitalista avançada tem seus riscos advindos da industrialização e das deci- sões políticas e econômicas. Apesar de identificarmos o esforço da autora em apresentar o debate acerca dos termos em questão, nos faltou uma consistência maior na diferenciação dos conceitos. Na nossa compreensão seria importante uma maior atenção nas con- siderações do risco, enquanto uma conjuntura maior que rebate em um processo de vulnerabilidade de grupos e indivíduos.

Santini (2015) nos oferta importante contribuição para pensarmos a relação de justiça ambiental e direito a cidade. Para o autor, o di- reito a cidade é permeado por um conjunto de outros direitos, como acesso a serviços públicos, local para moradia, entre outras questões que perpassam as injustiças ambientais decorrentes da vulnerabili- zação de certos grupos sociais. Portanto, o acesso desigual à cidade, entendida como espaço de construção de relações sociais e de pro- dução, influencia na distribuição desigual dos riscos ambientais. Com isso, a justiça ambiental é um instrumento que pode contribuir para a efetivação do direito à cidade.

Nosso entendimento da relação entre justiça ambiental e direito à cidade reside na conexão de ambos como resultantes das contradi- ções inerentes a produção e a reprodução do capital.

Ciganos Calon e o direito à Cidade

A história nos conta, embora sem um consenso, que os ciganos pertencem a uma etnia oriunda da Índia, tendo saído desse país por volta dos anos 1000 d.C se difundindo pela Europa, e posteriormen- te, Américas e Ásia. Algumas associações ciganas ao redor do mundo afirmam essa origem, como a Roma Community Center (RCC), Asso- ciação cigana do Canadá e a própria Índia, que quando da ocasião de Indira Gandhi enquanto primeira-ministra (1966-77/1980-84), esta fez um pronunciamento dizendo que os ciganos são um povo india- no fora da Índia, pronunciamento este que gerou certo desconforto político, pois havia o receio de associações ciganas reivindicarem terras indianas para formar um estado (SOUZA, 2013). Entretanto, Shimura (2017) destaca que esta é uma questão ainda em voga no meio acadêmico, já que há teorias que referem a origem dos ciga- nos à Suméria, Egito, Israel, entre outros. Corroborando com Souza (2013), Shimura (2017) nos revela ainda que, em 1934, uma família de ciganos poloneses propôs a criação de um estado cigano, até então denominado de Romanistão.

Segundo as pesquisas de Teixeira (2008) e Souza (2013), o mar- co da chegada dos ciganos no Brasil, data de uma documentação da Corte Portuguesa que indica a degradação do cigano João Tor- res e sua família, em 1574. Informação corroborada pela Secretaria de Promoção da Igualdade Social (SEPPIR) do Ministério da Justiça e Cidadania10. Entre os séculos XVI, XVII e XVIII, o governo português degredou um número impreciso de ciganos para a colônia brasileira, por duas razões que se complementam. A primeira era o estigma e preconceito vivenciado pelos ciganos, principalmente fundado em argumentações religiosas, considerando o domínio da Igreja Católica no estado português condenando principalmente o fato dos ciganos até então não terem absorvido os dogmas e rituais da Igreja Católica. A segunda razão era a necessidade de povoamento da colônia, onde eram preferíveis os ciganos aos indígenas.

Atualmente, Bonomo et. al. (2010) nos apresentam que a Associa- ção de Preservação da Cultura Cigana (APRECI) estima que mais de 500 mil ciganos estejam vivendo atualmente no Brasil, oriundos de diversos grupos, como: Rom (proveniente do leste europeu), Sinti (da França, Itália e Alemanha) e Calon (da Península Ibérica), entre ou- tros subgrupos. Contudo, é muito complexo estabelecer um quanti- tativo real dos ciganos no Brasil, pois não há nenhum tipo de Censo oficial. Há pesquisas de Universidades sobre determinados grupos, como as da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e a Universidade Federal Fluminense (UFF); os dados do Cadastro Único dos Programas do Governo Federal; e em 2011 o IBGE, através da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC), perguntou aos municípios se havia acampamento cigano e se desenvolvia alguma ação estatal com os mesmos, onde foram identificados dos 5.570 municípios brasileiros, que 291 abrigavam acampamentos ciganos, localizados em 21 estados. Porém, há variáveis importantes que não foram consideradas como os acampamentos transitórios e os ciga- nos que não residem em acampamentos, portanto, ainda que válida como um primeiro esforço, não apresenta um panorama nacional sobre essa etnia. Contudo é imprescindível trazer ao debate que, se- gundo Ferrari (2010) e Shimura (2017), muitos ciganos se apresentam contrários a qualquer tipo de censo e registro por parte do Estado, pois essa forma de identificação já serviu no passado para facilitar a perseguição sofrida, como nos demonstra Ferrari:

A invisibilidade Calon seria ligada à sua organização social e in- tencional. Um líder Calon mostrou-se contra a ideia de um “cen- so” cigano, alegando que “é melhor os gadjes não saberem”; “essa é a defesa da gente” (FERRARI, 2010, p. 296).

Esses primeiros ciganos que chegaram ao país são os ciganos Ca- lon, oriundos da Península Ibérica, que com isso contribuíram na nos- sa formação sócio-histórica e, portanto, são considerados povos tra-

dicionais pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto nº 6.040 de 07 de feve- reiro de 2007), que define como comunidades tradicionais:

Art. 1º: I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos cultural- mente diferenciados e que se reconhecem como tais, que pos- suem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, uti- lizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmi- tidos pela tradição (Decreto nº 6.040 de 7 de fevereiro de 2007).

Entre as diversas etnias ciganas existentes no Brasil, muitos gru- pos Calon apresentam características de baixa escolaridade, evasão escolar de crianças e adolescentes, desemprego, ausência ou precá- rio acesso à renda, principalmente no que tange às mulheres e crian- ças; baixo ou nulo acesso a serviços públicos e condições precárias de moradias. Essas expressões da questão social se destacam por essa etnia viver em acampamentos, que geralmente não são bem quistos pelo poder público. Na maioria das vezes situados afasta- dos dos centros urbanos – independente de estarem regularizados através da compra ou aluguel dos terrenos ou de ser fruto de ocupa- ções – contam com precária infraestrutura no entorno como acesso a água potável e encanada, saneamento básico, moradias improvi- sadas comumente feitas de lonas, e com precário acesso a políticas de proteção social como: educação, saúde, assistência social, previ- dência social e habitação. Nessas condições, os ciganos se fecham em guetos, afastados da cidade, vivendo em condições violadoras de direitos e com um posicionamento de não reivindicação de suas necessidades junto ao poder público por medo de retaliações, so- bretudo, por serem forçados a deixar o município.

Como já pontuado, esses grupos preservam como principais dia- críticos os costumes de acampar em terrenos públicos ou privados,

arrendados, alugados ou cedidos. Apesar de falarem o português, possuem um repertório lexical ágrafo (sem escrita), o “shib”, uma das características que os diferenciam de outros grupos ciganos que falam o Romani. Entretanto, o shib não é uma língua única fa- lada pelos Calon, constituindo-se um dialeto que possui diferenças de um grupo para outro.

No município pesquisado, o acampamento cigano fica bem afas- tado do centro da cidade, aproximadamente 10 km, sendo margeado pela Rodovia Presidente Dutra, em um bairro que conserva caracte- rísticas de área rural, com grandes áreas de pasto, criação bovina e baixa densidade demográfica. O acampamento é divido em grupa- mentos que relatam ser somente por uma questão geográfica, sem outras razões. Contudo, há habitações em terrenos comprados pelos ciganos e há habitações em terreno ocupado. As habitações em terre- no comprado são de duas formas: umas continuam a serem barracas forradas com lona e outras são de alvenaria que seguem a arquitetu- ra das barracas, ou seja, a principal diferença é que não há divisões de cômodos tradicionais. O terreno ocupado trata-se de uma área de proteção ambiental, pois está na margem de uma lagoa local. As bar- racas localizadas nesta área são as mais precárias e as famílias que ali residem são as que mais reivindicam o direito a terra, bem como de- monstram insegurança quanto ao poder público, receando remoção, como evidenciado na fala das famílias.

Percebemos condições precárias de habitação e pobreza de parte do grupo. Os ciganos também relatam não haver um líder entre eles, verbalizando que há anos atrás, quando chegaram ao município, há cerca de 10 anos, havia um líder a qual os demais se referenciavam, contudo, com o passar dos anos esse poder se diluiu pelas famílias lo- cais. Entretanto, para assuntos burocráticos procuram recorrer a uma pessoa do grupo que é letrada e orienta os demais quando necessário. Devido a não destinação de terrenos públicos para assentamen-

to ciganos, eles relatam não pretender deixar o município de forma

coletiva, migrando entre os diversos estados, mantendo assim o no- madismo, mas sem abandonar o local já ocupado. Portanto, o acam- pamento pesquisado pode ser classificado como sedentarizado. Essa é uma questão central, reconhecer a itinerância do povo cigano, con- siderando seu direito à cidade através da destinação de locais para acampamentos, sem que sejam expulsos de cidade a cidade.

A princípio identificamos como demandas ao acesso a documen- tação civil básica de adultos e crianças. Muitos ciganos não possuem documentação civil básica, nem mesmo o Registro de Nascimento, o que limita o acesso a benefícios assistenciais e muitas vezes excluem do atendimento nas políticas sociais. O analfabetismo e a evasão es- colar são sérias questões. Muitos adultos não sabem ler nem escrever e somente realizam contas matemáticas básicas. Há ainda o relato de que quando as mulheres se dirigem a escola para matricular seus fi- lhos, comumente dizem que não tem mais vaga e encaminham para uma escola mais longe, em outro bairro. Para evitar a rejeição escolar e entendendo a especificidade da itinerância cigana, o Conselho Na- cional de Educação aprovou uma resolução (Resolução CNE nº 3 de 16/05/2012) onde estabelece diretrizes para o atendimento de educa- ção escolar para população em situação de itinerância. Isso significa que os ciganos não podem ter matricula negada por não possuírem histórico escolar e outras documentações escolares, no entanto os próprios ciganos desconhecem esse direito.

Atualmente, há em tramitação no Senado, o Projeto de Lei Nº 248/2015 que cria o Estatuto dos Ciganos, que entre diversas questões prevê a des- tinação de terras para os ciganos acamparem. O que apesar de se cons- tituir em uma das principais bandeiras de luta desse povo, parece-nos uma realidade distante em virtude do que a terra e a sua transformação em propriedade privada e lucro representa para o capitalismo. Todo esse contexto deflagra a luta pelo espaço urbano, com todas as suas nuances constitutivas da luta pelo direito à cidade, como morar, circular pelos es- paços centrais e, principalmente, ter o direito a pertencer àquele território.

Em Cidades Rebeldes (2014), David Harvey inicia o seu trabalho de- finindo direito à cidade como um direito humano coletivo. Para tanto, defende que o tipo de cidade que queremos está relacionado com o tipo de cidadãos que queremos ser. Harvey (2009) nos traz que as cidades surgem mediante concentrações geográficas e sociais do pro- duto excedente do processo de industrialização e urbanização. O es- paço que constitui a cidade está associado entre outros fatores aos tipos de laços sociais, a relação com a natureza, aos estilos de vida e consumo, ao desenvolvimento tecnológico e aos valores estéticos. Segundo Harvey (2009):

O direito à cidade está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade. Além disso, é um direito comum antes de individual já que esta transformação depende inevitavelmen- te do exercício de um poder coletivo de moldar o processo de urbanização. A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é, como procuro argumentar, um dos mais precio- sos e negligenciados direitos humanos (HARVEY, 2009, p.74).

Na citação acima destacada, compreendemos que apesar do autor evidenciar não ser essa a questão central desse direito humano, iden- tificamos o acesso a recursos urbanos como uma parte importante do direito à cidade. Tal consideração se faz um pilar para pensar a relação dos ciganos com a gestão municipal a partir da preocupação com a garantia de direitos a partir do acesso às políticas sociais.

Outro ponto de luta política pelo direito à cidade, trazido por Harvey (2014, p. 61), é o entendimento de que “[...] o direito à cidade se confi- gura pelo estabelecimento do controle democrático sobre a utilização dos excedentes na urbanização”. O autor nos traz que a urbanização desempenha um importante papel, principalmente em momentos de crise do capital, pois atua na absorção do excedente da mão-de-obra e permite um investimento que tende a contribuir no desenvolvimento econômico. Esse processo apresenta diversos implicadores, como a

destruição criativa e as remoções em massa justificadas pelo discurso

do risco e questões ambientais.

Uma questão é: como participar do controle democrático na utiliza- ção dos excedentes da produção, se cada vez mais as cidades se trans- formaram em amplos negócios, dominadas por grandes grupos capita- listas, e o Estado atua na facilitação desses grupos e na criminalização dos movimentos sociais? Como pensar a possibilidade de participação da etnia Calon nessa disputa democrática, considerando seus limites de participação política impostas por anos de perseguição e exclusão? Uma hipótese é a possibilidade de disputa justamente através do acesso de qualidade às políticas sociais. Tal argumento se justifica, devido ao papel das políticas sociais, onde destacamos três pontos estruturantes. O primeiro é o seu papel redistributivo, onde capitalistas e trabalhado- res disputam o fundo público, que ao ser investido em políticas sociais permite retornar a classe trabalhadora parte da riqueza socialmente produzida e espoliada da grande massa, permitindo ainda, que serviços que se configuram como direitos humanos como a educação, saúde, habitação e assistência social, direitos altamente mercantilizados sejam garantidos as populações mais estigmatizadas.

Um segundo ponto é o controle social embutido em tais políticas, que se apresenta de diversas formas como os Conselhos Municipais de Direitos, os Fóruns de Usuários dos Serviços, entre outras estraté- gias, que sem dúvidas são prenhes de contradição, mas que ainda se constituem um espaço importante de disputa entre as classes sociais pela apropriação de suas demandas pelo Estado. E um terceiro ponto, é o trabalho técnico social desenvolvido, onde a partir da territoriali- zação de serviços sociais, tem-se a possibilidade de uma maior proxi- midade dos operadores dessas políticas com as diferentes realidades presentes no tecido urbano. Sem a ingenuidade de acreditar que terri- torializar os serviços é o bastante para garantir acesso, entendemos, a partir das contribuições de Santana e Sousa (2012), que é no contexto do território que as relações sociais se concretizam e nessa concreti-

zação ganham corpo e expressão, passando a incidir nas lutas sociais urbanas na disputa da cidade e de suas necessidades enquanto grupo. Para problematizarmos a questão do direito à cidade, faz-se ne- cessário partirmos do entendimento dos impactos da industria- lização na vida cotidiana para depois pensar como o processo de urbanização se constituiu no cenário das cidades, que comumente expulsa dos centros urbanos as populações mais pobres, as quais não possuem meios de arcar com os elevados custos de vida impos- tos pela especulação imobiliária da terra convertida em mercadoria pelo capital. Esse processo de urbanização capturado pela lógica ca- pitalista de mercado tem implicado em transformações nos estilos de vida, inclusive no que diz respeito a característica de nomadismo dos Calon, visto o fato de toda a cidade bem como os modos de viver nela terem se tornado mercadorias. Com isso, a cidade produz mi- croestados, onde de um lado se tem bairros abastados que contam com todos os tipos de serviços, como serviços privados de seguran- ça e infraestrutura de qualidade, como acesso a água e a saneamento básico; e do outro lado, tem-se bairros esquecidos pelo poder públi- co, com moradias improvisadas, falta de serviços socioassistenciais e infraestrutura básica, onde cada fragmento vive de maneira autô- noma e descolada da totalidade do espaço, locais para onde geral-

mente são empurradas as populações tradicionais urbanas.

Indubitavelmente, os ciganos vivenciam um processo de exclusão para zonas da cidade mais afastadas do centro urbano. Os estigmas que vivenciam fazem com que o poder público quando não expulsa-os de seus limites territoriais, fortaleça ainda mais o processo de invisibiliza- ção negando-os atenção as suas necessidades básicas, muitas vezes pautando-se na premissa de que nenhuma melhoria da condição de vida pode ser realizada, visto estarem acampados em área proibida.

Contraditoriamente às características que permitem intitular os acampamentos como algo ilegal, o Governo Federal vem produzindo documentos norteadores de políticas que visam assegurar a perma-

nência dos ciganos nas áreas que se encontram acampados, o que representa uma importante conquista para o movimento cigano e tal- vez um reconhecimento do Estado quanto legalidade de acampar em terras públicas. Interpretamos que tais normativas, apesar de não se constituir em uma legislação, apresentam um passo a frente à garantia de direitos a essa população e quem sabe possa ser o início do fim da ainda existente “política dos mantenha-os em movimento”, descrita por Teixeira (2008) como a expulsão dos ciganos dos locais de acam- pamento pelo poder público fazendo-os fugir de cidade para cidade.

Considerações Finais

Ao considerarmos a definição de Harvey (2009) do direito à cida- de enquanto um direito humano é possível vislumbrarmos as infinitas violações ao redor do globo e constatar como é imprescindível pes- quisar as diversas realidades que daí decorre, bem como aprofundar os debates com vistas à publicizar a questão. A crise do capital e do seu modo de produção, que não respeita a natureza e a própria huma- nidade, nos leva para um abismo da barbárie socioambiental. A crise socioambiental talvez seja muito maior do que já é admitido e estu- dado atualmente e, quando de fato esse modo de produção admitir falência talvez às consequências sejam catastróficas. Tais consequên- cias, ao contrário do que apregoam os liberais, não são democráticas (aliás, como nada no capitalismo é), não atingem a humanidade da mesma forma. Nesse contexto, destacamos as populações tradicio- nais no Brasil que convivem com invisibilização, desproteção e vio- lações de direitos, onde vemos diversos grupos à mercê do capital, como: as lutas indígenas e quilombolas pela demarcação de terras e para manter as que já foram demarcadas; e a luta cigana, que ainda versa sobre o reconhecimento de se ter direito a terra para acampar.

A crise socioambiental indubitavelmente propiciará um aumento das violações dos direitos humanos e o acirramento dos conflitos urbanos, comprometendo o pseudo direito de todos à cidade. Urge, portanto, o

aumento da participação da sociedade em movimentos sociais que bus- cam lutar por direitos humanos e por justiça ambiental. Mas há que se considerar que a própria capacidade de organização se desenvolve de forma diferente entre os diversos grupos sociais e não depende somente de um clamor de justiça, mas necessita de um conjunto de instrumentais que propiciam a participação, bem como a própria tomada de consciên- cia enquanto ser político possuidor de direitos. Para tanto, no que tange os ciganos Calon, compreendemos ser necessária uma maior aproximação do poder público no sentido de garantir o acesso às políticas de proteção social, o que propiciará um fortalecimento desse grupo e por consequên- cia sua possibilidade de participação na vida política da cidade.

O viver em acampamento se constitui como parte do se fazer cigano para muitos grupos Calon, as relações de proteção e cuidado entre as famílias dependem muito da proximidade de suas casas e da convivên- cia comunitária. Viver em acampamento deve se constituir enquanto um direito a ser garantido a essa população, preservando a escolha arqui- tetônica de suas moradias. É fundamental a necessidade de estabelecer a legalidade desses acampamentos, para que o próprio Estado deixe de justificar suas ações violentas na dita ilegalidade do grupo. É necessário, também, pensar em melhoria das condições de vida, garantindo infra- estrutura de saneamento básico, acesso à água potável, entre outras questões que garantam a qualidade de vida e as escolhas do grupo.

Material suplementar
Referências
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Notas
Notas
2 Matéria intitulada “Reduzir Unidades de Conservação põe em risco compromis- sos brasileiros” de 25 de maio de 2017. Disponível em: http://ipam.org.br/reduzir- -unidades-de-conservacao-coloca-em-risco-compromissos-brasileiros/
3 Disponível em: http://www.oeco.org.br/reportagens/governo-corta-43-do-or- camento-do-ministerio-do-meio-ambiente/. Acesso em: 01 out. 2017. 4 Disponível em: http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politi- ca/2017/05/06/internas_polbraeco,593395/exoneracao-de-presidente-e-cor- te-de-verba-funai-esta-ameacada-de-exti.shtml. Acesso em: 01 out. 2017. 5 Pesquisa realizada em 02 jun. 2017, disponível em: https://redejusticaambiental. wordpress.com/quem-somos/. Cabe pontuar que a RBJA possui um site oficial, http://www.justicaambiental.org.br/, porém que não conseguimos ter acesso. 6 Segundo a Secretaria Nacional de Políticas para Promoção da Igualdade Racial, órgão do governo federal brasileiro, há no Brasil pelo menos três etnias ciganas, que se subdividem em outras, os Calon, os Rom e os Sinti. Nosso foco de análise recai nos ciganos Calon. Disponível em: http://www.seppir.gov.br/comunida- des-tradicionais/copy_of_povos-de-cultura-cigana. Acesso em: 28 Jun. 2017.
7 Disponível em: ftp://ftp.ibge.gov.br/Perfil_Municipios/2011/pdf/tab168.pdf. Aces- so em: 25 fev. 2016.
8 A Embaixada Cigana do Brasil Phralipem Romane é uma organização sem fins lucrativos, presidida por um casal de ciganos do grupo Sinti-Manush e que tem o objetivo de valorizar a cultura cigana a fim de diminuir desigualdades étnicas. Disponível em: http://www.embaixadacigana.org.br/etnicidades_ciganas_no_ brasil.html. Acesso em: 19 nov. 2017.
9 Informação compilada no material “Dados oficiais sobre os Povos Romani (ciga- nos) no Brasil – 2013”, produzido pela Associação Internacional Maylê Sara Kalí (AMSK/Brasil). Disponível em: http://www.amsk.org.br/imagem/publicacao/pu- blicacao1_amsk_2013.pdf. Acesso em: 07 dez. 2017.
10 Disponível em: http://www.seppir.gov.br/portal-antigo/noticias/ultimas_noti- cias/2013/05/2018brasil-cigano2019-traz-para-brasilia-discussoes-politicas-e- -valorizacao-da-cultura-cigana. Acesso em: 27 dez. 2016. 11 Destacamos a já referida Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável para Populações Tradicionais de 2007; o Brasil Cigano – Guia de Políticas Públicas para Povos Ciganos da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, 2013 e o Informativo – Atendimento a Povos Ciganos no SUAS, da Secretaria Nacional de Assistência Social, 2017. Importante pontuar que nosso argumento não se es- gota nas normativas destacadas e todas essas contaram com a participação de representações ciganas na sua formulação.
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