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Informalidade urbana e “espaços de exceção”: as políticas socioespaciais da Ditadura portuguesa
Philippe Urvoy
Philippe Urvoy
Informalidade urbana e “espaços de exceção”: as políticas socioespaciais da Ditadura portuguesa
O Social em Questão, vol. 21, núm. 42, pp. 57-82, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: A partir da década de 1950, surgem em diversos países europeus políticas habitacionais que visam combater a expansão do urbanismo informal nas grandes cidades. Na cidade do Porto, em Portugal, o Plano de Salubrização das Ilhas é lançado em 1956 com o objetivo de demolir as ilhas, casas construídas irregularmente e alugadas para a população pobre. O Plano prevê a remoção de seus moradores para conjuntos habitacionais construídos na periferia. Trata-se da maior operação de repressão ao urbanismo informal executada pela Ditadura Salazarista em Portugal reproduzindo – na escala da cidade – aspectos da ideologia autoritária do regime

Palavras-chave:Urbanismo informalUrbanismo informal,Políticas socioespaciaisPolíticas socioespaciais,Habitação socialHabitação social.

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Artigos

Informalidade urbana e “espaços de exceção”: as políticas socioespaciais da Ditadura portuguesa

Philippe Urvoy
História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
O Social em Questão, vol. 21, núm. 42, pp. 57-82, 2018
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Informalidade urbana e “espaços de exceção”: as políticas socioespaciais da Ditadura portuguesa

Philippe Urvoy1

Resumo

A partir da década de 1950, surgem em diversos países europeus políticas habitacionais que visam combater a expansão do urbanismo informal nas grandes cidades. Na cidade do Porto, em Portugal, o Plano de Salubrização das Ilhas é lançado em 1956 com o objetivo de demolir as ilhas, casas construídas irregularmente e alugadas para a população pobre. O Plano prevê a remoção de seus moradores para conjuntos habitacionais construídos na periferia. Trata-se da maior operação de repressão ao urbanismo informal executada pela Ditadura Salazarista em Portugal reproduzindo – na escala da cidade – aspectos da ideologia autoritária do regime.

Palavras-chaves

Urbanismo informal; Políticas socioespaciais; Habitação social.

Urban informality and “spaces of exception”: socio-spatial politics of the portuguese Dictatorship

Abstract

In the 1950s, several housing policies against informal urbanism have emerged in a few European countries. In the city of Porto, in Portugal, the Sailing Plan of the Islands was launched in 1956 with the aim of demolishing the islands, houses irregularly built and rented to the poorest population. The Plan includes the removal of its residents to public housing estates built on the outskirts. This was the largest operation against informal housing carried out by the Salazar dictatorship in Portugal, reproducing – on the scale of the city – aspects of the regime's authoritarian ideology.

Keywords

Informal urbanis; Socio-spatial politics; Social housing.

Artigo recebido: maio de 2018.

Artigo aprovado: julho de 2018.

O período que se segue à Segunda Guerra Mundial se caracteriza por uma grande expansão urbana e crescimento industrial em todos os continentes. A necessidade de mão de obra nas grandes cidades, bem como a deterioração do mundo agrícola no campo – sendo os dois fatores consequências do impulso industrial – propiciam uma forte intensificação do êxodo rural em direção às grandes cidades. Às populações vindas do interior se adicionam, em alguns países europeus, migrantes vindos das colônias e ex-colônias. Entre 1945 e o início dos anos 1970, a maioria das grandes cidades do mundo conhece uma expansão demográfica muito intensa, que vai remodelar suas estruturas. A ausência de infraestrutura adequada e de medidas políticas para alojar essa nova população urbana vai ter por resultado a expansão de espaços urbanos informais em muitas grandes cidades – que já existiam, mesmo que de forma menos generalizada.

Por espaços urbanos informais, entendemos todo tipo de ambiente urbano cujo processo de construção implica – na sua totalidade ou em parte – práticas alheias às normas legais em vigor. A expressão de bairros informais tem sido utilizada ultimamente nas ciências humanas (CLERC, 2010) principalmente para caracterizar bairros auto-construídos em terrenos urbanos baldios ocupados ilegalmente, seja de forma progressiva ao longo de um período variável de tempo ou através de uma ação coletiva planejada. Estes tipos de bairros ganham nomes diversos em diferentes países: bidonvilles – na França; bairros de lata – em Portugal; ou ainda villas misérias – na Argentina; todos equivalentes às favelas brasileiras. Como salientado em trabalhos recentes sobre o assunto, as práticas ditas informais muitas vezes não são totalmente alheias nem às normas legais e à prática do Estado (GONÇALVES, 2017, p. 5) nem às práticas e à lógica do mercado (VANDE WALLE, 2009, p. 2). Com efeito, desde a década de 1980, alguns trabalhos sobre o conceito de informalidade, inicialmente no campo da sociologia do trabalho, tem questionado a estrita divisão entre setor formal e informal, demonstrando como este último era ao mesmo tempo um espelho, consequência e como parte do primeiro (ARANGO; DUQUE; GIRLADO, 2013). A mesma perspectiva parece valer para a realidade do urbanismo e da habitação informal. Segundo o historiador Rafael Soares Gonçalves a informalidade urbana pode ser compreendida como uma forma singular de “produção do espaço”, um modo específico de “planificar, disciplinar e exercer o poder” no contexto urbano, que sem ser necessariamente extralegal se caracteriza por possuir “zonas sombrias” e integrar “combinações distintas de legalidade e formalidade” (GONÇALVES, 2017, p. 6).

Estas reflexões nos levam, inevitavelmente, à consideração do conjunto das práticas institucionais e lógicas mercantis que participam ou possibilitam muitas vezes a construção dos bairros autoconstruídos evocados. Mas isto deve nos levar também a considerar, como parte do urbanismo informal, diversas outras formas históricas de produção da habitação de baixo custo nas grandes cidades que incluem arranjos ou infrações em relação às normas legais. Dentre delas, o compartilhamento informal – e por vezes ilegal – do espaço construtível por um ou vários proprietários com o objetivo de venda ou aluguel a famílias de baixa renda foi e continua sendo uma prática muito comum. Esta prática resultou no remanejamento de muitos pátios e quintais de casas burguesas nos centros de grandes cidades desde o século XIX até meados do século XX, produzindo um tipo de habitação popular chamado de cortiços no Brasil ou de ilhas ou pátios em Portugal. A partir da década de 1950, no Brasil, esta prática será mais frequentemente aplicada em terrenos periféricos comprados especificamente para este fim. Estes loteamentos periféricos clandestinos constituem inclusive, ao longo das décadas seguintes, um modo importante de construção e expansão da periferia urbana em grandes capitais brasileiras como São Paulo ou Belo Horizonte (MARICATO, 2003; SANTOS, 2006).

De fato, a expansão do urbanismo informal em suas diversas formas nas décadas do Pós-Guerra aparece como uma das expressões mais concretas da crise enfrentada pela cidade neste período. Diante desta crise vão começar a surgir na Europa como nas Américas políticas urbanas específicas destinadas a criar moradias para a população mais pobre como alternativa aos urbanismos informais. No início dos anos 1950, surgem na França os primeiros projetos de construção dos chamados “grands ensembles”, grandes conjuntos habitacionais construídos na periferia das grandes cidades, com inspiração nas teorias do arquiteto Le Corbusier sobre a cidade moderna. Segundo estas, a cidade deve ser organizada em setores, correspondentes a funções específicas, de forma racional e pragmática (MANGIN, 2004). Assim, os bairros dos conjuntos são destinados especialmente à função social da moradia, aspecto que lhes dará a apelação popular de “cidades-dormitórios”.

Outro aspecto desta política é inaugurar a colaboração direta entre as empresas de construção civil e as políticas urbanas do Estado, a fim de permitir uma industrialização da construção de moradia para corresponder com os ideais de rentabilidade da economia capitalista em plena expansão (MENGIN, 1999). Com efeito, no decorrer dos anos 1960, o modelo dos conjuntos habitacionais começa a se proliferar em todos os continentes e a ser apontado como solução para a crise urbana e para erradicar as habitações informais. No Brasil, a política que visa substituir as favelas pelos conjuntos habitacionais passa a ser oficialmente adotada em 1964, logo no início do regime militar, com a criação do Banco Nacional de Habitação – BNH (SANTOS, 2006, p. 50). No ano seguinte Portugal adota as primeiras medidas que permitem a intervenção direta do Estado na política habitacional, com a instauração do Plano Intercalar de Fomento. Essas medidas se concretizam finalmente em uma política estatal de construção de conjuntos habitacionais e de repressão à construção de moradias clandestinas. No entanto, desde a década anterior, a cidade do Porto serviu como laboratório para erradicação das habitações informais, como veremos ao longo deste trabalho (BARRETO; GONTIJO; PAULA, 2010, p. 631). No Brasil como em Portugal, observa-se que essas políticas promovem a remoção de diversas populações oriundas de bairros considerados informais e o deslocamento destas para moradias construídas em áreas desvalorizadas, nas periferias dos centros urbanos. Ao mesmo tempo, medidas governamentais facilitam a apropriação de áreas urbanas valorizadas pelo setor privado, alimentando a especulação fundiária e aprofundando a crise urbana (SANTOS, 2006, p. 51). No seu famoso livro publicado exatamente 50 anos atrás, O Direito à cidade, Henri Lefebvre foi um dos primeiros autores a apontar a dimensão política destas operações urbanas que aliam desmantelamento de habitações precárias e/ou informais e construção de moradias sociais (LEFEBVRE, 1968). No entanto, até os dias de hoje, poucos trabalhos se interessaram em entender como de fato se concretiza e se opera esta estratégia política contida na erradicação do urbanismo informal, que toma diversas formas em distintos países.

No presente trabalho tomamos, como exemplo, o caso das políticas urbanas desenvolvidas pelo Regime ditatorial Salazarista em Portugal na tentativa de combater, ou pelo menos conter, a expansão do urbanismo informal. Mais especificamente, analisaremos o Projeto de extinção das ilhas do Porto, anunciado em 1956, como resultado de uma parceria entre o Poder Municipal da cidade do Porto e o Governo nacional salazarista. Este vasto plano de intervenção urbana, levado a cabo ao longo de uma década, resultará na destruição de milhares de ilhas situadas na região central da cidade e na remoção de seus moradores para os chamados Bairros Camarários, conjuntos habitacionais construídos na periferia da cidade para esta finalidade.

Apesar de se tratar da operação urbana com maior impacto humano e social realizada durante a Ditadura portuguesa, esta ainda não foi objeto de nenhum notável estudo sociohistórico aprofundado desde então. Interessa-nos aqui entender como esta política urbana a partir de um objetivo anunciado de erradicação do urbanismo informal representado pelas ilhas, reflete também uma estratégia territorial de manutenção da ordem urbana e social refletindo aspectos autoritários próprios ao Regime salazarista.

A Ditadura Salazarista e a questão habitacional até a Segunda Guerra

Nos meados do século XIX, a cidade do Porto conhece uma importante expansão industrial e um crescimento demográfico significativo se tornando historicamente o primeiro polo industrial e operário de Portugal. Já havia neste período um importante déficit de habitações para os trabalhadores que vinham do campo para se instalar cidade devido ao crescimento populacional. É neste período que aparecem e se multiplicam as primeiras ilhas, habitações de tamanho reduzido construídas por proprietários no espaço disponível nos fundos de casas burguesas e atrás de prédios construídos, de forma a economizar e rentabilizar ao máximo o espaço.

Este tipo de habitação não é específico à cidade do Porto e reflete uma tipologia habitacional que se encontra em distintos países ganhando nomes diversos. Neste sentido, as ilhas portuenses se assemelham às casas de corredor na Espanha ou ainda aos cortiços que se multiplicam no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo na segunda metade do século XIX. Vale ressaltar que o nome de ilhas é específico à cidade do Porto, onde este tipo de habitação se espalhou pela região central num tempo muito curto, sendo que este tipo de moradia é chamado de pátios ou vilas em Lisboa (MATOS; RODRIGUES, 2009, p.2). No fim do século XIX, as ilhas do Porto são estudadas e descritas do seguinte modo pelo médico higienista português Ricardo Jorge:

São renques de cubículos, às vezes sobrepostos em andar, enviados de coxia de travesso. Este âmbito, onde se empilham camadas de gente é por via de regra um antro de imundície; e as casinhas, em certas ilhas desassoalhadas e miseráveis, pouco acima estão da toca lôbrega do troglodita. (JORGE 1899 apud CONCEIÇÃO; VAZQUEZ, 2015).

Ainda segundo ele, as ilhas somariam nesta época no Porto “11 129 casas”, o que representaria aproximadamente 50 mil moradores gerando uma “acumulação insalubérrima” (JORGE 1899 apud CONCEIÇÃO; VAZQUEZ, 2015). Em sua análise percebemos como as ilhas são representadas como inadequadas ao que seria para ele o padrão de um grande centro urbano da virada do século XX. Ademais, desde essa época, a existência das ilhas já é intimamente associada à realidade do trabalho informal e clandestino, pois alguns empresários das indústrias têxteis instalavam teares nas próprias casas que construíam para seus trabalhadores, dentro de ilhas, no intuito de fugir à fiscalidade do trabalho. Desta forma, alguns dos trabalhadores da indústria têxtil tinham nas ilhas ao mesmo tempo seu local de moradia e de trabalho clandestino (CONCEIÇÃO; VAZQUEZ, 2015, p.12). Em seguida aos estudos e alertas sobre a insalubridade e o caráter anti-higiênico das ilhas feitas por Ricardo Jorge e por outras figuras políticas, bem como o medo do alastramento de algumas epidemias que se declaram no fim do século XIX, o Poder Municipal toma algumas medidas no intuito de tentar erradicar este tipo de habitação. Na primeira década do século, além da construção de ilhas serem oficialmente proibida, é publicado em 1903 o “Regulamento de Salubridade das Edificações Urbanas” que torna as ilhas existentes irregulares (CONCEIÇÃO; VAZQUEZ, 2015, p.14). No entanto, a grande maioria das ilhas continuará a ser alugadas enquanto muitas outras serão ainda construídas nas décadas seguintes. Ao ignorar explicitamente as normas legais e de higiene referentes à habitação, as ilhas ainda existentes e construídas neste início do século XX passam a se caracterizar explicitamente como habitação informal, assim como os chamados bairros de latas que se estabelecem em áreas não construídas em Lisboa e no Porto nas décadas seguintes (FERREIRA, 1999).

A manutenção do fenômeno urbano das ilhas neste período, apesar da legislação em vigor, também, se explica pela falta de alternativas para acessar uma habitação de baixo custo. Na década de 1910, surgem as primeiras iniciativas municipais de construção de bairros sociais com a criação de algumas Colônias operárias entre 1915 e 1919. No entanto, estas atendem apenas uma ínfima minoria da população necessitada (FERREIRA, 1999, p.6). Segundo o arquiteto Fernando Gonçalves, a ausência de uma política municipal de maior envergadura para resolver a questão das ilhas e as moradias similares – tanto no Porto quanto em Lisboa – pode ser explicada pelos interesses econômicos não só da classe proprietária que administrava e alugava as ilhas e pátios, mas também de figuras influentes na política nacional, sejam grandes empresários, representantes da Igreja ou da aristocracia, que também investiam neste mercado da habitação informal e lucravam com ele (GONÇALVES, 1978, p.28).

Em 1928, começa o Regime da Revolução Nacional que vai se tornar em 1932 o chamado “Estado Novo”, Regime Ditatorial de inspiração fascista e de cunho personalista em torno da figura de António Salazar. Nos seus primeiros anos, o Regime vai realizar uma tentativa incipiente de política habitacional com a construção das Casas Econômicas, criadas pelo Decreto Lei 23052, destinadas à aquisição de habitação própria através de um regime de aluguel. Esta se assemelha à política de Casas operárias construídas na mesma época pela Alemanha nazista, com o intuito de opor ao modelo dos grandes conjuntos coletivos construídos em Países Socialistas construíram um conjunto de casinhas unifamiliares, com poucos espaços de convivência comunitária e socialmente amparada pela Igreja local (GONÇALVES, 1978, p.39). O projeto traduz a ideia, enfatizada na época pela propaganda do Regime, da “Casa Portuguesa” como modelo social e motivo de orgulho da identidade popular nacional, um lar modesto e independente onde a família tradicional portuguesa – mesmo que muito humilde – possa encontrar seu equilíbrio e sua felicidade em torno da propriedade privada. Essa ideologia é resumida nas próprias palavras de Salazar em um discurso de 1935:

A intimidade da vida familiar pede aconchego, pede isolamento, numa palavra exige a casa independente, a nossa casa [...] não nos interessam os grandes falanstérios, as colossais construções para habitação operária [...] para o nosso feitio independente e em benefício da nossa simplicidade morigerada nós desejamos antes a casa pequena, independente, habitada em plena propriedade pela família. (GONÇALVES, 1978, p.37).

No entanto, essa política de construção de Casas Econômicas surtirá mais efeito como propaganda do que produzirá resultados efetivos para solucionar o déficit habitacional, sendo que as camadas mais pobres da população não são contempladas por esta política. Este fato adicionado ao forte crescimento demográfico das grandes cidades portuguesas nessas décadas resulta no aprofundamento das carências habitacionais já existentes. Em 1939, um inquérito realizado pela Câmara Municipal do Porto revela a existência de cerca de 13.000 casas de ilhas na cidade, onde viviam cerca de 20% da população do Porto (CONCEIÇÃO; VAZQUEZ, 2015, p.14).

Identificar e erradicar: o discurso das autoridades sobre a habitação informal

Diante do agravamento da situação habitacional e do crescimento urbano no Pós-Guerra, o déficit de moradia e a consequente expansão do urbanismo informal sob suas diversas formas passam a ser debatidos publicamente e apontados com problemas sociais urgentes em diversos países da Europa. Em Portugal, em meados da década de 1950, o Regime salazarista identifica em seu discurso a questão do urbanismo informal ou ilegal como uma preocupação social premente para o país, anunciando as primeiras políticas públicas urbanas.

Para entender o discurso e a prática do Regime Salazarista diante da questão da habitação informal no âmbito nacional, analisamos alguns dos principais documentos produzidos nesta época pelas autoridades portuguesas sobre o problema social da moradia em Lisboa e no Porto. Estes nos permitiram entender a narrativa desenvolvida pelo Regime sobre o urbanismo informal, assim como a dimensão política por trás das medidas habitacionais desenvolvidas pelo governo nos anos seguintes. Para entender esta narrativa, nos baseamos principalmente em dois documentos. O primeiro é o Relatório da Comissão encarregada de estudar os problemas relativos aos “bairros de Lata”, encomendado pelo Regime Salazarista e concluído em março de 1958. Trata-se de um levantamento sociológico sobre os bairros de lata da capital portuguesa com foco nas “causas que favorecem” o seu crescimento, e em seus “problemas” no intuito de apontar as “medidas adequadas à sua eliminação” (PC, 1958, p.1). Este levantamento foi realizado por uma equipe que integra pesquisadores de diversas áreas, nem todos vinculados politicamente ao Regime de Salazar, incluindo o famoso geógrafo português Orlando Ribeiro. Outro documento analisado por nós foi o Plano de Salubrização das Ilhas do Porto, publicado pela Câmara Municipal desta cidade em 1956, que estabelece um panorama da situação das ilhas na cidade e apresenta o plano municipal para que elas sejam “demolidas e substituídas por novas construções obedecendo aos requisitos mínimos atuais em matéria de urbanismo e habitabilidade” (CMP, 1956, p.7).

O discurso produzido nestes documentos fornece uma matéria muito rica e interessante para o trabalho do historiador. Na medida em que ambos anunciam ou antecedem uma operação política e econômica de reordenamento e planificação do espaço urbano, estes discursos ilustram, a nosso ver, o que chamamos em outros trabalhos de “narrativa plana” sobre o espaço urbano (URVOY, 2015). Utilizamos esta expressão para ilustrar uma prática discursiva recorrente no âmbito de políticas centralizadas de Reformas urbanas ou de repressão ao chamado urbanismo informal. Para planificar ou remanejar o território urbano, a instância de Poder – seja ela municipal ou estatal – tem de produzir previamente uma representação simplificada deste, em duas dimensões: representação achatada do urbano, homogeneizada e dando geralmente a ver uma ordem urbana ameaçada ou a ser protegida. Este discurso plano que identificamos em nossas fontes, enquanto ficção narrativa formada a partir de intenções e estratégias específicas constitui, a nosso ver, uma chave que permite ao historiador um melhor entendimento do projeto político de cidade que se revela através de tais operações.

Neste sentido, um dos temas recorrentes no seio dos documentos analisados é a ideia que o urbanismo informal ou irregular representaria uma ameaça direta à ordem urbana, seja na sua dimensão social, sanitária, moral ou política. Sobre este ponto, o Plano de Salubrização das ilhas do Porto inicia-se com uma epígrafe muito significativa: “O casebre é um crime contra nação” (CMP, 1956, p.1). Essa citação, tomada de empréstimo do intelectual francês Marc Blancpain, ilustra um componente importante deste discurso no qual a existência da ilha ou o bairro de Lata constitui em si um crime, uma agressão que atinge o conjunto da sociedade. Um crime até então impune, mas que como todo crime exige uma resposta firme e urgente. No entanto, vale a pena conhecer mais de perto o autor da frase para entender melhor seu sentido. Marc Blancpain foi um intelectual francês, dirigente da Alliance Française pela promoção internacional da francofonia a partir da década de 1940. Neste período, ele foi um dos propagadores de uma teoria segundo a qual a França e a sua cultura estavam em grave declínio perante o efeito de diversas ameaças. No seu discurso, não era apenas a nação, mas a “civilização francesa” – expressão popularizada por ele – que estava diante de uma ameaça séria de extinção. Tal ameaça, segundo ele, era resultado da chegada maciça de trabalhadores africanos que teriam transformado a França “no país dos casebres e das favelas”, um país onde “o casebre cresce” permanentemente incarnando uma “ferida social e moral” que “ameaça a todos!” (BLANCPAIN, 1966, p.369).

É interessante observar que esta ideia de “ferida social” e de “ameaça” – no sentido biológico da epidemia – perpassa também todo o discurso das autoridades portuguesas nos documentos por nós analisados. Segundo a Câmara Municipal do Porto, as ilhas da cidade são uma “chaga habitacional […] habitabilidade defeituosa e de promiscuidade social conducente ao rebaixamento moral da família e da sociedade” (CMP, 1956, p.8). Segundo o Relatório sobre os bairros de lata, as barracas destes bairros representariam “graves focos de infecção física e moral onde qualquer ambiente verdadeiramente familiar não tem condições de existência” (PC, 1958, p.1). Nestas palavras, a habitação irregular e insalubre dos bairros de lata ou das ilhas aparece como uma antítese absoluta da Casa Portuguesa, idealizada pela Ditadura Salazarista e evocada precedentemente neste trabalho, enquanto ambientes de promiscuidade e baixa moralidade nocivos ao equilíbrio da família portuguesa. Através de tal discurso, o chamado “problema” da moradia popular informal não se trataria apenas de uma necessidade de assistência social a pessoas mal alojadas, mas representaria também um perigo moral e político para a ordem social, uma ameaça ao conjunto da sociedade que exigiria, portanto, uma resposta urgente das autoridades.

No tocante à origem de tal “ameaça”, também encontramos semelhanças entre o discurso do intelectual francês evocado e das autoridades portuguesas. Segundo estas, uma causa importante da multiplicação destas “habitações promíscuas” se situa num fator externo: “o afluxo desordenado” de uma população pobre “marginal e desajustada” vinda do campo para cidade onde ela vive “de ocupações irregulares e dos socorros da Assistência” (PC, 1958, p.6). O Relatório sobre “bairros de Lata” aponta inclusive a urgência da necessidade de “obstar ao aumento” desta população “por todos os modos” como uma das principais medidas para impedir a expansão do urbanismo informal. Para tanto, os autores sugerem impedir este êxodo rural através de um “condicionamento das emigrações internas” inspirado na política territorial da Itália fascista na década de 1930 (PC, 1958, p.19). Se esta sugestão não teve êxito por ser dificilmente aplicável, nos interessa aqui analisar a maneira pela qual a preocupação política com a moradia informal leva as autoridades a produzir uma visão e um discurso estratégicos sobre o espaço, inspirando um possível reordenamento do território e da cidade como um todo. Este aspecto nos ajuda a entender a reforma habitacional realizada em seguida na cidade do Porto que analisaremos mais adiante.

Plano de Salubrização e Bairros Camarários no Porto

Além de analisar as grandes linhas que sustentam o discurso das autoridades portuguesas sobre a questão da habitação e do urbanismo informal, nos interessa perceber como estas ideias vão ser aplicadas na prática. Para este fim, concentramos nossa pesquisa sobre a maior operação de remanejamento urbano e repressão ao urbanismo informal levada a cabo pelo Regime Salazarista: o Plano de Salubrização das Ilhas do Porto realizado a partir de 1956. Para este fim, uma das fontes por nós utilizada é o já mencionado Plano de Salubrização das Ilhas que constitui um verdadeiro Plano estratégico de como será realizada a política de “extinção das ilhas” – expressão usada pela Câmara Municipal do Porto para resumir o teor desta reforma urbana (CMP, 1960). Para compreendermos e acompanharmos, ao longo dos anos, esta vasta operação que se estende por mais de uma década, utilizamos também outros documentos produzidos sobre o assunto pela Câmara Municipal do Porto, e principalmente o livreto O problema da extinção das Ilhas, de 1960, e o Plano de Melhoramentos da Cidade do Porto, 1956-1966, de 1966.

A política de “extinção das Ilhas” prevê uma gigantesca operação de demolição das Ilhas e de remoção de seus moradores para cerca de 6.000 moradias a serem construídas ao longo de dez anos, e que constituirão os futuros Bairros Camarários. No entanto, é importante notar que esta vasta operação de reforma não é fruto de nenhum levantamento ou inquérito direto visando à compreensão da realidade das ilhas e dos seus moradores nesta década. Sob o pretexto da “premência” deste “problema angustiante”, o autor anuncia esta vasta operação urbana sem a prévia “execução de um minucioso e laborioso inquérito que teria o inconveniente grave de consumir um longo período de tempo” (CMP, 1956, p.9). Portanto, esta gigantesca operação de demolição e de remoção populacional será elaborada apenas a partir de um levantamento antigo das ilhas, datado de 1940. A estes números são adicionadas e subtraídas estimativas aproximativas do autor sobre os 15 anos que o separam do levantamento utilizado. Mais a frente, o autor consegue, no entanto, prever que a operação se concentrará na “área central” da cidade, onde a maioria das ilhas deverá ser demolida resultando na “deslocação” estimativa de “25 a 30 mil almas” (CMP, 1956, p.10). Estes aspectos do Plano de Salubrização revelam o seu caráter arbitrário oriundo de uma decisão política unilateral. Ao ignorar completamente a realidade social destas habitações e as aspirações ou necessidades específicas das famílias que nela viviam, pela recusa em realizar um levantamento ou inquérito prévio, o Plano de Salubrização pode ser lido não como uma intervenção de caráter social, mas antes de tudo como uma vasta operação policial de repressão à moradia irregular e de reordenamento urbano.

As populações removidas deveriam ser realojadas em cerca de 6000 habitações construídas para este efeito, os Bairros Camarários, que são descritos no Plano como conjuntos de apartamentos unifamiliares preferencialmente de três quartos devido às especificidades estatísticas da família portuguesa já que “geralmente o casal português tem filhos, e geralmente dos dois sexos” (CMP, 1956, p.20). Estes conjuntos terão superfícies reduzidas de “utilidade comum” a fim de se “atenuar a promiscuidade” e obter uma “densidade populacional aceitável” (CMP, 1956, p.22). Neste aspecto, o formato das novas moradias relembra os princípios das Casas econômicas unifamiliares construídas pelo Regime de Salazar no início da década de 1930, incluindo na sua forma alguns aspectos da ideologia da Casa Portuguesa, evocada precedentemente, mas sem o acesso à propriedade privada.

Inicialmente, o Plano de Salubrização prevê que um sexto destes novos alojamentos seria construído na região central, próximas às áreas das ilhas demolidas enquanto que o restante seria construído na periferia da cidade (CMP, 1956, p.22). No Mapa 1, podemos ver que a grande maioria das ilhas a serem demolidas, em vermelho no mapa, se localizam na região central:

Mapa 1 - “Ilhas” a serem demolidas (CMP, 1956)

Quando olhamos para a localização dos Bairros Camarários efetivamente construídos dez anos depois percebemos que a imensa maioria dos novos conjuntos está localizada nas periferias, algumas delas muito afastadas. No Mapa 2, podemos ver em vermelho a localização dos Bairros Camarários construídos e em rosa as zonas de ilhas que foram demolidas:

Mapa 2 - Bairros Camarários construídos (CMP, 1966).

No final da operação, o número das habitações construídas próximas à região central representa menos da metade da meta inicial, sendo a imensa maioria da ex-população das ilhas removida para as periferias. No entanto, no início da operação, a Câmara Municipal tinha plena consciência das razões sociais pelas quais esta população havia se estabelecido na região central, razões elencadas no próprio Plano de Salubrização de 1956: “proximidade do trabalho e dos centros de abastecimento, facilidades de serviços coletivos etc.” (CMP, 1956, p.10).

Portanto, o projeto de construção dos Bairros Camarários implica em uma periferização maciça da população mais pobre do Porto. No fim da operação de “extinção das ilhas” são finalmente mais de 4.000 casas de ilhas que são demolidas, quase todas na área central do Porto, e cerca de 25.000 pessoas que são removidas para os novos Bairros Camarários (CMP, 1966, p.16). Se compararmos este número com os censos demográficos realizados na cidade em 1950 e 1960, concluímos que cerca de 8,5% da população do Porto é removida de seu local de moradia no âmbito desta operação (INE, 1950-1960). Pelo número de bairros construídos, isto resulta também em um inevitável espalhamento e separação de muitas famílias alargadas e vizinhos que viviam juntos; sendo este um dos aspectos da difícil adaptação dos moradores às novas moradias, como apontado em pesquisas sociológicas feitas na época junto aos moradores (M. C. Fernandes, 2018). Esta periferização teve sem dúvida uma motivação econômica: como apontado pelo próprio Plano de Salubrização, a erradicação das Ilhas permitiu à Câmara de adquirir uma grande quantidade de terrenos estrategicamente situados nas áreas centrais a um preço irrisório. Segundo o referido Plano, toda área liberada após a demolição de uma ilha e julgada não adequada para futura construção seria expropriada pela Câmara, e deveria se pagar ao proprietário uma indenização referente apenas ao valor do terreno (CMP, 1956, p.15). Enquanto isso, a Câmara economizava na construção dos Bairros Camarários escolhendo construir a maior parte destes em terrenos muito afastados do centro adquiridos a baixo custo. Mas este processo de periferização da população que vivia nas ilhas responde também a um motivo político e social sendo que a própria Câmara preconiza a “disseminação das construções de forma a não criar núcleos populacionais de grande extensão com igual classe ou categoria dos seus elementos” (CMP, 1956, p.11). Este aspecto nos remete às palavras de Henri Lefebvre que vê como um elemento recorrente das Reformas Urbanas, desde o século XIX, este processo de “periferização” da população mais pobre que pode ser entendida como uma “estratégia de classe” aliando ao mesmo tempo interesses políticos e econômicos (LEFEBVRE, 1968, p. 19).

Segundo a nossa leitura, esta periferização vai além de uma simples estratégia e é indispensável ao processo de reodernamento moral e social da cidade que esta operação representa. Com efeito, entendemos o plano de “extinção das Ilhas” e de construção dos Bairros Camarários no Porto também como uma política de controle social que alia exclusão, reabilitação e purificação da população das ilhas vista como “classe perigosa” – para utilizar a expressão do historiador Louis Chevalier (1958) – pela ameaça que ela representa para o corpo social, como evocado anteriormente. Esta dimensão política e coercitiva desta reforma urbana do Porto se reflete através de algumas linhas estratégicas.

Primeiramente, a demolição das ilhas e a remoção de seus moradores para os Bairros Camarários vão permitir ao Regime de Salazar operar uma seleção, bem como triagem social e moral desta população vista como problemática. Como vimos anteriormente, o discurso da Câmara nos deixa entender, através da citação do Blancpain, que a ilha é um crime. Mas o discurso das autoridades não explicita exatamente quem seria o autor deste crime e, no caso, se o morador das ilhas seria a vítima, o suspeito ou o culpado. Na verdade, é o próprio Poder que vai estabelecer esta distinção entre as famílias que o Estado Salazarista – com uma postura paternalista – vai isolar e reabilitar moralmente via sua intervenção e por outro lado, os indesejados. Isto pode se ler claramente no Relatório sobre Bairros de Lata que estabelece a distinção entre os núcleos “verdadeiramente familiares” – que não têm nestas habitações condições adequadas de existência – e os indivíduos problemáticos “da vadiagem”, “profissões irregulares”, “vendedores ambulantes”, “mulheres de trapo” e “prostitutas” que devem ser alvos da “repressão do maior rigor” ou encaminhados para “campos de trabalhos para reeducação” (PC, 1958, p.19). Esta distinção também vai se traduzir claramente na política de realojamento dos moradores removidos das ilhas já que o próprio desenho dos apartamentos unifamiliares é pensado, segundo a tradição do regime, para receber predominantemente “famílias” em detrimento dos moços ou moças solteiras e outras situações suspeitas de baixo nível moral (ALMEIDA, 2010).

Em segundo lugar, os Bairros Camarários novamente construídos vão permitir também um enquadramento religioso e moral dos novos habitantes, especialmente da juventude e das mulheres. Como afirmado pelo Plano de Melhoramentos de 1966, a diocese se torna nos novos Bairros responsável pela “educação das raparigas” e pela “assistência moral que desvia da rua a juventude mal preparada” (CMP, 1966, p. 21).

Por fim, compreendemos o isolamento geográfico dos novos núcleos habitacionais como um aspecto importante desta política, já que os Bairros Camarários funcionam como locus de reabilitação moral de famílias extraídas, graças ao Regime, de um ambiente moralmente nocivo e contagioso. Com efeito, estes bairros vão ser locais onde vai vigorar um regime excepcional de vigilância e disciplina. Este regime de exceção aplicado apenas a estes espaços pode ser lido no “Regulamento das Habitações do Plano de Melhoramento”, publicado pelo Regime com a construção dos primeiros Bairros Camarários, e na forma como este é aplicado. Este Regulamento estipula em primeiro lugar que “a ocupação da habitação é cedida a título precário” definindo uma regra que se aplica tanto aos espaços públicos como aos privados, de forma indistinta. O artigo 9 do mesmo Regulamento obriga o morador a “ter bom comportamento moral e civil” sendo completado pelo artigo seguinte que lembra que “os ocupantes das habitações podem ser desalojadas sempre que se tornem indignas do direito concedido” ou se houver importante variação de sua situação econômica. Para se assegurar a observância destas regras é nomeado em cada prédio um “fiscal”, um morador contratado para “vigiar” os comportamentos dos outros (CMP, 1958).

Enquanto legislação de exceção, parte dos seus efeitos e da sua esfera de aplicação não é oficialmente escrita, mas apenas presente nas entrelinhas. Assim não são definidas claramente no Regulamento onde começa e onde termina a observação do “bom comportamento” evocado no artigo 9. De fato, a extrema violência do Regulamento vai se traduzir explicitamente na forma como ele vai ser aplicado. Através de outras fontes que tivemos acesso, tais como os Boletins Municipais, encontramos a publicação de alguns dos processos disciplinares dirigidos contra moradores dos Bairros Camarários acusados de infringir o Regulamento. Através de tais processos e também de depoimentos de moradores e de testemunhas que participaram nesta época de levantamentos sociológicos nestes bairros, pudemos observar a vigilância dos fiscais onipresente na vida dos moradores, adentrando desde a esfera econômica e meios de subsistência de cada família – para verificar a veracidade das rendas declaradas – até as opiniões e posições políticas passando pelo comportamento “moral” na vida íntima e afetiva (CMP, 1971; A. A. da Costa, 2018).

Quanto às punições aplicadas, estas iam desde multas à remoção e perda da moradia. No entanto, encontramos em nossas fontes a menção a um tipo específico de punição que reteve nossa atenção. A chamada “transferência de bairro” em decorrência de “processo disciplinar” que consistia em transferir alguns moradores culpados de faltas graves ou reincidentes para outro Bairro (CMP, 1971, p.85). Neste aspecto, muitos destes eram removidos pelo Bairro São João de Deus, bairro afastado e em piores condições do que a maioria dos outros – por ser de construção mais antiga, anterior ao Plano de 1956. Enquanto local de banimento simbólico este bairro recebeu então dos moradores o apelido de tarrafal – em referência à Colônia Penal instituída em uma ilha de Cabo Verde por Salazar em 1936 para onde eram mandados os presos políticos da Ditadura (A. A. da Costa, 2018). Esta transferência de bairro pode ser lida como um rebaixamento social simbólico que parece ao mesmo tempo cumprir a função de purificar, uma vez mais, o Bairro Camarário extirpando os infratores mais problemáticos antes que eles influenciassem o resto do grupo; e ao mesmo tempo, dar uma chance de redenção aos culpados antes da aplicação da pena máxima que seria a perda total de habitação.

Neste aspecto, os Bairros Camarários parecem incarnar uma espacialização do conceito de Estado de Exceção. Segundo Giorgio Agamben é uma caraterística da soberania moderna de operar um novo “ordenamento do espaço” no qual o Poder soberano define rigorosamente os limites entre “o espaço no qual o ordenamento jurídico normal se opera” e o resto “o fora” traçando entre ambos um “limiar” que é justamente o “estado de exceção”, o espaço onde a lei comum pode ser subvertida pelo próprio Poder (AGAMBEN, 2014, p.25).

É interessante notar que o apelido conferido pelos moradores ao Bairro São João de Deus de tarrafal é uma alusão histórica pertinente que nos parece ilustrar a dimensão simbólica da remoção forçada dos moradores das ilhas pela Ditadura. Pelo processo de purificação social e reabilitação moral que eles representam, podemos ver tanto no Plano de Salubrização das Ilhas quanto no Regulamento disciplinar dos Bairros Camarários uma continuidade histórica com o processo de degredo praticado pela Ditadura Salazarista desde a sua primeira década com o envio de seus presos políticos para a Colônia do Tarrafal, em Cabo Verde. Esta prática é ela mesma historicamente enraizada na pena tradicional do degredo aplicada pelo Poder Imperial Português durante todo o período moderno, enviando alguns de seus condenados para territórios situados à periferia do Reino, sejam os coutos localizados nas fronteiras de Portugal ou as próprias colônias do ultramar.

Como aponta a historiadora Thais Tanure em seu trabalho sobre a prática do degredo, esta pena se baseou historicamente no mito do Bode Expiatório, que nos parece constituir uma chave de leitura interessante para compreendermos a dimensão coercitiva da política habitacional de demolição das ilhas e remoção de seus moradores. Segundo este mito, a cura do corpo social passa pelo sacrifício e "execração unânime daquele que torna a sociedade doente”. Na mesma medida “alguns degredados são afastados para locais recônditos para a purificação de seu corpo – e também do corpo social” enquanto “alguns outros deixam de o ser” para que a sociedade possa se reafirmar harmoniosa (TANURE, 2018, p.33).

Conclusão

Ao longo deste trabalho, refletimos sobre um tipo de urbanismo informal que ainda foi objeto de poucas pesquisas específicas pelos estudiosos do tema e que podemos qualificar de compartilhamento informal do espaço urbano. Este conceito pode ser definido como um processo de subdivisão informal e adensamento de um dado espaço por um proprietário imobiliário ou fundiário, ignorando parte das normas legais de habitação em vista de rentabilização máxima da superfície habitável para um maior lucro. Este tipo de ordenação informal do espaço habitável pode ser feito em terrenos ainda virgens, no caso dos loteamentos irregulares, ou se agregar a espaços já construídos – produzindo os chamados cortiços, ilhas ou pátios, segundo o local. Presente em diversas cidades e locais do mundo trata-se de uma das numerosas declinações dos “regimes de urbanismos e de organização social da cidade” onde modelos “formais” e práticas “informais” se articulam (JACQUOT; SIERRA; TADIÉ, 2016). Vale ressaltar que, apesar de sua dimensão informal que implica em burlar propositalmente as normas legais e/ou fiscais em vigor, a lógica que sustenta este modo de produção da moradia reproduz aquela do mercado imobiliário formal e legal de construção e especulação imobiliária. Neste sentido, o compartilhamento informal do espaço urbano é uma boa ilustração das palavras da filósofa colombiana Herrara-Vega que em seu trabalho sobre o mercado informal argumenta que este pode ser entendido como “espelho” e reflexo na escala local da economia capitalista lícita e mundializada (HERRARA-VEGA, 2006).

Com efeito, vimos com o exemplo das ilhas da cidade do Porto como a multiplicação destes tipos de habitação durante as primeiras décadas do século XX somente foi possível, porque a sua existência beneficiava a influente classe proprietária, incluindo membros das elites políticas, econômicas e religiosas locais. Percebemos que o Estado Ditatorial português salazarista que ocupa o poder a partir da década de 1930 também tolera esta informalidade até um dado momento em que a sua expansão começa a ser vista como uma ameaça tanto pelos Poderes municipais quanto estatais. A nossa análise do Plano de Salubrização das Ilhas do Porto, desenvolvido a partir de 1956, nos permitiu elucidar os principais objetivos por trás da vasta operação de remoção e reestruturação urbana desencadeada contra as ilhas neste momento. Identificamos um primeiro objetivo atendendo ao mesmo tempo interesses econômicos e políticos, através da retirada de grande parte da população pobre vivendo na região central e a consequente aquisição, a preço irrisório, de terrenos situados nesta zona pelo Poder Municipal. Este processo que consiste em redefinir, através de uma remoção forçada, o local de vida de diversos grupos sociais, representa também um ato político significativo operado pelo Poder. Em suas reflexões sobre o urbanismo informal, Rafael Soares Gonçalves identifica a escolha do local de vida como um dos recursos urbanos mais estratégicos por ser aquele que permite acesso a todos os outros – saúde, educação, trabalho, lazer etc. – tendo neste sentido uma dimensão política, social e econômica (GONÇALVES, 2017). Com efeito, esta operação urbana também possibilita, pela triagem da população removida, a periferização e o espalhamento das populações mais pobres da cidade em locais que possibilitam a vigilância e enquadramento moral das mesmas: os novos Bairros Camarários. Trata-se, portanto, de uma estratégia política e policial no intuito de estabelecer espacialmente uma ordem social e econômica que corresponda aos interesses das autoridades municipais e estatais.

Enfim, os Bairros camarários criados para receber os moradores removidos se tornam espaços de exceção periféricos, na medida em que eles são fragmentos do território urbano situados geográfica e juridicamente no limiar, na linha periférica, ao mesmo tempo dentro e fora da lei: versão territorial do estado de exceção analisado por Agamben (2014). Neste sentido, o Projeto de remoção das ilhas aplicado no Porto pelo Poder Municipal e pelo Regime de Salazar traduz uma territorialização do Projeto Político do Regime para a cidade e para a sociedade. Por outro lado, através de um projeto político que pretende erradicar um regime específico de informalidade urbana, foi criada uma outra cidade informal, um espaço urbano periférico socialmente isolado, regido por suas próprias normas através de um dispositivo legal de exceção, sacrificado para resguardar uma ordem urbana da qual ele é excluído.

A história do Plano de Salubrização das Ilhas do Porto nos mostra como as práticas urbanas informais e a formação dos espaços periféricos, ambas zonas sombrias da história da política contemporânea, merecem ser repensadas não apenas como produtos do “descaso estrutural do Estado e de suas instituições” mas como objetos que esclarecem ao mesmo tempo “relações de dominações” e decisões políticas estratégicas (BAUTÈS; MORELLE; DE SANTIS FELTRAN, 2016). Diríamos mesmo que a cidade informal e/ou periférica pode ser vista em muitos casos como um laboratório sociopolítico crucial seja para o desenvolvimento de práticas de controle e dominação por parte do Estado, como demonstrado ao longo deste artigo, seja para a emergência de dinâmicas de emancipação e resistência, como analisado por nós em outros trabalhos (URVOY, 2015).

Material suplementar
Referências
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