Resumo: Este trabalho aborda a favela Vila Operária localizada no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, ambos marcados por estigmas negativos, não raros associados à violência e carência de serviços de infraestrutura urbana. A partir do uso da metodologia da História Oral, pretende-se colher depoimentos de famílias há muito residentes no local, para traçar a trajetória de construção e consolidação de suas moradias. A partir delas, será buscado entendimento das estratégias utilizadas pelos moradores para garantir acesso à permanência, bem como para o alcance a diferentes bens de infraestrutura urbana e serviços diversos, além de formas de mobilização política.
Palavras-chave:Vila OperáriaVila Operária,Baixada FluminenseBaixada Fluminense,MemóriaMemória,PropriedadePropriedade,FavelasFavelas.
Artigos
Memória, propriedade e resistência: a trajetória da moradia como acesso ao direito à cidade na favela de Vila Operária
Memória, propriedade e resistência: a trajetória da moradia como acesso ao direito à cidade na favela de Vila Operária
Mauro Amoroso1
Resumo
Este trabalho aborda a favela Vila Operária localizada no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, ambos marcados por estigmas negativos, não raros associados à violência e carência de serviços de infraestrutura urbana. A partir do uso da metodologia da História Oral, pretende-se colher depoimentos de famílias há muito residentes no local, para traçar a trajetória de construção e consolidação de suas moradias. A partir delas, será buscado entendimento das estratégias utilizadas pelos moradores para garantir acesso à permanência, bem como para o alcance a diferentes bens de infraestrutura urbana e serviços diversos, além de formas de mobilização política.
Palavras-chave
Vila Operária; Baixada Fluminense; Memória; Propriedade; Favelas.
Memory, property and resistance: the trajectory of housing as access to right to the city in the favela of Vila Operária
Abstract
This work deals with the favela Vila Operária, located in the municipality of Duque de Caxias, in the Baixada Fluminense, both marked by negative stigmas, not rare associated with violence, and lack of urban infrastructure services. Based on the use of Oral History methodology, it is intended to collect testimony from long-standing residents in the area, in order to trace the construction and consolidation of their homes. From these, it will be sought understanding of the strategies used by the residents to guarantee access to the permanence as well as the reach to different urban infrastructure goods and diverse services, as well as forms of political mobilization.
Keywords
Vila Operária; Baixada Fluminense; Memory; Property; Slums.
Artigo recebido: maio de 2018.
Artigo aprovado: julho de 2018.
A questão da habitação permeia o debate sobre a informalidade desde seus primórdios, nos anos 1960, quando a categoria de marginalidade e os debates acerca das ideias de Gino Germani e da teoria da modernização apresentavam certa centralidade (MANEIRO e BAUTÈS, 2017). É possível notar uma crítica à vertente interpretativa que pode ser denominada como “marginalidade ecológica”, que estigmatiza negativamente setores da sociedade associando características de precariedade moral pelas péssimas condições de seus locais de moradia, desde trabalhos tradicionais, como o de Janice Perlman (2002). María Maneiro e Nicolas Bautès (2017), a partir de análise da literatura sobre o tema, chegam a atentar para como a moradia informal pode ser vista, inclusive, como uma forma de acesso à formalização de espaços para habitação, levando à implementação de ações e políticas públicas em espaços de ocupação e loteamento. Ou seja, a informalidade, além da própria ideia de marginalidade, não se trataria de uma situação de “estar à parte” das diferentes relações sociais, mas de um patamar próprio de um grupo situar-se diante da dinâmica do convívio social.
À luz dessas observações iniciais, o objetivo do presente trabalho é tecer reflexões preliminares sobre os sentidos da propriedade para os moradores da favela de Vila Operária, localizada no município de Duque de Caxias, pertencente à região conhecida como Baixada Fluminense, conjunto de municípios que fazem parte do estado brasileiro do Rio de Janeiro. A análise aqui proposta trata de questionamentos preliminares oriundos do recém-iniciado projeto de pesquisa “Memória, propriedade e moradia: os usos políticos do passado como luta pelo direito à cidade em uma favela de Duque de Caxias”2, coordenado pelo autor.
Para tanto, serão majoritariamente analisados trechos do depoimento de Djanira Lopes dos Santos, uma das mais antigas moradoras da localidade em questão, bem como uma das fundadoras de sua associação de moradores. Sendo assim, a reflexão será guiada pelas seguintes perguntas: qual é o sentido da ideia de propriedade para o morador de uma favela localizada em uma região de periferia urbana? Como sua trajetória de vida e mobilização pelo direito à cidade se relaciona com o histórico de sua moradia? Quais as formas de sociabilidade suscitadas a partir desta relação?
Vila Operária, uma favela em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense: breve histórico
Para fins de melhor apresentação do objeto, será traçado um breve histórico sobre a favela de Vila Operária. Segundo a Fundação para o Desenvolvimento da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (FUNDREM), a partir de critérios como grau de urbanização e densidade populacional, sua área engloba municípios como os de Duque de Caxias, São João de Meriti, Nilópolis, Nova Iguaçu, Belford Roxo, Queimados e Japeri, dentre outros (ALVES, 2003, p. 16). A região é caracterizada por ser estigmatizada como área de violência e conflitos diversos, além da baixa incidência de acesso a bens e diferentes serviços.
Duque de Caxias, município ao qual pertence Vila Operária, foi alçado a esta categoria desde 1943 e possui uma população estimada, de acordo com dados de 2013, de 873.921 habitantes, ocupando uma área de 467.619 km2. Em 2010, seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi de 0,711. Segundo dados do Censo de 2000, sua Incidência de Pobreza é de 55, 53%3. Sobre a Vila Operária, não há dados específicos abertos à consulta pública, fato para o qual contribui a ausência de um órgão que sintetize e divulgue tais dados referentes a favelas e assentamentos informais.
Denise Ramos Ferreira (2012, p. 31) aponta o princípio da ocupação que hoje em dia corresponde à área da favela em questão por volta de 1954, por migrantes nordestinos e fluminenses, estimulados, em grande parte, pelo Serviço de Malária da Baixada Fluminense, existente desde 1947, e pelo estímulo da prefeitura à ocupação local de uma área densamente pouco povoada. Tais fatores teriam contribuído para gerar um quadro de estímulo à fixação, facilitando a aceitação de plantas e ocupações irregulares, além de gerar uma situação favorável ao loteamento feito de forma barata. Tal panorama teria propiciado uma situação favorável à autoconstrução, prática que norteia o surgimento das favelas, não apenas na cidade do Rio de Janeiro, desde o final do século XIX, a partir de diferentes conjunturas locais (GONÇALVES, 2010).
No entanto, é preciso chamar atenção para os conflitos que marcaram a disputa por terras em Duque de Caxias e outras regiões da Baixada, nos anos 1950 e 1960 (ALVES, 2003). Tal panorama esteve presente no surgimento da Vila Operária, sendo que Denise Ferreira (2012) atenta para o que seria uma representação de “favelado” que teria auxiliado os primeiros moradores da localidade em questão a construir uma identidade de luta a partir de seu local de moradia e as problemáticas concernentes ao mesmo. Essa visão pode ser marcada como contraponto a uma noção corrente em diferentes setores da sociedade, não apenas em Caxias, mas em diferentes regiões metropolitanas, como o próprio Rio de Janeiro, do morador de favelas como um sujeito miserável, ignorante político manipulado e subserviente. É interessante apontar que o conhecido estudo de Janice Perlman (2002), que dentre outras favelas abordou Vila Operária, já se preocupava em desconstruir tal conotação nos anos 1970, caminho interpretativo também visto em Ferreira (2012).
Segundo a memória local, Vila Operária teria surgido através de loteamento comandado por José de Jesus, figura política atuante no município de Duque de Caxias e companheiro de Djanira Lopes, em dois momentos distintos, nos anos de 1958 e 1962. Porém, é preciso esclarecer que, apesar da importância da figura de José de Jesus, alguns pontos sobre o surgimento da Vila Operária não são consenso. Djanira Lopes reside em um local cuja regularização do terreno é mais clara, localizando-se na região oficialmente conhecida pela Prefeitura de Duque de Caxias como Parque Felicidade. Segundo memória dessa área da favela, a mesma teria sido loteada em terrenos que teriam pertencido a Genack Chadricky que, posteriormente, os doaria a seus moradores (FERREIRA, 2012). Em seu depoimento (16/09/2017), Djanira afirma que herdeiros da família Chadricky teriam feito a doação, originando um documento legal de posse4 para os habitantes locais: “Os filhos dele [...] fizeram depois as entrega das escrituras, né? De quem tinha feito. Eu tenho um papel, é que eu não me lembro agora aonde que eu botei. Eu tenho um papel da...da...de título de propriedade, entendeu?”.
No entanto, é possível perceber que o papel da família Chadricky não é interpretada de forma unânime. Tal fato pode ser atestado pelo depoimento de uma moradora com o mesmo tempo de residência que Djanira Lopes, porém oriunda de outra área de Vila Operária: “(perguntada sobre aqueles que se diziam donos do terreno onde estava a favela) Eles falavam que era um tal de Chadricky. [...] mas... ninguém sabia quem era, nem ninguém nunca viu, ninguém sabe quem é” (depoimento de Maria Luísa, 14/03/2018).
Ou seja, apesar da menção ao nome da suposta família proprietária, no segundo depoimento não se vê a mesma familiaridade e conotação de proximidade do primeiro. Nota-se, inclusive, uma contestação à certeza do caráter de proprietários do Chadricky, uma vez que “ninguém nunca viu, ninguém sabe quem é”. É importante mencionar que onde mora Maria Luísa é uma área de situação fundiária mais irregular e complexa. Assim, deve-se estar atento ao fato de que, como um todo, o terreno da favela em questão mostra-se fragmentado juridicamente, uma vez que possui espaços com diferentes graus de regularização.
Com isso, não se nega a possível posse da família Chadricky, mas ela teria se estendido de forma igual para a área da favela? A partir de um núcleo inicial de loteamento, a mesma não teria se expandido de outras maneiras e atuações, gerando áreas diferenciadas em termos de situação jurídica e, consequentemente, espaços hierarquizados internos que poderiam influir nas próprias relações sociais locais?
Ainda sobre as lideranças políticas internas, deve-se mencionar Davino Miguel da Rocha, militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e atuante na localidade nos anos 1970 e 1980, chegando a fazer parte da diretoria da associação de moradores em períodos diferentes. Sua figura é importante para se pensar a questão política local, tendo em vista que conseguiu estabelecer pontes de contato e negociação política com Hydekel de Freitas, antigo membro da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), principal base partidária de apoio ao governo militar durante a ditadura de 1964 a 1985, e que depois filiado ao Partido Democrático Social (PDS), partido que sucedeu a ARENA após a abertura política (FERREIRA, 2012).
Hydekel de Freitas, genro de Tenório Cavalcanti, folclórica e histórica liderança política do município em questão, foi interventor5 em Duque de Caxias entre os anos de 1982 e 1985. O fato no qual Davino da Rocha, integrante do PCB desde 1967 (FERREIRA, 2012, p. 107), e Hydekel de Freitas, membro de grupo político não apenas distinto, mas adversário, conseguirem estabelecer pontes de negociação política cria um interessante quadro para se pensar os interesses diversos e as vias de alcance distintas a partir da realidade sociopolítica da localidade em questão. Na atualidade, poucas são as pesquisas desenvolvidas sobre Vila Operária, com raríssimas exceções como o já citado trabalho de Denise Ramos Ferreira (2012), assim como também são poucos os dados oficiais produzidos sobre o local, quadro para o qual a presente pesquisa também pretende contribuir para a reversão.
Djanira e a memória da moradia: indícios para se pensar a trajetória da propriedade a partir das relações sociais e possibilidades de resistência
Dona Djanira nasceu no dia 3 de outubro de 1936 em Recife, capital do estado brasileiro de Pernambuco. Originária de família humilde, seu pai foi lavrador e sua mãe trabalhou em um colégio de freiras da ordem dos salesianos. Suas primeiras lembranças são do tempo em que passou com a mãe em seu local de trabalho, período sobre o qual desenvolveu afeto memorialístico:
Então nós fomos criados assim, em colégio de madre, salesiana, né? Então ali eu conheci minhas primeiras palavras, foi no colégio com as madres. [...] Era muito levada. Só queria saber de brincar. Era muito levada... [...] (no colégio de freiras) Me sentia em casa. Eu me sentia muito à vontade. Eu tive a infância muito boa, eu brinquei de tudo, de tudo que pode imaginar que uma criança tem, eu tive. [...] Agora, depois aqui no Rio foi que começou a minha via crúcis... (grifos meus, depoimento de Djanira dos Santos, 16/09/2017).
A memória é uma ferramenta com a qual um indivíduo ou um grupo constrói relações com o passado. Os significados sobre o passado construídos a partir dela possuem a marca das angústias e tensões do tempo presente, enquanto lugar de evocação desta mesma memória (ROUSSO, 1998, RICOEUR, 2000). A partir dessas considerações, comentarei as lembranças narradas pela depoente. Seus pais faleceram, ainda segundo seu depoimento, muito cedo, quando ela tinha apenas dois anos de idade. Sob os cuidados dos irmãos mais velhos, ela permaneceu em Recife até aproximadamente seus dez, quando se mudou para o Rio de Janeiro. É interessante notar a marca que essas lembranças deixaram em Djanira, bem como a aura de satisfação que elas provocam. Essa afetividade positiva é reforçada por contraste com a frase que encerra sua fala citada: a comparação com o caminho feito por Jesus Cristo carregando sua cruz até o calvário, a “via crúcis” da própria Djanira. Ou seja, há um claro contraponto entre um período idealizado de uma infância mais que longínqua com o período de sofrimento. Podemos pensar na possibilidade do quanto a trajetória de lutas diversas vivenciada pela depoente não ajudou a criar um elemento de romantização da narrativa sobre sua infância, e como este processo de significação não ajuda a sublinhar ainda mais firmemente as formas de resistência vividas por Djanira desde então6.
Desde estudos dos anos 1960, é possível observar um debate sobre a origem dos moradores de favelas no Rio de Janeiro e em municípios vizinhos. O imaginário tende a apontar que, nos anos 1950, sobretudo, o morador de favela era oriundo de área rural. No entanto, é possível achar dados que divergem apontando seja para uma origem agrária, seja para nascidos na área urbana onde a favela se localiza. Ainda há a possibilidade de se achar a mescla entre as duas possibilidades (PERLMAN, 2002, p. 94). No entanto, tendo em vista que desde o Código de Obras de 1937, as favelas foram reconhecidas pelo Estado como áreas irregulares, a informalidade passou a ser uma marca comum da forma de moradia representada por esses espaços. No entanto, uma série de possibilidades de acordos e negociações surgiram dessa situação, indo desde loteamentos à exploração de uma indústria informal do aluguel e da construção imobiliárias em diferentes contextos históricos (GONÇALVES, 2010).
Como hipótese, creio que em muito a questão se passa por cada favela e a especificidade histórica de sua formação, sendo difícil, e talvez até indesejável, buscar um resultado homogêneo para todas as favelas. No caso de Vila Operária, em um primeiro olhar, é possível perceber uma considerável presença nordestina7, da qual Djanira seria um exemplo. Sua fala revela o seguinte quadro a se refletir sobre:
Eu me acostumei, porque eu não tinha mais tempo pra brincar, não era mais aquela vida, era...era...era uma coisa que modificou assim da água pro vinho. Eu passei a cuidar dos filhos das madames, ser babá e quando não, passei a limpar casa também, ser copeira, ser arrumadeira e enfim, de tudo um pouquinho eu fazia. Aí eu não tinha mais tempo pra brincar. (depoimento de Djanira dos Santos, 16/09/2017).
Neste caso, segundo a memória da depoente, é possível compreender o porquê de sua comparação entre uma infância “livre” e sua “via crúcis”. Segundo seu depoimento, ainda aos dez anos, Djanira veio morar com seus irmãos mais velhos, que migraram anteriormente para o Rio de Janeiro, em um bairro suburbano do município. Assim como outras mulheres de sua geração em situação semelhante, passou a realizar serviços domésticos diversos em casas mais abastadas, geralmente localizadas na zona sul carioca, área onde reside o percentual populacional com maior poder aquisitivo. Nesta perspectiva, ainda vivendo com seus irmãos, que a depoente foi morar em Vila Operária, sendo levada por uma colega de trabalho no hospital em que foi empregada, um dos diversos lugares nos quais a entrevistada trabalhou:
Tinha uma senhora que trabalhava na enfermagem, ela me trouxe e me [...] arrumou uma casa, um cantinho que era dela, ela me vendeu pra mim por “trezentos reais”8 na época, que era minha primeira casa [...] era um barraquinho, tinha uma sala e quarto, né? Com cozinha. (depoimento de Djanira dos Santos, 16/09/2017).
Ao ser perguntada sobre o significado desta compra, Djanira responde:
Ih, eu me senti a rainha da cocada preta, que o que eu mais queria era uma casa, porque eu estava cansada de ficar na casa de um, na casa de outro, na casa de outro, que é coisa muito ruim você estar pulando assim, que na casa de um você não se dá bem e sai fora, aí vai pra casa de outro e é sempre assim hostilizada, né? Então eu ali estava me sentindo a rainha, porque eu estava no que é meu, batia no peito: “Porque aqui é minha, aqui eu mando, aqui eu faço o que eu quero!” (depoimento de Djanira dos Santos, 16/09/2017).
Antes de adentrar na análise da fala acima, gostaria de chamar atenção para uma interpretação da ideia de “propriedade” a partir da categoria que Rosa Congost (2003) constrói como “direitos de propriedade”. A autora elabora essa categoria partindo do entendimento que relações de propriedade são relações sociais que ultrapassariam aspectos legais ou dispositivos institucionais. Desse modo, a noção de “direitos de propriedade” seria de extrema importância para a compreensão da questão em diferentes contextos históricos e espaciais, abrindo um fecundo campo para a reflexão sobre a pluralidade das formas de usos de uma determinada propriedade, em seus diferentes tipos. Essa noção deve ser levada em conta de modo que se tenha em mente que ela pode mudar e se desenvolver mesmo quando não acompanhada pelo arcabouço legal e jurídico de uma determinada sociedade. Assim, Congost e Santos (2010) entendem que a ideia de propriedade seria a legitimidade social para a ações específicas sobre ativos, possibilitando uma reflexão sobre a questão tendo como base o conjunto de relações sociais e as conjunturas históricas nas quais essas se inserem. Comentando uma polêmica entre Engels e Proudhon acerca do papel da propriedade para a classe operária, Raúl Zibechi (2015) também chama atenção para o papel histórico de resistência e contraponto que o acesso à propriedade teve para diferentes movimentos sociais na América Latina:
Foi precisamente a preservação ou recriação de espaços sob seu controle e posse que permitiu aos setores populares resistir às agressões do sistema [...]. Em paralelo, a partir destes territórios conquistados os pobres puderam lançar formidáveis desafios aos Estados e às elites. (ZIBECHI, 2015, p. 27).
Desse modo, é importante perceber como o ato de comprar uma propriedade para moradia9 é revestido por um sentido de liberdade na memória da entrevistada, uma vez que a casa em questão “aqui é minha, aqui eu mando, aqui eu faço o que eu quero!”, pondo fim a uma situação na qual “estava cansada de ficar na casa de um, na casa de outro, na casa de outro, que é coisa muito ruim você estar pulando assim, que na casa de um você não se dá bem e sai fora”. Ou seja, nota-se que a propriedade ganha uma função social que dota a entrevistada de uma percepção de autonomia para planejar suas ações cotidianas, independente da situação jurídica de seu local de moradia, tendo em vista a instabilidade institucional de uma moradia em uma favela. Também se deve chamar atenção para o traço de autonomia e todo seu simbolismo presente na memória de Djanira sobre a compra de sua primeira casa, bem como a importância de tal significado para que a mesma construa uma representação sobre este ato como um ponto de partida.
Deve-se, igualmente, chamar atenção para o caráter informal da transação para que a residência tivesse sido adquirida, uma vez que a mesma se localiza em um loteamento. No entanto, tal situação, conforme visto, não gerou algum tipo de insegurança na depoente, pelo contrário, conforme igualmente observado. Essa percepção da entrevistada pode ser relacionada à própria visão de como os universos do formal e do informal não podem ser vistos como campos opostos e sem diálogos, pelo contrário, como esferas cujos elementos transitam entre ambos os campos em diferentes escalas (CARDOSO, 2016; MANEIRO e BAUTÈS, 2017). Esse quadro explica como adquirir uma propriedade de situação informal ou irregular pode ser vista como um investimento futuro pensado no longo prazo, devido à possibilidade não apenas da regularização de sua situação fundiária, mas pela possibilidade de oferta de serviços diversos que podem alcançar a região no futuro.
Sob essa perspectiva, após sua primeira aquisição, a depoente compra um terreno no qual ela realiza um empreendimento de maior ousadia e planejamento, para a construção da casa onde reside até hoje, pensada em consonância com sua trajetória familiar que seria percorrida. Após a compra deste novo terreno, Djanira (depoimento de 16/09/2017) conta que:
Eu só paguei aqui o alicerce, eu paguei quatrocentos e oitenta “reais”10 ao seu João Correia Costa, um morador daqui que era chefe de obra, pra fazer o alicerce da casa. A minha casa aqui tem base pra oito andares [...] Que na época eu tinha oito filhos e eu queria que cada um deles construísse em cima, então teve base pra oito filhos, pra oito andares. Tanto que eu tenho cinco casas aqui. Tem as três da frente e nos fundos tem duas, tem uma aqui do lado e tem outra lá nos fundos. Mas conseguimos o objetivo. Minha casa como eu queria.
Neste caso, é possível perceber o histórico da moradia, cuja construção se iniciou no início dos anos 1960, como um investimento familiar a fim de assegurar residência para seus filhos. Ou seja, a propriedade passa a ser vista não como um objeto definitivo, mas um elemento em constante construção e maleabilidade, conforme a trajetória pessoal da depoente e dos seus filhos. Assim é possível perceber como o âmbito das relações sociais chega a ser mais importante para a entrevistada que o elemento jurídico, uma vez que o projeto da construção de um edifício não leva em conta possíveis e prováveis entraves da legislação que rege a construção urbana no local, configurando uma noção de “direitos de propriedade” (CONGOST, 2003). Mesmo atentando para a existência de cinco casas no atual terreno, devemos ter em vista que a mesma continua ainda inacabada, mesmo em uma situação de “minha casa como eu queria”, uma vez que o alicerce da obra ainda permite, uma vez que foi feito para oito construções, que outras residências sejam feitas no local.
Para o entendimento do quadro que revela a trajetória desta moradia, de acordo com a memória daquela que a concebeu, é vital a noção de autoconstrução, marca das favelas e locais de moradia popular semelhantes. Como o próprio nome sugere, trata-se de prática de edificação feita pelos moradores da residência, muitas vezes contando com o auxílio de parentes, vizinhos e amigos. Desse modo, uma propriedade de autoconstrução costuma ser um objeto de constante transformação, nunca chegando a ser dada como “finalizada”. Seu surgimento ocorre ao longo do histórico dos sujeitos que habitam essa propriedade, e, por isto, marca de forma sólida a memória familiar local, bem como seus significados devem ser compreendidos ao longo da linha temporal que perpassa a trajetória dos sujeitos responsáveis por seu surgimento e posteriores modificações. No caso de Djanira (depoimento de 16/09/2017), a construção de sua residência é contada da seguinte forma:
De quatro anos em diante eu fui comprando, cada mês eu comprava tijolo, outro mês eu comprava areia, outro mês eu comprava pedra, outro mês eu comprava ferro, cada mês eu fui comprando uma coisa. Por último eu comprei o cimento. Quando eu comprei o cimento eu avisei os meus amigos, [...] que eles vieram levantar. Aí levei mais ou menos uns três anos [...] (sobre a vivência em uma casa ainda em construção) Dormia com esse buraco aí (risos) não tinha janela, não tinha comprado janela, porta, nada disso. [...] a gente dormia com tudo aberto, aqui era um colchãozinho no chão, porque eu não tinha cama, não tinha nada.
Tal depoimento é bem ilustrativo do processo de autoconstrução, uma vez que ele é inscrito em uma temporalidade de média a longa duração, não objetivando um término, uma vez que a moradia se torna um elemento de plasticidade de acordo com os interesses e necessidades dos sujeitos que a habitam. E seu caráter inacabado, por vezes em considerável grau, não impedia que o mesmo local fosse inabitado, a exemplo da passagem em que a entrevistada conta que dormia no local mesmo sem que houvesse janela e porta, apenas com “um colchãozinho no chão, porque eu não tinha cama, eu não tinha nada”.
Outro ponto de destaque é a participação “dos amigos” mencionada, prática popularmente conhecida como “mutirão”11. Essa reunião possibilita a circulação de diferentes padrões de sociabilidade, criando ou reforçando laços sociais, dentro da já abordada perspectiva de “direitos de propriedade”, possibilitando uma vivência baseada em trocas diversas, incluindo a de saberes sobre a autoconstrução. Tal assertiva pode ser vista no diálogo estabelecido entre Djanira (depoimento de 16/09/2017) e um de seus filhos, sobre como a casa deste foi construída a partir do conhecimento sobre obras de seu irmão mais velho:
Filho de Dona Djanira: Não! Eu trabalhei só ajudando meu irmão. Eu trabalhei em empreiteira, mas muito tempo...
Entrevistador: E como é que vocês aprenderam a subir casa?
Dona Djanira: Meu filho mais velho!
Filho de Dona Djanira: O meu irmão mais velho que sabe!
Entrevistador: Ele é que trabalhava com obra?
Filho de Dona Djanira: — Ele sabe fazer a estrutura, né?
Dona Djanira: — Ele chegou a ser encarregado de obra!
As formas de integração e sociabilidades abordadas dizem respeito à trajetória pessoal, familiar, laboral e de vizinhança da depoente. Podemos ver como a memória presente no depoimento em questão significa o histórico da autoconstrução à luz de sua identidade pessoal. Porém, é possível estabelecer paralelos entre essa história de vida e a questão política local, no tocante à mobilização pela permanência contra tentativas de remoção, conforme a seguinte passagem:
E pra querer invadir pra atrapalhar a reunião que ele ia falar ao povo, né? Que já era sobre Vila Operária. Porque teve BNH querendo invadir aqui, querendo construir prédios dizendo que ia dar um apartamento pra cada um e a gente não deixava ir. E a gente falava, botava o povo consciente do que tava acontecendo. [...] Vinham dando propostas que iam invadir aqui pra fazer com escavadeira, com tudo, pra derrubar tudo e fazer prédios pra cada um dos moradores dava um apartamento a cada um dos moradores. (depoimento de Djanira dos Santos, 16/09/2017).
O BNH ao qual se refere a entrevistada é o Banco Nacional de Habitação, fundado em 1964, no início do governo militar no Brasil. Inicialmente, foi pensado como um órgão de financiamento para moradias populares. Entretanto, tornou-se um grande banco de crédito imobiliário para diferentes segmentos sociais, possibilitando a expansão da construção civil no período. O que não o impediu de atuar como promotor de crédito imobiliário para as classes populares, porém, dentro de uma política de segregação urbana que, no caso do município do Rio de Janeiro, resultou na remoção de favelas de seus bairros mais valorizados.
Como consequência, um grande grupo de indivíduos que antes residiam perto de seus trabalhos ou de possibilidades de geração de renda, além de terem acesso a serviços diversos de educação, lazer e saúde, dentre outros elementos, passaram a residir em áreas mais distantes da cidade. Com isto, passaram a ter maior gasto com transportes, chegando, inclusive, a perder empregos ou possibilidades de obtenção de renda, além de uma maior restrição a equipamentos urbanos e serviços, além de passarem a pagar mensalidades por moradias em conjuntos habitacionais financiados pelo BNH. Entre os anos de 1968 a 1975, foram erradicadas mais de 60 favelas, resultando na remoção de mais de 100 mil indivíduos (GRYNSZPAN e PANDOLFI, 2002, p. 245)12.
Desse modo, ao remeter-se ao BNH em suas lembranças, Djanira faz referência à ameaça real de remoção da favela de Vila Operária, bem como a possibilidade de ida para um lugar longínquo de onde seus moradores construíram seus laços de sociabilidade e investiram, como mostra a trajetória residencial da própria depoente, parte considerável de sua identidade. O processo de autoconstrução e as relações de sociabilidade nele contidos, também, são marcados pela informalidade que perpassa esses tipos de residência e os já referidos processos sociais de suas construções. Desse modo, devemos perceber a própria informalidade, entendida como uma rede de tramas e conexões, como uma forma de urbanização de um determinado local. Essa visão se contrapõe às interpretações do informal como um “setor à parte da sociedade”, colocando esse universo como um dos muitos fatores que compõem o urbano (MANEIRO e BAUTÈS, 2017). Também pode ser vista uma representação do passado acerca de uma mobilização pela permanência, através da resistência, o que mostra como as relações sociais em torno dos “direitos de propriedade” podem se contrapor as políticas públicas de remoções embasadas pela instabilidade institucional e jurídica das favelas como espaço de moradia.
Conclusão
Conforme abordado, a categoria de “direitos de propriedade” (CONGOST, 2003) abre um rico leque de possibilidades para se pensar a ideia de propriedade a partir das relações sociais em seus diferentes aspectos. Com isso, temos um campo de análise que perpassa trajetórias pessoais, construção de identidade pessoal e de grupo associada ao histórico da (auto)construção da moradia e sua temporalidade particular. A partir destes elementos, podemos observar como são construídos padrões de sociabilidade que resultam em redes de solidariedade, a exemplo da construção através de “mutirões”, de acesso à moradia – como o processo de obtenção da primeira residência de Djanira –, transmissão de saberes – como o conhecimento sobre construção trocados pelos filhos da depoente –, além de formas de resistência – como mostra a memória sobre a presença e a resistência contra a atuação do BNH.
As favelas podem ser consideradas como territórios de “periferia urbana”, assim como os municípios da Baixada Fluminense. Nesse caso, vemos que Vila Operária se encaixa duplamente em tal perfil: por ser uma favela e por estar na Baixada. Raúl Zibechi (2015) caracteriza as “periferias urbanas” como espaços de resistência das classes populares onde estas constroem formas de contraponto em diversas esferas à ordem institucional, em prol do acesso a direitos diversos. No tocante ao campo da informalidade, é importante ter em mente que esta pode ser considerada como um dos aspectos da questão urbana, enquanto uma rede de tramas e conexões que envolvem essa temática, segundo A. Roy (apud, MANEIRO e BAUTÈS, 2017). Ou seja, os processos e significados oriundos da prática da autoconstrução perpassam o aspecto do informal e suas relações com a dinâmica social.
As representações sobre o passado, característica das narrativas de memória, contidas no depoimento aqui analisado revelam esses significados de resistência. Deve-se igualmente estar atento ao amplo potencial mobilizatório e para o uso político de construção de representações positivas das memórias de moradores de favelas, em contraponto aos estigmas negativos correntes na sociedade, do morador de favelas como sujeito político autônomo e gerador de sociabilidades positivas (AMOROSO, 2015).
Porém, questões para o desenvolvimento da pesquisa em início aqui apresentada podem ser postas para o desenvolvimento da mesma: como esses processos se deram no tocante a outros moradores do local em questão? Quais foram as reais possibilidades e limites às formas de resistência e busca por direitos perante à ação estatal e de outros sujeitos com maior grau de institucionalização ? De que forma as memórias das propriedades de autoconstrução podem se entrelaçar de maneira a revelar aspectos comuns de mobilização social e contraponto ao aparato jurídico-estatal? Tais questionamentos são de grande importância para contribuir para uma melhor compreensão dos processos de autoconstrução como forma de resistência e busca por direitos diversos.