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Resumo: O presente trabalho se insere na trajetória da pesquisa em curso na ocupação da região conhecida como Barreira, na orla da Lagoa de Piratininga em Niterói, ameaçada de remoção. Diante da opacidade com que o poder público municipal se posiciona formalmente junto à comunidade, com relação à possibilidade de perda de suas moradias, procurou-se observar como essa mesma prefeitura efetivamente se faz presente na região. Pelo recurso à metodologia da observação participante, percebeu-se um cenário onde a informalidade representa, em certas situações, a via de reapropriação do público, do político, e da cidadania, por parte da população ali residente.
Palavras-chave: Poder público, Informalidade, Cidadania.
Fronteiras difusas da presença municipal na comunidade da Barreira em Niterói: entre o personalismo e o universalismo
Patricia Zürcher1
Adilson Cabral2
Resumo
O presente trabalho se insere na trajetória da pesquisa em curso na ocupação da região conhecida como Barreira, na orla da Lagoa de Piratininga em Niterói, ameaçada de remoção. Diante da opacidade com que o poder público municipal se posiciona formalmente junto à comunidade, com relação à possibilidade de perda de suas moradias, procurou-se observar como essa mesma prefeitura efetivamente se faz presente na região. Pelo recurso à metodologia da observação participante, percebeu-se um cenário onde a informalidade representa, em certas situações, a via de reapropriação do público, do político, e da cidadania, por parte da população ali residente.
Palavras-chave
Poder público; Informalidade; Cidadania.
Diffuse boundaries of the municipal presence in the Barreira community in Niterói: between personalism and universalism
Abstract
This work is part of the research in the occupation of the region known as Barreira, on the border of Piratininga Lagoon in Niterói, threatened with removal. Faced with the opacity which the municipal public power formally positions itself with the community, beyond the possibility of loss of their dwellings, it was sought to observe how this same city council is effectively present in the region. Using the methodology of participant observation, it was possible to perceive a scenario where informality represents, in certain situations, the way of reappropriation of the public, the politic, and citizenship, by the resident population.
Keywords
Public power; Informality; Citizenship.
Artigo recebido: maio 2018.
Artigo aceito: julho 2018.
Introdução
O presente trabalho se insere na trajetória mais ampla da pesquisa em curso na ocupação da orla da Lagoa de Piratininga em Niterói/RJ, que se concentra na região conhecida como Barreira. A pesquisa se originou a partir da ameaça de remoção apresentada formalmente aos ocupantes, em reunião convocada pela Associação dos Moradores da Beira da Lagoa (AMORBELA) por ocasião da concessão de licença ambiental, por parte do Instituto Estadual do Ambiente (INEA) à Prefeitura de Niterói, para implantação de um “Bosque Lagunar” (PREFEITURA MUNICIPAL, 2011) na orla da Lagoa, que prevê a realocação de 460 famílias ali residentes, para um empreendimento do Minha Casa Minha Vida, na comunidade do Jacaré – próxima ao local.
Diante da opacidade e da inconstância com que o poder público municipal se posiciona formalmente junto à comunidade, com relação à possibilidade de perda de suas moradias, procurou-se observar, no trabalho de campo, como essa mesma prefeitura efetivamente se faz presente na região de interesse da pesquisa. A metodologia utilizada na investigação se concentrou em observação participante e entrevistas informais, em virtude de forte resistência dos habitantes da localidade a concederem autorização para uso de gravadores. Nesse movimento se observou que a ação pública no nível local se apresenta num trânsito permanente entre formas universalizadas de recebimento de demandas e condução de soluções, e tratamentos personalistas de questões a serem resolvidas, ambas sendo constantemente acionadas e revelando suas respectivas eficácias.
A partir do material empírico analisado, foi possível perceber que a presença do poder municipal na localidade se faz notar tanto a partir de relações pessoais informais existentes entre moradores e funcionários, quanto pelas vias oficiais de atendimento à população no que tange aos serviços e equipamentos disponibilizados na região. Tal percepção levou à problematização de argumentos que associam personalismos a baixo desempenho institucional e, consequentemente, democracia enfraquecida, por um lado; e preponderância de atendimento universalista e impessoal, com instituições fortes e democracia consolidada, por outro. Na observação da dinâmica cotidiana da localidade, o que se apresentou aos pesquisadores foi um cenário bastante mais complexificado, onde a informalidade representa, em certas situações, a via por excelência de reapropriação do público, do político, da cidade e da cidadania, por parte da população ali residente.
Hibridismo e sincretismo no funcionamento das instituições brasileiras
Na busca de um entendimento acerca da coexistência dessas diferentes formas de canalização e busca de atendimento a demandas, recorreu-se às argumentações de Santos, que aponta a existência de um “híbrido institucional” (SANTOS, 1993, p.77) na formação social brasileira e Nunes, segundo a qual, neste contexto se desenvolveu um “sistema institucional sincrético” (NUNES, 1997, p.36). Para Santos, tal característica parece ser um obstáculo a ser transposto para o bom funcionamento das instituições, como se pode observar no trecho a seguir reproduzido:
Mas a experiência individual de cada um é testemunha de que transitamos com frequência das instituições poliárquicas para as não-poliárquicas, como se estivéssemos habitando o mesmo universo institucional. [...] Na verdade, toda a população brasileira transita permanentemente de um a outro conjunto de instituições, com repercussões maléficas sobre a cultura cívica do país, em primeiro lugar, e sobre a probabilidade de sucesso das políticas governamentais. (SANTOS, 1993, p.104).
Em Nunes, no entanto, se observa uma compreensão mais matizada desse “transitar” entre diferentes dimensões do funcionamento institucional brasileiro:
Quatro principais gramáticas definem as relações Estado versus sociedade no Brasil: clientelismo, corporativismo, insulamento burocrático e universalismo de procedimentos. As instituições formais podem operar numa variedade de modos, segundo uma ou mais gramáticas. Grupos sociais podem, igualmente, basear suas ações em consonância com uma ou mais gramáticas. (NUNES, 1997, p.39).
Observa-se em Nunes, portanto, que não só os grupos sociais transitam de uma “gramática” para outra, mas também as instituições formais. Para a compreensão de como as instituições formais no Brasil também operam nesse trânsito permanente entre as diferentes gramáticas, acompanha-se a exposição de Nunes acerca da “troca específica e troca generalizada no capitalismo” (1997, p.46).
No processo de sua maturação histórica, este sistema sincrético desenvolveu instituições formais, padrões de relações entre indivíduos e instituições e padrões de dominação política inteiramente impregnados pela lógica das gramáticas das trocas generalizadas e específicas. Tais elementos são essenciais ao capitalismo no Brasil. Os efeitos dessa combinação não deveriam ser encarados como uma passagem, ou como uma etapa da modernização, mas como uma combinação particular (NUNES, 1997, p.50).
Segundo Nunes, essa característica sincrética do sistema institucional brasileiro não poderia ser bem compreendida sendo tomada como uma etapa a ser superada, e nesse sentido importa perceber como essas duas lógicas – a da troca específica e da troca generalizada – se definem, para então relacioná-las aos padrões de relação clientelista ou universalista, de acordo com a predominância de uma ou de outra, tendo em vista que tais padrões são por ele tomados como constitutivos do sistema, portanto, permanentes. Para seguir o argumento de Nunes, remete-se agora à constituição dos Estados modernos, ressaltando a ruptura provocada pelos processos de industrialização e de mobilização social que o acompanhou:
O Estado moderno se transformou no primeiro detentor da força como um atributo da sua autoridade. A construção de uma autoridade racional e territorialmente universal foi um fator-chave no desenvolvimento dos Estados capitalistas contemporâneos. [...] A industrialização e a mobilização social erodiram a autoridade local e geraram um domínio público nacional, onde os indivíduos se relacionam uns com os outros e com o Estado de maneira impessoal e mais individualizada.
O domínio público é regulado por normas e instituições baseadas no universalismo de procedimentos, isto é, normas que podem ser formalmente utilizadas por todos os indivíduos da polity, ou a eles aplicadas [...] O universalismo de procedimentos por si só não garante a existência da democracia, mas é um de seus componentes cruciais. (NUNES, 1997, p.41).
No universalismo de procedimentos, portanto, a troca seria do tipo impessoal e específica: os indivíduos adquirem os bens de que necessitam, pagando por eles no mercado, sem nenhuma necessidade de relações pessoais com os vendedores desses bens. A mesma coisa ocorreria com o acesso aos serviços ofertados pelo Estado na forma de políticas públicas: os indivíduos acessam o serviço com base na norma estabelecida, critérios específicos são fixados e, uma vez atendidos os requisitos, o indivíduo tem acesso à política, sem a expectativa de retribuição ou de formação de laços personalistas com os outros indivíduos com os quais interage nesse processo.
Na relação clientelista, no entanto, prevalece a lógica da “troca generalizada” onde as relações pessoais desempenham papel central e incluem promessas e retornos futuros.
Nunes argumenta que, muito embora a lógica da expansão capitalista esteja associada ao impersonalismo e, portanto, ao universalismo de procedimentos, na formação social brasileira especificamente, o clientelismo termina por desempenhar uma função de ligação entre as demandas da sociedade e a “presença difusa das estruturas do Estado”. (NUNES, 1997, p.49) e acrescenta: “O personalismo impregnou e ‘enquadrou’ muitas instituições. No Brasil, o universalismo de procedimentos está permanentemente sob tensão. Relações pessoais e hierárquicas são cruciais para tudo” (NUNES, 1997, p.52).
Nessa tensão entre o personalismo e o universalismo de procedimentos, já devidamente identificada por Nunes, é justamente onde se percebe a presença do poder público na localidade investigada neste trabalho. E tal qual apontado pelo autor, não só os grupos de interesse ou os indivíduos isolados, mas também os agentes do Estado e as instituições formais são percebidos operando no interior das duas “gramáticas”, de acordo com as situações específicas que vão sendo observadas.
A prefeitura “que funciona” e o universalismo de procedimentos
Numa determinada manhã de outubro de 20143, numa das incursões em campo para observação da dinâmica cotidiana da comunidade, os pesquisadores se depararam com uma discussão envolvendo duas palmeiras na calçada de um morador, que estariam servindo de esconderijo para usuários de crack consumirem a droga. Haviam sido encontrados, no local, diversos indícios de que ali se estava alojando uma “minicracolândia”: alguns colchões velhos, copos de guaravita e peças de roupa abandonadas levaram a suspeita e preocupação dos vizinhos. Feita uma reunião espontânea ali na rua mesmo, em frente às arvores, todos os presentes concordaram que a melhor solução seria a eliminação completa das palmeiras, inclusive o dono da casa, mesmo entristecido, pois tinha sido o responsável pelo plantio das mesmas, há quase vinte anos atrás, conforme informado pelo morador. Restava descobrir como providenciar o serviço, já que não se visualizava muita chance no caso de encaminhamento formal da solicitação à prefeitura.
De fato, conforme vinha se observando – e isso fica bem evidente no grupo que se dirige com frequência à ouvidoria municipal via rede social – o serviço de poda e/ou retirada de árvores é um dos mais problemáticos de ser resolvido pelos moradores da região. Ao acompanhar a situação de uma árvore que ameaçava tombar na calçada da outra esquina dessa mesma rua onde se encontravam as palmeiras que vinham servindo de esconderijo, foi possível perceber a complexidade do trâmite burocrático e a consequente ineficácia do poder público municipal em resolver a questão formalmente.
Sem ter conseguido atendimento para a ameaça de tombamento, em dezembro de 2014 quando finalmente a mencionada árvore tombou, derrubando junto um poste de luz, uma moradora da rua atingida pela falta de energia – criadora e primeira administradora do grupo “Cafubá abandonado”4 – começou sua via crucis de solicitação da retirada do material tombado e reposição do poste de iluminação pública. Entre postagens, telefonemas e protocolos, e com certeza devido à visibilidade que a questão ganhou em função de estar sendo demandada por pessoa de notoriedade no bairro, em abril de 2018 foi enfim contemplada com o selo “resolvido”, em vermelho – marca que os integrantes do grupo utilizam para compartilhar os sucessos de suas reivindicações.
O caso das palmeiras utilizadas para o consumo de crack não poderia ter esperado tanto tempo, realmente, e os moradores já tinham experiências anteriores com solicitações dessa natureza. Um deles, inclusive, tinha bastante informação a respeito, segundo o mesmo, por ter “conhecimento na prefeitura”.
Pelos caminhos formais, o protocolo inicial deveria ser aberto na Secretaria de Meio Ambiente que seria encarregada de proceder à avaliação da necessidade real de retirada completa da árvore – tendo em vista princípios de preservação da natureza e da flora nativa. Caso concluíssem pela impossibilidade de permanência da árvore no local, em virtude de prejuízos junto à rede de energia elétrica, por exemplo, ou por ameaçar tombar sobre moradias, enfim, por representar algum risco real para os habitantes da localidade, seria emitida a autorização para a retirada ou poda, conforme a avaliação dos técnicos. Mas segundo esse mesmo morador que explicara todo o caminho da solicitação, a própria visita dos técnicos já poderia demorar meses para acontecer.
Acompanhando então outros casos de solicitação de podas de árvores apresentadas no grupo da rede social (que são, aliás, relativamente frequentes), foi possível constatar que aquele morador não estava mesmo exagerando. Na verdade, o que se observou nas postagens dos moradores, é que a mencionada visita de avaliação feita pelos técnicos da Secretaria de Meio Ambiente não ocorreu em nenhum dos casos acompanhados. As soluções foram sempre emergenciais: ou pelo Corpo de bombeiros – em virtude do tombamento completo em via pública – ou pela empresa de energia elétrica – em função de interferência na rede.
No entanto, naquela tarde onde teve lugar a discussão sobre o destino das palmeiras, uma retroescavadeira e um caminhão da prefeitura realizavam serviço de manutenção de um canal que se forma entre a margem da lagoa e a Via Chico Xavier, que circunda o espelho d’água. Essa formação, segundo os moradores do local, tem uma função regulatória do nível de poluição da lagoa e não pode ser aterrada, mas eventualmente se retrai, seja em função de lixo ali despejado ou do próprio movimento das águas, e torna-se necessário proceder a uma espécie de dragagem dessa vala. Caso todos concordassem, o morador que explicara todo o caminho formal de solicitação de poda de árvores, se propunha a conversar com o motorista da retroescavadeira, que era seu conhecido de outras datas, e acreditava que mediante uma pequena gratificação, e tendo sido devidamente informado dos motivos pelos quais a comunidade precisava daquele serviço, o funcionário pudesse ajudá-los.
Mesmo acostumados a soluções autoaplicáveis, os moradores da localidade, não dispunham de fato, nesse caso, de instrumentos e ferramentas suficientes para retirada de árvores de grande porte, além do problema logístico da destinação do material resultante, e, portanto, todos concordaram. Aproveitando o horário de almoço dos funcionários da prefeitura, quando os mesmos se sentaram na calçada com suas respectivas marmitas, aquele morador se dirige a eles e começa a explicar a situação, ao qual um deles prontamente responde que compreende perfeitamente o problema, pois também mora numa região afetada pelo comércio e consumo de drogas e os dois concordam em resolver a questão logo após as refeições, ainda dentro de seu intervalo destinado ao almoço. Em menos de uma hora as palmeiras sumiram do local, os moradores ficaram aliviados e os trabalhadores orgulhosos de sua participação fundamental – que se realizou, aliás, sem necessidade de nenhuma “gratificação” –, naquele atendimento a um problema tão grave para a comunidade.
Observe-se, nesse caso, que o acionamento de relações pessoais na canalização de demandas da coletividade, cujo encaminhamento formal não apresentava probabilidades objetivas de solução, não ocorre, no entanto, de maneira que se possa classificar como clientelista, pois não existe nesse contexto nenhuma outra característica (a não ser o já registrado personalismo) das que definem tais relações: assimetria, hierarquia, expectativa de retorno futuro, configuração de laços de fidelidade. O recurso público foi utilizado para o bem público, numa relação de solidariedade entre iguais – o funcionário se identifica com o “perigo” que correm aqueles moradores pela utilização indevida das palmeiras como esconderijo para o consumo de drogas – conformando o que Neveu (2004) compreende como uma “cidadania horizontal” entre os “de baixo”.
A análise da dinâmica completa do evento demonstra igualmente como a população se reapropria do espaço público, não apenas para a discussão e deliberação da questão apresentada aos moradores, mas também, e de maneira negociada e consensual, dos serviços e equipamentos ali presentes, mas não necessariamente acessíveis pela via da formalidade. Ao se reunirem na rua, discutirem e entrarem em acordo sobre a melhor alternativa de enfrentar o problema e, em seguida, se dirigirem para a solução efetiva deixa transparecer a existência de importante grau de envolvimento, comprometimento com o bem coletivo, capacidade de argumentação e negociação, e disponibilidade para o consenso, mesmo no interior de alguma controvérsia. Nesse processo se constituem como cidadãos, no sentido radical do termo, a despeito de uma atuação externa aos canais oficiais “de resolução de problemas e conflitos” (SANTOS, 2006, p. 256).
Da observação do evento exposto, depreendeu-se que, com relação às atribuições da secretaria de meio ambiente – órgão responsável pelo encaminhamento do problema que se colocava àqueles moradores – a atuação formal se apresentava de maneira bastante rarefeita naquela região, sendo na maioria das outras situações acompanhadas, apenas com o recurso às relações pessoais que as questões foram encaminhadas e resolvidas.
Essa disponibilização de recursos públicos, pela via da informalidade e do personalismo, e embasada numa relação de igualdade, também pôde ser observada em diversas ações executadas na localidade pela Companhia de Limpeza Urbana de Niterói – a CLIN. No caso das atuações da CLIN pode-se perceber ainda uma concomitância de atendimento personalista com universalista.
Na construção e manutenção do campinho de futebol da Barreira, por exemplo, observou-se o acionamento de diferentes recursos, por parte da população, junto à referida Companhia, tendo sido sempre atendidos. Tanto se recorre às relações pessoais de algum ou vários moradores com os funcionários da Companhia, como dessas mesmas relações, mantidas entre os diferentes vereadores que se apresentam na localidade como representantes de seus interesses, e algum encarregado ou mesmo funcionários de menor escalão. A presença da CLIN na comunidade pesquisada, aliás, é bastante percebida e elogiada – independentemente do teor de suas ações: se passam regularmente para a coleta de lixo, três vezes na semana, atuando dentro de um padrão de atendimento impessoal e igualitário (regiões mais enriquecidas da cidade têm o mesmo número de coletas por semana que a comunidade da Barreira); ou se chegam de retroescavadeira num feriado para trabalhar na manutenção do campinho (deixando uma margem de dúvida – obviamente não esclarecida por nenhum dos questionados – sobre a existência de autorização formal para a execução daquele serviço naquela data) são igualmente valorizados e reconhecidos. Mas importa destacar que, nesse caso, a valorização e o reconhecimento não se dirigem exatamente para o poder público municipal, mas sim para os trabalhadores e sua “camaradagem”.
O mesmo ocorre com relação ao serviço de retirada de entulhos de obra ou outros lixos mais volumosos: é possível solicitá-los formalmente por telefone ao setor responsável da companhia, mediante agendamento de uma visita de agentes avaliadores. Feita a visita, o solicitante paga a quantia de 20,00 reais aos agentes que lhe fornecem um recibo e marcam a data e o período do dia (manhã ou tarde) em que a retirada será realizada. No entanto, o material só pode ir para a rua naquela hora, e muitas vezes quando o morador precisa do serviço é porque já está com o entulho do lado de fora (até porque, nesses contextos, não costuma haver muito espaço não construído do lado de dentro para estocagem do material a ser retirado). Nesse caso, o “conhecimento” de algum funcionário pode ajudar bastante, e a situação pode ser resolvida mais uma vez pela camaradagem, caracterizando o personalismo presente na relação de prestação do serviço público municipal.
Com relação aos serviços prestados pela CLIN na localidade, cumpre ainda destacar a coleta seletiva domiciliar que, mesmo não sendo muito utilizada pelos habitantes da Barreira em situação de precariedade habitacional (mas sendo solicitada por moradores das classes médias também ali residentes) se faz presente e disponível para todos os cidadãos, mediante cadastramento prévio realizado somente por telefone, diretamente com o setor responsável. Isso significa que, mesmo que um morador seja muito amigo do funcionário do caminhão da coleta seletiva, este último irá orientá-lo a solicitar o serviço formalmente pelos canais oficiais.
Transitoriedade entre os domínios
Na análise das ações cotidianas dos moradores na localidade, em busca de atendimento aos seus direitos de cidadania, pode-se observar como, à alternância do teor da ação pública no nível local – entre o formal e o informal – corresponde igualmente o transitar entre uma ou outra forma de canalização de suas reivindicações, por parte da população ali residente.
Nesse contexto são relativizadas as fronteiras que muitas vezes localizam de um lado “os grupos desorganizados” (SANTOS, 2006, p. 256), a informalidade e o clientelismo; e as classes médias com a formalidade e o universalismo, de outro lado. Nunes, por exemplo, é enfático: “Grupos de interesse das classes médias, tendem a utilizar apenas a linguagem do universalismo, rejeitando tanto o clientelismo como o insulamento burocrático, por considerá-los não-democráticos. (NUNES, 1997, p.161). O que se observou na comunidade da Barreira demonstrou haver muitas matizações nessas relações que se estabelecem entre os agentes públicos e as populações demandantes de serviços e atendimentos.
O episódio da remoção das palmeiras, pela via da negociação direta, pessoal e informal com o motorista da retroescavadeira da prefeitura, revelou uma atuação organizada, cidadã e mesmo democrática, de engajamento e condução de demandas por parte dos moradores – que, nesse sentido, reivindicam e obtêm sucesso na contrapartida por parte dos agentes públicos. Outros eventos de reivindicação com relação ao mesmo tipo de serviço apresentaram desfechos distintos, não sendo possível, no entanto, vincular tais diferenças ao acionamento da via formal ou informal, nem mesmo ao nível social dos demandantes.
O que permanece não problematizado das argumentações tanto de Santos como de Nunes, a partir do contexto observado na Barreira, é a classificação atribuída ao mesmo tipo de acionamento do serviço público, quando este é realizado por “grupos desorganizados” ou por “grupos de interesse das classes médias”. Em outras palavras, quando se observou que os moradores mais empobrecidos da região se fazem valer de relações pessoais para atendimento de suas demandas e conseguem pronto atendimento por essa via, tal prática é avaliada pelos vizinhos de classe média como nociva ao bom funcionamento das instituições. Por outro lado, quando se fazem valer eles mesmos, de recurso semelhante, se justificam pela necessidade de solução, que não vinha se realizando pela via da formalidade. A informalidade, portanto, parece só se constituir como um problema quando é acionada no interior de determinado grupo social – e aí se encontram tanto os moradores mais pobres como os pequenos funcionários públicos que com eles se identificam e a suas reivindicações dão atendimento. A possibilidade de que um mesmo comportamento possa ser classificado de maneira tão diferente, pode ser compreendida acompanhando-se a argumentação de Bourdieu:
Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas – o que o operário come, e sobretudo sua maneira de comer, o esporte que pratica e sua maneira de praticá-lo, suas opiniões políticas e sua maneira de expressá-las diferem sistematicamente do consumo ou das atividades correspondentes do empresário industrial; mas também são esquemas classificatórios, princípios de classificação, princípios de visão e divisão e gostos diferentes. Eles estabelecem as diferenças entre o que é bom e mau, entre o bem e o mal, entre o que é distinto e o que é vulgar etc., mas elas não são as mesmas. Assim, por exemplo, o mesmo comportamento ou o mesmo bem pode parecer distinto para um, pretensioso ou ostentatório para outro e vulgar para um terceiro. (BOURDIEU,1996, p. 22).
O encaminhamento personalista de demandas que num determinado contexto é visto como resultado de ignorância (SANTOS, 2006, p.256) ou não-democrático (NUNES, 1997, p. 161); em outro pode ser perfeitamente justificável. Nesse ponto parece atuar a distinção que aponta Bourdieu, entre os modos de agir dos diferentes grupos – que permitem, como salienta o autor, que o mesmo comportamento seja visto como adequado quando praticado por uma determinada parcela de população, e inadequado quando acionado por outras camadas.
Na leitura de uma publicação postada no grupo constituído em rede social para defender os interesses da população do bairro, observou-se uma singular combinação entre uma linguagem que procura dar o tom do universalismo de procedimentos, associada, no entanto, pelo conteúdo do discurso, à gramática do clientelismo.
Amigos Vizinhos ...
Hoje estive em uma reunião com membros do Executivo, representando a Comissão de Urbanismo, Obras, Serviços Públicos, Trânsito e Transportes da Câmara Legislativa, ao qual acumulo o cargo de chefe de Gabinete orquestrado pelo meu Presidente Atratino, e trago boas notícias!
A Drenagem e Pavimentação das ruas 54 e 55 do nosso bairro que conseguimos através de uma Indicação de Execução oriunda de um processo montado por nossa Comissão, postada aqui no grupo e lida em Plenária, está em fase de “análise documental”!
A ordem de início está cada vez mais próxima!
Outras importantes demandas do nosso bairro que captei através do pedido de vizinhos/lideranças aqui do bairro, tive a oportunidade de colocar o processo documental na pauta da reunião e espero em breve chancelar as conquistas aqui no grupo tb!
(3) importantes pedidos estão muito próximos!
Mais conquistas estão por vir (Wermellinger, 2018).
A observação dessa permeabilidade entre universalismo e clientelismo nas demandas e soluções encaminhadas pelo grupo, demonstrou que, na medida em que ocorre num contexto onde a presença majoritária é das classes médias residentes na região, não é percebida como negativa ou dificultadora do fortalecimento da democracia e da cidadania. Por outro lado, quando praticada em outro contexto, essa mesma interseção entre o acionamento da impessoalidade e do personalismo leva à afirmação de estarem esses moradores se coadunando com atitudes nocivas ao processo de democratização e consolidação de direitos universalmente garantidos pelo Estado.
A dinâmica de canalização de demandas dos moradores, quando analisada nas suas diferentes formas de apresentação e acionamento, pelas diferentes camadas da população em seus distintos espaços de pertencimento no interior da estrutura social que compõe o coletivo dos habitantes do bairro, revela muito mais uma fluidez e até mesmo uma sobreposição, em alguns casos, das diferentes “gramáticas”, do que a alternância ou o trânsito entre uma e outra. Tais observações permitem relativizar a argumentação de Santos, por exemplo, quando se refere ao “híbrido institucional” brasileiro e sustenta que os cidadãos transitam permanentemente entre os diferentes tipos de instituições.
Quando votamos conforme as regras da cidadania poliárquica mas não damos queixa à polícia de que nosso filho teve seus tênis roubados, nós automaticamente mudamos de sistema institucional. E se, em acréscimo compramos gás paralisante para que o adolescente possa proteger-se em futuro que se sabe próximo, escolhemos a via “resolver por conta própria” em desespero da polícia e da justiça. (SANTOS, 1993, p.104).
O que as observações no cotidiano da localidade pesquisada demonstraram, na verdade, é que, em certos casos, não é simplesmente o cidadão que transita entre um comportamento poliárquico ou não-poliárquico, mas as próprias instituições atendem diferenciadamente a população, e de acordo com critérios variados, nem mesmo só de classe social, como poderia parecer à primeira vista. Muitas vezes, é o sentimento de identificação com o usuário de uma política ou um serviço público – portanto, uma premissa personalista, nas palavras de Santos, não-poliárquica, que pode determinar um atendimento voltado para o bem estar coletivo, se aproximando portanto de uma ação de caráter universalista – como no caso do funcionário da prefeitura que providencia com agilidade a retirada das árvores que traziam perigo para a comunidade.
Com relação à questão habitacional – interesse central da pesquisa que se originou da ameaça de remoção de 460 famílias da comunidade – cumpre destacar que a busca da solução “por conta própria” tem sido historicamente a via mais utilizada pela parcela mais empobrecida da população e, não necessariamente “em desespero” das instituições públicas, como sugere Santos. A presença do poder público municipal na comunidade da Barreira, no que se refere à garantia do atendimento ao direito constitucional à moradia digna, simplesmente não se faz notar. Nem mesmo com a possibilidade anunciada no projeto do bosque lagunar, que menciona ainda a realocação para unidades do Programa Minha Casa Minha Vida, e com as diversas visitas do então candidato à reeleição para a prefeitura, durante a campanha eleitoral de 2016, acompanhada durante o trabalho de campo na localidade, o assunto foi pautado com transparência e objetividade, limitando-se o candidato a responder, quando indagado sobre a garantia da permanência dos ocupantes na localidade, que “ninguém vai ser removido” – fala que, muitas vezes, permaneceu desacreditada pelos moradores.
Como enfatiza Bourdieu (1979) “probabilidades objetivas” de atendimento universalista por parte dos agentes públicos, se inscrevem nas “esperanças subjetivas” dos cidadãos que, a partir dessas se dirigem para uma ou outra forma de busca de soluções para seus problemas. No caso da ameaça de remoção na comunidade da Barreira é o comportamento do poder público municipal, historicamente reconhecido pelos moradores em sua opacidade e inconstância, que determina a recorrência às alternativas informais. E a argumentação do próprio Santos também não desconsidera esse fator.
Assim, reconhecendo toda a complexidade embutida em processos de transição social, é necessário reconhecer a procedência da sabedoria popular: o exemplo também vem de cima. Que evidências ilustrativas será possível selecionar a fim de especular sobre a qualidade cívica do país face ao híbrido institucional em que todos vivemos? (SANTOS, 1993, p.110).
Considerações finais
Quando se fala em clientelismo, via de regra, o que se procura apontar é a atitude do cidadão comum, que troca seu voto por um favor oferecido por um político populista, mas o que se busca problematizar a partir da leitura desse trecho de Santos é exatamente o “exemplo de cima” que esse cidadão percebe o tempo todo. Nunes explicita bem essa difusão do sistema de trocas de favores que “atravessa a sociedade [brasileira] de alto a baixo” (1997, p.53).
As elites políticas nacionais contam com uma complexa rede de corretagem política que vai dos altos escalões até as localidades. Os recursos materiais do Estado desempenham um papel crucial na operação do sistema; os partidos políticos – isto é, aqueles que apoiam o governo – têm acesso a inúmeros privilégios através do aparelho de Estado. Esses privilégios vão desde a criação de empregos até a distribuição de outros favores, como pavimentação de estradas, construção de escolas, nomeação de chefes e serviços de agências, tais como o diretor escolar e o serviço local de saúde. (NUNES, 1997, p.53).
Como já mencionado em momento anterior deste trabalho, o caso da remoção das palmeiras, demonstrou que, mesmo com o recurso a relações pessoais, os moradores mais empobrecidos da Barreira revelaram capacidade de organização, debate, busca de consenso e se reapropriaram não só do espaço, mas também dos recursos e equipamentos públicos. Donde se pode argumentar, que o personalismo, por si só, não necessariamente atua como enfraquecedor da cidadania. Assim como já observara Nunes, que o universalismo de procedimentos também não garante sozinho a consolidação do processo democrático.
A observação das manifestações concretas dos serviços e políticas públicas municipais na região pesquisada revelou, portanto, que os diferentes padrões de atualização dessas ações no cotidiano dos indivíduos conformam um cenário de grande complexidade que, não pode ser bem compreendido sem um esgarçamento de fronteiras analíticas rígidas entre o formal o informal. Pois como, também, aponta Santos (2006, p.268): “nenhuma sociedade e, pois, também não a brasileira, se fragmenta em escaninhos nos quais se abrigam separadamente o bem, o mal, o joio e o trigo. As sociedades são e sempre serão uma complexa mistura de tudo isso”.
Especificamente no que tange à política habitacional, mesmo não se fazendo presente na localidade nos momentos de realização do trabalho de campo, o que se propõe no projeto formalmente existente (mesmo que aparentemente estagnado) é a realocação de famílias para unidades do Programa Minha Casa Minha Vida, cujo desenho, recorrentemente foi apontado por estudiosos como comprometido por relações de favorecimento a empreiteiras. Esse clientelismo “no alto”, pouco tematizado nos trabalhos sobre o tema, é apontado por Nunes quando desfia a extensa rede de favores que compõe o sistema institucional brasileiro.
Além desses meios tradicionais de patronagem, outros meios “indiretos” são criados, como linhas de crédito a serem utilizadas por fazendeiros ou homens de negócios locais, através do Banco do Brasil ou outros bancos estatais e agências de desenvolvimento. Empreiteiros e construtores que trabalham para o Estado por contrato frequentemente se beneficiam das redes de relações a fim de receber imediato pelos serviços prestados. (NUNES, 1997, p.53).
Muito embora se almeje que toda destinação de recursos públicos seja regida pela gramática do universalismo de procedimentos, não é possível também afirmar que o fato de empreiteiros receberem “pagamento imediato pelos serviços prestados” em virtude de relacionamentos pessoais seja um fator tão importante para os rumos da política habitacional. O caminho a ser percorrido para a sistematização das implicações da coexistência das diferentes gramáticas no cenário político e institucional brasileiro parece ter ainda muitas lacunas a serem preenchidas e, somente através da observação de dinâmicas concretas acredita-se ser possível identificá-las e procurar sua superação. O que se observou até aqui foi que, nem o clientelismo, nem o universalismo de procedimentos, por si sós, podem ser responsabilizados por sucessos ou fracassos de políticas sociais. A respeito do clientelismo, por exemplo, Santos é enfático:
A questão relevante não é a de saber se uma sociedade contém ou não políticas clientelísticas. Todas as contêm. Essencial é esclarecer que tipo de interação entre políticos, eleitores e burocracia pública aumenta a probabilidade de que se produza este ou aquele tipo de resultado, inclusive o de alimentar as disparidades sociais. (SANTOS, 2006, p.253).
Na ausência de uma posição transparente e objetiva por parte da prefeitura municipal, com relação à sua situação habitacional, os ocupantes da Barreira seguem sua vida cotidiana, se fazendo valer das interações informais com políticos e com a burocracia pública, pelos meios que possuem e que historicamente se apresentaram naquele contexto como eficazes, ou simplesmente os únicos possíveis.
As construções de “puxadinhos” continuam ocorrendo normalmente; num certo domingo a comunidade se reúne para a tradicional feijoada que acompanha o ritual de “bater a laje” – numa demonstração de confiança e alheamento ao mesmo tempo. Não é possível “ficar parado esperando a prefeitura vir aqui resolver”. Essa movimentação permanente daquelas pessoas, no entanto, nem sempre é percebida em toda sua força e potencialidade.
Ao relativizar as fronteiras entre o pessoal e o impessoal, o formal e o informal, através da observação das relações que se constroem no cotidiano, entre o poder público municipal e uma comunidade em permanente luta pela garantia de seu direito à moradia digna, à cidade e à cidadania, pretende-se contribuir para uma compreensão mais refinada, porque mais aproximada, das formas concretas em que se atualizam esses padrões. A partir de tal compreensão torna-se possível, então, desmistificar, do ponto de vista analítico, a coexistência das diferentes maneiras pelas quais se confrontam ou se encontram, os dois polos dessas relações.
Referências
BOURDIEU, P. O desencantamento do mundo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
______. Razões práticas: sobre a teoria da ação. São Paulo: Papiros, 1996.
NEVEU, C. Les enjeux d’une approche anthropologique de la citoyenneté. Revue europeénne des migrations internationales, vol. 20, n. 3, 2004.
NUNES, E. de O. A gramática política do Brasil – clientelismo, corporativismo e insulamento burocrático. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 1997.
PREFEITURA MUNICIPAL DE NITERÓI. Memorial descritivo Bosque Lagunar. 2011. Mimeo.
SANTOS, W. G. dos. Razões da desordem. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
______. O ex-Leviatã brasileiro – do voto disperso ao clientelismo concentrado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.