Resumo: O trabalho analisa o processo de remoção de uma favela, na Zona Norte do Rio de Janeiro, para dar lugar à construção de um condomínio popular, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). De uma perspectiva etnográfica, reconstitui a história dessa favela, descrevendo as tramas que levaram seus moradores a ocuparem o local e, posteriormente, a se deslocarem dali durante a intervenção urbana, no intuito de refletir sobre a permeabilidade entre as práticas formais e informais envolvendo a habitação popular, em particular o papel do Estado na regulação destas práticas na transição dos moradores da favela para o condomínio.
Palavras-chave:RemoçãoRemoção,Programa de Aceleração do CrescimentoPrograma de Aceleração do Crescimento,Encontros de IntegraçãoEncontros de Integração,Favela de EmbratelFavela de Embratel,Complexo de ManguinhosComplexo de Manguinhos.
Artigos
Era uma vez uma favela: uma análise dos impactos do Programa de Aceleração do Crescimento em Manguinhos, RJ
Era uma vez uma favela: uma análise dos impactos do Programa de Aceleração do Crescimento em Manguinhos, RJ
Leticia de Luna Freire1
Mônica Dias de Souza2
Resumo
O trabalho analisa o processo de remoção de uma favela, na Zona Norte do Rio de Janeiro, para dar lugar à construção de um condomínio popular, no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). De uma perspectiva etnográfica, reconstitui a história dessa favela, descrevendo as tramas que levaram seus moradores a ocuparem o local e, posteriormente, a se deslocarem dali durante a intervenção urbana, no intuito de refletir sobre a permeabilidade entre as práticas formais e informais envolvendo a habitação popular, em particular o papel do Estado na regulação destas práticas na transição dos moradores da favela para o condomínio.
Palavras-chave
Remoção; Programa de Aceleração do Crescimento; Encontros de Integração; Favela de Embratel; Complexo de Manguinhos.
Once upon a time there was a favela: an analysis of the Growth Acceleration Program in Manguinhos, RJ
Abstract
This work analyzes the eviction process of a favela, in the Northern Zone of Rio de Janeiro to give rise to the construction of a popular condominium under the Growth Acceleration Program (PAC). From an ethnographic perspective, this paper reconstructs the history of this favela, describing the plots that led its residents to occupy the place and, later, moving from it during the urban intervention, in order to reflect on the permeability between the formal and informal practices involving the popular housing, specially the role of the State in regulating these practices in the transition of the residents from the favela to the condominium.
Keywords
Eviction; the Growth Acceleration Program; Integration Meetings; Favela de Embratel; Complexo de Manguinhos.
Artigo recebido: maio de 2018.
Artigo aprovado: julho de 2018.
História e contexto da pesquisa
Este trabalho é um desdobramento de pesquisas desenvolvidas ao longo de seis anos em Manguinhos – bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro que engloba 12 favelas – e tem como foco o processo de remoção de uma dessas favelas para dar lugar à construção de um condomínio popular no âmbito das intervenções do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na região.
Em 2007, o Governo Federal criou o PAC como uma proposta de investimento público para “acelerar, de forma sustentável, o crescimento do investimento global da economia”, através de obras de infraestrutura, estímulo ao crédito e ao financiamento, desoneração e administração tributária, etc. (BRASIL, 2007). Os investimentos em infraestrutura buscavam, entre outros, diminuir as desigualdades regionais e sociais no país e, nesse espectro, destacava-se a urbanização integrada de favelas – o PAC Social e Urbano, mais conhecido como “PAC Favelas”. Do total de investimentos na ordem de R$ 500 bilhões em quatro anos, pouco mais de R$ 100 bilhões seriam destinados para a área de habitação como forma de reduzir o grave déficit habitacional, atingindo diretamente a população mais pobre, que, pela falta de alternativas, recorre a práticas informais de acesso à moradia.
No Rio de Janeiro, a falta de políticas públicas efetivas que garantam o direito à moradia para os mais pobres é um problema histórico que se agravou com o êxodo rural na segunda metade do século XX, levando ao adensamento das favelas e o surgimento de outras tantas formas de moradia popular, geralmente em locais sem infraestrutura urbana adequada. Apenas em áreas consideradas “favelas”, essa é a situação atual de mais de 20% da população da cidade e muitas destas áreas, de ocupação antiga e fortemente adensada, como Manguinhos, acabaram adquirindo o status de bairro, sem que tenham recebido a necessária regularização fundiária e urbanística.
No final dos anos 2000, as obras de infraestrutura, urbanização e habitação do PAC no Rio de Janeiro, envolvendo as três esferas de governo, foram direcionadas primeiramente para três dos maiores conjuntos de favelas da cidade: Rocinha, Alemão e Manguinhos, sendo, só nesta última região, alocados investimentos de R$ 565 milhões. Existem diferentes versões, contudo, para justificar a escolha de Manguinhos. Uma delas afirma que a exigência de respostas rápidas para o anúncio imediato dos projetos do PAC levou à escolha de localidades que já tinham projetos, anteprojetos ou, ao menos, relatórios de diagnóstico que indicassem algumas possibilidades de intervenção. Esse era o caso de Manguinhos, para o qual o arquiteto e urbanista Jorge Jáugueri, através do consórcio PAA Agrar, havia desenvolvido um Plano de Desenvolvimento Urbanístico (PDU), entre julho de 2004 e junho de 2005.
Embora buscasse expandir, em vários aspectos, a proposta do Programa Favela Bairro, criado no início dos anos 1990 pela Prefeitura do Rio, o PDU de Manguinhos apontava para a discussão conceitual entre cidade formal e cidade informal, acompanhando o mesmo discurso expresso no programa anterior, no qual o objetivo era integrar as favelas à cidade (COSTA et al, 2014). O desafio seria trabalhar com a grande escala da cidade, visto que o Complexo de Manguinhos designava um “conjunto formado pelas comunidades de Manguinhos e sua sociedade civil, das áreas formais e subnormais localizadas em seu entorno e com as quais mantém intrínseca relação na origem dos problemas urbanísticos identificados”, estando situado em “uma encruzilhada circulatória de ordem metropolitana” (PDU, 2005 apud COSTA et al, 2014).
1. Mapa de Manguinhos. As localidades que compõem Manguinhos, delimitadas por alguns dos principais eixos viários da Zona Norte: Avenida Dom Helder Câmara, Avenida dos Democráticos, Avenida Leopoldo Bulhões, Linha Amarela e Avenida Brasil. No centro, o campus da Fiocruz.
Fonte: Fernandes e Costa, 2009, p. 72.
As intervenções do PAC em Manguinhos seguiriam as propostas do PDU, que apontavam, entre outras, a necessidade de investir em serviços de drenagem, esgotamento sanitário, áreas de lazer, mobilidade urbana e melhoria das condições ambientais. O projeto básico desenvolveu-se ao longo de 2007, sendo as obras iniciadas em abril de 2008. No mesmo período a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – vizinha ao conjunto de favelas – lançou um edital de apoio a projetos da instituição sob o escopo da “cidade saudável”, a fim de subsidiar uma política de promoção da saúde que tinha como foco a qualidade de vida diante do crescimento das cidades e seus eventuais danos3. Um dos projetos aprovados, desenvolvido pela Casa de Oswaldo Cruz (COC), partia do pressuposto de que o esforço de implantação do modelo de cidade saudável implicaria a admissão e compreensão das especificidades locais nas suas multifacetadas dimensões4.
Formado por uma equipe interdisciplinar de pesquisadores internos e externos à instituição, o projeto almejava acompanhar em tempo real a implantação do PAC em Manguinhos, a fim de construir metodologias e tecnologias sociais capazes de subsidiar a formulação, bem como a execução eficiente e democrática de políticas públicas. Uma das ações propostas, para a qual fomos designadas, era a realização de trabalho de campo em duas localidades afetadas pelo PAC, não somente para observar as intervenções urbanas in loco, mas para apreender as percepções e expectativas dos moradores sobre o processo.
Tendo em vista um conjunto de critérios, dentre os quais as dificuldades de acesso por conta da forte presença do tráfico de drogas na região e a diversidade de perfis das localidades, optamos realizar o trabalho de campo em CHP 2 e Embratel. A primeira teria surgido em 1951 como um Centro de Habitação Provisória (CHP, daí a origem da sigla que nomeia a favela) construído para abrigar moradores de favelas removidas da cidade e, naquele momento, recebia obras de urbanização executadas pela Prefeitura no âmbito do PAC. A segunda teria surgido em 2005 em decorrência da ocupação de instalações abandonadas da Empresa Brasileira de Telecomunicações (EMBRATEL, daí o nome da favela5), sendo, no âmbito do PAC, prevista de ser totalmente removida para, em seu lugar, serem construídas pelo Governo do Estado moradias populares no formato de condomínio.
Dada a possibilidade de acompanhar o processo radical de transformação de Embratel, priorizou-se nesta localidade maior investimento de tempo da pesquisa de campo, que teve a duração total de oito meses. Mesmo com o término do referido projeto, continuamos a acompanhar, de modo mais esporádico, no âmbito de outro projeto6, os impactos do PAC sobre a vida dos moradores. Entre junho de 2010, quando foram entregues as unidades residenciais construídas na área da extinta favela, e outubro de 2014, foram feitas incursões nos condomínios para registrar a nova realidade dos moradores de Embratel ali reassentados.
Este trabalho inspira-se, portanto, nessas experiências, mas desdobra novas reflexões sobre as recentes mudanças ocorridas em Manguinhos, tomando como ponto de observação e análise a favela de Embratel. Partindo de uma perspectiva etnográfica, reconstituímos a história dessa favela, descrevendo as tramas que levaram seus moradores a ocuparem o local e, posteriormente, a se deslocarem dali durante a intervenção urbana no bairro, no intuito de refletirmos sobre a permeabilidade das práticas formais e informais envolvendo a habitação popular, em particular sobre o papel do Estado na regulação destas práticas na transição dos moradores da favela para o condomínio.
A favela de Embratel
Apesar de essa favela ser conhecida por diversos nomes7, a designação mais utilizada pelos seus moradores era “Embratel”, fato que marcava a relação de contiguidade física e social com a favela que se constituiu anteriormente nos fundos do terreno da EMBRATEL. Tendo como principal acesso a entrada das antigas instalações da empresa pela Avenida Leopoldo Bulhões, Embratel apresentava limites com as favelas Mandela II (originada em torno do antigo Conjunto Samora Machel), Samora II (também conhecida como Embratel, por ser a primeira invasão do terreno da empresa), Mandela III (também conhecida como Mandela de Pedra) e uma sede da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, conforme o mapa anterior, no qual a favela é indicada pelo nome de Nova Mandela.
Ao contrário do ocorrido nos Conjuntos Nelson Mandela (que se tornou a favela Mandela) e Samora Machel (que se tornou a favela Mandela II), ambos construídos pelo Estado nos anos 1990 para abrigar moradores atingidos por enchentes na região, as duas ocupações do terreno da EMBRATEL foram conduzidas com a participação de integrantes do narcotráfico local, apesar da existência, desde 2000, de negociação entre a Prefeitura e a empresa para o desmembramento do terreno e a construção de mil residências populares (FERNANDES; COSTA, 2009).
Somente na primeira área ocupada houve padronização para a construção das moradias, sendo o terreno dividido em lotes de 6m². Moradores que participaram dessa primeira ocupação, motivada por uma enchente em 2002 que agravou ainda mais as condições das favelas situadas às margens dos rios Jacaré e Faria-Timbó, apontam o alto grau de organização existente na seleção dos beneficiados, que “tinham que provar a necessidade de ter um espacinho ali”, e na forma de ocupação da área, exigindo que em três meses construíssem suas residências “em tijolo” (FERNANDES; COSTA, 2009). Enquanto a área nos fundos estava totalmente inutilizada quando se deu o primeiro processo de ocupação, a área à margem da Avenida Leopoldo Bulhões era ocupada por algumas instalações da empresa, destinadas ao depósito de materiais e equipamentos. Somente quando estas instalações foram desativadas, seguindo a tendência de esvaziamento industrial da região evidenciada nos anos 1980, este terreno também passou a ser ocupado por moradores da região, em fevereiro de 2005.
A ocupação se deu através dos fundos do terreno, porém, a construção de moradias iniciou-se pela área fronteiriça, que já possuía pavimentação, canalização de esgoto e um portão de acesso para a avenida. Pouco depois, a ocupação recuou devido à alegação de que seria construída uma vila olímpica no local. Como esse projeto não se concretizou, nos meses seguintes a ocupação foi paulatinamente se estendendo para a área não pavimentada, desta vez com o predomínio de barracos de madeira e esgoto sem canalização. Conforme relatou o líder da ocupação, enquanto no terreno detrás a ocupação foi rigorosamente organizada, destinando-se aos que necessitavam de um local para construir suas casas de alvenaria, no terreno da frente a ocupação ocorreu de forma “liberal”, destinando-se aos mais desprovidos economicamente (FERNANDES; COSTA, 2009).
Segundo os mais antigos, a demarcação dos lotes era feita improvisadamente pelos ocupantes, com paus fincados na terra, linhas e barbantes, além de escreverem seus nomes no muro ou parede existente no local escolhido para erguerem suas residências. Diferentemente da primeira ocupação, o espaço e o tempo destinados para a construção eram negociados entre os próprios ocupantes, de acordo com as necessidades, os recursos e a urgência de cada família. Quanto maior fosse a procura por “um lugar ao sol”, maiores eram, porém, as pressões para que os lotes fossem rapidamente ocupados.
Em julho de 2005, o terreno já estava praticamente todo ocupado quando, meses depois, uma nova ameaça se impôs: uma ação de reintegração de posse movida pela EMBRATEL, obrigando-os a desocupar o terreno no prazo de uma semana. Diante da ação judicial, os moradores se organizaram em uma comissão e buscaram o apoio do comandante do 22ºBatalhão da Polícia Militar, que também preferia evitar o confronto. Com a mediação do Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro, convocado a intervir, a negociação acabou sendo favorável aos ocupantes, uma vez que o terreno foi doado pelo presidente da EMBRATEL ao Governo do Estado para a construção de um conjunto habitacional. Afastadas as ameaças contra os ocupantes, que tinham ainda como aliada a regulamentação da usucapião urbano, a nova favela passou a se fixar na paisagem do Complexo de Manguinhos.
Segundo dados do Censo Domiciliar realizado entre julho de 2008 e junho de 2009 pela equipe do PAC, a favela tinha 1.193 residências. A maioria da população era de origem nordestina, tinha baixa escolaridade e morava precariamente em outras favelas de Manguinhos ou das redondezas quando “ficaram sabendo da invasão”. A principal motivação para participarem da ocupação foi a possibilidade de terem uma “casa própria”, ainda que em condições muito precárias. Uma vez que na cidade capitalista não há lugar para os pobres, a autoconstrução é a forma por excelência como a classe proletária consegue ter acesso à moradia (MARICATO, 1982), por vezes tendo uma família que disputar esse acesso com outras nas mesmas condições. Ao descrever a agilidade que deveriam ter para garantir um pedaço de terra para construir suas moradias, um morador utilizou a expressão: “Festa de rato não sobra queijo”. Como nas demais favelas, a informalidade exerceu ali uma função social, permitindo acesso dos moradores aos recursos urbanos indispensáveis para os cidadãos viverem na cidade, como água, energia elétrica etc. (GONÇALVES, 2017).
2. Vista panorâmica da favela, com terreno e galpões totalmente ocupados. À esquerda, a favela Mandela, com a Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz ao fundo.
Foto: Leticia Freire, 2008.
Embora diversos estudos ressaltem, desde os anos 1960, a diversidade interna que caracteriza as favelas cariocas8, na localidade de Embratel o perfil populacional e habitacional não era tão heterogêneo quanto em outras localidades de Manguinhos. Talvez por ser uma favela constituída recentemente, tendo atraído aqueles que viviam em piores condições na região, ainda não se notava mudanças significativas decorrentes de investimentos feitos pelos moradores ou pelo poder público. Em relação às demais favelas, sobretudo Mandela e Mandela II, ressaltava-se a maior precariedade das moradias, ruas e becos de Embratel, muitos exibindo valas de esgoto a céu aberto.
Internamente, a principal via de circulação era a Rua Leonel Brizola, da qual partiam diversas ruelas e becos de terra batida. Dentre os poucos estabelecimentos comerciais existentes, predominavam as construções de uso misto, em que pequenos armazéns, chamados de “barracas”, funcionavam agregados às próprias residências. Embora muitos moradores se beneficiassem da extensa rede de comércio das localidades vizinhas, onde havia farmácias, hortifrutigranjeiros, aviários e até uma sexshop, essas “barracas” consistiam na fonte de renda de várias famílias. Com exceção da sede da Associação de Moradores, que ocupava parte de um dos galpões, e de três pequenos templos evangélicos, não havia outras instituições comunitárias.
Apesar da precária infraestrutura, os moradores consideravam a localização privilegiada, com acesso às demais regiões da cidade através de trem e ônibus, facilitando, por exemplo, o acesso ao mercado de trabalho e a serviços públicos de saúde e educação. A maior parte dos moradores manifestava, assim, o desejo de que a implantação de ações do PAC melhorasse as suas condições de vida sem que, para isso, tivessem que sofrer um deslocamento forçado. Além de poder “morar num lugar sem ratos”, muitos moradores acreditavam que as obras de infraestrutura e normatização daquele espaço lhes possibilitariam “ter um endereço” e, com isso, serem reconhecidos como cidadãos. Afinal, como analisam Mello e Simões (2013), o endereço fala não só de uma localização no espaço físico, mas também de uma designação no espaço social.
Ao mesmo tempo, vários moradores demonstravam descrença de que todas as obras fossem acontecer, o que coadunava com o descrédito geral em relação ao Estado. Para muitos, este sentimento só se alterou após a remoção dos primeiros barracos. Uma moradora, por exemplo, caiu em prantos ao presenciar a demolição do primeiro galpão. Além de expressar sua vinculação afetiva ao local – “o galpão tava ali desde que eu cheguei aqui...” – sua reação involuntária a alertou para a irreversibilidade do processo em curso.
Após a delicada etapa de negociação entre moradores e agentes estatais para definir o tipo de medida compensatória e a respectiva desapropriação dos imóveis, estes eram imediatamente demolidos por retroescavadeiras ou pelas próprias mãos dos operários do consórcio responsável, dependendo da qualidade do material que tivessem sido construídos. Conforme iam desaparecendo da paisagem, mais vestígios se viam do processo inicial de ocupação do terreno. Através de uma espécie de “arqueologia urbana” (MELLO; VOGEL, 1984), as ruínas foram revelando os nomes inscritos nos muros para demarcar a área que foi destinada a cada morador para erguer seu barraco. Inscrições que revelavam, além dos proprietários informais, um tipo de planejamento urbano possível ali realizado.
Foto: Leticia Freire, 2009.
4. Vestígios da ocupação inicial revelados pelas demolições.
Foto: Leticia Freire, 2009.
Apesar de certo entusiasmo com o PAC logo após as primeiras intervenções, os moradores não descartavam que o processo “podia andar melhor” e não foram poucos também os momentos em que se mobilizaram coletivamente para defender seus direitos, denunciar irregularidades e expor críticas ao modus operandis da política pública urbana9. Ao longo do trabalho de campo evidenciamos diversas situações problemáticas durante as etapas de implantação do PAC em Manguinhos, mas deteremos aqui nossa atenção em apenas uma delas, envolvendo os moradores removidos que optaram pela moradia nos condomínios construídos no bairro.
Entre a favela e o condomínio, o Estado como regulador das práticas populares
Em 15 de setembro de 2009, o jornal O Globo divulgou o plano da prefeitura de reduzir, até 2013, 5% da área da ocupada por 968 favelas da cidade, o que implicaria, entre outras ações, o deslocamento de cerca de 20.000 pessoas10. Na mesma página, destacava-se uma foto aérea da “antiga Favela da Embratel”, com o terreno de 33.000m² já totalmente vazio. Com o sugestivo título “Barracos viram cena do passado”, um quadro retratava a “intervenção radical” do PAC, removendo as 1.239 famílias (número maior que o estipulado pelo Censo Domiciliar) da favela para a construção de 38 prédios, uma creche, duas quadras poliesportivas, ciclovia, pista de skate, estacionamento, equipamentos de ginástica e parque infantil. Segundo o presidente da Empresa de Obras Públicas do Estado, 73% das famílias removidas estavam no momento vivendo por meio do sistema de aluguel social, 24% optaram pela compra assistida e apenas 3% optaram pela indenização em dinheiro11. No final, o arquiteto à frente dos projetos na região profetizava: “O Complexo de Manguinhos está a caminho de se transformar em cidade formal”.
Dois meses depois, quando já se iniciavam as obras de terraplanagem, os moradores que recebiam aluguel social foram convocados a participar do sorteio dos apartamentos em um auditório na Fiocruz. Antes do sorteio, os coordenadores gerais e locais do Trabalho Social12, fizeram uma breve exposição sobre as etapas do processo de realocação dos moradores nos condomínios, enfatizando que eles somente obteriam as chaves dos apartamentos após a participação de um representante de cada família em pelo menos 75% dos Encontros de Integração, que seriam realizados no Canteiro Social do PAC.
Segundo exposto pelo coordenador, estes encontros tinham como objetivo “oferecer oportunidades de crescimento e transformação individual e coletiva para as famílias realocadas, visando melhorar a organização, conservação e limpeza nos ambientes e alcance de níveis satisfatórios de saúde e sustentabilidade, assim como o reconhecimento da moradia como uma possibilidade de inserção na vida formal em sociedade”. Divididas em três módulos, as cinco oficinas abordariam os cuidados com as estruturas físicas do condomínio, os problemas coletivos, a gestão de conflitos, as regras de convivência, a administração do condomínio e a formulação de uma agenda de compromissos. Uma última etapa, realizada após a mudança dos moradores, consistiria na elaboração do regulamento interno do condomínio e na eleição, posse e capacitação da sua comissão gestora. Logo após o sorteio do apartamento, cada titular assinaria o Termo de Ocupação do Imóvel, que ficava ainda sob a guarda da equipe responsável, e indicava um membro adulto da família a representá-la nos encontros, inscrevendo-o em uma das doze turmas organizadas em diferentes turnos e dias, inclusive aos sábados.
Ao acompanhar as atividades de uma dessas turmas, com 25 a 35 participantes, pudemos apreender as expectativas dos moradores, assim como suas críticas ao projeto e às prescrições que este novo modo de habitar implicaria. A primeira oficina, coordenada por dois facilitadores (ambos moradores de favelas e graduados em Ciências Sociais), baseava-se numa exposição em torno do que consistiriam os tais encontros, seguida de uma dinâmica de grupo que visava integrar os pouco mais de vinte moradores presentes, oriundos não apenas de Embratel, mas de outras localidades de Manguinhos onde também houvera remoções. Ao final, fazia-se uma avaliação da atividade com os participantes, que elogiaram os “professores”, mas reclamaram da obrigatoriedade dos encontros e do excesso de horas a cumprir para garantir seu direito ao apartamento. Após cada oficina, entrava na sala a jovem responsável por controlar a lista de presença, que rapidamente ganhou, entre os moradores, a fama de “durona”.
Na segunda oficina, intitulada “Esse espaço é nosso”, a atividade versava sobre as mudanças implicadas na passagem dos moradores de um tipo de habitação para outro, ou seja, da favela para o apartamento. Sobre o desenho de um prédio numa cartolina, a facilitadora redigia alguns dos temas a serem tratados naquele dia: a distinção entre público e privado, os recursos naturais e financeiros, os resíduos materiais e os cuidados com a estrutura física do condomínio. Sobre o primeiro ponto, explicava, de forma sintética, que “privado é aquilo que é meu” e “público é aquilo que é de todos”, citando como exemplos os espaços da “casa” e da “praça”. Sem grandes manifestações dos moradores, explicava-lhes que, diferentemente da favela, no condomínio eles teriam que pagar pelo seu consumo de água, energia elétrica e gás, dando dicas de economia. A facilitadora prosseguia enfatizando a importância de que cuidassem da manutenção dos espaços do condomínio. Mencionando “aqueles que têm o hábito de jogar o cigarro ou o papel do biscoito pela janela”, ressaltava que os moradores “não poderiam mais ter esses hábitos”.
Num segundo momento, a facilitadora pedia aos moradores que escrevessem em um papel “todas as suas expectativas em relação à casa nova”. Por mais que houvesse alguns moradores vivendo em extrema pobreza, o trabalho de campo e o acompanhamento dessas oficinas mostraram que os moradores de Manguinhos possuem as mesmas aspirações dos cidadãos pertencentes à classe média carioca: o desejo de viver com sua família em um ambiente limpo, seguro e cercado por uma boa vizinhança. “Quero viver bem, ter um espaço maior e um lugar com mais segurança para poder criar minha filha”, relatou um rapaz. Uma senhora, por sua vez, falou da mudança da favela para o apartamento como uma “mudança de vida”, manifestando seu compromisso em respeitar o seu espaço e o de seus vizinhos, cuidando do apartamento “como se fosse um filho”. Outros moradores manifestaram as expectativas de uma vida melhor, evocando – talvez por efeito já das oficinas – a sua colaboração e a de seus vizinhos na preservação do condomínio e na garantia de uma convivência harmônica.
Na terceira oficina, o tema era “regras de convivência”. Na atividade, a facilitadora incitava os moradores a pensarem sobre o que existia na favela que eles esperavam que fosse diferente no condomínio, aludindo uma passagem entre o que seriam coisas do passado, “ontem”, e coisas do futuro, “amanhã”. Os itens mais citados pelos participantes como aquilo que gostariam de mudar em relação à vida na favela foram o desperdício de energia elétrica e água, a sujeira e o som alto. Em relação ao condomínio, citavam a necessidade de economizarem a energia elétrica e a água consumidas por cada família, de manterem os espaços sempre limpos e de respeitarem a chamada Lei do Silêncio. Este último aspecto gerava maior polêmica, visto que os próprios moradores estabeleceriam os “limites do som” no condomínio. Embora alguns discordassem em relação aos dias e horários previstos na legislação municipal, uma moradora enfatizava a importância de se criar este tipo de regra para garantir uma convivência tranquila entre os condôminos. Alegando que, “na favela não existe essa lei”, visto que os traficantes promovem bailes funk nas ruas, inibindo a contestação dos moradores incomodados com o barulho madrugada adentro, a moradora constatava: “Quando tem baile ninguém pede para abaixar o som”. A despeito da polêmica, a possibilidade de o espaço ser controlado e administrado pelos próprios condôminos, com base em regras explícitas e coletivamente construídas, e não mais no uso da força dos traficantes, parecia ser até então uma experiência inédita a ser vivida pelos moradores.
Na quarta oficina, intitulada “Prefeito por um dia”, a atividade consistia em uma simulação da gestão condominial, solicitando que os moradores, reunidos em pequenos grupos, discutissem as primeiras medidas que tomariam para melhorar a qualidade de vida no condomínio, caso fossem os administradores, a partir de um orçamento limitado em torno de R$ 600,00. Nos seis grupos organizados, a preocupação com a segurança e a limpeza do condomínio norteava as primeiras proposições. Em relação à segurança, os moradores propunham desde a colocação de grades e portões nos acessos aos prédios e olho mágico nas portas dos apartamentos, passando pela contratação de vigia e porteiro, à instalação de câmeras de vigilância. Os cuidados com a iluminação das áreas comuns dos prédios também eram citados como uma medida que visava garantir a maior segurança do local. Em relação à limpeza, as proposições iam desde a colocação de lixeiras nas áreas comuns à dedetização e contratação de faxineiro. Em seguida, as proposições mais citadas eram relacionadas à educação e ao lazer (escolinha de futebol, reforço escolar, salão de festas e churrasqueira) e à estrutura dos prédios e do entorno (construção de bicicletário, garagem para automóveis, conservação dos brinquedos infantis). Embora não fossem da alçada do administrador, quase todos os grupos propuseram ainda a geração de empregos e cursos profissionalizantes, a construção de igrejas e de estabelecimentos comerciais, como supermercado, banco, padaria e farmácia. Com a ajuda da facilitadora, os participantes iam definindo as medidas que poderiam ser realizadas sem acarretar custos ao condomínio, como a limpeza dos corredores feita pelos próprios moradores em regime de escala.
Num segundo momento, a facilitadora propunha aos participantes “pensar nas regras que iriam criar para o seu condomínio”. Aos pequenos grupos, distribuía o modelo de regulamento interno adotado nos condomínios do PAC no Complexo do Alemão, a fim de que os moradores discutissem os artigos que manteriam e os que modificariam no documento. Durante as discussões nos grupos, houve discordâncias em relação à proibição de animais domésticos e de atividades comerciais nos apartamentos, situações bastante comuns nas favelas de Manguinhos. Uma senhora, por exemplo, comentou que possuía “um gato limpinho” há muitos anos e que de modo algum deixaria de levá-lo consigo para sua nova morada. Outra moradora comentou que muitas mulheres se sustentavam financeiramente com a venda de roupas e cosméticos nas suas residências, mas concordava com a proibição de apartamentos virarem estabelecimentos comerciais, como bares e armazéns.
Na última oficina antes da inauguração do condomínio, as facilitadoras (desta vez, duas assistentes sociais) buscavam retomar a discussão anterior em torno das regras a serem criadas no regulamento interno, a partir das alterações sugeridas no modelo adotado no Complexo do Alemão. A atividade resultaria em estabelecer junto com os participantes uma “agenda de compromissos” a ser cumprida assim que se acomodassem nos apartamentos, constituída pelas seguintes tarefas: marcar uma assembleia por bloco; eleição do síndico; montar uma comissão gestora, que será composta por moradores de cada andar; solicitar grade ao redor do condomínio e telhas nas escadas e portões nos acessos aos blocos [conforme sugerido pelos participantes]; verificar as condições dos apartamentos [check list]; definir como manter a limpeza do condomínio; definir onde colocar o lixo doméstico, etc. Afinal, como dizia uma das facilitadoras, eles teriam que “aprender a viver no coletivo” e se organizar para mostrar algo diferente da ideia corrente de que “para pobre, tudo pode”. Caso contrário, o condomínio tornar-se-ia “um favelão”. Sua função, dizia uma das facilitadoras, era apenas a de “abrir uma luz na cabeça dos moradores”, a fim de evitar que o condomínio tivesse esse destino.
Uma moradora esboçava sua concordância com tudo que era dito pelas facilitadoras, mas, a seu ver, muitos dos problemas relacionados à obra poderiam ser evitados se os moradores tivessem sido consultados antes da construção dos apartamentos. Dentre esses problemas, um dos que suscitava maior indignação era a diminuição da metragem dos apartamentos, que, para atender a demanda total de 1.774 famílias, quase o dobro do cogitado no início das obras, passaram de 45m² para os atuais 37m². Do mesmo modo, uma das facilitadoras confessara, no intervalo da atividade, que era estranho convencê-los de que a vida no condomínio seria melhor do que a vida na favela, sem que ela tivesse conhecido os padrões de moradia dos moradores antes da remoção13.
Considerações finais
De modo geral, os Encontros de Integração constituíam espaços importantes para troca de informações e esclarecimento de dúvidas dos moradores sobre diversos aspectos relacionados ao novo local de residência. Ainda que não promovessem uma sólida integração entre os participantes, oriundos de localidades distintas do bairro, as oficinas possibilitavam a identificação de demandas e desejos comuns de uma vida melhor e uma moradia mais digna. Um efeito disso foi à mobilização espontânea de um grupo de moradores, que elaborou um abaixo-assinado exigindo a instalação de calhas de chuva para impedir o alagamento dos corredores dos prédios14 e a colocação de grades nas janelas a fim de “zelar pela segurança das crianças”, mas também evitar a “invasão de viciados”.
Além disso, a experiência das oficinas reforçava a ideia de que a mudança da favela para o condomínio implicava não apenas uma adaptação a um novo tipo de moradia, mas a um novo estilo de vida. Embora não houvesse uma seleção moral das famílias – como aquela ocorrida nos anos 1950, em relação à transferência dos moradores da favela da Praia do Pinto para o condomínio da Cruzada São Sebastião (SIMÕES, 2010) – sendo a moradia nos apartamentos uma escolha dos moradores dentro de seu reduzido leque de possibilidades, a visão estereotipada do favelado como alguém que precisa ser socialmente educado permanecia, ainda que mascarada pelo discurso da cidadania. Como dizia uma das facilitadoras, seu papel era auxiliá-los até que aprendessem a gerir, sozinhos, a vida coletiva no condomínio, “como se fosse uma criança aprendendo a andar. Vai ter um momento que o PAC vai sair e vocês vão andar com as próprias pernas”.
Entre os participantes das oficinas, por sua vez, não havia uma resposta padronizada. Enquanto alguns moradores participavam ativamente das oficinas, reconhecendo a relevância das informações e orientações recebidas, outros pareciam apáticos diante de quase tudo e outros se mostravam bastante contestadores, sobretudo em relação às regras impostas pelo novo tipo de moradia. Uma senhora destacava-se no grupo que acompanhamos pelo tom irônico com que costumava reagir. Numa das atividades em que discutiam as interdições a serem acordadas na elaboração do regulamento interno, desabafou, de forma exaltada: “Esses apartamentos vão dar muita confusão! Preferia o meu barraco, com todo respeito!”.
Em dezembro de 2009, as primeiras unidades habitacionais do PAC em Manguinhos foram inauguradas, em cerimônia que contou com a presença de todas as autoridades envolvidas. Além dos 416 apartamentos, construídos às margens da Avenida Dom Hélder Câmara, foram inaugurados um centro cívico, centros de geração de renda, de apoio jurídico e de referência da juventude e a primeira Biblioteca Parque no Rio de Janeiro.
Em janeiro de 2010, fomos ao condomínio observar como estavam sendo os primeiros dias de alguns ex-moradores de Embratel no novo endereço. Transitando por entre os cinco blocos construídos, notamos que muitos apartamentos ainda não estavam ocupados. No início de 2011, poucos meses depois que o condomínio construído na área da extinta favela também foi inaugurado, vários apartamentos dali encontravam-se vazios, com chaves sob a guarda de traficantes, funcionando como “barreiras” até o apartamento que o chefe do tráfico de Nova Mandela se apropriou como moradia, construindo inclusive um anexo que destoava do padrão arquitetônico dos prédios15. Ciente da situação, a coordenadora do Trabalho Social do PAC justificou que, depois que os imóveis são entregues, não cabe ao Governo do Estado fiscalizar e sim à Prefeitura e “só ela pode decidir o que fazer sobre isso”. Apesar das promessas das autoridades de combater o narcotráfico e as obras irregulares, seu relato reforçava o que já vinha sendo denunciado pela grande mídia: no Rio de Janeiro, o PAC estava “fora do controle” do poder público.
A implantação, em janeiro de 2013, da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em Manguinhos, visando à retomada permanente das áreas dominadas pelo tráfico16, não impediu, contudo, que os narcotraficantes continuassem sendo reconhecidos como os “donos do lugar”. Em 2014, evidenciamos relatos de vários conflitos envolvendo os usos dos espaços coletivos, sobretudo os bailes funk que passaram a ocorrer, sob o comando de traficantes, em uma área de uso comum do condomínio. Ainda que as assembleias se constituíssem formalmente como espaços participativos e deliberativos, a determinação final de certas regras cabia, na prática, aos narcotraficantes locais.
Quanto aos apartamentos, moradores relatavam que, contrariando as regras dos contratos, havia quem vendesse e alugasse os imóveis, por motivações diversas. As atividades comerciais realizadas nos apartamentos ocupados eram variadas (armazéns, lojas de roupas, salão de beleza, etc.), o que constituía, para muitas famílias, a única fonte de renda, além de suprir o desejo dos condôminos de “ter tudo perto”. Notamos ainda algumas formas de apropriação do condomínio que aludiam ao modo de habitar na antiga favela, como a visibilidade das roupas estendidas para secar sobre as sacadas e janelas, fruto do próprio projeto arquitetônico dos apartamentos, que não previa a construção de áreas de serviço onde pudessem lavar e pendurar adequadamente as roupas para secar. Mesmo que os planejadores tenham percebido o equívoco, improvisando uma pequena sacada para a instalação de um varal de chão, esta medida não evitou que os imóveis fossem ocupados de outra maneira, denunciando o quanto que o modelo habitacional projetado ignorou o modo de vida dos seus pretensos usuários.
Tendo em vista a dinamicidade do campo, este trabalho assume um recorte específico, não explorando todas as dimensões desse processo, como os impactos da implantação da UPP e os desdobramentos políticos do PAC, envolvendo denúncias de irregularidades e corrupção17. As tramas e as tensões descritas apontam, todavia, a complexidade da relação entre moradores das favelas e o Estado nas atuais políticas públicas de habitação, sobretudo no processo de transição das favelas para os condomínios. Nossos dados conduzem, assim, ao questionamento do intento “pedagógico” de tais oficinas, não para apontar o fracasso de seus dispositivos, mas para problematizar a persistência da representação do favelado como alguém que deve ser civilizado e, ao mesmo tempo, para revelar a capacidade dos moradores de resistirem, subverterem e reinventarem suas práticas nos chamados condomínios populares18.
As situações analisadas corroboram, ainda, com uma maneira de pensar a informalidade não como algo paralelo ao formal e ao legal, mas como algo que integra plenamente as práticas de poder do Estado, ao mesmo tempo em que nos permite constatar que o Estado não é totalmente ausente dos espaços informais (GONÇALVES, 2017). Nessa permeabilidade entre o formal e o informal, muito há, sem dúvida, ainda a pesquisar.
Uma extensão notável da análise que aqui propomos foi empreendida por Conceição (2018), ao estudar as apropriações e ressignificações do formato e da lógica condominial tanto pelo Estado quanto pelos moradores nas recentes políticas de habitação social, como o PAC. Abordando outro campo empírico na cidade, o autor revela-nos que se, por um lado, o Estado busca legitimar, através dos Encontros de Integração, um novo dispositivo disciplinar-civilizatório da pobreza, transformando a normatividade dos condomínios (identificada aos valores das elites) em padrão a ser seguido e a favela como antirreferência urbana; por outro lado, os moradores também desenvolvem, na reformulação de seus cotidianos, práticas de resistência, dentre elas a própria utilização do condomínio como dispositivo de limpeza moral, buscando se esquivar do estigma de favelado. Curiosamente, muitas vezes ouvimos, em Manguinhos, comentários negativos sobre condôminos que “saíram da favela, mas a favela não saiu deles”. Mas isso ficará para outra conversa...