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A questão socioambiental das águas e dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário entre o público e o privado
Léia Lima Soares; Masilene Rocha Viana
Léia Lima Soares; Masilene Rocha Viana
A questão socioambiental das águas e dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário entre o público e o privado
O Social em Questão, vol. 23, núm. 48, pp. 119-142, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Análise da questão socioambiental das águas em solo piauiense e em particular dos distintos projetos ideopolíticos em disputas na gestão dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário em Teresina, recentemente transferidos à iniciativa privada a partir de um processo de subconcessão. A pesquisa, realizada a partir de entrevistas e análise documental, indicou a existência de uma racionalidade neoliberal na apropriação e degradação dos corpos hídricos e na gestão dos serviços de saneamento na cidade, malgrado as tensões e resistências de movimentos sociais na contestação aos processos de privatização e destruição da natureza em proveito do interesse do capital

Palavras-chave:Questão socioambiental Recursos Hídricos. Água. Privatização. Racionalidade neoliberal.Questão socioambiental Recursos Hídricos. Água. Privatização. Racionalidade neoliberal..

Carátula del artículo

Artigos

A questão socioambiental das águas e dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário entre o público e o privado

Léia Lima Soares
Universidade Federal do Piauí, Brasil
Masilene Rocha Viana
ontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil
O Social em Questão, vol. 23, núm. 48, pp. 119-142, 2020
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

A questão socioambiental das águas e dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário entre o público e o privado

Léia Lima Soares

Masilene Rocha Viana

Resumo

Análise da questão socioambiental das águas em solo piauiense e em particular dos distintos projetos ideopolíticos em disputas na gestão dos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário em Teresina, recentemente transferidos à iniciativa privada a partir de um processo de subconcessão. A pesquisa, realizada a partir de entrevistas e análise documental, indicou a existência de uma racionalidade neoliberal na apropriação e degradação dos corpos hídricos e na gestão dos serviços de saneamento na cidade, malgrado as tensões e resistências de movimentos sociais na contestação aos processos de privatização e destruição da natureza em proveito do interesse do capital.

Palavras-chave

Questão socioambiental. Recursos Hídricos. Água. Privatização. Racionalidade neoliberal.

The socio-environmental issue of waters and supply and sanitary sewage services between the public and the private

Abstract

Analysis of the environmental social issue of waters in piauiense soil and in particular of the different ideopolitical projects in disputes in the management of supply and sewage services in Teresina, recently transferred to the private sector from under-concession process. The research, carried out from interviews and documentary analysis, indicated the existence of a neoliberal rationality in the appropriation and degradation of water bodies and in the management of sanitation services in the city, despite the tensions and resistance of social movements in the challenge to the processes of privatization and destruction of nature for the benefit of the interest of capital.

keywords

Social and environmental issue. Water resources. Water. Privatization. Neoliberal.

Artigo recebido em março de 2020

Artigo aprovado em maio de 2020

Introdução

Os últimos séculos de expansão capitalista, de estímulo desenfreado ao consumo e aceleração do processo de acumulação nos marcos do capital, geraram, entre outros, consequências deletérias para o meio ambiente, em especial às águas e ao solo. Destarte, produziram-se danos irreversíveis ao meio ambiente na medida em que, alterando condições naturais e climáticas, a sanha por lucros elevados provoca catástrofes, destruição de biomas e intensifica as desigualdades de classe, além de transformar o bem natural água em mercadoria cara e sob gestão dos interesses privados. Afinal, os pobres, produzidos pelo sistema socioeconômico, são tal como a natureza, as maiores vítimas dessa ordem e, em geral, os primeiros a enfrentarem suas consequências perniciosas.

Atentos à gravidade dos problemas ambientais e do que estava por vir, muitos se preocuparam, no contexto de crise de reprodução do capital dos anos 1970, com uma agenda pública mundial, de tal maneira que o reconhecimento de uma “questão ambiental”, “crise ambiental”, “questão ecológica”, “crise ecológica”, entre outras abordagens da questão significava consentir quanto à finitude dos recursos naturais necessários ao processo produtivo e compreender o ardil das ações humanas sob o jugo do capital, que têm acelerado a escassez de matérias-primas e energia (SILVA, 2010).

Entendendo que o meio ambiente não pode ser compreendido de per si, como descolado de suas implicações mais gerais na produção da vida social, corroboramos com Silva (2010, p.82) na utilização do conceito de “questão ambiental” para designar “o conjunto das manifestações da destrutividade da natureza – cujas raízes encontram-se no desenvolvimento das relações de propriedade”, conceito esse que porta uma “inalienável dimensão histórico-ontológica -, já que na atual conjuntura do desenvolvimento do capitalismo se agudiza, colocando-se, de fato, como uma questão que afeta toda a humanidade” (SILVA, 2010, p.85).

É fato inconteste que o caráter predatório do sistema capitalista tem revelado cada vez mais a incompatibilidade entre desenvolvimento e equilíbrio ecológico, apesar do tema da questão ambiental ter alçado à esfera pública, sobretudo pela ação dos movimentos ambientalistas, o que estimulou a divisão de responsabilidades entre as nações e o desenvolvimento de políticas públicas e ações de proteção ao meio ambiente.

No que se refere à questão do direito à água e aos serviços de abastecimento e esgotamento, no plano mais geral das políticas públicas perpetuam-se situações insolúveis que colocam em risco não apenas a saúde e a sobrevivência das pessoas, mas o meio ambiente e o consequente esgotamento dos recursos naturais: falta de acesso à água potável e aos serviços de saneamento básico, planejamento urbano que desconsidera o ciclo hidrológico provocando enchentes, poluição, estreitamento e morte dos rios, lagos e lagoas, entre outros. Somam-se, ainda, outros agravos desencadeados a partir da falta de água, tais como aumento da violência, conflitos étnicos e geração de grupos refugiados, dentre outros.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) estimaram, dentre os anos 2000 a 2017, que mais da metade da população mundial estivesse sem acesso a saneamento básico de forma segura e que 2,1 bilhões de pessoas estivessem sem acesso à água potável, incluindo 263 milhões de pessoas que precisam gastar mais de 30 minutos para chegar a fontes de água superficiais de riachos, lagos e diques, em sua maioria em áreas rurais. As disparidades no acesso mostram que as regiões mais pobres, de áreas rurais, bem como as crianças, são os mais prejudicados no acesso à água e saneamento (PROGRESS..., 2019).

No caso particular do Brasil, o que apontam os números? Dados dos últimos anos no Brasil, de acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), apontam que 35 milhões de brasileiros não possuem acesso à água tratada (aproximadamente 17% da população) e aos serviços de esgotamento; a exclusão de pessoas sem coleta de esgoto em seus domicílios aumenta para 100 milhões, enquanto somente 46% do esgoto coletado no país passa por algum tipo de tratamento (INSTITUTO TRATA BRASIL, 2018).

A realidade urbana vem nos apontando a gravidade nos últimos anos da falta de drenagem das águas pluviais desencadeando problemas como enchentes, deslizamentos e rompimentos de ruas. É o que indica a Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) de 2013 do IBGE: somente entre os anos 2008 e 2012 as enchentes afetaram mais de 900 cidades no Brasil, deixando 1,4 milhão de desabrigados ou desalojados. Ainda que tais dados sejam de 2012, a ocorrência de inundações persiste na atualidade com o aumento das precipitações, gerando, além de prejuízos patrimoniais, perdas de vida humana e proliferação de doenças (AGÊNCIA IBGE NOTÍCIAS, 2020). No verão de 2020, as precipitações que, em geral, tanto fazem falta ao sertão brasileiro, derramaram sobre o solo desse país uma quantidade de água que assustou cidades, gerando cenas jamais vistas de pânico e catástrofe com danos ainda a serem calculados, trazendo à baila a questão da precariedade ou inexistência do saneamento e mais uma vez chamando à atenção para a gravidade do desinvestimento público nessa área.

Entre catástrofes e crimes ambientais à mostra em distintas paragens, o Estado brasileiro avança na escalada privatista dos serviços públicos de saneamento, em especial dos que envolvem o abastecimento e o esgotamento sanitário. Preocupadas com essa direção da intervenção pública em questões tão prementes, dirigimos nossa atenção para analisar o processo de privatização dos serviços de águas e esgotos na forma de serviço na cidade de Teresina, capital do Estado do Piauí, por meio de um contrato de subconcessão do ente estadual com um grupo empresarial privado4 em um processo eivado de tensões.

A pesquisa que gerou as reflexões a seguir centrou-se nas disputas de interesses e sinergias das distintas instituições envolvidas bem como nas mudanças imediatas, uma vez que as consequências deste processo serão passíveis de apreciação apenas a longo prazo. No que tange aos aspectos metodológicos, cumpre-nos informar a abordagem qualitativa da pesquisa com uso de fontes bibliográficas, documentais e realização de entrevistas5 semiestruturadas com gestores de diferentes instituições públicas, da empresa privada e de movimentos sociais (sindical, popular e ambiental), realizadas no mês de setembro de 2019. Analisadas sob a lente do materialismo histórico, foi possível gerar aproximações substantivas na busca de elucidar o processo de apropriação dos recursos hídricos e dos serviços públicos a eles atinentes como parte de um projeto de avanço do capital, notadamente sob dominância da racionalidade neoliberal.

De forma mais específica, no presente artigo, dirigimos nossa atenção a) para a questão socioambiental das águas no contexto mais ampliado de acirramento do capital monopolista que, ao transformar o valor de uso dos recursos naturais em valor de troca, apropria-se de bens e serviços de grande relevância para a soberania e para a sustentabilidade das comunidades e do meio ambiente; e b) utilizando dados da pesquisa em Teresina, apontamos os distintos projetos em tensão frente ao processo de subconcessão dos serviços, outrora sob responsabilidade de uma empresa pública (a Águas e Esgotos do Piauí, S/A – AGESPISA) e hodiernamente sob direção de uma empresa privada.

Nos cercamentos no capitalismo contemporâneo, a apropriação da água no Piauí

O cenário de abundância de águas doces, principalmente subterrâneas que circulam no Estado do Piauí6, povoam o imaginário local ao mesmo tempo em que contrasta com realidade de escassez, processos de desertificação, secas e dificuldades de acesso de grande parte da população rural de uma das unidades federadas mais fustigadas pela pobreza no Nordeste. Por conseguinte, observa-se nos debates públicos sobre os recursos hídricos do Estado, uma espécie de consenso forjado quanto ser o Piauí um dos estados mais atrasados na gestão das recursos hídricos, não obstante sua disponibilidade hídrica, pois enquanto outros estados carecem da oferta de águas doces e conseguem administrar suas demandas, o Piauí ainda segue a passos lentos na consolidação de instrumentos de gestão, tal qual o Comitê de Bacias Hidrográficas (CBH).

Embora a bacia ou região hidrográfica do rio Parnaíba seja a segunda mais importante do Nordeste (depois da bacia do Rio São Francisco), envolvendo, além do Piauí, territórios do Maranhão e Ceará que compreendem os biomas da caatinga, cerrado e ecossistemas costeiros, e além de não constituir-se em região das mais populosas e urbanizadas do país, é notório que a região padece dos agravos ambientais mais diversos causados pelo mal uso do solo e dos recursos hídricos, com a instalação de megaprojetos com promessas de “desenvolvimento” ou mesmo a ausência de políticas públicas que possam dirimir a dilapidação das águas e natureza como um todo.

De acordo com Motta e Gonçalves (2017), as evidências dessa deterioração na bacia do Parnaíba mostram-se no elevado índice de poluição hídrica, resultante dos efluentes sanitários, resíduos sólidos e industriais lançados in natura nos corpos hídricos, além da erosão causada pela devastação da cobertura vegetal para a expansão de fronteiras agrícolas, aumentando a carga de sedimentos depositados nos rios, afora os barramentos e outros empreendimentos que alteram os cursos dos rios e poluem as fontes de água, configurando desafios para a gestão.

Como parte desse quadro, os distintos processos de privatização que envolvem territórios e povos que necessitam de água são cada vez mais realidade, enredando uma nova forma de cercamento do capital em sua sanha expropriatória. É fato inconteste que expandem-se na atualidade diversas formas de privatização e controle das águas e dos recursos naturais, o que Harvey entende por acumulação por “despossessão” ou “espoliação”, ensejada pelo capital em sua etapa financeira, valendo-se de novos mecanismos de extração de riqueza do capital em prejuízo das populações (HARVEY, 2011).

Para Harvey (2011), a política de despossessão, na mesma medida em que desencadeia o risco de um colapso econômico, compõe estratégia elementar do capitalismo na manutenção de seus privilégios e interesses por meio de uma aquisição global de propriedades pelas grandes potências via destituição de economias emergentes, sobretudo do Sul global. Nessa direção, perpetuam-se, sob processos de monetização e tributação violentas, as expropriações de populações inteiras de seus meios de vida, a privatização da terra, dos recursos naturais e bens comuns. Com o agravante da financeirização, reatualizam-se essas expropriações por meio da acumulação por despossessão, ou seja, passam a ser regidos pelo mercado desde os direitos de propriedade intelectual até o lucro com catástrofes humanas e o comércio de direitos de poluição (HARVEY, 2011).

Bensaïd (2004), ao tecer reflexões sobre o embate entre o público e a privatização da informação, recupera a política dos cercamentos de terras praticada na Inglaterra do século XVIII, explorada por Marx como expropriações que acompanharam a acumulação primitiva do capital sob a justificativa de que que a produtividade agrária reduziria a fome e a penúria, além de produzir outro tipo de miséria urbana com o surgimento do proletariado.

Em alusão a este evento, situamos as ondas de privatizações dos serviços de água e esgoto no contexto brasileiro, sobretudo a partir do avanço do neoliberalismo nos anos 1990. Orquestrado em torno de um discurso de falência do Estado e do sucateamento das tradicionais companhias estaduais de saneamento básico do país, essa racionalidade, encontra acolhida em parte da sociedade que, reconhecendo a precariedade dos serviços, caiu no fetiche do mercado como melhor administrador e prestador de serviços. Assim, o apelo ao projeto privatista logo ganhou terreno, ainda que, à semelhança dos cercamentos ingleses, tivessem os cidadãos que sustentar o ônus de tais decisões. E os serviços, sejam transferidos, privatizados ou “sublocados”, geraram efeitos desastrosos, principalmente para as famílias mais pobres.

As implicações sociais dos processos de controle das águas são diversos, sobretudo em face do avanço da lógica mercantil sobre os recursos hídricos. Nos termos de Bensaïd (2004, p.21), “esta contrarreforma liberal planetária alimenta uma crise quádrupla: social, ecológica, democrática e ética”. É o que qualquer observador atento enxerga ao analisar a questão social em torno da apropriação das águas, dos processos de construção de barragens, em grande parte com sacrifícios ambientais e sociais de grande monta e em prol dos interesses de grandes grupos econômicos e, em particular, processos de transferência da gestão dos serviços de saneamento para a iniciativa privada, como foi o que se passou na capital do Piauí.

Nessa perspectiva é que entendemos os novos formatos de privatização, tais como diversificadas parcerias público-privados (PPPs) que têm se expandido enormemente aos serviços de saneamento básico, às concessões e às subconcessões plenas ou parciais no Brasil, configurando uma complexa teia de relações entre mercado e Estado que tendem a obscurecer o avanço dos mecanismos de mercado como estratégia do capital. Isso resulta, nos termos de Iamamoto (2011, p.144) em “um Estado cada vez mais submetido aos interesses econômicos e políticos dominantes no cenário internacional e nacional, renunciando a dimensões importantes da soberania da nação, a favor do grande capital financeiro”.

Em suma, o poderio neoliberal tem promovido na contemporaneidade um arsenal de instrumentos capazes de minar o Estado por dentro, à serviço do grande capital. Dartot e Laval (2016) entendem tratar-se de uma nova racionalidade neoliberal, posto que impõe a lógica do mercado para todas as dimensões da vida, desde as condutas governamentais até as subjetividades dos indivíduos.

A gestão das águas e dos serviços de abastecimento e esgotamento: Quais racionalidades estão em disputa?

O imbróglio da disputa pelos serviços de saneamento de Teresina revela diferentes projetos ideopolíticos em confronto; de um lado, a influência da racionalidade neoliberal nos discursos dos gestores e representantes da empresa, e de outro, a conduta de contestação e de crítica da parte dos movimentos sociais em defesa do patrimônio público e dos bens naturais sob controle do Estado.

O processo de transferência dos serviços de abastecimento de água em Teresina, outrora prestados pela Agespisa, para uma empresa do grupo AEGEA, não incluiu a zona rural de Teresina que, até hoje depende do abastecimento de poços de água mantidos por bombas elétricas, o que vem gerando insatisfações diversas por conta das frequentes interrupções nos serviços de energia também impactados pela privatização dos serviços.

Um dos argumentos utilizados pelos defensores da privatização/sublocação centrou-se na ausência de preocupação ambiental da Agespisa quanto a realizar o tratamento de esgotos, indicando um dos entrevistados (gestor de órgão ambiental) a aplicação de multas pelo lançamento indevido de esgotos. Segundo ele, “a gente aplicou uma multa de mais de 1 milhão de reais na Agespisa, [e] nunca vamos receber essa multa, [que] está na dívida ativa. O IBAMA aplicou uma multa de nove milhões de reais na Agespisa [e] nunca vai receber esse dinheiro do Estado”. Em seguida, ao ser indagado sobre a resolutividade da empresa, responde: “os problemas que a Agespisa jogou para a Águas de Teresina, todos [...] ela resolveu: elevatória, tubulação, rede quebrada, [...] agora é pra estar iniciando as obras de ampliação da rede, tanto de água quanto de esgoto”.

É de fácil identificação a ênfase nas melhorias de infraestrutura relacionadas mais à capacidade tecnológica do que propriamente ao problema ambiental do despejo de esgotos, objeto de penalidade para a companhia estadual, revelando as expectativas de resolutividade pela ampliação das redes, recorrente na fala de outros abordados que reiteram essa mesma matriz ideopolítica; alguns, enfatizando, inclusive a ausência ou redução de aguapés no rio Poti, após a atuação da empresa. Conforme uma das gestoras pública abordada:

É claro que a gente só pode falar de um ambiente sustentável, do ponto de vista menos econômico financeiro e mais técnico, do meio ambiente em si, quando a gente começar a receber... Teresina começar a receber o impacto direto das obras de esgotamento sanitário. Nós já saímos de um índice de 19% para 31% em dois anos de contrato. Então isso já dá condição da gente avaliar em algumas regiões da cidade, o resultado do projeto com relação à preservação e conservação do meio ambiente. Esse ano, por exemplo, a gente teve muito menos aguapés do que a gente teve no ano passado e assim sucessivamente. E a tendência é que isso [...] à medida que a gente expande a rede e trata o esgoto, chegando a 90% que é a universalização, a gente consegue resolver o problema total de gerar resíduos, descarte de resíduos, sobretudo resíduos líquidos para os rios. Então esse é um ponto que a gente procurou ver e pôr no contrato, a matriz ambiental.

Cumpre-nos informar que tais entrevistas realizadas em setembro de 2019 logo foram postas em xeque em fins de outubro, quando o rio Poti mais uma vez ficou coberto por aguapés, despertando atenção da mídia local e ambientalistas que denunciaram a situação. No relato anterior, a gestora entrevistada refere-se ainda a “ambiente sustentável”, remetendo-nos ao imenso manancial de produções em torno do conceito do Desenvolvimento Sustentável, não raras vezes utilizado para amortecer as desigualdades e os efeitos danosos das ações das classes dominantes sobre a natureza e os humanos subalternizados na condição de trabalhadores.

Silva (2010 p.34) aponta no âmbito do debate acerca do Desenvolvimento Sustentável a existência de duas hipóteses formuladas a partir da publicação do relatório Brundthland em 1987 pelos organismos multilaterais, considerando a centralidade na relação pobreza e meio ambiente. A primeira chamada “círculo vicioso” apoia-se no argumento de que a pobreza é a principal responsável pela degradação ambiental, e que apenas por meio de uma alternativa malthusiana, no sentido de reduzir a quantidade de pobres, especialmente dos países periféricos, garantir-se-ia a tal sustentabilidade. A segunda, denominada “duplo caminho”, ainda que não aponte uma saída moral de responsabilização dos pobres, aponta o combate à pobreza como um caminho para alcançar a sustentabilidade ambiental. O duplo caminho consiste em considerar tanto a pobreza quanto à degradação ambiental como resultados de outras determinações, além de conferir primazia à questão ambiental.

Tais concepções perduram na atualidade, como se pode aferir a partir dos relatos dos entrevistados na pesquisa que dá substância a essas reflexões. Elas também ficam evidentes nos últimos anos com o avanço do conservadorismo na política brasileira, e a ascensão de um presidente que reforça publicamente a infeliz tese do “círculo vicioso” ao culpar e defender a esterilização de famílias pobres como saída para o desequilíbrio ambiental.

Entretanto, contrapondo as expectativas e posicionamentos da matriz ideopolítica assentada na racionalidade neoliberal, outros abordados, como o que representa o movimento sindical dos urbanitários – sindicato diretamente afetado pelo processo de sublocação -, descortina negligências no que se refere às responsabilidades fiscalizatórias e cumprimento de obrigações pactuadas.

Na verdade, tudo tá lá no edital, como deve ser feito, quem é que vai fiscalizar, quem são os fiscalizadores, mas na verdade não tem fiscalização de nada. Não tem fiscalização de nada! Agora há poucos dias, eu tenho uma imagem aqui no meu celular, do esgoto caindo dentro do Rio Poty, o esgoto in natura caindo dentro do rio, então não tem fiscalização, [mas] deveria ter. Eu gostaria que tivesse, mas não tem. Fiscalização não tem. Continua os esgotos caindo dentro do Rio Poty. As bocas de lobo... Aqui na avenida Marechal Castelo Branco tem 18 bocas de lobo que são onde o esgoto desce lá, pode ir, você vê aquelas bocas de lobo, só o tampão, ali é descendo água, a prefeitura não faz nada [...]. A verdade é que não tem fiscalização, essa é a realidade.

Todavia, a preocupação com os rios extrapola em muito os limites da capital do Estado, visto que diversas cidades do interior têm passado por dificuldades relacionadas à falta de acesso à água e aumento da pobreza e miséria por escassez hídrica. De acordo com Reymão e Saber (2008, p.12), “a água imprópria para consumo limita os funcionamentos e pode ser um importante catalisador da pobreza e da desigualdade”. Sob o enfoque das capacitações de Amartya Sen (2000), os autores afirmam que a privação de água potável e segura limita as oportunidades das pessoas de desenvolverem seus potenciais enquanto seres humanos. Nesse sentido, a incidência da pobreza atribuída a causas ambientais – “pobreza ecológica” configura um ciclo de pobreza que condena milhares de pessoas, especialmente em regiões rurais, à vulnerabilidade social.

Com efeito, historicamente o Piauí convive com a problemática da seca e não vem oferecendo solução ou respostas satisfatórias no combate ao fenômeno da estiagem, pois ao encará-la como problema climático, os governos, alocando grande parte dos recursos destinados ao combate da seca na construção de açudes, revelaram seu conteúdo ideológico na medida em que propiciaram o atendimento dos interesses do monopólio fundiário. Para Domingos Neto e Borges (1987), que grande contribuição ofereceram à questão da permanência da seca em terras piauienses, até aquele momento (final dos anos 1980), "a política de armazenamento/ampliação dos recursos hídricos não interferiu positivamente nas condições da pequena produção agrícola, mas representou apoio substancial à criação de gado e valorizou a infraestrutura das fazendas” (DOMINGOS NETO; BORGES, 1987, p.97).

Durante o I Encontro de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio Parnaíba, ocorrido nos dias 28 e 29 de novembro de 2019 em Teresina, predominou a denúncia quanto à gravidade em que se encontram muitos rios e lagoas do Estado. Diversos municípios piauienses têm sofrido com a seca, com a dependência de abastecimento por carros-pipa, com a poluição dos rios, com o esgotamento das fontes de abastecimento, com a falta de saneamento básico e com os impactos do agronegócio, em especial na parte no Sul do Piauí, que tem causado o envenenamento dos corpos hídricos, a morte dos peixes e prejudicado inúmeros trabalhadores e a própria economia de territórios que dependem dos rios. Como ilustração desse quadro, Guerra assevera que:

Em Cristalândia, o rio Palmeira já morreu, a lagoa do Parnaguá já deu seu primeiro aviso em 2015 quando ficou sem uma gota d’água, o rio Paraim já está na “UTI”, o rio Corrente, em seus últimos suspiros pede socorro, em Curimatá o açude Vereda secou e o povo passou sede; em Avelino Lopes, a barragem diminui a cada ano, em Morro Cabeça no Tempo o abastecimento é em caminhão pipa. Por fim, o Gurgueia, principal rio da região sofre de falência múltipla, com suas margens desnudadas, leito assoreado e nascente devastada. É o fim! Morrendo os rios, nascendo a miséria. (GUERRA, 2018).

Nesta mesma direção, outros informantes denunciam os principais agravos ambientais no Estado, a morte dos rios, a disputa de interesses políticos e as dificuldades institucionais de consolidação dos instrumentos democráticos e participativos de gestão dos recursos hídricos a exemplo da constituição dos comitês de bacias hidrográficas, como exemplifica o excerto a seguir de uma representante do movimento ambiental no Piauí.

A questão dos recursos hídricos [...] é um problema seríssimo porque toda a bacia do rio Parnaíba está comprometida [...]. São as águas que surgem poluídas, degradadas. É o desmatamento, a poluição, a falta de tratamento de lixo, a política de resíduos sólidos que não se concretiza nunca, que desde 2006 já era para ter sido implantado os aterros, com usina de tratamento e tudo; mas aterro sanitário mesmo, nada foi feito no estado do Piauí. Então em relação aos recursos, cada vez mais a gente está perdendo água, ficando mais seco, mais árido. [...] a bacia do Parnaíba tem 217 rios, só que [...] a gente não sabe mais nem quantos deles estão perenes. No espaço de quinze a vinte anos para cá perdemos um monte já, não sei se existe já esse estudo, de quantos rios deixaram de existir... Tem o problema dos barramentos que são clandestinos, tem desvio de água das adutoras por empresários, por empresa mesmo grande, até por questões políticas também. E a gente espera que essa questão hídrica, com a criação do comitê da bacia, a gente possa estar, pelo menos acompanhando como tudo está acontecendo. E tem muitas decisões que precisam do referendo do comitê para poder sair uma decisão, empreendimentos que envolvem água, e quase tudo na vida envolve água. [..] Porque fazer um comitê laranja, como tem os dois estaduais aqui no Piauí7. São comitês laranja. O governo resolveu fazer e aí eles compram os atores. E nós queremos mais porque essa questão de água é um bem público, ele é para todos nós [...]. Portanto quem sabe melhor para lidar com água é a sociedade civil que precisa da água para tudo.

Tal realidade expressa o caráter contraditório e tensionado por distintos interesses das políticas e instrumentos de gestão ambiental, posto que a lógica da acumulação, própria do sistema capitalista, implica interesses de grupos econômicos locais ou de escalas mais ampliadas (transnacionais, agronegócio de grãos) que, agindo e disputando na esfera pública seus posicionamentos, associam-se geralmente a governos estaduais e municipais, produzindo ações de mercantilização da natureza, de concentração fundiária, e produzindo danos, não raras vezes em grande escala aos corpos hídricos, ao lençol freático, à flora e à fauna, com a degradação de ecossistemas e graves efeitos sobre a população humana.

Em geral, salvo ações de contraposição dos que produzem a resistência e a luta social crítica, os efeitos deletérios desse tipo de intervenção são banalizados e naturalizados em nome do “desenvolvimento” e da ideologia do progresso técnico. No encalço de tais ideologias, aportam uma série de projetos no âmbito do Estado, que além de desconsiderar os passivos sociais e agravos ambientais, contaminam os recursos hídricos direta ou indiretamente, como é exemplo a expansão da monocultura da soja no Sudoeste do Piauí e o envenenamento das fontes hídricas superficiais e subterrâneas, além da prática de exploração do gás de xisto, conforme explicitado no seguinte relato de representante do movimento ambientalista:

É uma indústria [da seca] sim! E atualmente a gente está em alerta total com essa questão do fracking, do gás não convencional. Que aqui a SEMAR já está para licenciar, já licenciou uma empresa, uma mineradora chamada Ouro Preto e essa mineradora aí já fez os estudos e descobriu muitos poços com gás; esse gás que a gente chama de gás de xisto, que está preso na rocha de xisto. E agora o governo licenciou para eles começarem em quinze municípios; começar pesquisa para extrair esse gás [que] é extremamente danoso para a saúde, para o meio ambiente [...] [e] eles não têm tecnologia desenvolvida o suficiente para retirar esse gás das profundezas da terra com segurança. Ele escapa, como aconteceu em vários países [com] muitas mortes.

Considerado o berço das águas, o Cerrado origina e resguarda os mais importantes rios que alimentam as bacias hidrográficas Tocantins-Araguaia, do São Francisco e do Prata. Conforme Pádua (2009, p. 133), trata-se de um bioma da “família planetária das savanas”, sendo o grande domínio ecológico do Brasil central espalhando-se por mais de 200 milhões de hectares. No entanto, de acordo com divulgação recente do DW Brasil (2019), esse bioma está desaparecendo. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) estimam a devastação de 6.484 quilômetros apenas no interstício entre de agosto de 2018 a julho de 2019, listando o agronegócio, dentre cultivo de grãos e atividade pecuarista, os principais responsáveis pela perca da vegetação original iniciada desde os anos 1970, quando a região se tornou a nova fronteira agrícola no país.

No sudoeste piauiense, segundo Martins (2019), as destruições do cerrado têm sido realizadas sob a forma da violação de direitos de famílias que têm suas terras expropriadas em nome de interesses econômicos de agentes internacionais que movimentam o mercado global de commodities, além do desserviço dos próprios órgãos ambientais do Estado, membros e autoridades policiais que facilitam o saqueio das potencialidades naturais do Estado por agentes transnacionais em detrimento das famílias locais que sofrem por escassez de água, envenenamento das fontes e toda sorte de dilapidação dos ecossistemas.

Considerando as disputas de projetos ideopolíticos apreciadas nas entrevistas, identificou-se na fala dos representantes sindicais, militantes de movimentos popular e ambiental, o compartilhamento do entendimento do poderio ideológico do capital, capaz de levar às últimas consequências a dilapidação do meio ambiente na busca pelo lucro, conforme explicitado no seguinte relato de um sindicalista:

[...] um dos grandes desafios da humanidade é você manter hoje essa quantidade de seres humanos no planeta, em função da poluição dos rios, da poluição do ar, da poluição da terra, dos solos, isso leva a uma quantidade de contaminação. Hoje as pouquíssimas possibilidades de se ter água potável, água doce do planeta, a cada ano que passa estão sendo comprometidas. É por isso que a gente fala que a bola da vez é a água. E o capital é isso, foi assim com petróleo, está sendo assim com o petróleo. O petróleo foi [e] vai continuar sendo durante muitos séculos ainda - pelo menos até enquanto a gente tiver petróleo à disposição no planeta -, motivo de guerras. Agora o motivo está sendo a água porque [para] as populações dos países, a cada dia que passa, fica mais escasso o acesso a esse bem precioso e as empresas veem isso como objeto de lucro muito, muito grande. Então o petróleo deixou de ser a bola da vez e passou a ser a água agora. Tem nações por aí que estão matando por causa da água. E essa questão dos nossos aquíferos. O Brasil é um privilegiado, digamos assim, em relação à água doce, e é por isso que os olhos do mundo, o interesse privado mundial está voltado para o Brasil. Essas modificações das nossas leis não são à toa, elas querem facilitar legalmente o acesso do poder financeiro privado a esse bem essencial que é a água; então a gente tem aquíferos. Tem o aquífero Guarani, tem o aquífero Amazônico, tem os nossos grandes rios, o Rio Amazonas, o rio São Francisco, então tudo isso está sendo visado pelo capital internacional, os grandes mercadores da água.

A prospecção revelada na fala acima pode ser confirmada por meio das análises de Welzer (2010), quando estabelece a estreita relação entre a violência e a escassez de água potável, estimando o aumento de conflitos violentos pela água e outros recursos naturais que podem incluir até sete bilhões de pessoas a partir do ano 2050, além de intensificar e apressar preexistentes conflitos sociais, econômicos, políticos, entre outros. O aludido sindicalista, preocupado com os rumos mudancistas pro-privatização, alerta para possíveis alterações nas normativas da política de saneamento de forma a agravar o quadro. Segundo ele,

[...] no caso das modificações dessas leis, no caso da 11.445 e de outras leis que [...] tratam da defesa e da questão do ambiente também, estão visando serem modificadas para facilitar o acesso para o interesse privado nesses segmentos8. [...] a gente sabe que é uma briga de gigantes, e nós somos soldadinhos em meio a um inimigo que tem tanques de guerra, mísseis de longo alcance, mas a gente sabe que não pode baixar a cabeça, tem que continuar lutando, do mesmo jeito que a gente venceu as medidas provisórias, a gente espera conseguir vencer esse PL e manter a nossa água pública [...] porque se aprovado esse PL aqui definitivamente a população brasileira vai estar à mercê do capital privado.

No plano mais geral do (des)governo instalado na direção do Brasil com Jair Bolsonaro, a flexibilização das leis ambientais e mesmo a omissão ante aos graves crimes ambientais indicam o retrocesso que vem trilhando o Brasil sob a insígnia do “desenvolvimento sustentável” que, nos termos de Silva (2012, p.117), devido à “sua natureza técnica, não põe em xeque as determinações sociais da questão ambiental, originadas no sociometabolismo do capital e sua lógica destrutiva”.

O depoimento acima, no entanto, indica o posicionamento assentado na defesa das águas e dos serviços de saneamento públicos diferindo em grande medida da lógica e da racionalidade contida na fala dos gestores públicos entrevistados que, guardadas pequenas diferenças, defendem a lógica privatista, reproduzindo os tradicionais argumentos neoliberais da falência do Estado, da incapacidade da máquina estatal, da relação custos-benefícios. Todavia, identificamos um abrandamento de tal discurso dentre os gestores lotados em órgãos de defesa dos direitos cidadãos e consumidores, malgrado o viés liberal de responsabilização dos indivíduos, atravessando suas falas, conforme o seguinte relato:

A gente vê que o grande problema da sociedade é que as pessoas cobram [...] que o poder público faça sua fiscalização, mas se a gente olhar na Constituição, a Constituição tem sete deveres que ela impõe ao cidadão brasileiro [...] e um dos deveres é justamente cuidar do meio ambiente e infelizmente a gente tem tido pouco apoio da sociedade. A sociedade cobra do poder público, mas não faz a parte dela. Não fiscaliza junto com o poder público quem está fazendo algo de errado. Isso infelizmente acaba sobrecarregando o poder público porque a gente tem uma limitação operacional e financeira e aí não consegue resolver. Dizer “ah! tem solução sim”. Existem soluções, mas cadê o dinheiro e cadê quem faz? Então assim, a gente tendo o apoio da sociedade como um todo, cada um zelando pelo meio ambiente, fazendo seu papel, o seu dever de proteger o meio ambiente e agir sim, como fiscal, eu tenho certeza que muitos dos problemas que a gente vê hoje não estariam no nível a que chegamos.

Prevalece, portanto, em muitas falas a responsabilização dos cidadãos pelos problemas ambientais; em geral, partindo do entendimento mais geral de transferência para os cidadãos das responsabilidades pela produção das aporias socioambientais. Tal tendência, de acordo com Castro (2010), vem sendo gestada a partir da desfiguração dos direitos sociais conquistados a partir da Constituição de 1988 por processos macroestruturais de ajuste das políticas neoliberais. Transformados em consumidores, os cidadãos individualizados são convocados a realizar a cogestão das políticas sociais; no entanto, só de forma funcional a essa lógica, posto que, quando portando significativa carga crítica, as vozes elaboradoras de contestação são sufocadas com medidas restritivas da participação.

Conclusão

A expansão do mercado em torno dos serviços de abastecimento e saneamento básico é apenas um dos aspectos dos novos cercamentos aos recursos hídricos. Sob o poderio ideológico neoliberal, o capital cada vez mais apropria-se dos recursos naturais, inserindo-os no processo de circulação do capital. O monopólio dos serviços urbanos de abastecimento de água e esgoto e outras formas de privatização dos recursos hídricos implica o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, na submissão aos processos de financeirização, que aprofundam as desigualdades sociais e questão socioambiental.

Não diferindo de outras realidades do país, no Piauí, a privatização dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário ocorreu apenas na capital, Teresina (e em sua zona urbana), após análises de viabilidade e retorno superavitário, justificado por um amplo processo de desgaste da empresa regional que historicamente prestou o serviço no Estado. Não obstante as tratativas de setores organizados em resistência a este processo, as tensões e disputas pela gestão em outros munícipios do Estado vêm corroborando a tese de que a privatização do saneamento serve a interesses lucrativos, enquanto a questão socioambiental é secundarizada.

A pesquisa realizada indicou distintas racionalidades em confronto no movediço terreno da gestão dos serviços de abastecimento d’água e esgotamento em Teresina. Estando o serviço hoje sob a responsabilidade e hegemonia de uma empresa privada, que imprime uma racionalidade liberal as suas práticas e leituras da realidade, movem-se, no entanto, em contraponto, lógicas contestatórias e em defesa de um serviço de caráter público que coloque na linha de frente de suas preocupações os graves problemas ambientais e sociais produzidos pela dinâmica socioeconômica do capital.

No plano mais geral, podemos destacar que as preocupações ambientais limitadas à retórica do “desenvolvimento sustentável” não conseguem romper com a reprodução sociometabólica do capital, nos termos de Mészaros (2011), cujos principais efeitos resvalam na regressão de direitos, na precarização do trabalho, no aumento da pobreza e da miséria e em danos irreversíveis à natureza, colocando em xeque as condições de existência em escala planetária, ao tempo em que responsabilizam a classe trabalhadora e difundem propostas de ações individuais, a exemplo da retórica do “faça sua parte”, relevando o peso das atividades industriais e da ação ou omissão do poder público.

O cenário posto pelas distintas expressões da questão socioambiental (mudanças climáticas em virtude do desmatamento, a degradação do ar, do solo e das águas, o aquecimento global, o aumento do número de incêndios, inundações, catástrofes e crimes socioambientais, poluição e morte de rios, lagos, lençóis freáticos, bem como o avanço de megaprojetos de desenvolvimento que ameaçam o meio ambiente, além dos processos de mercantilização dos serviços e recursos) configura-se como fundamental para a reprodução e expansão do capital, conforme refletida por Harvey (2011).

Tais condições constituem os paradoxos incitados pela racionalidade neoliberal no capitalismo contemporâneo que arregimenta, por exemplo, ferramentas institucionais distintas para avançar na transferência de responsabilidades para a iniciativa privada de obrigações outrora no âmbito do Estado, como vem sendo o caso da subconcessão de serviços de abastecimento d’água e esgotamento sanitário de Teresina.

Esse é um terreno movediço de contradições e tensões ideopolíticas que demanda alternativas radicais de enfrentamento que, para além, de uma compreensão estrita da questão ambiental, envolve um projeto civilizatório e um modelo societário posto em debate.

Material suplementar
Referências
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