Resumo: O objetivo deste artigo é discutir acesso das pessoas ocupadas no trabalho doméstico remunerado no Brasil à proteção social previdenciária. Foi realizado levantamento sobre a legislação que reconheceu os direitos da categoria, além de dados da PNAD e PNAD-C do IBGE. Os dados revelam um reconhecimento tardio dos direitos do trabalho doméstico, além do baixo índice de formalização dos contratos de trabalho via assinatura da carteira. Constata-se um aumento do número de diaristas, onde somente uma pequena parcela contribui individualmente para a previdência. Conclui-se que as pessoas ocupadas no trabalho doméstico vivenciam um quadro de (des)proteção social previdenciária no Brasil.
Palavras-chave:Proteção socialProteção social,previdência socialprevidência social,trabalho doméstico remuneradotrabalho doméstico remunerado,diaristasdiaristas.
O trabalho doméstico remunerado e a problemática da (des)proteção social
O trabalho doméstico remunerado e a problemática da (des)proteção social
Francilene Soares de Medeiros Costa1
Tiago Barreto de Andrade Costa2
Resumo
O objetivo deste artigo é discutir acesso das pessoas ocupadas no trabalho doméstico remunerado no Brasil à proteção social previdenciária. Foi realizado levantamento sobre a legislação que reconheceu os direitos da categoria, além de dados da PNAD e PNAD-C do IBGE. Os dados revelam um reconhecimento tardio dos direitos do trabalho doméstico, além do baixo índice de formalização dos contratos de trabalho via assinatura da carteira. Constata-se um aumento do número de diaristas, onde somente uma pequena parcela contribui individualmente para a previdência. Conclui-se que as pessoas ocupadas no trabalho doméstico vivenciam um quadro de (des)proteção social previdenciária no Brasil.
Palavras-chave
Proteção social; previdência social; trabalho doméstico remunerado; diaristas.
Paid domestic work and the problem of social unprotection
Abstract
The purpose of this article is to discuss the access of employed persons in paid domestic work in Brazil to social security protection. A survey was carried out on legislation that recognized the rights of the category, in addition to data from PNAD and PNAD-C of IBGE. The data reveal a late recognition of domestic work rights, as well as the low rate of formalization of labor contracts through the signing of the work permit. There is an increase in the number of day laborers, where only a small portion contributes individually to social security. It is concluded that people who are employed in domestic work experience a framework of social security unprotection in Brazil.
keywords
Social protection; social security; paid domestic work; day laborers.
Artigo recebido:
Artigo aceito:
Introdução
Mesmo não estando diretamente ligado ao sistema produtivo, o trabalho doméstico é uma atividade muito emblemática das contradições que encerram a construção dos sistemas de proteção social no ambiente capitalista, em particular o dependente e periférico. Enquanto uma ocupação que passou ao largo da evolução do sistema de proteção social brasileiro, sofreu das mais graves discriminações nesse sentido. Caracteriza-se por precário assalariamento e baixos salários e carência de proteção social pública, realidade agravada pela sobrerrepresentação feminina na categoria.
O trabalho doméstico no Brasil representa 6,5% da força de trabalho ocupada, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) para o ano de 2018. Sofre as consequências de se realizar no contexto de um mercado de trabalho nacional que se baseia em superexploração e subordinação da força de trabalho e onde a significativa parcela da população não alcança patamares dignos de reprodução social por meio do trabalho e nem participa, efetivamente, da democracia nacional.
Esse quadro aponta para a necessidade de permanência e aperfeiçoamento do sistema de proteção social público no Brasil, assim como do avanço do debate acerca dos significados desses sistemas nas economias periféricas como a brasileira. Se apresenta também ao debate os dilemas e as necessidade de se pensar em estratégias contemporâneas para dar conta da inserção nesse sistema, em especial o previdenciário, de trabalhadores que não se encontram em relação de trabalho empregatícia.
Fundamentos de análise da categoria proteção social na sociedade capitalista
O atendimento à diversidade de carecimentos e necessidades humanas faz da proteção social uma prática longeva na história. Pereira (2013) constata certo “caos” quando se refere às tentativas de conceituar proteção social3 em alguns casos se sobrepondo quase que completamente a outros termos como bem-estar, seguridade social ou política social3, dessa forma, não seria um assunto,
[...] simples, pacífico e de fácil compreensão. Trata-se, ao contrário, de uma questão complexa e ideologicamente contestada, que mobiliza teóricos, políticos, governos, religiosos, ativistas e articula uma variedade de conceitos ou de ideias-chave cujos significados variam de acordo com a teoria ou ideologia que professam (PEREIRA, 2013, p. 40).
O processo de estruturação da proteção social pública teve como pano de fundo a relação intrínseca e dilemática que existe entre a proteção social e o trabalho, que é, “[...] inescapável em sociedades divididas em classes, mormente na capitalista em curso” (PEREIRA-PEREIRA, 2013, p.639), já que o sistema capitalista gera a necessidade de se:
[...] lidar com o exército de reserva criado pelo próprio sistema para se reproduzir; ou de como fazer para evitar que os pobres aptos para o trabalho, mas sem trabalho, ao serem protegidos como sujeitos de direitos, fiquem “mal acostumados” e deixem de se guiar pela ética capitalista, de acordo com a qual só o trabalho enobrece o homem e o livra da miséria material e moral (PEREIRA-PEREIRA, 2013, p. 643).
Com isso, ganha destaque uma categoria central para uma abordagem crítica sobre a origem da necessidade de proteção social pública, sob as condições particulares que se processam no âmbito da sociedade do capital: a questão social. Conforme Netto (2001), as desigualdades na sociedade burguesa decorrem de uma escassez produzida socialmente, que resulta da contradição entre forças produtivas, em crescente socialização, e as relações de produção, as quais garantem a apropriação privada do excedente e a decisão privada de sua destinação. A questão social, nessa ótica, é um fenômeno estrutural que decorre das profundas desigualdades geradas pela produção de riqueza com base na expropriação dos meios de produção e na individualização da sua apropriação e acumulação (IAMAMOTO, 2001).
Assim sendo, a proteção social, “[...] transformou-se num dos mecanismos de enfrentamento da questão social, que expressa o conflito das relações sociais na sociedade capitalista e as contradições entre produção coletiva e apropriação privada da riqueza social” (MENDES; WÜNSCH, 2009, p. 242).
A complexificação das sociedades capitalistas e o agravamento da questão social, sobretudo as demandas dos trabalhadores no contexto fabril evidenciou a necessidade uma maior intervenção do poder estatal na esfera econômica e cultural e demarcaram o reconhecimento público dos riscos sociais do trabalho assalariado. Assim, sobretudo ao longo do século XX e com características e intensidades diferenciadas em cada país, “[...] a generalização da obrigação de assegurar (que implica a garantia do Estado) foi a via real de constituição da sociedade da seguridade” (CASTEL, 2003, p. 59).
A partir dos anos 1930, as mudanças ocorridas no processo de acumulação redefiniram o papel do Estado e criaram novas bases econômicas, políticas e ideológicas para o provimento público do bem-estar social. Esse movimento deu uma nova feição à proteção social ao longo do século XX, uma vez que popularizou a noção de seguridade social e qualificou a proteção enquanto política social pública colocando-a na agenda de construção social e coletiva, mediada e garantida pelo Estado social.
O Estado social, Estado de bem estar social ou Welfare State, segundo análise de Boschetti (2007), surge na história do capitalismo enquanto um fenômeno social, econômico, político e socialmente datado, que representou uma forte inflexão sobre as políticas sociais, uma vez que ao articulá-las em um “[...] sistema integrado de regulação social e econômica, comumente designado de ‘sistema de proteção social’, passa a ser um componente fundamental das medidas anticrise após a crise de 1929” (BOSCHETTI, 2007, p. 26). Nesse sentido, Esping-Andersen (1991) vê o Welfare State tanto como resultante da história da construção da nação, quanto como a principal instituição na construção de diferentes modelos de capitalismo no pós Guerra.
A aprovação do Plano Beveridge – como ficou conhecido o Report on Social Insurance and Allied Services, elaborado na Inglaterra em 1942 pelo economista britânico William Henry Beveridge – demarcou um novo paradigma para a proteção social pública, propagando-se muito rapidamente e influenciando reformas sociais a partir dos anos 1940 em vários países. Os princípios que sustentaram o Plano, sob a lógica da seguridade social seriam:
[...] responsabilidade estatal na manutenção das condições de vida das pessoas, por meio de um conjunto de ações em três direções: regulação da economia de mercado a fim de manter elevada a empregabilidade; prestação publica de serviços sociais universais, como educação, segurança social, assistência médica e habitação; e um conjunto, de serviços sociais pessoais; universalidade dos serviços sociais; implantação de uma “rede de segurança” de serviços de assistência (BOSCHETTI, 2007, p.92).
Ou seja, no período propício ao desenvolvimento dessa lógica securitária nos países de capitalismo central foi desenvolvido um sistema de proteção social aliado a crescimento econômico e pleno emprego, onde foi possível arregimentar um volume significativo de ações e benefícios sociais, operacionalizados por políticas abrangentes e universalizantes (BEHRING; BOSCHETTI, 2006).
As particularidades do contexto latino-americano
Tais constatações revelam o grande desafio de análise das particularidades dos sistemas de proteção social no contexto socio-histórico e econômico da América Latina e Brasil. Para Laurell (1998, p. 187-188), “[...] a questão dos Estados de bem estar na América Latina é bastante polêmica, pois é verdade que a proteção social, os serviços e os benefícios carecem de universalidade e equidade”. Em outras palavras, uma das maiores dificuldades em se fazer a leitura da política social implementada nos países da América Latina ao longo do século XX é a significativa disparidade de suas características em comparação aos países de capitalismo central.
Ao longo do século XX, na maior parte dos países da região não predominaram economias caracterizadas pelas situações de “[...] pleno emprego, acompanhada de uma subida persistente do salário real, (que) eleva os níveis de vida da esmagadora maioria da população” como ocorreu no “[...] quadro histórico do Welfare State dos países desenvolvidos” (AURELIANO; DRAIBE, 1989, p. 150). Pelo contrário, nessa região, para a grande maioria da população prevaleceu e ainda prevalecem os baixos salários e para uma parte expressiva não houve e ainda não há o chamado emprego regular ou típico.
Segundo o referencial da teoria da dependência, a dinâmica de reprodução do capital é, dentre outros aspectos, determinada por um princípio ou lei econômica conhecida como Lei do desenvolvimento desigual e combinado; segundo a qual reprodução ampliada do capital pressupõe a produção e reprodução de desigualdades erigidas sobre as concentrações de riqueza, poder e território, operadas tanto entre as diversas unidades nacionais, quanto no interior de cada uma delas, variando conforme sua posição no sistema social e produtivo global e regional4.
Nesse contexto de dependência, o fundamento da degradação e da alienação do trabalho é a superexploração da força de trabalho, intensiva e extensiva, a qual ocorreu inicialmente pela dominação dos povos originários do continente latino-americano e dos negros africanos escravizados no longo período colonial e imperial. A partir daí hierarquias e padrões de dominação e subordinação vão se reproduzindo tanto entre países periféricos em relação aos da economia central, quanto no interior dos Estados-nação, entre raças, povos, etnias ou nações, entre gêneros, entre classes sociais, nas porções distintas dos territórios dos Estados. Segundo tais formulações, a característica essencial da superexploração é:
[...] o fato de que são negadas ao trabalhador as condições necessárias para repor o desgaste de sua força de trabalho [...] seja porque se obriga o trabalhador a um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria proporcionar normalmente, provocando assim seu esgotamento prematuro; [...] seja porque se lhe retira inclusive a possibilidade de consumir o estritamente indispensável para conservar sua força de trabalho em estado normal (MARINI, 2005, p. 156).
Trata-se aqui do valor do trabalho e da reprodução social do trabalhador. Como lembra Singer (1979), a reprodução da força de trabalho é um processo organicamente ligado à própria circulação do capital. Quando o capital, sob a forma de mercadorias se realiza, assumindo a forma de capital-dinheiro, uma parte dele se destina ao pagamento de salários, o que permite ao trabalhador adquirir meios materiais necessários à sua manutenção e reposição (SINGER, 1979). Embora se saiba que a reprodução social não depende unicamente dos salários, nos países de capitalismo periférico nem mesmo a remuneração é garantia para as condições dessa reprodução. Portanto, são indicadores da superexploração da força de trabalho:
[...] a remuneração da força de trabalho por baixo valor; o prolongamento da jornada de trabalho implicando o desgaste prematuro da corporeidade físico-psíquica do trabalhador; o aumento da intensidade do trabalho provocando as mesmas consequências, com a apropriação de anos futuros de vida e trabalho do trabalhador e o aumento do valor da força de trabalho sem que este seja acompanhado do aumento da remuneração. No caso das economias dependentes, pela presença dos indicadores de superexploração fica possibilitado às classes dominantes imprimir mecanismos de compressão dos níveis de consumo da classe trabalhadora (LUCE, 2013, p. 146).
Trabalho e proteção social no Estado brasileiro
No Brasil, a questão social foi por muito tempo tratada como caso de polícia, deslegitimando as lutas e as necessidades sociais das camadas populares. A ética do trabalho, em que “[...] em um hipotético mercado de trabalho, livre e concorrencial, o trabalhador deveria se responsabilizar individualmente pelo próprio bem-estar” (BARBOSA, 2008, p. 240), desconsiderou que a base da sua classe trabalhadora foi formada por “[...] uma massa de negros parcialmente desescravizados, de migrantes rurais parcialmente despatriarcalizados e uma igualmente considerável massa de indivíduos forçosamente despaisados” (BARBOSA, 2008, p. 281). São aspectos da constituição da frágil democracia brasileira, erigida nos padrões de reprodução dos processos de nacionalização das sociedades latino-americanas e brasileira, as quais internalizaram e reproduziram o padrão dualista característico do regime colonial (FORTE, 2013; BERNARDINO-COSTA, 2007).
O agravamento da crise social frente às determinações da sociedade brasileira considerada acima, as reivindicações da classe operária, assim como a necessidades dos setores dominantes de amalgamar melhor os seus discursos e práticas, assim como a aceleração do processo de industrialização forçou o Estado a encarar questão social, marcando um importante ponto de inflexão na história da política social brasileira.
A intervenção social do Estado a partir dos anos 1930 demarca uma mudança no discurso e na prática sobre a questão social. Transita da predominância da proteção particular e individual para uma intervenção racionalizada e técnica promovida pelo Estado.
A partir dos anos 1940, nos termos de Gomes (2005) estruturou-se a “invenção do trabalhismo” brasileiro, baseada na ideologia da outorga, onde a coisa outorgada foi a legislação social e trabalhista, bem como o trabalho assalariado e de carteira assinada a condição para a cidadania5. Por sua vez, o golpe militar de 1964 impôs ao Brasil uma ordem político-institucional que visava o fortalecimento do Estado para o alcance dos objetivos de consolidação da modernização conservadora, tornando-se cada vez mais centralizador e controlador, diante da progressiva diversificação das demandas sociais, decorrente principalmente da migração massiva da população do meio rural para o contexto urbano, que crescia desordenadamente.
Por um lado, em decorrência da crise da autocracia, que já apontava sinais da sua gravitação, como reflexo da crise econômica do padrão de acumulação, cujo ícone foi a crise do petróleo de 1973 e, por outro lado, fruto das resistências democráticas que movimentavam amplos setores da sociedade, no início dos anos 1980, o país vivenciou o fim da ditadura militar, iniciando o lento processo de redemocratização.
Setores progressistas da sociedade questionaram a maneira centralizada como eram implementadas as políticas públicas, reivindicaram a participação popular nas decisões políticas e denunciaram as causas da pobreza como resultado da estrutura político-social e econômica. A instauração da Constituinte foi um campo de disputas entre as classes sociais em torno da abrangência e da garantia dos direitos sociais (BEHRING, 2006).
Foi no contexto histórico do processo de redemocratização, que culminou com a aprovação da Constituição Federal de 1988 e configurou-se o que se pode chamar de sistema de proteção social brasileiro, sob a lógica da seguridade social, avançando em termos de direitos.
De acordo como o artigo 194 da referida Carta Constitucional, a Seguridade Social6 é um sistema de proteção social um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinados a assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência Social e à Assistência Social. Dessa maneira, a proteção social atualmente no país é assegurada constitucionalmente enquanto direitos e garantias fundamentais, onde direitos individuais e coletivos são tratados no mesmo patamar e onde:
[...] não há distinção entre os dispositivos elencados no art. 5º da Constituição de 1988 e os dispositivos constantes nos arts. 6º e 7º concernentes aos direitos sociais. Ambos são direitos e garantias fundamentais e, portanto, traduzem-se na garantia que têm os cidadãos de exigirem dos poderes públicos proteção dos seus direitos contra qualquer ente, seja ele público ou privado (CAVALCANTI, 2008, p. 79).
Portanto, levando em conta a Carta Magna da nação brasileira, proteção social não é favor do Estado, mas dever do mesmo e direito da população. Além disso, essa mesma Carta reconhece que os direitos e garantias previstos nos artigos 5º, 6º, 7º são requisitos fundamentais para que se alcancem os objetivos primordiais do Estado brasileiro, organizado enquanto República Federativa, os quais estão previstos no art. 3º da Constituição, quais sejam: “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Contudo, uma das contradições, que nos parece fundamental evidenciar, está presente na questão que Boschetti levanta nos seus escritos de 2008. A autora questiona o fato de que se nos fins do século XX os países desenvolvidos estavam vivenciando exatamente a “crise” do Estado social, por que o Brasil vai na contramão dessa tendência e passa a estruturar nesse período essa legislação social de cunho mais progressista e aproximada ao receituário social-democrata europeu? Lembra-nos, então, a autora que o Brasil vivenciava seu período de abertura democrática no pós-ditadura militar, envolto em um processo de consolidação da democracia e vendo-se diante da necessidade de mudanças políticas e econômicas profundas. Na perspectiva de instituir uma “Constituição ‘cidadã’ em um país onde reinava a injustiça e a desigualdade, a escolha por um sistema que associava, ao mesmo tempo, universalidade e seletividade, parece ter sido a mais apropriada” (BOSCHETTI, 2008, p. XIII). E mais:
[...] a tentativa de estabelecimento, com a Constituição Federal de 1988, de um sistema baseado no complexo previdenciário-assistencial, ou seja, sobre a primazia do trabalho, fez emergir o que consideramos o grande paradoxo do Estado social brasileiro: a organização da seguridade social sob a lógica do complexo previdenciário-assistencial em uma sociedade não-salarial, ou com frágil assalariamento (BOSCHETTI, 2008, p. X).
O dilema permanece no país e a primazia do trabalho continua apresentando situações dilemáticas para a classe trabalhadora brasileira, que vivencia a realidade do frágil assalariamento e da superexploração da sua força de trabalho. Da miríade de exemplos e situações que se pode particularizar nesse universo do trabalho no Brasil, nossa discussão privilegia o trabalho doméstico remunerado, que se destaca pelas características de superexploração de desprestígio social.
O trabalho doméstico e a problemática da proteção social previdenciária
O trabalho doméstico é uma das mais antigas ocupações da humanidade. Em todo o mundo, em sua versão remunerada, tem comparecido como uma oportunidade de emprego para milhões de pessoas. No entanto, as pessoas ocupadas nos serviços domésticos sofrem altos níveis de discriminação de diferentes formas, “[...] inclusive o fato de frequentemente serem excluídos da cobertura dos sistemas de seguridade social, fazendo essa população altamente vulnerável” (ILO, 2016, p. 2; tradução nossa). Dessa forma, globalmente, o trabalho doméstico remunerado:
[...] tem sido tradicionalmente caracterizado por más condições de trabalho, extensas jornadas, baixos salários, trabalho forçado e com pouca ou nenhuma proteção social (ILO, 2012c). [...] Esta situação reflete amplamente o baixo valor social e econômico que as sociedades normalmente atribuem a essa atividade. Isso também é refletido pela ausência de legislação adequada e da falta de aplicação efetiva das que já existem (ILO, 2016, p. 1; tradução nossa).
No Brasil, o baixo valor social do trabalho doméstico se particulariza pelo fato de suas primeiras ocorrências terem se dado no contexto da escravidão dos povos originários da América, e, sobretudo, da população negra africana. Desde o pós-abolição, passando pelo período de formação do mercado de trabalho brasileiro, mesmo se ressignificando por meio de discursos e práticas, muitas heranças do servilismo do contexto escravista são mantidas. Uma delas é o predomínio das mulheres negras na ocupação. Segundo os dados da PNAD Contínua (média anual), em 2018 havia 6,24 milhões de pessoas ocupadas no trabalho doméstico, sendo 94%7. Dessas, 67% se autodenominam negras.
Os dados refletem as determinações da sociedade patriarcal, onde ocorre uma demarcação do trabalho feminino no contexto doméstico e com status social inferior ao do trabalho desenvolvido pelos homens. Dessa maneira, é possível concordar que o:
[...] serviço doméstico remunerado é um bolsão de ocupação para a mão-de-obra feminina no Brasil, porque constitui culturalmente o lugar da mulher e a execução dessas tarefas não exige nenhuma qualificação. Essa atividade, por isso, é o refúgio dos trabalhadores com baixa escolaridade e sem treinamento na sociedade (MELO, 1998, p. 1).
Para muitas mulheres, as dificuldades no decorrer da vida e a falta de oportunidade de estudar levaram-nas ao trabalho doméstico, ao mesmo tempo em que as condições de trabalho não as permitiram continuar seus estudos. Os filhos e busca por resolução das tensões entre trabalho e vida familiar, que ocorre em meio a condições sociais precárias e falta de equipamentos sociais públicos, favorecem a reprodução da estratégias das várias jornadas de trabalho doméstico dificultam o estudo e a qualificação profissional dessas mulheres.
Por sua vez, no contexto da reprodução da superexploração da força de trabalho no cenário brasileiro, o trabalho doméstico se destaca enquanto ocupação que percebe os menores rendimentos. Em 2018, os dados da PNAD Contínua do IBGE (Figura 01)., demonstra que entre empregados da iniciativa privada (com carteira assinada e sem), empregados do setor público, empregadores e aqueles que trabalham por conta-própria, os trabalhadores domésticos são os que auferem os menores rendimentos, ficando abaixo do salário mínimo vigente em 2018, que correspondia a R$ 954,00.
Figura 01 – Rendimento médio real do trabalho principal, habitualmente recebido por mês, pelas pessoas de 14 anos ou mais de idade ocupadas em 2018 (R%)
Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. 2018
Nota: 1 - Média anual. 2 - O rendimento efetivo se refere ao valor recebido no mês anterior ao da coleta.
Tais constatações implicam considerar que a análise do trabalho doméstico remunerado no Brasil pressupõe sua vinculação à cultura de servidão e subordinação de classe, gênero e raça, que marca internamente essa ocupação (BERNARDINO-COSTA, 2007)8. Por conseguinte, as trabalhadoras domésticas têm passado praticamente invisíveis na cena pública brasileira ou muitas vezes sido alvo de estigmas, estranhamentos e discriminações frente ao conjunto da sociedade e dos demais trabalhadores. Uma expressão fundamental dessa condição foi a longa e lenta trajetória por reconhecimento de direitos da categoria ao longo do século XX.
No Brasil, na década de 1940, a adoção da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), excluiu o trabalho doméstico da sua proteção9. Somente na década de 1970, foi reconhecido enquanto profissão, por meio da Lei n° 5.859/1972. Desde então, sua regulamentação se deu de maneira fragmentada em vários instrumentos legais, incorporando direitos de forma restritiva e paulatina.
Do ponto de vista formal, a reversão desse quadro só ocorreu em 2015, por meio da Lei Complementar n. 150/2015, resultado da Emenda Constitucional n. 72/2013, as trabalhadoras domésticas tiveram pela primeira vez a jornada de trabalho delimitada, que passou a ser de 44 horas semanais e 8 horas diárias e horário de almoço, além do pagamento de hora extra, com banco de horas; recolhimento obrigatório do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) por parte do empregador; adicional noturno, auxílio-creche; e auxílio família; multa em caso de demissão sem justa causa, dentre outros.
Apesar do avanço representado pela aprovação da Lei de 2015, as consequências do tratamento discriminatório e excludente sofrido pelas trabalhadoras domésticas remuneradas no Brasil no que se refere ao reconhecimento de direitos e de condições de vida e trabalho ainda são uma realidade a ser enfrentada seriamente quando está em pauta a dignidade da pessoa humana, a cidadania e a democracia no Brasil e o trabalho decente. Uma dessas marcas é a exclusão massiva dessas trabalhadoras do sistema de proteção social, especialmente da previdência social.
No Brasil a inserção do trabalhador no sistema de Seguridade Social, mais especificamente na previdência social pode ocorrer via registro do contrato de trabalho na carteira ou por meio da contribuição individual, sendo a primeira a principal forma e a que garante proteção social trabalhista também.
No caso do trabalho doméstico remunerado, a ausência de registro dos contratos de trabalho uma característica histórica e persistente. Se considerarmos o intervalo entre os anos 2004 e 2014, década em que os empregos com carteira assinada tiveram um crescimento importante no país, vemos que o trabalho doméstico, mesmo tendo seguido essa tendência não acompanhou o índice de aumento em relação aos demais empregados. Enquanto estes tiveram uma variação positiva da ordem de 10,8% no intervalo de 10 anos, entre os trabalhadores domésticos a variação foi da ordem de 5,6% (Figura 02).
Figura 02 – Comparativo entre trabalhadores domésticos e demais empregados, ambos com carteira assinada
Fonte: Costa (2017)
Nota: Empregados com carteira assinada, exclusive os militares, estatutários e trabalhadoras domésticas
Mesmo em 2018, de acordo com a PNAD Contínua (média anual), a parcela de trabalhadoras domésticas sem carteira de trabalho assinada manteve-se na ordem de 70,1%. A aprovação da Lei Complementar n. 150/2015 é, sem dúvida, um avanço inegável para a melhoria desses indicadores. Contudo, esses mesmos indicadores demonstram o grande desafio que o país enfrenta para a garantia da cobertura previdenciária e trabalhista para essas trabalhadoras, as quais se mantém em uma grave condição de (des)proteção social, considerando o acesso ao sistema público de previdência.
Como agravante a essa condição de baixo acesso ao sistema previdenciário, estudos apontam o crescimento do número de pessoas que se ocupam nos serviços domésticos na condição de diarista. Fraga (2010), considerando a base de dados da PNAD identificou que esse fenômeno vem ocorrendo desde a década de 1990. Costa (2017), por sua vez, demonstrou que em 2004, o percentual de diaristas na média nacional de trabalhadoras domésticas era de 25%, passando para 31% em 2014 (PNAD).
De acordo com Fraga (2010), a diarista é a pessoa que trabalha apenas algumas vezes na semana ou no mês na residência de cada cliente, geralmente cuidando da faxina. Essa forma de prestação de serviços tem sido considerada em oposição à mensalista, residente ou não, que é aquela que trabalha o mês inteiro para a mesma família, podendo ficar responsável pelos afazeres domésticos como um todo (polivalente) ou por uma tarefa específica (especializada).
Até a Lei Complementar n. 150/2015, a definição da condição de diarista não era precisa e muitos casos eram levados à Justiça do Trabalho. Na verdade a Lei não trouxe uma definição direta de diarista, mas de empregado doméstico, que é considerado no Art. 1º “[...] aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa, pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana” (Grifo nosso).
A partir de então, de forma clara pela determinação da quantidade de dias trabalhados por semana, a condição de trabalhadora diarista recebeu um parâmetro objetivo para sua categorização. Se uma pessoa realizar trabalhos domésticos remunerado em uma mesma residência por até duas vezes na semana, esta é considerada diarista. Já que não fica caracterizada a relação de emprego, à diarista não aplica a cobertura da Lei Complementar n. 150/2015.
Nesse caso, a trabalhadora doméstica diarista recebeu do legislador o veredito da autonomia. O trabalhador autônomo é aquele que presta serviço por conta própria e assume os riscos da atividade que exerce, não havendo relação de trabalho entre o prestador e o tomador de serviço, já que este ocorre de maneira eventual e sem continuidade. Essas características colocam o trabalhador autônomo fora do escopo da proteção do direito do trabalho, uma vez que, não há contrato e nem tampouco relação de emprego.
Resta ao trabalhador autônomo a possibilidade de vinculação à previdência social pela via da contribuição individual. Contudo, entre as trabalhadoras diaristas esta forma de contribuição somente chega a 12%, de acordo com dados da PNAD/IBGE.
Portanto, apesar do ganho histórico do trabalho doméstico remunerado no Brasil, ainda há um grande percentual de trabalhadoras em relações de emprego não formalizadas, o que implica em um quantitativo alto dessas trabalhadoras que não acessam a proteção social previdenciária. Por sua vez, o fenômeno da diarização se apresenta como um agravante a essa realidade e expressa um novo desafio para a ampliação do acesso dessa categoria de trabalho à proteção social previdenciária.
Considerações finais
Podemos concluir que uma das mais emblemáticas expressões da ampla discriminação social sofrida pelas trabalhas domésticas brasileiras foi o tardio reconhecimento das pessoas ocupadas nos serviços domésticos enquanto trabalhadores, o que se expressou na forma lenta, paulatina e discriminatória com o que ocorreu a regulamentação dos seus direitos.
Desde que entrou em vigor, em 1972 a Lei n. 5.859, regulamentando o trabalho doméstico remunerado com a obrigatoriedade de assinatura da carteira de trabalho, esse direito tem sido amplamente negligenciado na relação contratual estabelecida entre empregadas e empregadores.
Assim uma das mais sérias consequências da não vinculação das trabalhadoras à Previdência Social, seja pela não contribuição individual ou pela ausência de contrato formal de emprego, é o não acesso a direitos sociais, previdenciários e trabalhistas que compõem o sistema nacional de proteção social, com sérios agravantes, quando são consideradas as desigualdades sociais e econômicas enfrentadas no país.
O contexto de superexploração da força de trabalho, em que a maioria da população brasileira não tem as suas necessidades básicas garantidas pela renda do seu trabalho, contradiz diretamente a ideia liberal de que a melhor forma de proteção social é o próprio trabalho. Nessas condições, supomos que a resposta social e política que a massa de trabalhadores brasileiros espera e necessita diante dos mercados de trabalho instáveis, informais e precários, não deve ser o fim da responsabilidade estatal em promover proteção social pública, mas reforço da importância do modelo da Seguridade Social, formalmente adotado no país, mas que sofre constantes ataques. Entendemos a proteção social pública nesse contexto como um importante instrumento de promoção de justiça e equidade social.
Nessas circunstâncias, urge a necessidade de se pensar em formas de garantir a proteção social não somente aos trabalhadores formais, que se enquadram nas relações empregatícias, mas à gama de inserções precárias, autônomas, subcontratadas que compõem o universo complexo da informalidade no Brasil. Isso significa atender ao cidadão trabalhador que não tem carteira assinada e lhe garantir proteção frente ao potencial destrutivo e degradante do trabalho precário.
Em se tratando de trabalho doméstico, os compromissos se tornam mais formalizados e passíveis de controle social e de serem pautados na agenda pública, quando constatamos que em 31/01/2018 o Brasil ratificou a Convenção e Recomendação n. 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre Trabalho Decente para as trabalhadoras e os trabalhadores domésticos.
Quando o legislador brasileiro definiu a obrigatoriedade de assinatura da carteira de trabalho somente para as domésticas que trabalham mais de dois dias na mesma residência, definiu também a exclusão das diaristas dessa conquista histórica da categoria. Além dos desafios de ampliar a formalização para as que se enquadram nos parâmetros de vínculos empregatícios, o Estado e a sociedade em geral não deveriam se furtar à responsabilidade de “olhar” também para as diaristas e desenvolver mecanismos que facilite a acesso dessas trabalhadoras ao sistema de proteção previdenciário.