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(In)segurança de renda e (des)proteção social no Brasil: algumas notas para reflexão
Bruna Carnelossi
Bruna Carnelossi
(In)segurança de renda e (des)proteção social no Brasil: algumas notas para reflexão
O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 151-178, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Este artigo aborda a segurança de renda como direito de proteção social não contributiva e problematiza situações de desproteções sociais decorrentes da insegurança de renda. No contexto socioeconômico contemporâneo aborda-se o Benefício de Prestação Continuada e o Programa Bolsa Família. A dinâmica de gestão que preside esses dispositivos paradoxalmente reitera a lógica liberal e esvai seu conteúdo de um possível conteúdo de direito de cidadania. Na conjuntura adversa à segurança de renda como direito socioassistencial emergem desproteções sociais cada vez mais dramáticas e ultrajantes à dignidade humana, que clamam pela necessidade por dinheiro para sobrevivência na sociedade do capital.

Palavras-chave:Proteção SocialProteção Social,Segurança de RendaSegurança de Renda,Direito socioassistencialDireito socioassistencial.

Carátula del artículo

(In)segurança de renda e (des)proteção social no Brasil: algumas notas para reflexão

Bruna Carnelossi
Universidade de São Paulo (EACH/USP), Brasil
O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 151-178, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

(In)segurança de renda e (des)proteção social no Brasil: algumas notas para reflexão

Bruna Carnelossi1

Resumo

Este artigo aborda a segurança de renda como direito de proteção social não contributiva e problematiza situações de desproteções sociais decorrentes da insegurança de renda. No contexto socioeconômico contemporâneo aborda-se o Benefício de Prestação Continuada e o Programa Bolsa Família. A dinâmica de gestão que preside esses dispositivos paradoxalmente reitera a lógica liberal e esvai seu conteúdo de um possível conteúdo de direito de cidadania. Na conjuntura adversa à segurança de renda como direito socioassistencial emergem desproteções sociais cada vez mais dramáticas e ultrajantes à dignidade humana, que clamam pela necessidade por dinheiro para sobrevivência na sociedade do capital.

Palavras-chave

Proteção Social; Segurança de Renda; Direito socioassistencial.

Income (in)security and social (de)protection in Brazil: some notes for reflection

Abstract

This article deals with income security as a non-contributory social protection right and problematizes situations of social unprotection due to income insecurity. In the contemporary socio-economic context, the Continuous Benefit Benefit and the BolsaFamília Program are addressed. The management dynamics that presides over these devices paradoxically reiterate the liberal logic and empty its content of a possible content of citizenship law. In the adverse conjuncture of income security as a social-welfare right, social defenses emerged that were increasingly dramatic and outrageous to human dignity, which called for the need for money for survival in the society of capital.

Keywords

Social Protection; Security of Income; Social and Welfare Right.

Artigo recebido:

Artigo aceito:

Proteção social e segurança de renda como direito de cidadania

Em todos os sistemas públicos de proteção social coexistem benefícios monetários de natureza contributiva e não contributiva, sendo essa relação definidora de algumas características básicas dos modelos ou regimes de proteção social; eles poderão, assim, se alargar ou restringir a partir da definição de algumas das características básicas dos modelos ou regimes de proteção social (JACCOUD,2013, p. 388). Esse movimento de ampliação ou restrição dos sistemas de proteção relaciona-se, basicamente, com sua vinculação ou dissociação do mercado de trabalho.

O dilema presente na relação entre proteção social e trabalho é secular, e animado pela batalha entre dois paradigmas organizados em duas tradições de economia política, segundo Pereira (2013): a clássica (ou liberal) e a crítica (ou marxista).

A proteção social na perspectiva clássica ou liberal é pautada pela ética capitalista, de acordo com a qual só o trabalho enobrece o homem e o livra da miséria material e moral. Por essa perspectiva, havendo trabalho não haverá necessidade de proteção social pública, sendo a principal política de proteção social o trabalho; o beneficiário da proteção social é subjugado, desqualificado e estigmatizado como tutelado, enquanto não adentrar a qualquer custo o mercado de trabalho.

Por outro lado, a proteção social na perspectiva crítica ou marxistaestá associada a um caráter universal, cuja provisão não está relacionada com a situação do mercado de trabalho do requerente, mas, sim, vinculada ao seu status de cidadão.

Considerando que ambos modelos de proteção social coexistem, a análise de suas disposições nos indicam sob qual paradigma de proteção social o acesso ao dinheiro no formato de benefício sociais se alicerça. Assim,quanto mais o modelo de proteção social está vinculado e condicionado ao trabalho (perspectiva liberal), mais distanciado está de sua perspectiva de cidadania e de direito desmercadorizado (perspectiva crítica).

Neste artigo priorizaremos a análise da segurança de renda de natureza não contributiva constituída, portanto, por benefícios que não estão assentados em contribuições sociais ou na comprovação da necessidade, mas no reconhecimento de um direito de cidadania (JACCOUD, 2013, p. 388).

O acesso ao dinheiro dissociado do mercado de trabalho como direito de proteção social não contributiva tem por característica central a desmercadorização do benefício social em dinheiro, ou seja, neste caso, o acesso ao dinheiro não é proveniente de uma relação mercadológica de compra e venda ou lucro; trata-se do acesso ao dinheiro independentemente da vinculação do beneficiário com o mercado de trabalho, ainda que a transferência tenda a retroagir sobre o segundo. É justamente o aspecto desmercadorizado dos benefícios sociais monetarizados que os vinculam à dimensão não contributiva da proteção social numa perspectiva crítica, pois, como esclarece Sposati (2009, p. 23), “o sentido de não contributivo significa do ponto de vista econômico o acesso fora das relações de mercado, isto é, desmercantilizado ou desmercadorizado”.

Essa perspectiva de proteção social implica reconhecer que injetar dinheiro público na economia não implica necessariamente em favorecer ou estimular a financeirização; ao contrário, a oferta pública de uma renda dissociada das relações intrínsecas de mercado carrega em si um potencial de colocar em segundo plano um dos princípios do mercado, cujo dinheiro é exclusivamente proveniente e aplicado em relações de venda e lucro. Nesse caso, a provisão pública da renda pelo Estado contribuiria para o enfrentamento da hegemonia de mercado no acesso ao dinheiro; seu princípio, direcionado a autossuficiência, não visaria lucros, vendas e ganhos, ainda que atue sobre transações econômicas.

A partir dessa perspectiva, entende-se que a universalização do direito a uma renda universal e incondicional não é sinônimo de financeirização das políticas sociais, pois sua defesa não significa diluir os diversos campos de atenção sociais e seus respectivos serviços em benefícios monetarizados, ainda que seja essa uma tendência observada nas sociedades capitalistas, que têm adotado direções neoliberais na condução dos sistemas de proteção social.

Ter clareza dessa premissa é fundamental quando buscamos defender a segurança de renda como direito de cidadania no arcabouço dos sistemas de proteção social, sem que isso signifique a expansão da dominância financeira2.

No curso histórico da institucionalização dos benefícios sociais monetarizados no campo da proteção social não contributiva é marco o “fenômeno histórico específico e normativo” (MISHRA, 1995 apud PEREIRA, 2011, p. 86) designado por WelfareState, que ampliou a atenção no campo não contributivo, ocasionando ganhos sociais e políticos à classe trabalhadora e à sociedade como um todo. Contudo, sua estrutura era assentada nas relações do mercado de trabalho, ou seja, sua sustentação dependia do pleno emprego. Mesmo em sociedades que foram capazes de manter coalizões lideradas por trabalhadores por longos períodos no poder, o resultado das políticas sociais refletia, na verdade, a síntese das forças políticas dispostas ao longo de um determinado período, como demonstrou Gosta Esping-Andersen (1991).

Entretanto, a partir da década de 1980, com o aprofundamento do neoliberalismo, os sistemas de proteção social passaram a ser ainda mais hegemonizados pelo paradigma liberal. Assim, a segurança de renda no campo da proteção social de caráter não contributivo, que já era restritiva perante os benefícios sociais vinculados ao mercado de trabalho, passa a ser ainda mais residual e restritivo.

Essa geração neoliberal da proteção social passa a ser regida pelo ideário de um modelo de políticas sociais denominado por Workfare State, em contraponto às políticas sociais de caráter mais universal, e passa a designar o bem-estar às custas do trabalho.

O “método” e a “filosofia” intrínsecos ao Workfare State caracterizam-se por políticas sociais ativadoras do mérito competitivo e excludente (em contraposição ao direito universal), concebidas para incutir nos seus destinatários o habito do trabalho assalariado, da busca resignada por empregos, além da submissão à disciplina dos rotineiros treinamentos profissionais exigidos por um mercado de trabalho inconstante (PECK, 2003).

Essa regulação contemporânea das políticas sociais em curso é partidária de uma racionalidade de retribuição expressa na obrigatoriedade de participação dos cidadãos em medidas de ativação voltadas ao mercado de trabalho, ou em medidas que condicionam benefícios sociais a determinados comportamentos do beneficiário.

A lógica do workfare se alinha ao paradigma liberal de proteção social, portanto sua expressão nada mais é que uma releitura das pretensões mais liberalizantes e restritivas da proteção social.

Uma releitura liberal da proteção social expressa pelas políticas do Workfare State inspira a expansão de programas de transferência de renda condicionados nos moldes do Programa Bolsa Família na década de 1990.

Essa reconversão da provisão pública da proteção social nega aos trabalhadores a devida proteção social pública, uma vez que institui uma ética de proteção pautada na autorresponsabilização dos indivíduos.

Nesse contexto de imposição da centralidade do trabalho como condição de acesso à proteção social, desliga-se o status de cidadania e estigmatizam-se os beneficiários, sujeitos a comprovar (não raro de forma vexatória) a realidade das suas necessidades.

Diante esse contexto, a defesa da segurança de renda como direito de cidadania, portanto, se constituí na atualidade em um movimento contra-hegemônico na luta por uma proteção social ancorada na perspectiva de cidadania.É nesse sentido que abordar o acesso ao dinheiro como direito de proteção social implica encarar polêmicas, visto que a defesa do que se deseja (Segurança de renda como direito de proteção social) implica em duas grandes questões: a desmistificação do trabalho como condição hegemônica de acesso ao dinheiro, e o desafio de assegurá-lo de modo a não fomentar, indiretamente, o processo de financeirazação das políticas sociais (LAVINAS, 2018).

Essa discussão sobre a centralidade do trabalho se acentua quando se problematiza a relação entre desigualdades econômicas e proteção social na sociedade de mercado, e se questiona o direito ao dinheiro dissociado do mercado de trabalho, na Era da iconomia3 (SCHWARTZ, 2006), da economia do imaterial (GORZ, 2005) e sob a égide da quarta revolução industrial4. Aqui, interessa observar que o emprego e o trabalho são diretamente afetados por esse contexto,que possui efeitos deletérios sobre o nível de emprego formal, eliminando mais postos de trabalho do que cria5 (RAUEN, 2007).

A compreensão desse contexto econômico é importante, poisfavorece a formulação de algumas premissas que nos auxiliam a elucidar argumentos que subsidiam a necessária dissociação entre o “direito a um emprego” e o “direito a uma renda”. Afinal, como aponta Gorz (1988, p. 250):

Quando o processo de produção exige cada vez menos trabalho e distribui cada vez menos salários, a evidência se impõe, progressivamente, a todos: não é mais possível reservar o direito a uma renda somente às pessoas que ocupam um emprego nem, sobretudo, fazer depender o nível de renda da quantidade de trabalho fornecido por cada um. Daí a ideia de uma renda garantida independente do trabalho, ou da quantidade de trabalho, a todo cidadão e a toda cidadã.

A necessidade, então, de uma renda dissociada do mercado de trabalho acentua-se na sociedade contemporânea, e exige “novos mecanismos de distribuição, independentes das leis de mercado e da lei de valor”; parafraseando Claus Offe (1984), é preciso romper com uma evolução que conduziu a maioria da população a depender, para sua subsistência, do mercado de trabalho.

Contudo, a aderência da centralidade do trabalho é tão forte e incrustada na sociedade que, mesmo com todas as transformações generalizadas no plano da iconomia, não foi possível perceber qualquer transformação de amplo alcance que pudesse transpor os argumentos legitimadores da centralidade do trabalho enquanto fonte de renda.

É interessante observar que essas mistificações em torno do trabalho, fomentadas discursiva e ideologicamente, nunca corresponderam a condições de bem-estar dignas à classe trabalhadora. Ao contrário, de modo geral, a constituição da classe trabalhadora é historicamente marcada por condições de trabalho estarrecedoras, sujeitos a penalidades, insalubres, pesadas, precárias, marcada por casas superlotadas, sujas e em mau estado, roupas esfarrapadas, comida insatisfatória, crianças trabalhando etc..6 A crença axiomática nas virtudes do trabalho fora, e ainda é, inclusive utilizada politicamente para encobrir situações criminosas ou oportunistas.

Nota-se que a cristalização dessa idolatria ao trabalho é intrinsecamente acompanhada pela demonização do tempo livre, ambos se conectam a uma racionalidade industrial que concebe o ócio como o pai de todos os vícios e o trabalho como a virtude milagrosa.

Essa compreensão é importante, pois legitimar a proteção social em sua natureza universal e não contributiva requer não apenas relativizar o valor do trabalho, mas também reconhecer o valor virtuoso do tempo livre, sobretudo em sociedades regidas pelo aumento do desemprego estrutural-tecnológico e da consequente prevalência do tempo livre enquanto um fenômeno massivo.

Nota-se que nessa perspectiva que dissocia o direito ao emprego à renda obtida com o emprego, o trabalho passa a ser reconhecido e valorizado em sua acepção marxista, ou seja, enquanto categoria universal, antropológica, de autocriação humana, apartada de seu caráter alienado e alienante do capitalismo.

Portanto, a libertação do trabalho enquanto condição ao direito à renda desvinculada da inserção laboral não exclui o direito ao trabalho enquanto categoria de autocriação humana; ao contrário, seria uma possibilidade de exercício de liberdade ao propiciar um cenário alternativo em que não se tenha que escolher entre a opção ruim e a menos ruim.

Parte-se da ideia de que o direito ao dinheiro dissociado do mercado de trabalho carrega potencialidades em direção a assegurar a reprodução material do homem, via satisfação das suas necessidades e ampliação da perspectiva de bem-estar do ponto de vista criativo. Nessa direção, a segurança de renda torna-se um instrumento capaz de garantir a sobrevivência daqueles que não encontram no mercado os salários compatíveis com a sua existência, além de se constituir como um meio de libertação do homem com relação ao trabalho mal pago, precarizado, explorador, intrusivo e moralizador. Tais premissas revelam-se fundamentais quando se pretende defender a provisão pública de dinheiro como um direito universal e incondicional, no formato de benefícios socioassistenciais assegurados enquanto direito de proteção social não contributiva.

A segurança de renda na política pública de assistência social

A segurança de renda no campo da proteção social não contributiva no Brasil é responsabilidade estatal atribuída à política pública de assistência social e ao processo de gestão pelo Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Ela deve afiançar seguranças sociais onde a segurança de renda é direito social, assim como as seguranças de convívio e acolhida (BRASIL, 2004).

A segurança de renda como direito socioassistencial tem como marco histórico a Constituição Federal de 1988 (CF-1988), na qual estabelece um benefício monetarizado dissociado do mercado de trabalho no valor de um salário mínimo para idosos e pessoas com deficiência. Essa emblemática decisão transfere o benefício de Renda Mensal Vitalícia (doravante RMV) do campo da Previdência Social, que desde 1974 assegurava um benefício monetarizado a idosos e pessoas com deficiência, desde que comprovassem sua vinculação sazonal com o mercado de trabalho formal e sua contribuição com a Previdência Social.

Essa ancoragem da segurança de renda como direito de proteção social no Brasil à CF-1988é simbólica enquanto um marco de ampliação da cidadania a todos, transcendendo os direitos contributivos e àqueles acessados quando a sobrevivência se mostra ameaçada. Desde então, o Estado brasileiro reconhece a necessidade de assegurar o direito de um padrão mínimo de segurança de renda aos idosos e pessoas com deficiência independente de contribuição prévia decorrente da associação com o mercado de trabalho.

Localizamos neste artigo uma segunda inovação no plano da institucionalização da segurança de renda que deriva do programa de âmbito nacional para transferência de renda às famílias pobres, o Programa Bolsa Família, embora experiências de programas de transferência de renda já tivessem sido implantadas em nível municipal desde a década de 1990.

Esses novos benefícios não contributivos, embora regulados por marcos jurídicos distintos e associados a um projeto de intervenção pública restrito e de proteção social focalizada na pobreza, contribuíram, ainda que de forma precária e minimalista, com o rompimento da tradição exclusivamente securitária da proteção social brasileira. A partir de então, o foco de atenção à incapacidade para o trabalho se amplia submetendo à intervenção estatal não só os riscos inerentes à dependência do trabalho assalariado, mas a própria condição de pobreza, enfrentada por razoável parcela da população trabalhadora ou não.

Segundo a Política Nacional de Assistência Social (doravante PNAS/2004), a segurança de rendimentos não é uma compensação do valor do salário mínimo inadequado, mas a garantia de que todos tenham uma forma monetária de garantir sua sobrevivência, independentemente de suas limitações para o trabalho e o desemprego. É o caso de pessoas com deficiência, idosos, desempregados, famílias numerosas, famílias desprovidas das condições básicas para sua reprodução social em padrão digno e cidadã (BRASIL, 2004, p. 25).

Observa-se nos documentos normativos que tratam do direito à segurança de renda na assistência socialuma variação da terminologia ‘renda’ (NOBs) e ‘rendimento’ (PNAS). Neste artigo adota-se conscientemente o termo ‘renda’, considerado como o mais adequado ao preceito não contributivo da Política de Assistência Social, portanto, não se concebe ‘renda’ e ‘rendimentos’ como sinônimos. Essa distinção decorre do fato do termo ‘rendimento’ suscitar a ideia de “efeito de render”, ou estar atrelado diretamente às relações de atividades vinculadas ao ingresso pela remuneração do trabalho, seja no campo formal ou informal, seja por representar a capacidade de auto reprodução e valorização do capital, tal como os rendimentos provenientes dos juros e ações do mercado financeiro. Visa-se, em todos esses casos, atribuir o termo ‘rendimento’ à capacidade de produção do lucro, o que não condiz com os princípios protetivos desmercadorizados da Política de Assistência Social, no âmbito da Seguridade Social brasileira.

É expressivo constatar que os benefícios socioassistenciais monetarizados representam, aproximadamente, 95,5% do orçamento nacional financeiro da política de assistência social, enquanto 4,5% dos recursos são direcionados aos serviços socioassistenciais.

Esse contexto revela que a materialidade da atenção da política de assistência social através da provisão de serviços (unidades públicas) e benefícios (eventuais7 ou monetarizados) ocorre, majoritariamente, pelo acesso ao dinheiro, embora esteja excessivamente distante de significar a cobertura por segurança de renda no país.

Apesar do significativo peso da segurança de renda no âmbito orçamentário da política de assistência social, de modo geral, como afirma Amorim (2011, p. 58), a “segurança de rendimentos é [ainda] um desafio posto pela Política de Assistência Social, e se configura um campo e um direito em construção no contexto da institucionalidade desta política”. Neste sentido, a garantia da segurança de renda em seu adensamento legal, é apresentada como um desafio para a ampliação da cidadania, que tenciona, política e economicamente, a definição do campo de atuação da Política de Assistência Social e da Seguridade Social (AMORIM, 2011, p. 55).

Ainda que se reconheça certa ampliação da cobertura de segurança de renda com a expansão dos Programas de Transferência de Renda Condicionados (PTRC), é necessário também ponderar criticamente que essa ampliação na trajetória das políticas sociais apresenta princípios e estruturas de gestão muitas vezes contrastantes eantagônicos à assistência social no patamar de política pública de seguridade social no país, como veremosadiante.

Expressões de desproteção social e insegurança de renda no Brasil: uma breve análise do BPC e PBF

Na trajetória de institucionalização dos benefícios socioassistenciais, os imbróglios no campo da segurança de renda são gerados pela presença de benefícios monetarizados com distintos critérios de acesso, de permanência, de valores, e com arranjos institucionais e gerenciais também diversos.

Este item do artigo visa analisar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e o Programa Bolsa Família (PBF), os dois carros-chefes da proteção social não contributiva no Brasil do ponto de vista monetário, com ênfase em suas expressões de desproteçõessociais e suas principais características decorrentes da precarização/violação da segurança de renda como direito socioassistencial.

O Benefício de Prestação Continuada

No processo de institucionalização da segurança de renda no campo da proteção social o BPC representa um importante avanço na garantia de renda no campo não contributivo da proteção social e assegura uma cobertura praticamente universal de garantia de renda para os idosos no Brasil (IPEA, 2009).

O BPC reduziu de forma abrupta as situações de pobreza e de indigência de pessoa com deficiência e idosos brasileiros e seu impacto é também significativo no enfrentamento à pobreza de seus familiares, pois a renda do BPC compõe, em média, 79% do orçamento dessas famílias e, em 47% dos casos, ela representa a única renda da família (BRASIL, 2010).

Apesar do BPC registrar uma ampliação de cobertura na última década, é importante reconhecer que a atenção de renda a esses segmentos está aquém do seu reconhecimento enquanto necessidade de proteção social. Segundo Vaz (2014) mais de 50% dos requerimentos são indeferidos, expressando desproteções sociais em face das exclusões dos processos seletivos de acesso ao benefício. É de se constatar, ainda, o recorte de gênero desses indeferimentos, pois as mulheres são as maiores vítimas, sobretudo as mulheres com idade mais madura (VAZ, 2014).

Uma resposta a essa desproteção aponta a necessidade de se dar visibilidade a essa lacuna de proteção social da Seguridade Social que coloca milhares de idosos e pessoas com deficiência na condição de invisibilidade, sendo essa demanda desconhecida inclusive por parte do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e da assistência social.

O status de garantia constitucional do BPC, diferente, por exemplo, do PBF, o protege de possíveis ajustes fiscais e políticas econômicas, e é especialmente importante, pois explica os expressivos níveis dejudicialização desse benefício que, consequentemente, atuam ampliando sua cobertura.

Também contribui para a melhoria das condições de vida dos beneficiários o fato do valor do BPC consistir no pagamento de um salário mínimo. Assim, seus beneficiários se favorecem do processo de valorização do salário mínimo acima da inflação e da renda média. Outro fator decorrente é que a linha de elegibilidade do BPC é um quarto de salário mínimo, o que significa que o aumento do mínimo provoca um crescimento vegetativo do BPC.

Apesar da ampla cobertura do BPC, nem todos os brasileiros idosos e com deficiência tem assegurado o direito à segurança de renda, pois o reconhecimento da necessidade por proteção está condicionado à renda per capita da família (1/4 do salário mínimo), o que revela o papel subsidiário do Estado na atenção da necessidade de renda desses segmentos, atuando apenas quando da impossibilidade da família prover. Essa restrição de acesso, medida de forma unidimensional pela renda, é uma expressão de desproteção social que não considera os processos da dinâmica familiar, e significa o desvirtuamento do princípio constitucional que, em vez de concretizar o direito de cidadão, acarreta na própria inversão da cidadania, ao obrigar o requerente a comprovar a miserabilidade, isto é, a não condição de cidadão para fazer jus ao benefício (FLEURY, 2012).

Um passo foi dado no sentido de questionar esse critério estático, mediante uma decisão de 2013, do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inconstitucionalidade do critério de renda per capita para o aferimento da necessidade. O STF confirmou a inconstitucionalidade do parágrafo 3º do artigo 20 da Lei Orgânica da Assistência Social (Lei nº 8.742/1993) que prevê como critério para a concessão de benefício a idosos ou deficientes a renda familiar mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo, por considerar que esse critério está defasado para caracterizar a situação de miserabilidade8. A partir daí se construiu uma oportunidade de “uma avaliação mais qualificada e menos restritiva para substituir o recorte de renda” (VAZ, 2014, p. 47).

Outra variável reveladora de desproteção social refere-se às estruturas e dinâmicas de gestão, pois, embora o BPC configure um avanço na consolidação da segurança de renda como direito socioassistencial, esse benefício tem sido executado pelas agências da previdência social. Essa apartação gerencial à Assistência Social fragiliza sua identidade no que se refere ao seu princípio não contributivo ao ser gerenciado por uma cultura política que opera na lógica contributiva da proteção social.

Ademais, essa forma de gestão do BPC pela Previdência Social indica certo preconceito com a capacidade gerencial da política de assistência social quando se trata da distribuição em massa de benefícios. Isso significa que, “apesar de sua magnitude financeira e seus efeitos positivos aos beneficiários/familiares, o BPC ainda não foi incorporado minimamente na lógica do SUAS” (VAZ, 2104, p.101).

Essa presença do INSS coloca o BPC na mira das propostas de Reforma da Previdência9, que visam aumentar a idade mínima de acesso e a desvincular o valor do benefício ao salário mínimo. Não faltam estudos que concluem que tais medidas, se aprovadas, reduzirão a cobertura, ampliarão a vulnerabilidade de renda de idosos e de pessoas com deficiência e aprofundarão as já abissais desigualdades no país10. Sobre esse perverso impacto no BPC Sposati e Yazbek (2016) questionam:

Qual o sentido em se aplicar aos mais pobres idosos e com deficiência a medida punitiva em ampliar seus anos de miserabilidade? É justo, como proteção social persistir a isenção fiscal e penalizar idosos e pessoas com deficiência. Que economia de vida e civilidade está a se garantir no Brasil ao não respeitar a dignidade humana? (Yazbek, 2016)

Como alerta um grupo de ativistas em defesa do SUAS, essas mudanças não tem coerência com as bases do SUAS e vão na contramão das deliberações da X Conferência Nacional e das metas do II Plano Decenal Nacional de Assistência Social 2016-2026. Enquanto a vontade popular aponta para a redução da idade do idoso para 60 anos, a Reforma da Previdência vem na direção do desmantelamento do BPC. Nessa direção, o BPC vai se transmutando e se desviando de sua concepção de direito de proteção social não contributiva.

Outro ataque severo ao BPC é cometido pelo impacto da aprovada Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 55, que institui um Novo Regime Fiscal (NRF) no âmbito da União para os próximos 20 anos, congelando o Orçamento Geral do Estado brasileiro. As implicações para o BPC imporia:

um comportamento autofágico na provisão da assistência social, “na medida em que o BPC, na sua condição de direito constitucional e obrigatório, pressionará os demais programas assistenciais. A partir daí, este quadro de deterioração das políticas do MDSA se agravará a cada ano, culminando, ou na desconstrução do BPC, ou na destinação de todo o recurso projetado do MDSA (Cenário NRF) para o pagamento de BPC em 2026. Em outras palavras, a partir deste ano, o MDSA não terá recurso suficiente nem mesmo para fazer frente ao pagamento destes benefícios (PAIVA et al., 2016, p. 16).

Além desse contexto de ajuste fiscal, a partir de 2016, observou-se outras medidas institucionais que aproximaram o BPC e seus beneficiários dos serviços socioassistenciais, contudo essa conexão ocorreu baseada numa concepção de assistência social focalizada, condicionada, restritiva e fiscalizatória.

Referimo-nos especialmente as novas regras do BPC, que passa a ser objeto dos procedimentos da atualização, revisão e averiguação cadastral de programas sociais nos Centros de Referências de Assistência Social - CRAS (Instrução Operacional nº79/SENARC/MDS). A lógica imbuída nesse procedimento é a de redução de gastos sociais a qualquer custo, portanto quanto mais enquadramentos dos critérios de acesso, maior é a possibilidade de desligar o cidadão da proteção e a segurança de renda como direito.

Nessa ambiência se cria nos CRAS, o lócus ideal para se investigar a renda dos beneficiários e verificar as condicionalidades de acesso e permanência nos programas sociais, como o próprio documento afirma “as informações referem-se principalmente a divergências entre a renda informada no Cadastro Único e a renda dos benefícios constante nos outros registros”11.

Nesse contexto, os efeitos do desmantelamento do BPC para os cidadãos são nefastos, e as expressões de desproteções sociais se caracterizam pela ampliação da insegurança de renda e o sofrimento de milhões de brasileiros idosos e pessoas com deficiência e, consequentemente, também de seus familiares.

O Programa Bolsa Família

O PBF desde a sua criação em 2004 acumula estudos que comprovam seus impactos políticos e econômicos positivos, além de avanços institucionais e de gestão, e da ampliação de cobertura e investimento. Contudo, a proposta desse artigo priorizará uma análise crítica do programa com o intuito de deflagrar situações de desproteções sociais no campo do direito à segurança de renda.

Em novembro de 2018, o PBF abrangia aproximadamente 14,2 milhões de famílias e o valor do beneficio pago era em média R$ 186,78, e desta informação decorre a primeira análise que permite tecer um cenário de insegurança de renda.

No plano das cifras monetárias para se dimensionar uma situação de desproteção social basta comparar o valor médio do benefício com alguns outros indicadores: esse valor corresponde aproximadamente a 20% do valor do salário mínimo vigente no mesmo período, cotado em R$ 954,00 reais, e é aproximadamente 2,5 vezes menor que a quantidade necessária para se comprar uma cesta básica na capital de São Paulo, com um preço estimado de R$ 451,63 reais, segundo levantamento do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE, 2018). A discrepância fica ainda maior quando comparada ao valor do salário-mínimo necessário para se cumprir o que a CF-1988 estabelece no Brasil, calculado pelo Dieese, orçado em R$ 3.959,98 reais.

A residualidade do valor médio do benefício desvela a pobreza de um benefício para pobrese revela, certamente, uma expressiva característica de desproteção social e insegurança de renda, além de nos impor alguns questionamentos: Por que o mínimo necessário para a sobrevivência de um trabalhador com carteira assinada é maior que o mínimo necessário para “aliviar a pobreza” de milhões de famílias brasileiras? Será possível aliviar a pobreza com um valor inferior ao mínimo necessário para repor as calorias mínimas de existência material?

Assegurar proteção social no campo da segurança de renda seguramente depende crucialmente da valorização do valor do benefício do PBF, e “a ausência de um indexador coloca-o em posição de desvantagem em relação aos demais benefícios que acompanham a valorização do salário mínimo” (IPEA, 2010, p. 371).

Apresenta-se ainda como fator de desproteção social o corte estático de renda per capita que define pobreza (R$ 89,00) e extrema pobreza (R$ 178,00). Aqui, observa-se uma definição de pobreza restrita à condição individual e ainda que o próprio programa reconheça uma certa dimensão multifatorial da situação de pobreza ao pretender garantir vários direitos sociais básicos, sua condição de acesso é definida apenas pela quantidade de dinheiro que uma pessoa possui no mês. A definição desses valores está até mesmo aquém da linha definida pelo Banco Mundial, que utiliza a faixa de U$ 1 dólar por dia como linha de indigência.

Ainda assim, é importante registrar que estar dentro dos critérios exigidos pelo programa não garante o acesso imediato ao programa. Diferente do BPC, o PBF não se constitui ainda um direito legalmente assegurado, o que significa que o preenchimento de todas as condições de elegibilidade não gera automaticamente a concessão do benefício. Essa situação inspira Lavinas (2015, p. 7)a indagar “por que [o PBF] não foi até hoje instituído como direito, ao menos para assegurar cobertura integral ao público-alvo?”.

É também possível apreender lacunas de proteção social no processo de cadastramento das famílias elegíveis através do Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (CadÚnico). O CadÚnico, instrumento de cadastro bastante extenso, representa a institucionalização de um rigoroso teste de meios, expressando o tecnicismo necessário ao trato residual do Estado na gestão das políticas sociais.

É especialmente importante observar que a operacionalização do CadÚnicoé efetuada nos CRAS, evidenciando aquele movimento citado, no quala aproximação da assistência social ocorre à medida que desconfiguram-se seus preceitos constitucionais. Com isso, os CRAS tornaram-se uma grande central de triagem dos brasileiros mais pobres, cadastrando cidadãos para possíveis intervenções de políticas públicas que transcendem, inclusive, o escopo de atenção da política de assistência social, visto que o CadÚnico também é utilizado por outras políticas sociais.

Publicação do IPEA (2015) nos alerta que o crescimento acelerado do CadÚnico sinaliza uma alteração preocupante dos rumos da proteção social no país, poisa medida que as garantias sociais estão condicionadas à pobreza, há o risco de ocorrer um reducionismo no escopo da proteção social no país.

Acompanha esse instrumento de focalização, estratégias de controle e averiguação dos dados cadastrais declarados, com códigos de controle e regras em caso de fraudes e inconsistências cadastrais12.

Ressalta-se aqui a desigualdade no trato do estado brasileiro para com os padrões de segurança de renda de seus cidadãos. Não parece justa a rígida atuação do Estado brasileiro no controle e nos cortes de programas direcionados às famílias em insegurança de renda que declaram uma renda per capita maior que R$ 400 reais, metade do valor que o próprio Estado reconhece ser o “salário mínimo”, enquanto parece fazer vista grossa aos milhões, quase bilhões, sonegados no Brasil anualmente; o legislador brasileiro parece não se interessar empunir de forma séria e severa a sonegação de impostos.

É ainda mais escandalosa a situação instalada em meados de 2018, em que beneficiários do PBF, de forma vexatória e sem explicações adequadas, são convocados a restituírem, por meio de uma Guia de Recolhimento da União (GRU), a vista e em data prefixada, os valores recebidos do PBF. O procedimento indecoroso adotado segue diretamente ao beneficiário, sem que qualquer informe ou orientação seja efetivado aos profissionais que operam o PBF nos Municípios, sem comunicado à população, sem orientação ou debate necessário junto às comunidades de referência do SUAS, sem o alcance do serviço Programa de Atenção Integral à Família (PAIF), e sem informar instâncias de participação e controle social como os Conselhos Municipais de Assistência Social. Esse procedimento,como registra a Representação protocolada à Defensoria Pública da União, não atende criteriosamente aos princípios do contraditório, da ampla defesa, da transparência, da participação social, bem como da máxima proteção aos direitos fundamentais, incluídos aqui os direitos sociais relacionados aos benefícios instituídos por Lei. Ademais, tal carta/cobrança usa de linguagem intimidatória e hermética à linguagem popular, e os recursos de defesa indicados são incompatíveis com a realidade dos beneficiários tolhendo possível reação das famílias atingidas. Ao se dirigir a segmento da sociedade em extrema desproteção e vulnerabilidade social, a Representação aponta, então, que a gestão federal adotou medida restritiva a direitos humanos e sociais com reflexos dramáticos para uma parcela dos beneficiários do PBF.

Nessa ambiência de violações localiza-se também outro eixo estruturante do PBF definidor de situações que expõem milhões de brasileiros a uma espécie de desproteção social institucionalizada, trata-se do sistema de gestão das condicionalidades. Na perspectiva oficial, as condicionalidades são compreendidas como meio de acesso e ampliação de Direitos, no plano real e do cotidiano dos seus beneficiários, as condicionalidades representam nada mais que chancelas que privam milhares de famílias ao direito à segurança de renda.

Está imbuído na lógica de gestão das condicionalidades o modelo de gerenciamento típico do Workfare, que transmuta o beneficiário da condição de passivo para ativo, no sentido de acessar serviços públicos de saúde e educação. Essa lógica de ativação do beneficiário prioriza a lógica de autor responsabilização e retorna a questão da pobreza para o plano moral, uma vez que responsabiliza o beneficiário pelo acato ou não das condicionalidades e se pauta na ideia de que os pobres não podem receber dinheiro sem contrapartida, para não fomentar a dependência e acomodação. Como afirma Maria Ozanira:

Transfere para os pobres não só a responsabilidade pela sua situação de pobreza, mas também atribui a eles a responsabilidade pela superação da denominada pobreza intergeracional, deslocando as determinações da pobreza que decorrem de situações estruturais, expressas pela forma como a sociedade se organiza para produzir e distribuir bens (SILVA, 2016, p. 173).

A gestão das condicionalidades requer sistemas executores de critérios e penalidades com códigos de controles, regras e mecanismos que lhes são próprios. São sistemas altamente informatizados, capazes de operar simbolicamente, o que Monnerat (2007) designa por criação de bons pobres e maus pobres, evidenciando, assim, a figura de pobre merecedor versus o cidadão de direitos.Esse processo é acompanhado, concomitantemente, com um processo de estigmatização das famílias e gera situações onde a vergonha é imposta sob o status de “descumpridor de condicionalidades”.

A natureza burocratizante, tecnicista e controladora da gestão do PBF também favorece a presença de posturas profissionais de caráter humilhante, intrusivo e moralizador na relação com os beneficiários, especialmente nesses casos de descumprimento das condicionalidades. Nesse contexto, “frequentemente se considera o profissional uma espécie de fiscal de rendimentos ou mesmo de examinador de modo de vidas” (HESPANHA, 2012, p. 158).

Os aspectos negativos das condicionalidades também são apreendidos pela ótica dos próprios beneficiários, como demonstra pesquisadores como, por exemplo,Alberini (2010) que ao entrevistar moradoras da favela São Judas, em Guarulhos/SP, percebe no discurso das beneficiárias os aspectos negativos do acompanhamento que se sobrepõem aos positivos esperados no cuidado à saúde. Já Souza (2011, p. 177) conclui que as evidencias sobre o efeito na acumulação de capital humano são muito tênues ou de pouca magnitude.

Em termos de atendimento à saúde, sãomuito presentes as reclamações das beneficiárias sobre o atendimento, o agendamento e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde. Isto corresponde às afirmações de Pinto (2010, p. 96), nas quais “as condicionalidades de saúde, em relação ao acompanhamento materno-infantil são muitas vezes encaradas como metas pelos profissionais de saúde e como mera burocracia para os beneficiários”.

Em termos específico da condicionalidade de educação, Carnelossi e Bernardes (2014) revelam que atribuir uma determinada função à política educacional, não apenas simplifica e desqualifica a especificidade pedagógica da educação, mas tambémcontribui para uma visão reduzida, mascarada e não crítica do problema relativo ao enfrentamento da pobreza no Brasil, revelando uma visão superficial que encobre os conflitos sociais estruturais mais profundos da realidade brasileira.

As condicionalidades do PBF se revelam como a expressão institucionalizada de violação da segurança de renda como direito e sua efetivação nos CRASocorre a medida que a gestão do programa se distancia no topo (plano federal), como demonstra a estrutura organizacional do Ministério que aparta o programa da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) e o aloca na Secretaria Nacional de Renda e Cidadania (SENARC).

Outra ameaça a segurança de renda como direito de proteção se localiza no Novo Regime Fiscal (NRF), revelador de um quadro no qual, em 2026, o PBF será extinto, colocando cerca de 25% da população brasileira em situação de miserabilidade (FNUSUAS, 2016).

A análise crítica aqui exposta, por fim, revela que embora se esteja diante de um programa de imenso alcance social e reconhecimento internacional, vêm sendo adotadas medidas para provocar o desligamento sistemático de famílias beneficiárias pela pratica de atos administrativos de cancelamentos e bloqueios sem avaliação social do impacto dessas medidas nas famílias.

Considerações finais

As recentes decisões políticas relativas aos benefícios socioassistenciaisdistanciamainda mais da institucionalidade de uma segurança de renda como direito de proteção social. Certamente, os caminhos traçados pelo governo brasileiroprecarizam e dificultam novos acessos ao PBF e ao BPC,e significam a desproteção cada vez mais dramática para os segmentos sociais mais pauperizados da sociedade brasileira.

Nesse momento histórico adverso à segurança de renda emerge uma série de expressões de desproteções sociais que revelam formas ultrajantes da necessidade por dinheiro. Assim, as conhecidas práticas de esmolar estão cada vez mais presentes nas ruas e nos equipamentos públicos das cidades, saltando aos olhos como “formas de agressão à vida”, expressando relações de discriminação, exclusão e dominação.

Ademais, a estrutura burocrática de gestão dos benefícios socioassistenciais transforma o acesso à proteção social em uma saga a ser vivida por seus cidadãos. As expressões de desproteção social se manifestam aí por atendimento e esperas enormes no telefone, estado de saúde medidos em números, filas descomunais, serviços públicos lotados, funcionários burocráticos. Uma desumanidade de parte a parte, que reitera uma lógica de mercado na qual a cidadania seesvai. Conclui-se, nesse contexto, que quando se está em pauta a segurança de renda como direito de cidadania as formas de respostas são tão limitadas que não chegam a constituir de fato proteção social.

Material suplementar
Referências
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