Resumo: O presente artigo visa apresentar algumas reflexões sobre o processo de descentralização da política habitacional a partir da experiência do município de Salvador. Fez-se uma análise documental tendo como fontes de dados a Política Nacional de Habitação de 2004, a Lei nº 11.124/2005 que dispõe sobre o Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, o Decreto Municipal 17.105 de 2006 que regulamenta o Fundo Municipal de Habitação e seu Conselho Gestor, a Política e o Plano Municipais de Habitação de 2008. Evidencia-se a disputa de projetos societários distintos na direção da política nacional de habitação.
Palavras-chave:DescentralizaçãoDescentralização,política de habitaçãopolítica de habitação,Constituição Federal de 1988Constituição Federal de 1988,SalvadorSalvador.
Seção livre: O processo de descentralização da política habitacional: a experiência do município de Salvador
O processo de descentralização da política habitacional: a experiência do município de Salvador
Carina de Santana Alves1
Resumo
O presente artigo visa apresentar algumas reflexões sobre o processo de descentralização da política habitacional a partir da experiência do município de Salvador. Fez-se uma análise documental tendo como fontes de dados a Política Nacional de Habitação de 2004, a Lei nº 11.124/2005 que dispõe sobre o Sistema e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, o Decreto Municipal 17.105 de 2006 que regulamenta o Fundo Municipal de Habitação e seu Conselho Gestor, a Política e o Plano Municipais de Habitação de 2008. Evidencia-se a disputa de projetos societários distintos na direção da política nacional de habitação.
Palavras-chave
Descentralização; política de habitação; Constituição Federal de 1988; Salvador.
The process of decentralization of housing policy: the experience of the city of Salvador
Abstract
This article aims to present some reflections on the process of decentralization of housing policy from the experience of the city of Salvador. A documentary analysis was made with the National Housing Policy of 2004, the Law No. 11.124/2005 that provides on the system and the National Housing Fund of Social Interest, the municipal decree 17,105 of 2006 that regulates the municipal fund of housing and its management board, the policy and the municipal housing Plan of 2008. It is evident the dispute of different Societarian projects in the direction of the national housing policy.
Keywords
Decentralization; Housing policy; Federal Constitution of 1988; Salvador.
Artigo recebido: maio de 2019
Artigo aceito: julho de 2019
Introdução
O presente artigo objetiva apresentar algumas reflexões sobre o processo de descentralização da política habitacional a partir da experiência do município de Salvador, Bahia, Brasil. Apresenta-se um breve histórico da política de habitação no país com o objetivo de marcar as principais diferenças que marcam os distintos períodos históricos no que diz respeito à formulação, gestão e execução da referida política. Aponta-se como marco histórico o Banco Nacional de Habitação e a Política Nacional de Habitação de 2004. Em seguida, apresenta-se, em linhas gerais, uma discussão conceitual acerca da descentralização e a Constituição Federal de 1988 como marco desse processo no sistema de proteção social brasileiro, e em particular na referida política setorial. Por fim, apresenta-se como ocorre a adesão do município de Salvador ao Sistema Nacional de Habitação a partir da aprovação da política municipal de habitação e a regulamentação do fundo e do conselho gestor.
A Constituição Federal de 1988 tem sido considerada um marco na vida política do país sob diversos aspectos: quanto aos direitos sociais e políticos, quanto ao sistema de proteção social, quanto à democracia, pacto federativo, etc.. O processo de descentralização das políticas sociais também tem na Constituição de 1988 um marco. Em ritmos, intensidade e abrangências distintas, as políticas de saúde, educação, assistência social, habitação entre outras passaram por reconfigurações com vistas a descentralizar e municipalizar a gestão e operacionalização.
Quais são as especificidades do processo de descentralização da política da habitação a partir da Constituição Federal de 1988? Como esse processo ocorre no município de Salvador? A que se deve o hiato que ocorre entre o marco constitucional e a organização de um sistema nacional descentralizado da referida política setorial? De que forma os distintos projetos sociais em disputa tensionam a direção do processo de descentralização? Essas são algumas questões que motivaram a presente discussão.
Breve histórico da política de habitação no Brasil
A crise da habitação no Brasil, especialmente a partir da década de 1930 com o processo de industrialização/urbanização, crescimento da população urbana com o êxodo rural e o boom imobiliário associado à especulação imobiliária colocou a questão da habitação na agenda política. Silva (1989) aponta que o processo inflacionário e intervenções governamentais como a Lei do Inquilinato de 1942, que estabeleceu o congelamento do valor dos aluguéis, desestimulou a casa de aluguel, modelo habitacional predominante. Nesse sentido, esse processo associado à especulação de terrenos e imóveis urbanos, agravou o quadro habitacional, “[...] estimulando a construção de casas para venda que, via de regra, não eram acessíveis aos trabalhadores de menor poder aquisitivo. Assim sendo, eles são obrigados a recorrer à autoconstrução e à favela” (SILVA, 1989, p. 39).
Uma política de habitação, como intervenção do executivo federal, começou a ser gestada no Governo Vargas, com a aplicação dos recursos dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs) em habitação; e posteriormente com a criação da Fundação Casa Popular, já no Governo Dutra em 1946, considerado o primeiro órgão nacional de habitação voltado para populações de baixa renda. Para Silva (1989), no Governo Vargas a intervenção habitacional era fragmentada e quase simbólica, visto que apenas uma parcela reduzida da força de trabalho disponível estava inserida formalmente no mercado de trabalho. Sobre a atuação da Fundação Casa Popular, a autora analisa que:
[...] orientou-se, em toda a sua trajetória (1946-1964), por uma ação limitada, pulverizada, além de pautar-se pelo clientelismo na decisão de onde construir, e na seleção e classificação dos candidatos. Ao mesmo tempo em que se apresentava tutora e paternal, mostrava-se autoritária na administração dos conjuntos, chegando a interferir no comportamento individual e social dos moradores, transformando-se em verdadeiro instrumento de controle social. (SILVA, 1989, p. 41).
A Fundação Casa Popular foi criada pelo decreto nº 9.218 no âmbito do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, destinada a “proporcionar a brasileiros ou estrangeiros com mais de dez anos de residência no país ou com filhos brasileiros a aquisição ou construção de moradia própria, em zona urbana ou rural”. No entanto, a fundação tornou-se ineficaz “[...] devido à falta de recursos e às regras de financiamento estabelecidas, o que comprometeu o seu desempenho no atendimento da demanda, que ficou restrito a alguns Estados da federação e com uma produção pouco significativa de unidades” (BRASIL, 2004).
No entanto, uma política de habitação de caráter nacional só se efetivou com o Banco Nacional de Habitação (BNH), pois, de acordo com Bonduki (2008, p. 73) apenas com o BNH foi criada uma estrutura institucional de abrangência nacional, constituída pelo banco e uma rede de agentes promotores e financeiros, a viabilização em grande escala das ações necessárias na área habitacional e a previsão de “[...] fontes de recursos estáveis, permanentes e independentes de oscilações políticas”.
Por isso, a criação do BNH, em 21 de agosto de 1964, pela Lei nº 4.380, é considerada um marco na política de habitação por consolidar a instituição de uma política habitacional e órgão gestor de alcance nacional com construção massiva de unidades habitacionais. De acordo com Silva e Tourinho (2015), foram 4 milhões de unidades habitacionais construídas durante o período de vigência do Banco, entre 1964 e 1986.
Bonduki sintetiza o que foi o BNH:
O Banco Nacional de Habitação, criado após o golpe em 1964, foi uma resposta do governo militar à forte crise de moradia presente num país que se urbanizava aceleradamente, buscando, por um lado, angariar apoio entre as massas populares urbanas, segmento que era uma das principais bases de sustentação do populismo afastado do poder e, por outro, criar uma política permanente de financiamento capaz de estruturar em moldes capitalistas o setor da construção civil habitacional, objetivo que acabou por prevalecer. (BONDUKI, 2008, p. 72).
Nessa mesma direção, Silva (1989) chama a atenção para que a análise da trajetória da política habitacional brasileira precisa considerar a conjuntura política e econômica do país, os interesses antagônicos em disputa e a necessidade de legitimação política. Por isso mesmo a autora considera a criação do BNH como uma tentativa de “[...] o Estado autoritário brasileiro conciliar a necessidade de sua legitimação perante a sociedade, para justificar as ‘boas intenções’ que o levaram ao golpe de 1º de abril de 1964, e às necessidades das massas populares, de um lado, e do desenvolvimento econômico, de outro” (SILVA, 1989, p. 48).
O BNH é marcado por um modelo institucional fortemente centralizado e uniformizado em todo o território nacional. Estava subordinado ao Ministério da Fazenda e tinha como finalidade orientar, disciplinar e controlar o sistema financeiro de habitação. Bonduki (2008) ressalta que os pressupostos de gestão que orientavam o BNH eram rígidos e centralizados, marcada por uma administração autoritária; pela inexistência de participação na concepção dos programas e projetos, pela falta de controle social na gestão dos recursos; pela adoção da casa própria como única forma de acesso à moradia e pela ausência de estratégias para incorporar a processos alternativos de produção da moradia.
Os recursos que sustentavam o BNH advinham do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) criado em 1967 e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos (SBPE), volume financeiro que fez o BHN se “[...] transformar, em pouco tempo, no segundo maior banco do país” (SILVA, 1989, p. 53).
Há um consenso entre os analistas ao considerar que, do ponto de vista quantitativo os resultados alcançados pelo sistema foram expressivos, tanto do ponto de vista da construção de unidades habitacionais, como na expansão de redes de água e esgoto. No entanto, de acordo com Bonduki (2008) a produção habitacional, apesar de relevante, foi insuficiente para atender a demanda por habitação decorrente do processo de urbanização ocorrido. Além do mais, o foco na produção de novas unidades habitacionais a partir do sistema formal da construção civil, com uma clara difusão da ideologia da casa própria (SILVA, 1989), não levou em conta processos alternativos e a capacidade organizativa das comunidades, tendo em vista o processo de urbanização informal que marca as cidades brasileiras, nem considerou outras formas de resolver o problema habitacional.
Nesse sentido, o modelo adotado pelo BNH favoreceu a construção civil e excluiu parcelas da população de rendas mais baixas do acesso à política habitacional. Botega (2008, p. 7) corrobora com essa análise quando diz que o BNH era na verdade, “[...] um eficaz agente de dinamização da economia nacional desempenhando um importante papel junto ao capital imobiliário nacional, fugindo do seu objetivo principal, pelo menos o que era dito, de ser o indutor das políticas habitacionais para superação do déficit de moradia”.
A crise econômica a partir da década de 1980 teve repercussões no BNH, diminuindo o número de financiamentos e aumento da inadimplência. As críticas ao caráter financeiro da política de habitação se articularam às lutas democráticas contra o regime militar, que teve fim em 1985, levando à extinção do BNH em 1986. A extinção do BNH representou a extinção de uma política efetivamente nacional de habitação, conforme ressalta Bonduki (2008, p. 75):
Com o fim do BNH, perdeu-se uma estrutura de caráter nacional que, mal ou bem, tinha acumulado enorme experiência na área, formado técnicos e financiado a maior produção habitacional da história do país. A política habitacional do regime militar podia ser equivocada, como já ressaltamos, mas era articulada e coerente. Na redemocratização, ao invés de uma transformação, ocorreu um esvaziamento e pode-se dizer que deixou propriamente de existir uma política nacional de habitação.
No período entre a extinção do BNH, em 1986, a criação do Ministério das Cidades, em 2003, e a instituição de uma nova política nacional de habitação, em 2004, não houve uma estratégia nacional de enfrentamento do problema habitacional, apenas experiências isoladas de estados e municípios e programas habitacionais financiados por fontes alternativas.
Veremos a seguir como a Constituição Federal de 1988 foi determinante no processo de descentralização das políticas sociais, no entanto, quanto à habitação mudanças efetivas só acontecem após a promulgação do Estatuto da Cidade, em 2001, a criação do Ministério das Cidades, em 2003, e a retomada de uma política nacional de habitação, em 2004.
Constituição Federal de 1988, descentralização das políticas sociais e da política habitacional em especial
Arretche (1999, p. 112) afirma que o processo de descentralização das políticas sociais no Brasil vem se realizando em condições institucionais distintas daquelas em que se constituiu o nosso Sistema de Proteção Social nas décadas de 1960 e 1970. Isso porque, ao longo dos anos 1980, especialmente pós Constituição Federal de 1988, foram recuperadas as bases federativas do Estado brasileiro, ou seja, “[...] estados e municípios passaram a ser, de fato, politicamente autônomos”. Diferentemente do que ocorria durante o regime militar, quando “[...] as relações intergovernamentais do Estado brasileiro eram, na prática, muito mais próximas às formas que caracterizam um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações”; falta de autonomia política e centralização financeira na esfera federal.
O Sistema de Proteção Social Brasileiro se consolidou a partir do Estado com as referidas características: centralização financeira e administrativa. As políticas de habitação e saneamento, por exemplo, “[...] eram formuladas, financiadas e avaliadas por uma agência federal e executadas por uma série de agências locais dela dependentes” (ARRETCHE, 1999, p. 114).
No Brasil pós ditadura militar, conforme destaca Heidrich (1999), o processo de descentralização das políticas sociais representava uma possibilidade de democratização, favorecendo o controle da administração pública pela população em âmbito local. No entanto, esse processo não é isento de contradições. Na mesma medida em que representou o anseio por democratização e partilha de poder, por outro lado favoreceu o apaziguamento diante da crise econômica do Estado. Assim, a descentralização é disputada por dois blocos antagônicos: “[...] coalizões liberais/conservadoras enfatizam os aspectos relativos a ganhos de eficiência e de redução do setor público; coalizões social-democratas, por outro lado, privilegiam os aspectos relativos ao controle social e democratização da gestão local” (HEIDRICH, 1999, p. 84).
O processo de redemocratização, com a retomada das eleições diretas para estados e municípios e a descentralização fiscal a partir da Constituição Federal de 1988 alteraram as relações intergovernamentais. Estados e municípios retomam a autoridade política derivada do voto popular, autoridade fiscal diante da transferência automática de recursos da esfera federal para os municípios e autoridade tributária sobre impostos (ARRETCHE, 1999).
No capítulo I, da organização político-administrativa do título III, da organização do Estado, a Constituição Federal de 1988 estabelece que estados e municípios são autônomos. Entre as competências comuns entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, a Constituição estabelece, no artigo 23, entre outras coisas: promover programas de construção de moradias e a melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico. Em seu artigo 29 estão enumeradas as competências dos municípios: legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; entre outras (BRASIL, 1988).
O artigo 156 da Carta Magna estabelece os impostos que competem aos municípios instituir, dentre os quais: sobre propriedade predial e territorial urbana, serviços de qualquer natureza, vendas a varejo de combustíveis líquidos e gasosos. Já os artigos 157 e 158 tratam da repartição das receitas tributárias com os estados, Distrito Federal e municípios definindo as porcentagens e os tipos de impostos dos quais serão repassados da União para os demais entes federados.
A descentralização das políticas sociais pressupõe a municipalização, como forma de levar os serviços para mais próximo da população. Os municípios, portanto, ganham importância na estrutura federativa brasileira. Lembramos mais uma vez, entretanto, com a ajuda de Heidrich (1999, p. 85), a contradição inerente a esse processo:
Essas novas funções atribuídas aos municípios podem ter uma dupla conotação, dependendo o lado pelo qual observamos. Podem, primeiramente, representar um avanço da democracia, pois descentralizando o poder, multiplicam-se as oportunidades do controle, da proposição e da fiscalização das políticas públicas por parte da população. Por outro lado, entretanto, pode ocorrer que a descentralização facilite a prática clientelista (aquela que lida com as políticas sociais como favores) (Heidrich, 1999, p. 85).
O processo de descentralização das políticas sociais significa, de acordo do Arretche (1999, p. 114), que estados e municípios “[...] assumem funções de gestão de políticas públicas ou por própria iniciativa, ou por adesão a algum programa proposto por outro nível mais abrangente de governo, ou ainda por expressa imposição constitucional”. A autora chama a atenção, portanto, para que agora, enquanto efetivamente um Estado federativo, não há mais mecanismos de alinhamento dos governos locais, como a centralização do regime militar. Isso significa que os estados e/ou municípios devem aderir às novas atribuições no que diz respeito à gestão e execução das políticas sociais, mediante indução por parte da União. Os estados e municípios devem avaliar os custos e benefícios fiscais e políticos e, por outro lado, os recursos fiscais e administrativos de que dispõem para assumir a gestão de determinada política.
Outro fator importante destacado pela autora são as barganhas políticas e competição eleitoral que tendem a estimular conflitos intergovernamentais. Arretche esclarece que:
No caso brasileiro, a responsabilidade pública pela gestão de políticas sociais passou a ser um dos elementos da barganha federativa. Dadas as dimensões da pobreza brasileira e, portanto, da população-alvo dos programas sociais, a gestão de políticas sociais em nosso país tende a ser simultaneamente cara e inefetiva, na medida em que tende a consumir um elevado volume de recursos e apresentar baixos níveis de proteção efetiva. Neste caso, nas situações em que os custos políticos e/ou financeiros da gestão de uma dada política forem avaliados como muito elevados, a barganha federativa consiste em buscar atribuí-los ou imputá-los a um outro nível de governo. (ARRETCHE, 1999, p. 115).
No que diz respeito à política habitacional, conforme mencionamos no item anterior, com a extinção do BNH, foi instituído um vazio no que diz respeito a uma política habitacional de caráter nacional, apenas algumas iniciativas isoladas de estados e municípios. Para Bonduki (2008, p. 77), esse período de transição pós-BNH foi marcado por uma transferência progressiva das atribuições para estados e municípios “[...] tendo-se como marco a Constituição de 1988, que tornou a habitação uma atribuição concorrente dos três níveis de governo”.
Os movimentos populares por moradia foram determinantes para a ampliação da participação dos municípios na questão da habitação, acentuando a tendência de descentralização da política habitacional. Em contraposição à centralização característica do BNH, o processo de democratização favoreceu a emergência do poder local como principal interlocutor na formulação e implementação de políticas e programas sociais, tendo em vista a proximidade com as demandas da população.
Neste quadro, emerge um amplo conjunto de experiências municipais de habitação de interesse social, realizadas a partir da redemocratização do país. Depois do período de centralização e homogenização da forma de intervenção na habitação social, ocorre, nas esferas municipal e estadual, uma fase de atomização de experiências, com grande heterogeneidade, marcada pela diversidade de iniciativas, mas pouco articulada em decorrência da ausência de uma política nacional. (BONDUKI, 2008, p. 77).
Destacam-se, nesse lapso temporal entre pós-BNH e política nacional de habitação de 2004, alguns eventos importantes, tais como a Política Nacional de Habitação de 1996, 2ª Conferência das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (Habitat II), o Pró-moradia, voltado pra urbanização de áreas precárias e o Programa de Arrendamento Residencial (PAR) voltado à produção de unidades novas para arrendamento, criado em 1999. Com exceção do Pró-moradia, paralisado em 1998, as demais iniciativas, pela mesma característica financeira, não conseguiram interferir no déficit habitacional, especialmente entre as faixas mais baixas de renda (BONDUKI, 2008).
Em que pese os avanços em termos de direitos sociais conquistas na Constituição Federal de 1988, a implementação do ajuste fiscal orientado pela política neoliberal a partir da década de 1990, especialmente no Governo Fernando Henrique Cardoso (FHC), impôs limites à intervenção governamental no sentido de incidir sobre o déficit habitacional nos segmentos de baixa renda. O neoliberalismo, como resposta à crise capitalista pós década de 1970, como ideologia e prática articulada à mundialização financeira e a reestruturação produtiva, propunha um Estado forte para quebrar o poder os sindicatos com a flexibilização dos direitos trabalhistas e sociais e para implementar a estabilização monetária, a qualquer custo, e um Estado parco em relação aos gastos sociais (ANDERSON, 1995).
Mustafá et al. (2018, p. 417) apontam a contradição entre o ideário neoliberal e o princípio da justiça social, numa perspectiva ontológica, dado o “[...] ataque frontal às políticas sociais e uma desconstrução do papel do Estado [...]” promovidos pelo neoliberalismo, colocando em xeque algumas importantes conquistas das lutas populares representadas no Constituição Federal de 1988. Nessa direção, as autoras apontam o caráter antidemocrático do neoliberalismo, tomada uma concepção de democracia como socialização da política e dos mecanismos de poder e a socialização dos meios de produção e da riqueza produzida socialmente. A participação dos sujeitos políticos, portanto, numa perspectiva neoliberal, reduz-se ao direito ao voto.
O capítulo “Da política urbana” da Constituição Federal de 1988, fruto das lutas do Movimento pela Reforma Urbana desde a década de 1970 – ao lado de outros diversos movimentos sociais que convergiram para o processo de redemocratização e pela constituinte, só foi efetivamente regulamentado em 2001 com a promulgação do Estatuto da Cidade, ainda no Governo FHC. Mas é apenas no Governo Lula que uma política habitacional de caráter nacional é retomada, com a criação do Ministério das Cidades, em 2003 e com a Política Nacional de Habitação de 2004.
O Estatuto da Cidade foi um importante capítulo na construção de uma nova política nacional de habitação na medida em que reconhece a cidade informal e disponibiliza uma série de instrumentos que visam incidir sobre a dinâmica de produção do espaço da cidade, “[...] resultando em uma gestão social da cidade, de forma mais justa e redistributiva” (GORDILHO-SOUZA, 2001, p. 2).
A Política Nacional de Habitação de 2004 afirma, em consonância com a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Cidade, a habitação como um direito do cidadão e a garantia da função social da propriedade, com o objetivo de “[...] promover as condições de acesso à moradia digna a todos os segmentos da população, especialmente o de baixa renda [...]” (BRASIL, 2004, p. 29). O documento estabelece ainda uma série de instrumentos através dos quais a referida política será viabilizada, entre os quais: o Sistema Nacional de Habitação, que inclui o subsistema da Habitação de Interesse Social, o Plano Nacional de Habitação e o Sistema de Informação, Avaliação e Monitoramento.
Bonduki (2008) avalia que é visível o empenho do Governo Lula para viabilizar uma nova política urbana e habitacional. Sobre a criação do Ministério das Cidades, a autora pontua:
O Ministério das Cidades foi criado com o caráter de órgão coordenador, gestor e formulador da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, envolvendo, de forma integrada, as políticas ligadas à cidade, ocupando um vazio institucional e resgatando para si a coordenação política e técnica das questões urbanas. Coube-lhe, ainda, a incumbência de articular e qualificar os diferentes entes federativos na montagem de uma estratégia nacional para equacionar os problemas urbanos das cidades brasileiras, alavancando mudanças com o apoio dos instrumentos legais estabelecidos pelo Estatuto das Cidades. (BONDUKI, 2008, p. 96).
Apesar de ser o Ministério das Cidades o principal responsável pela gestão da política habitacional, a Caixa Econômica Federal, enquanto agente financeiro dos recursos do FGTS, continua incidindo com maior poder sobre a operacionalização da política.
Outro elemento fundamental na construção de uma nova política habitacional (e urbana) foi a construção do Conselho Nacional das Cidades da primeira Conferência Nacional das Cidades, em 2003, que, de acordo com Bonduki (2008) se deu de forma participativa, de baixa pra cima, mobilizando 3.457 municípios que realizaram a conferência municipal e as conferências estaduais em 26 estados. “As conferências possibilitaram o início da construção de uma verdadeira política nacional para as cidades, ou seja, uma política não-limitada à ação do governo federal, mas capaz de envolver o conjunto de instituições públicas e privadas, relacionadas com a questão urbana” (BONDUKI, 2008, p. 97).
Os princípios da política nacional de habitação explicitam a perspectiva intersetorial ao propor a articulação da política de habitação com a política urbana e de saneamento, além da gestão democrática e controle social: moradia digna como direito e vetor de inclusão social garantindo padrão mínimo de habitabilidade, infraestrutura, saneamento ambiental, mobilidade, transporte coletivo, equipamentos, serviços urbanos e sociais; função social da propriedade urbana buscando implementar instrumentos de reforma urbana a fim de possibilitar melhor ordenamento e maior controle do uso do solo, de forma a combater a retenção especulativa e garantir acesso à terra urbanizada; questão habitacional como uma política de Estado uma vez que o poder público é agente indispensável na regulação urbana e do mercado imobiliário, na provisão da moradia e na regularização de assentamentos precários, devendo ser, ainda, uma política pactuada com a sociedade e que extrapole um só governo; gestão democrática com participação dos diferentes segmentos da sociedade, possibilitando controle social e transparência nas decisões e procedimentos; e articulação das ações de habitação à política urbana de modo integrado com as demais políticas sociais e ambientais.
O Sistema Nacional de Habitação é considerado o principal instrumento da política nacional de habitação, pois estabelece as bases do desenho institucional da política, propõe a integração entre os três níveis de governo numa atuação descentralizada e define as regras de articulação financeira para implementação da política. O Conselho das Cidades, o Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, os Conselhos Estaduais, do Distrito Federal e Municipais, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social, os Fundos Estaduais e Municipais de Habitação de Interesse Social e os agentes financeiros compõem a instância de gestão e controle do Sistema Nacional de Habitação articulada e integrada ao Ministério das Cidades.
Em 2005, a lei nº 11.124 regulamenta o Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e o Conselho Gestor com o objetivo de viabilizar à população de baixa renda acesso à moradia digna e à terra urbanizada, de forma articulada entre os três níveis de governo e com as demais políticas setoriais urbana, ambiental e de inclusão social.
Para aderir ao sistema, estados e municípios devem, conforme estabelece a referida lei: constituir fundo, com dotação orçamentária própria, destinado a implementar Política de Habitação de Interesse Social e receber os recursos do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social; constituir conselho que contemple a participação de entidades públicas e privadas, bem como de segmentos da sociedade ligados à área de habitação; apresentar Plano Habitacional de Interesse Social, considerando as especificidades do local e da demanda; firmar termo de adesão ao sistema; elaborar relatórios de gestão; e observar os parâmetros e diretrizes para a concessão de subsídios no âmbito do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social.
Posto isso, trataremos em seguida de como se processou a adesão do município de Salvador à Política Nacional de Habitação de 2004 com a integração ao Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social.
A descentralização da política de habitação no município de salvador
Com população estimada em 2,8 milhões de habitantes em 2018, Salvador é a quarta maior cidade do Brasil em população. Primeira capital do Brasil e um dos mais antigos centros urbanos da América Latina, o processo de crescimento de Salvador e o problema habitacional se assemelham ao dos grandes centros urbanos do país. Até o século XX, a estrutura fundiária da cidade estava baseada em arrendamentos de terras públicas e privadas. No centro histórico, imóveis voltados para aluguéis, transformam-se em cortiços, alternativa habitacional para populações de renda mais baixa, com a saída das famílias abastadas para outras zonas da cidade. A partir da década de 1940 amplia-se o fluxo populacional vindo do campo para a cidade em busca de emprego. Becos e casas de avenida são alternativas habitacionais para essa população. Com o aumento da demanda, o crescimento do preço dos aluguéis torna essa alternativa habitacional inviável, especialmente para as populações mais pobres. De acordo com Gordilho-Souza (2001, p. 66), essa situação será “[...] ‘resolvida’ pelo desbloqueio das áreas periféricas de arrendamento, através das ocupações coletivas do tipo ‘invasão’, denominação que será amplamente utilizada para esse tipo de habitação, intensificada a partir de então”.
Esse duplo movimento de maneira articulada: rompimento do sistema de aluguel, com o crescimento dos valores cobrados e as ocupações coletivas de terras nas periferias; resulta na ampliação da possibilidade da casa própria a partir, especialmente, da produção informal. “Essas ‘soluções’ foram oferecidas pelo mercado clandestino ou mesmo conquistadas pelas populações pobres, mantendo-se como alternativa habitacional paralela aos circuitos do mercado formal, até os dias atuais” (GORDILHO-SOUZA, 2001, p. 67).
A cidade cresceu, no século XX, para atingir um ambiente construído fisicamente complexo, caótico, maltratado, de desrespeito aos recursos naturais e às possibilidades dos recursos urbanísticos para benefício da coletividade – uma cidade sem cidadania –, cidade dividida, segmentada entre ricos e pobres e entre cidadãos e não-cidadãos. Enfim, um quadro de difícil intervenção para sua melhoria, que desafia novas formas de pensar e de atuar tecnicamente. (GORDILHO-SOUZA, 2001, p. 83).
Diante desse diagnóstico, a autora considera a necessidade de uma política habitacional que considere não apenas a produção de novas unidades habitacionais, mas com atuação efetiva, sobretudo, voltadas para a qualificação das áreas de ocupação informal. De acordo com dados da Fundação João Pinheiro, o déficit habitacional total da Região Metropolitana de Salvador é de 141.274 unidades habitacionais, dos quais 6.047 são relativos a habitação precária, 55.517 coabitação familiar, 73.913 ônus excessivo com aluguel e 5.797 por adensamento excessivo.
A atuação pública municipal diante do problema habitacional foi historicamente marcada pela ação higienista, contribuindo para intensificar o processo de segregação socioespacial, fixando regras urbanísticas que não poderiam ser cumpridas pelas populações pobres. No governo Vargas, foram produzidas unidades habitacionais no município via Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), no entanto, a quantidade foi ínfima, além de atender apenas segmentos das camadas médias da população, trabalhadores inseridos formalmente no mercado de trabalho. Na década de 1960 foram realizadas algumas ações isoladas na produção de lotes urbanizados. Em nível municipal, o BNH também se constitui como um marco. A partir dele foi criada a Habitação e Urbanização da Bahia (URBIS), que promoveu a construção de 46 mil unidades habitacionais em Salvador. “Mas, na prática, voltou-se predominantemente para a faixa de renda entre três e cinco salários mínimos, na qual havia capacidade de retorno dos financiamentos” (SALVADOR, 2008).
As iniciativas voltadas para as populações de renda mais baixa foram avaliadas como aquém das metas estabelecidas. Do ponto de vista da estrutura institucional municipal, em 2001 foi criada a Secretaria Municipal da Habitação (SEHAB). De acordo com o Plano Municipal de Habitação 2008-2025, entre 2001 e 2004 a SEHAB desenvolveu ações à regularização fundiária.
Neste período, “a Coordenadoria de Regularização Fundiária da Secretaria Municipal de Habitação cadastrou mais de 85 mil imóveis para fins de regularização, sendo que 66.155 (77,7%) foram deferidos. Os investimentos do programa em 2003 e 2004 totalizaram um valor na ordem de R$ 1,4 milhão” (SALVADOR, 2008, p. 24).
De acordo com Baltrusis et al. (2017), o município de Salvador foi pioneiro na implementação da nova Política Nacional de Habitação num cenário de conflitos e coexistência do projeto neoliberal e dos ideais da reforma urbana. Em consonância com as diretrizes do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social, regulamentado em 2005, a adesão do município de Salvador se deu a partir da criação do Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social, o Conselho Gestor e o Plano Municipal de Habitação, entre 2006 e 2008.
Tal pioneirismo se deve, segundo os autores, em alguma medida, à presença da professora doutora Angela Maria Gordilho Souza na Secretaria Municipal de Habitação devido a sua histórica atuação em defesa do direito à moradia e da articulação com os movimentos sociais, a partir da qual foi viabilizada sua gestão na pasta.
Apesar da criação do Fundo Municipal de Habitação datar de 2002, a regulamentação só ocorre em 2006, com o decreto nº 17.105. Segundo o regulamento, o fundo tem como objetivo “centralizar recursos destinados à política habitacional de interesse social de forma a contribuir para a redução do déficit habitacional e melhoria das condições habitacionais de assentamentos populacionais de baixa renda”, através da produção de novas unidades habitacionais, recuperação de assentamentos precários, viabilização de aquisição de materiais de construção, locação social ou arrendamento, financiamento para a construção de equipamentos comunitários, assistências técnica e jurídica à população de baixa renda e projetos de melhoria da qualidade habitacional.
O mesmo decreto também regulamenta o Conselho Gestor do Fundo Municipal de Habitação, de caráter deliberativo, fiscalizador e consultivo, com o objetivo básico de aplicar os recursos do fundo, acompanhar, controlar e avaliar a Política Municipal de Habitação. Trinta e dois membros compõem o conselho de forma paritária entre a sociedade civil e o poder público.
Além da regulamentação do fundo e do conselho gestor, uma nova política municipal de habitação foi construída e incorporada ao Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano no município de Salvador e um Plano Municipal de Habitação 2008-2025, contemplando as diretrizes do sistema nacional e habilitando o município a receber os recursos provenientes do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.
O referido plano compõe a Política Municipal de Habitação de Interesse Social que tem como objetivos viabilizar acesso à terra urbanizada pela população de menor renda, estimular a autogestão na implementação dos projetos, garantir o melhor aproveitamento da infraestrutura instalada e equipamentos urbanos, oferecer condições para a participação da sociedade no exercício do controle social da política habitacional e viabilizar atuação articulada e integrada com os demais níveis de governo para fortalecer a ação do município (SALVADOR, 2008).
Para atender aos objetivos estabelecidos, são definidos alguns programas no âmbito da Política de Habitação de Interesse Social do município: Programa de produção de unidades habitacionais novas; Programa de urbanização de assentamentos precários; Regularização fundiária das áreas ocupadas; Requalificação de edificações de cortiços e moradias coletivas; e Melhoria das condições de habitabilidade de moradias.
Em que pese os avanços do processo assinalado na realidade municipal, em consonância com o novo ordenamento jurídico e a nova política nacional de habitação, que apontavam na direção de solucionar o problema habitacional brasileiro, especialmente entre os segmentos mais pobres da população, numa perspectiva de construção de cidades mais justas, como já pontuamos anteriormente, a agenda de ajustes neoliberais impõe limites à agenda de direitos e justiça social.
O capital imobiliário “vence” a disputa pela produção do espaço urbano das cidades com a implementação do Programa Minha Casa Minha Vida em 2009, considerado por Rolnik (2015) uma medida anticíclica para conter os efeitos da crise financeira mundial no setor da construção civil. A indústria da construção civil precisava de um programa de baixo custo, que representasse menor risco e com garantia de retorno a partir de subsídios do governo para famílias de baixa renda.
Batizado, então, de Minha Casa Minha Vida (MCMV) pela área de marketing do governo, o programa deveria se transformar na mais importante ação no campo econômico-social, articulando a oferta de moradia, demanda histórica e ativo eleitoral tradicionalmente forte, em uma estratégia keynesiana de crescimento econômico e geração de empregos. (ROLNIK, 2015, p. 301).
O Programa Minha Casa Minha Vida se tornou o principal programa no âmbito da Política Nacional de Habitação, com uma lógica de reforço ao urbanismo segregador e excludente através da construção de empreendimentos habitacionais, voltados para a população da faixa de renda mais baixa, nas periferias das cidades em área carente de infraestrutura e serviços básicos, terrenos mais baratos e, portanto, mais interessantes para as construtoras. Nos dizeres de Rolnik, trata-se da produção de “não cidades”.
Baltrusis et al. (2017) apontam que no município de Salvador foram entregues 13.516 unidades para a faixa 01 (de zero a três salários mínimos) do Programa Minha Casa Minha Vida até o ano de 2016. A maioria desses empreendimentos está localizada na periferia da cidade, reforçando a lógica de segregação socioespacial. Além disso, em que pese a previsão de programas voltados para a requalificação de edificações e moradias coletivas no plano municipal de habitação, os possíveis beneficiários desses programas foram alocados em empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida na periferia da cidade. Assim, os autores avaliam que “[...] a implementação pioneira do Plano Municipal de Habitação não se efetivou, viu-se desenvolver um modelo de gestão territorial voltado aos interesses do capital imobiliário [...]” (BALTRUSIS et al., 2017, p. 9).
A avaliação dos autores se torna ainda mais contundente quando se observa como se processou a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) do município em 2016. O novo PDDU foi considerado pelos movimentos sociais como higienista e racista, que desconsidera questões importantes de interesse coletivo e privilegia os interesses do capital imobiliário. Além disso, especialistas apontaram o questionável processo de participação para a formulação do plano, a falta de clareza quanto aos instrumentos urbanísticos, descumprindo diretrizes do Estatuto das Cidades, o potencial impacto ambiental negativo, perspectiva de mobilidade urbana centrada no modelo rodoviarista centrado no carro. Em síntese, verifica-se o predomínio de uma gestão corporativa voltada para os interesses do mercado imobiliário.
Considerações finais
Uma política habitacional de caráter efetivamente nacional no Brasil tem como marco o BNH criado em 1964, durante a ditadura militar. Com o BNH foi criada uma estrutura institucional de abrangência nacional, marcada pela gestão fortemente centralizada e uniformizada, administração autoritária e falta de participação e controle social. Apesar do expressivo número de unidades habitacionais construídas no seu período de vigência, em termos qualitativos, o BNH foi considerado insuficiente para atender à demanda habitacional, especialmente entre as camadas mais pobres da população, onde está predominantemente concentrado o déficit habitacional do país; além do predomínio da construção de novas unidades habitacionais em detrimento de outras alternativas para responder ao problema habitacional.
Com a crise a partir da década de 1980, reduziu-se significativamente o número de financiamentos pelo BNH e aumentou o índice de inadimplência. O banco foi extinto em 1986 e até 2004, data da instituição da nova política nacional de habitação, não houve uma estratégia nacional contundente para a resolução da questão habitacional.
A Constituição Federal de 1988 retoma as bases do estado federativo, assim, estados e municípios tornam-se efetivamente autônomos do ponto de vista político (com a retomada das eleições diretas) e financeiro (com a autoridade sobre impostos específicos e a transferência automática de recursos da esfera federal).
O processo de descentralização das políticas sociais, que tem na Constituição de 1988 um marco, é legatário das lutas contra a ditadura militar e pela democratização do país. Representa a possibilidade de ampliação do poder local no planejamento e execução das políticas sociais. No entanto, é um processo contraditório e disputado por projetos societários distintos.
No que diz respeito à política habitacional, os movimentos por moradia foram fundamentais na ampliação da participação dos municípios, favorecendo o processo de descentralização. O novo ordenamento jurídico acerca da política habitacional (e urbana) pós Constituição Federal de 1988, se consolida com a promulgação do Estatuto das Cidades (2001), a criação do Ministério das Cidades (2003) e da Política Nacional de Habitação (2004).
Além disso, é criado o Sistema Nacional de Habitação, principal instrumento da política nacional de habitação, que estabelece as bases do desenho institucional da política, com a integração entre os três níveis de governo de forma descentralizada. De forma pioneira no país, o município de Salvador adere ao novo sistema com a criação do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social e seu conselho gestor e o plano e a política municipais de habitação. Essa adesão deve-se a fatores políticos locais e pressão dos movimentos sociais por moradia no município, no entanto, ocorre em contexto macrossocietário adverso, de voga neoliberal e apropriação do espaço da cidade para favorecimento dos interesses do capital imobiliário.