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Seção livre: A práxis “integral” de Gramsci frente ao atual processo de desintegração
Giovanni Semeraro
Giovanni Semeraro
Seção livre: A práxis “integral” de Gramsci frente ao atual processo de desintegração
O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 349-366, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
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Resumo: Ao chamar a atenção sobre a conexão do conceito de “práxis” com “integral”, adjetivo recorrente nos escritos de Gramsci, neste texto resgata-se uma proposta de sociedade que combate toda forma de mutilação e desintegração humana, social e ambiental operada pela mais destruidora ofensiva desferida pelo ultraliberalismo, que concentra um inaudito poder econômico, militar e midiático e combina de forma letal pilhagem financeira, destruição das instituições públicas, fundamentalismo religioso e Estado policial. Em contraposição com este processo que atomiza, descarta e aniquila, nos escritos de Gramsci se evidenciam os elementos que apontam para a necessidade de inaugurar “uma nova fase da história humana” e a proposta concreta de criar uma nova civilização construída pelo protagonismo das classes populares que almejam uma concepção integral de mundo e lutam pelo desenvolvimento de todas as componentes e potencialidades do ser humano. Desta forma, a “práxis integral” desenhada por Gramsci adquire tanto mais atualidade frente ao quadro de degradação que golpeia o Brasil e aponta horizontes para enfrentar as chocantes desigualdades com a realização da democracia “integral” que passa pela socialização do poder econômico, politico e cultural e instaura a efetiva soberania do poder popular.

Palavras-chave:GramsciGramsci,PráxisPráxis,Formação integralFormação integral.

Carátula del artículo

Seção livre: A práxis “integral” de Gramsci frente ao atual processo de desintegração

Giovanni Semeraro
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
O Social em Questão, vol. 22, núm. 45, pp. 349-366, 2019
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

A práxis “integral” de Gramsci frente ao atual processo de desintegração1

Giovanni Semeraro2

Resumo

Ao chamar a atenção sobre a conexão do conceito de “práxis” com “integral”, adjetivo recorrente nos escritos de Gramsci, neste texto resgata-se uma proposta de sociedade que combate toda forma de mutilação e desintegração humana, social e ambiental operada pela mais destruidora ofensiva desferida pelo ultraliberalismo, que concentra um inaudito poder econômico, militar e midiático e combina de forma letal pilhagem financeira, destruição das instituições públicas, fundamentalismo religioso e Estado policial. Em contraposição com este processo que atomiza, descarta e aniquila, nos escritos de Gramsci se evidenciam os elementos que apontam para a necessidade de inaugurar “uma nova fase da história humana” e a proposta concreta de criar uma nova civilização construída pelo protagonismo das classes populares que almejam uma concepção integral de mundo e lutam pelo desenvolvimento de todas as componentes e potencialidades do ser humano. Desta forma, a “práxis integral” desenhada por Gramsci adquire tanto mais atualidade frente ao quadro de degradação que golpeia o Brasil e aponta horizontes para enfrentar as chocantes desigualdades com a realização da democracia “integral” que passa pela socialização do poder econômico, politico e cultural e instaura a efetiva soberania do poder popular.

Palavras-chave

Gramsci; Práxis; Formação integral.

The “integral” praxis of Gramsci facing the current process of disintegration

Abstract

Warning about the connection between the concept of “praxis” and the term “integral”, a recurrent adjective in Gramsci writings, this text recovers a project of society that fights against all forms of mutilation and human, social and environmental disintegration, operates by ultraliberalism, which concentrates unprecedented economic, military, and media power and combines, in a lethal manner, financial plunder, destruction of public institutions, religious fundamentalism, and police state. In contrast to this process that atomizes, discards and annihilates, Gramsci’s writings highlight the elements that point to the need to inaugurate “a new phase of human history” and the concrete proposal to create a new civilization built by the role of the popular classes which aim at an integral conception of the world and strive for the development of all the components and potentialities of the human being. By this mean, the “integral praxis” designed by Gramsci is up-to-date in face of the degradation, that strikes Brazil and points out horizons to face the shocking inequalities with the realization of an “integral” democracy, that passes through the socialization of economic, political and cultural, and establishes the effective sovereignty of popular power.

Keywords

Gramsci; Praxis; Integral formation.

Artigo recebido: Junho de 2019

Artigo aceito: julho de 2019

Partir da “filologia vivente” do nosso tempo

Em algumas anotações dos Cadernos do cárcere Gramsci escreve sobre a necessidade de aprender a realizar uma “filologia vivente” (Q 11, § 25, p. 1430)3, de modo a conectar o estudo cuidadoso dos textos com as interpelações da história e os “problemas postos pela realidade, que são bem determinados e ‘originais’ na sua atualidade” (Q 11, § 12, p. 1377). A leitura, portanto, que aqui se apresenta do conceito de “práxis” à luz do adjetivo “integral”, tão recorrente nos escritos de Gramsci, parte de aspectos candentes do nosso contexto histórico e procura dar uma resposta à avassaladora ofensiva desferida pelo recrudescimento da crise do capital, eclodida nos países centrais e no coração do sistema financeiro.

Preocupado com o encolhimento dos espaços para se reproduzir e expandir, o capitalismo em desespero aprofunda a sua insanidade pelo mundo e debita grande parte dos seus trágicos efeitos na conta dos países mais vulneráveis e dos setores sociais desprotegidos. Por outro lado, enquanto o planeta está sendo levado ao limite do esgotamento dos seus recursos e são implementadas novas formas de exploração do trabalho, multiplicam-se por toda parte levantes populares que reivindicam a distribuição das riquezas, a concretização dos direitos fundamentais e o protagonismo político. Posto em evidência por diversos autores, o aprofundamento das “contradições do capital” (HARVEY, 2016) gera cada vez mais um insustentável quadro de “desordem mundial” (BANDEIRA, 2016). A destruição de inteiras nações pela indústria da guerra, as gigantescas ondas migratórias, a desestabilização e o retrocesso social impostos na América Latina provam amplamente a instalação do “império do caos” desencadeado no mundo. Um dos sintomas dessa situação é o pavoroso aparato bélico e policial que cresce em proporção inversa à destruição das conquistas civilizatórias e ao esvaziamento das instituições públicas. Conforme Marx havia observado ao afirmar que “a classe que dispõe dos meios de produção material dispõe também dos meios de produção intelectual” (MARX; ENGELS, 1998, p. 48), hoje, podemos verificar que a “guerra híbrida” e a sofisticação das armas midiáticas e tecnológicas estão sendo utilizadas para desencadear a indignação popular contra inimigos artificialmente construídos e manipular medos e emoções das massas em função dos interesses dos países mais poderosos (LOSURDO, 2014, p. 71 et seq.).

Crescentes pesquisadores mostram com dados impressionantes que ingressamos em uma era, que tende a se prolongar pelo século XXI, controlada por plutocratas e corporações transnacionais que aprofundam a absurda disparidade entre riqueza privada e dívida pública que compromete a liberdade política (PIKETTY, 2016, p. 169 et seq.). Nestas últimas décadas, de fato, assistimos não só ao desmoronamento do assim chamado “socialismo real”, mas também das tentativas da “Terceira Via”, das versões de socialdemocracia, das experiências de “governos progressistas” e dos próprios modelos de “democracia liberal”.

Um clima generalizado de decepção e ceticismo está semeando descrédito na política e na democracia que afeta não só as cambaleantes regiões periféricas do sistema, mas os próprios países considerados avançados. Nestes, além dos espetáculos da corrupção e da sintomática abstenção eleitoral, prosperam novas formas de violência e a frustração de amplos setores da população angustiada pelo desemprego, o endividamento e a pauperização. É na fermentação desse caldo que despontam populistas e crescem preocupantes segmentos de extrema direita, como é possível ver nos Estados Unidos, no Reino Unido, Dinamarca, Áustria, Polônia, Alemanha, França, Itália, Holanda, Hungria, Turquia, Filipinas e, também, na Argentina, Colômbia, Equador e Brasil. O “estado de exceção” (AGAMBEN, 2003, p. 11), amparado por um aparato jurídico subjugado, hoje, vem ganhando consideráveis dimensões e passa a ser naturalizado com o reaparecimento de um nacionalismo racista e grupos nazifascistas, perseguição a minorias e opositores ideológicos, desmonte da Constituição e de tratados internacionais.

Na contramão do alardeado processo de globalização turbinado pelo mercado, pela tecnologia e a indústria do entretenimento concentrados nas mãos de pequenos grupos, estamos assistindo à desintegração de vínculos coletivos e culturais e de projetos de unificação regional, como a Comunidade Europeia e a Latino-americana. E, por incrível que pareça, menos de 30 anos depois da queda do muro de Berlin, os países que concorreram para a sua derrubada erguem barreiras e muros mais vergonhosos. Até Francis Fukuyama passou a reconhecer que “a nova era de nacionalismo populista põe em risco a ordem liberal mundial” (FUKUYAMA, 2016). Claro, ainda que numerosos observadores do próprio sistema percebam sinais preocupantes, não significa que o capitalismo tenha chegado à sua fase terminal. Mas, o fato de se fechar em si para proteger seus privilégios e recorrer cada vez mais à violência e a fraudes crescentes, demostra que está perdendo a hegemonia e que deixa de ser expansivo e persuasivo na solução dos problemas vitais da sociedade.

No Brasil, pela precariedade das suas estruturas sociais e políticas, essa tendência mundial assume traços ainda mais ruinosos e assustadores. Em pouco tempo, estão sendo destruídos avanços econômicos e sociais, conquistas democráticas e um tímido esboço de soberania nacional. O golpe parlamentar-judicial-midiático desferido em 2016 com o apoio do grande capital e do Departamento de Justiça (DOJ) dos Estados Unidos que se vale da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA) para impor sua jurisdição no mundo abriu o caminho não só para o desmantelamento dos direitos sociais e da indústria nacional, para a liquidação de patrimônios públicos e recursos naturais, mas está empurrando a população a procurar cada vez mais no setor privado os serviços básicos: saúde, educação, assistência social, segurança e previdência.

Olhando para este quadro de involução e desintegração que ocorre no mundo e no Brasil, vem à mente uma nota de Gramsci registrada no Q 6 (texto B), § 10, intitulada “passado e presente”:

«Em grandes linhas, se poderia já dizer que hoje verifica-se no mundo moderno um fenômeno semelhante àquele do descolamento entre “espiritual” e “temporal” na Idade Média: fenômeno muito mais complexo do de então, visto que a vida moderna tornou-se mais complexa. Os agrupamentos sociais regressivos e conservadores se reduzem cada vez mais à sua fase inicial econômico-corporativa, enquanto os agrupamentos progressistas e inovadores se encontram ainda na fase inicial, ou seja, econômico-corporativa [...]. Este processo de desintegração do Estado moderno, portanto, é muito mais catastrófico do que o [processo histórico] medieval que era desintegrativo e integrativo ao mesmo tempo, considerando o grupo especial que era o motor do processo histórico e dado o tipo de Estado» (p. 691).

O “pessimismo da inteligência” de Gramsci abordava a realidade nessa perspectiva porque, enquanto na passagem do feudalismo para a modernidade abria-se uma época de revoluções, nos anos 30 do século passado o mundo ia em direção ao fascismo e ao nazismo (Q 8, § 130, p.1053).

O quadro da crise dramática no Brasil

No Brasil, a desintegração social e a decomposição do Estado Democrático de Direito, refém de corporações e da ditadura do sistema financeiro (verdadeiro Estado no Estado), não revelam apenas um retrocesso ao estágio “mais elementar econômico-corporativo” (Q 13, § 17, p. 1583), mas mostram o colapso político, social e cultural com sinais crescentes de barbárie e tribalismo. O prazer destrutivo dos direitos sociais e o ódio às “classes perigosas” e aos “grupos de risco” praticados por um neofascismo primário que não suporta atos de resistência e contestação, que viola a Constituição e as instituições públicas, denotam que “a anomia absorveu a democracia brasileira” (SANTOS, 2016). Por outro lado, também a desarticulação das organizações políticas populares concorre para um impasse político e “uma situação em que as forças em luta se equilibram de modo catastrófico” (Q 13, § 27, p. 1619). Nesse contexto, a alta burguesia, serva do capital internacional, e a classe média, subjugada pela mídia monopolizada, procuram aniquilar as organizações dos trabalhadores e implantar um conjunto draconiano de contrarreformas para restaurar a mais abjeta condição colonial.

Ao disseminar o pânico da catástrofe econômica e desfraldar a bandeira do combate à corrupção, a escalada golpista usurpa o poder popular e ataca as “trincheiras e fortalezas” situadas nas escolas e universidades públicas, nas organizações da sociedade civil, nas redes sociais e nos movimentos populares, de modo a estabelecer o domínio não só no âmbito da economia, da burocracia e dos aparelhos de repressão, mas também na esfera da cultura e da educação. Desta forma, o que vem se constituindo no Brasil é um coquetel letal de ultraliberalismo, monopólio da mídia, incursões de fake news, fundamentalismo religioso e Estado policial. Ao minar direitos e liberdades, as bases da justiça e as responsabilidades do Estado, instaura-se “a guerra de todos contra todos” e a eliminação de qualquer sentido de país e de nação.

“A intrínseca barbárie da civilização burguesa”, que Marx via camuflada nas metrópoles e “sem velos” nas colônias (MARX, 1955-1989, p. 225) e que Lenin denunciou na sua fase imperial com “o predomínio do capital financeiro sobre as demais formas do capital [que] implica o predomínio do rentista e da oligarquia financeira, de alguns Estados em relação aos restantes” (LENIN, 2011, p. 176), hoje, é universalmente visível na escalada do “capitalismo rentista” que se reproduz pela dívida pública e a apropriação da propriedade intelectual (STANDING, 2016)4. No Brasil, de fato, conforme a Auditoria Cidadã da Dívida, o orçamento é canalizado essencialmente para financiar os juros da dívida pública, para garantir ganhos fabulosos ao sistema financeiro e a uma ínfima parcela de credores improdutivos. Desta forma, o parasitismo e os monopólios crescentes desmentem que o capitalismo está baseado sobre a concorrência, o risco, os investimentos e o livre comércio. É o que mostram, por exemplo, os acordos estabelecidos por meio do Internacional Security and Defense Sistem (ISDS) dedicado a proteger investidores e dar segurança aos empreendimentos multinacionais, à revelia da jurisdição dos Estados e das regulamentações administrativas. Neste sentido, triunfalmente anunciada no Fórum Econômico Mundial de Davos, a “4ª revolução industrial” impulsiona ainda mais uma inaudita concentração corporativa de bens e de oligopólios em setores estratégicos: na robótica, na nanotecnologia, na informática, na biologia sintética e inteligência artificial, na produção sofisticada de armas, na vigilância e no controle social, na digitalização em todos os setores, com impactos imprevisíveis sobre meio ambiente, saúde e trabalho da população. Não surpreende, portanto, se esta globalização está produzindo a aberração de um mundo onde 1% concentra a riqueza dos 99% (conforme relatório anual da Oxfam) e continua gerando uma imensa massa de “lumpen-proletariado” em estado crescente de precarização, totalmente desprotegido, desenraizado, errático, sem identidade e sem organização, presa fácil da mídia, da polícia, de fundamentalistas e populistas.

Um dos retratos mais explícitos desse processo “desintegrador” está estampado no capitalismo selvagem totalmente à solta no Brasil e conduzido por uma “elite mesquinha, covarde, violenta e ignorante”, como a costumava definir Darcy Ribeiro. Basta olhar a configuração das cidades e do campo para dar-se conta da divisão abismal e chocante que torna o país profundamente desagregado, precário e desumanizado. De um lado, de fato, há um pequeno centro opulento, ultramoderno, tecnologicamente atualizado, protegido em condomínios e carros blindados, cercado de vigias e abastecido de serviços, restaurantes, lojas e sofisticados lugares de entretenimento. E, de outro lado, visivelmente segregada em apartheid, a imensa massa popular largada na periferia, privada das estruturas mais elementares, entregue à própria sorte, à violência e ao extermínio.

Resgatar a práxis “integral” contra o processo de desintegração

É neste contexto de penúria humana e desintegração social, mas, também, de desorientação dos movimentos sociais e das forças políticas populares que é preciso retomar a concepção de mundo fundada sobre a práxis. Uma proposta tanto mais atual e imprescindível, uma vez que seu objetivo é a formação criativa e unitária do ser humano em suas relações com os outros e no metabolismo com a natureza. Frente ao acelerado processo destrutivo operado pelo capital, ganha enorme significado a consideração de Gramsci ao observar que “o marxismo contém em si todos os elementos fundamentais, não só para construir uma concepção total do mundo, uma filosofia completa, mas para dar vida a uma total organização prática da sociedade, quer dizer, para tornar-se uma integral, total civilização” (Q 4, § 14, p. 435). Além disso, com Gramsci aprende-se que, se é verdade que a crise penaliza e angustia, é nessa circunstância que a luta de classe se torna mais nítida e necessária (Q 3, § 34, p. 311) e podem despontar possibilidades de reorganização política. Porque, “apesar de tudo – repetia Gramsci - a realidade permanece dialética” (Q 15, § 62, p.1827) e os embates sociais são um campo aberto, como mostram as revoluções que constelam a história.

Foi, de fato, em meio à convulsão do seu tempo e à irrupção das massas trabalhadoras na cena política que Marx desenhou o esboço genial da “nova concepção de mundo” (ENGELS, s/d, p. 177). E Gramsci, a partir das análises sobre a derrota do movimento operário aprofunda “a filosofia original e integral” derivada dos escritos de Marx e percebe que a sua proposta “inicia uma nova fase na história e no desenvolvimento do pensamento” (Q 7, § 29, p. 877) e deflagra uma “idade histórica que provavelmente durará séculos, até o desaparecimento da Sociedade política e o advento da Sociedade regulada” (Q 7, § 33, p. 882).

O vigor desta visão revolucionária, direta ou indiretamente, continua exercendo seu impacto nos movimentos sociais populares espalhados pelo mundo e nas teorias econômicas, sociais, filosóficas e políticas. As próprias correntes de ideias que se dedicaram às críticas das grandes narrativas e associaram equivocadamente o pensamento de Marx às doutrinas massificadoras, acabaram perdendo a visão de conjunto da realidade e a interligação das históricas lutas das massas populares por um projeto alternativo de sociedade. A difusão do relativismo e a dispersão da vida sociopolítica acabaram favorecendo a vigência do totalitarismo ultraliberal no mundo. Um sistema que desintegra a unidade orgânica tecida pela dinâmica da multiplicidade do real e, como advertem Marx e Gramsci, não se combate apenas com a crítica ou a defesa dos interesses individuais e particulares, mas com a construção consciente, organizada e coletiva de uma nova “civilização integral” protagonizada pelas classes populares.

Para desencadear um projeto dessa grandeza, anota Gramsci, é necessário em primeiro lugar criar “o espírito de ruptura e a progressiva conquista da própria personalidade histórica” (Q 25, § 5, p. 2288-9) em condições de desafiar a classe dominante com a elaboração de uma concepção superior de sociedade, uma vez que “uma teoria é ‘revolucionária’ enquanto é elemento de separação e distinção consciente em dois campos, enquanto é vértice inacessível ao campo adversário” (Q 11, § 27, p. 1434). Além disso, para superar “a história desagregada e episódica dos grupos subalternos” (Q 25, § 2, p. 2283) e alcançar uma “autonomia integral” (Q 25, § 5, p. 2288), se faz necessário estruturar coletivamente uma proposta alternativa de civilização, ultrapassando os particularismos e o “subversivismo esporádico, elementar e desorgânico das massas” (Q 10, § 41, p. 1325) e criando articulações entre as forças que se opõem ao capitalismo. Esta é a crítica contínua que Gramsci dirige à classe subalterna que em diversos momentos históricos foi derrotada porque “não soube ir além dos limites corporativos e criar-se todas as superestruturas de uma sociedade integral” (Q 5, § 123, p. 652). De fato, as lutas locais, específicas e setoriais, ainda que importantes, adquirem estabilidade e sentido mais amplo quando não se limitam a conquistas parciais e momentâneas, mas conseguem convergir para um projeto que revoluciona integralmente a realidade e conferem a hegemonia às forças populares para dirigir e administrar democraticamente a sociedade. Sem transformar o sistema como um todo e assumir o poder nos setores nevrálgicos, os levantes espontâneos e as batalhas moleculares correm sempre o risco de serem marginalizadas, neutralizadas e esmagadas.

Entre os múltiplos significados que emergem dos prismas da “práxis” inaugurada por Marx e aprofundada por Gramsci, em outros textos focalizamos a concepção revolucionária provocada por estes no modo de entender a filosofia e a política (SEMERARO, 2015, p. 237-257). Aqui, diante da desintegração social e “de-formação” humana produzidas pelo sistema vigente, nos limitamos a evidenciar alguns exemplos da profunda conexão do conceito de “práxis” com o adjetivo “integral”, uma conotação muito presente nos escritos de Gramsci e pouco abordada em estudos e pesquisas.

Na verdade, Hegel havia já desenvolvido a ideia de que o que constitui a verdade é “o inteiro” (HEGEL, 1973, p. 12) e, portanto, a realidade deve ser apreendida na sua totalidade histórico-dialética. Inspirados nessa visão, mas superando a mistificação de um sistema filosófico construído sobre a evolução do Espírito, Marx e Gramsci partem do protagonismo das classes desapropriadas e desenvolvem a concepção de mundo em torno de uma práxis “integral” ao estabelecer uma relação histórica, inseparável e dialética entre estrutura e superestrutura, objeto e sujeito, ação e pensamento, política e filosofia, matéria e espírito, ambiente e educação, intelectual e massa, razão e paixão, ciência e arte, indivíduo e sociedade, ser humano e natureza, trabalho e socialização, no intuito de desenvolver todas as componentes e potencialidades humanas e sociais. Esta concepção, não apenas se contrapõe frontalmente ao processo atomizador e ao poder destruidor do capital analisado acima, mas se ergue também contra todas as teorias que mutilam e deformam o ser humano, reduzindo-o exclusivamente ao universo ideal e espiritual, aos aspectos vulgarmente materialistas e naturalistas, aos interesses individuais e privados, às expressões culturais e simbólicas autorreferenciadas e exibicionistas.

A concepção de mundo construída sobre o conceito de “práxis” critica toda forma de reducionismo e mutilação, combate o niilismo e a desintegração humana, social e planetária operada por um sistema que invade, rapina, devasta, corrompe, concentra, exclui, reprime, deforma, ilude, esfarela a realidade e ergue muros. Desmonta, também, os discursos hipócritas de conciliação entre as classes, a construção do mito do “país cordial e harmonioso” que no Brasil serve a esconder a realidade brutal da desigualdade e do racismo e a evitar o enfrentamento das contradições econômicas e sociais. Lamentavelmente, até hoje, não faltam intelectuais nacionais e internacionais, como o renomado Domenico De Masi, que continuam a se utilizar desse estereótipo para agradar a mídia dominante e seduzir os simplórios. Além de propagar a romântica visão da “democracia racial” e apresentar o Brasil como “grande modelo de vida para o mundo”, o intelectual midiático italiano mal consegue disfarçar seus sentimentos de discriminação, ao atribuir o caos vigente no Brasil à “infantilidade do povo” (DE MASI, 2016), ignorando totalmente a história das lutas políticas populares contra as atrocidades de um dos sistemas mais desiguais e violentos do mundo. Contrariamente a tais visões, a concepção fundada sobre a práxis aponta que só haverá democracia efetiva quando se realizar a livre produção e autoprodução do ser humano e a socialização do poder econômico, político e cultural. Não temos dúvidas, portanto, que o ataque em curso contra esse projeto constitui o centro da crise mundial e a raiz do golpe que desestrutura tragicamente o Brasil.

Em um eventual Dicionário Gramsciano compilado a partir de adjetivos, o termo “integral” (e seus correlatos) saltaria certamente aos olhos pela riqueza e originalidade dos significados disseminados nos escritos de Gramsci. Nos diversos contextos onde este adjetivo aparece, percebe-se sua intima vinculação com o conceito de “práxis”, “total”, “completo”, “autonomia”, “criação”, “revolução”, “nova civilização”. Na verdade, toda a obra de Gramsci tem a marca de uma visão integral do mundo, quando se observa como são abordadas de forma articulada e interdisciplinar as múltiplas dimensões humanas e as atividades sociais, inclusive suas potencialidades (Q 13, § 16, p. 1578). Contrariamente aos que pensam em superar as crises com repressão, muros, supressão de direitos, cortes econômicos seletivos e ajustes fiscais, Gramsci sustenta que toda a reestruturação econômica deve estar conjugada com uma “reforma intelectual e moral”, com a construção da hegemonia popular e a “democracia de massa” (COUTINHO, 1994, p. 78). E que estes objetivos se consolidam na criação de uma nova concepção de Estado, ou seja, um “‘Estado’ integral, com todas as forças intelectuais e morais necessárias e suficientes para organizar uma sociedade completa e perfeita” (Q 6, § 10, p. 691), onde seus integrantes se tornam “intelectuais políticos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e funções inerentes ao orgânico desenvolvimento de uma sociedade integral, civil e política” (Q 12, § 1, p. 1522). Nesta perspectiva, contra a implantação de uma economia concentrada, excludente e “parasita”, Gramsci aponta para um sistema produtivo agrário e industrial voltado para as necessidades da população, com “um desenho compreensivo de racionalização integral” (Q 9, § 8, p. 1101).

Esta concepção, evidentemente execrada pelo ultraliberalismo destrutivo, antidemocrático, individualista e excludente, se coaduna em Gramsci com a formação de uma “intelectualidade integral” (Q 11, § 12, p. 1387) capaz de construir uma concepção de mundo “coerente e unitária” (Q 11, § 12, p. 1385). E, em estreita conexão com esta visão, com uma educação “desinteressada” e uma “escola unitária de cultura geral” em tempo integral (Q 12, § 1, p. 1536) que saiba conectar trabalho intelectual e industrial com “toda a vida social” (Q 12, § 1, p. 1538), de modo a desenvolver todas as potencialidades humanas e sociais e a criar democraticamente nas massas populares as condições para aprender a dirigir a sociedade em todas as suas dimensões. A educação, portanto, é integral e efetiva quando leva à “elaboração nacional unitária de uma consciência coletiva homogênea” (Q 24, § 3, p. 2267) e constrói “a vontade coletiva e a vontade política no sentido moderno, a vontade como consciência operosa da necessidade histórica” (Q 13, § 1, p. 1559), que ao enfrentar coletiva e democraticamente seus problemas se constitui como povo unificado e nação soberana.

Para Gramsci, a conquista de uma “integral renovação intelectual e moral” (Q 15, § 58, p. 1820) exige a “criação de uma nova cultura integral, que possua os aspectos de massa da Reforma protestante e do Iluminismo francês e preserve os traços da cultura clássica grega e do Renascimento italiano, uma cultura que sintetize [...] a política e a filosofia em unidade dialética intrínseca a um grupo social não apenas francês ou alemão, mas europeu e mundial” (Q 10, § 11, p.1233). Trata-se da mesma visão registrada na carta a Iulca, enviada do cárcere em 1 de agosto de 1932, onde Gramsci desenha o quadro de uma educação “de todas as faculdades intelectuais e práticas, a serem especializadas com o tempo, sobre a base de uma personalidade vigorosamente formada no sentido total e integral. O homem moderno deveria ser uma síntese das características que são idealizadas como sendo nacionais: o engenheiro americano, o filósofo alemão, o político francês, recriando, por assim dizer, o italiano da Renascença, o tipo moderno de Leonardo da Vinci feito homem-massa ou homem coletivo, mesmo mantendo a própria forte personalidade e originalidade individual” (GRAMSCI, 1996, p. 601). Desnecessário observar que Gramsci, italiano e europeu, não padece de eurocentrismo, uma vez que reconhece as peculiaridades nacionais, as relações internacionais e as dimensões mundiais.

Nesta óptica, ainda mais em época de “pós-verdade”, com Gramsci se aprende a “fazer história integral e não história parcial e exterior” (Q 10, §12, p. 1235), a “situar cada aspecto parcial na totalidade” (24, § 3) e a praticar um jornalismo em condições de “difundir una concepção integral do mundo” (Q 14, § 60, p. 1719), de modo que «a ação coletiva venha a tornar-se “história” concreta e completa (integral)» (Q 10, § 17, p. 1255). A partir das dimensões omnilaterais da práxis, portanto, também o partido “orgânico” deve ser “concebido, organizado e dirigido de tal forma que possa se desenvolver integralmente em um Estado (integral, e não em um governo tecnicamente entendido) e numa concepção do mundo” (Q 17, § 51, p. 1947). Por isso, Gramsci considera “Maquiavel como político integral ou em ato” (Q 8, p. 936) e os jacobinos expressão do “movimento revolucionário no seu conjunto, como desenvolvimento histórico integral, porque representavam também as necessidades futuras e não só daquelas determinadas pessoas físicas, mas de todos os grupos nacionais” (Q 19, § 24, p. 2028).

Esta concepção integral do mundo que deriva da “totalidade concreta, categoria fundamental da realidade” (LUKÁCS, 2012, p. 79) nada tem nada a ver com a ideia falida de globalização que uniformiza midiática e tecnologicamente, potencializa economicamente e embrutece uma ínfima minoria e abandona a si mesma e desintegra a grande massa da população. Neste sentido, a práxis integrativa desencadeada por Marx e Gramsci não se reduz à concepção de “cidadania” burguesa que “integra” a população nos registros do seu sistema de controle e transforma os indivíduos em eleitores passivos e consumidores obsessivos. Também, não significa acomodação nas formas de um comunitarismo solidarista e de grupos enclausurados em suas identidades nem se confunde com a ideologia do “integralismo”, ampla e duramente combatido por Gramsci como projeto reacionário, orientado a organizar hierárquica e imutavelmente a sociedade (Q 14, § 52, p. 1711-12).

Considerações finais

“Integral”, como procuramos mostrar com apenas algumas recorrências evocadas dos escritos de Gramsci, está associado à concepção de uma nova civilização a ser construída na práxis das organizações políticas populares voltadas a romper com a matriz destrutiva do capitalismo, a combater toda forma de degradação humana, social e ambiental, a eliminar a corrosiva divisão de classe, a superar a concepção superior-inferior, governantes-governados, dirigentes-dirigido (Q 8, § 191, p. 1056; Q 15, § 4, p.1752). Em oposição ao sistema desintegrador dominante, a práxis integral proposta por Gramsci visa criar uma sociedade constituída de uma “rica totalidade de múltiplas determinações e relações”, “autorregulada” pela realização plena de subjetividades políticas ativas e pela socialização do poder econômico, politico e cultural, único caminho para formar seres humanos em toda a sua integralidade, em condições de realizar a autêntica democracia que é a soberania do poder popular livre, consciente, criativo e organizado politicamente.

Neste sentido, a “práxis” inaugurada por Marx e aprofundada por Gramsci é diferente do conceito de “prática” e de qualquer forma de pragmatismo imediatista, utilitarista e calculista que visa eficiência, resultados e... ganhos! E é até diferente do conceito de “experiência” quando esta é entendida apenas no sentido científico ou como memória e vivência de um grupo fechado em seu universo particular. Ainda que importantes, esses significados não traduzem todo o valor revolucionário conferido à “práxis” que visa à transformação radical do estado dominante pelo desenvolvimento livre e criativo de todas as componentes humanas, sociais e ambientais protagonizado pela ação política das massas populares. Para Gramsci, tanto o conhecimento do mundo e de si mesmo como a formação das subjetividades humanas e sociais se constituem na construção da hegemonia popular para criar uma nova civilização (Q 11, § 12, p. 1385). Por isso, a unidade dialética entre teoria e prática (práxis) não é uma mera característica técnica e profissional que se “aprende fazendo”, mas é uma revolucionária concepção integral de ser humano, de sociedade e de mundo que carrega o princípio teórico-prático da hegemonia e visa a transformar “de cima a baixo” a economia, a política, a filosofia, a ciência, a cultura, a educação, as relações de poder e a construir personalidades livres e associadas, em condições de realizar a “grande política: a criação de novos Estados” (Q 13, § 5, p. 1564) e de dirigir democrática e integralmente a sociedade.

Material suplementar
Referências
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