Resumo:
O presente trabalho inscreve-se no âmbito de investigações sobre aatuação do Direito como agente de perpetuação ou enfrentamento das desigualdades raciais. Pretende-se contribuir para análise doRacismo Institucional no Poder Judiciário, mais especificamente no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a partir do levantamento de sua atu- ação no julgamento de ações relacionadas às políticas afirmativas de corte étnico-racial. Foram analisadas as ações judiciais julgadas em segunda instância pelo TJRJ entre os anos de 2002 e 2013. Buscou-se perceber como a “cegueira à cor” e o racismo institucional influenciam a tomada de decisões judiciais sobre essas demandas.
Ethnic-racial affirmative action by Court of the State of Rio de Janeiro (2002-2013)
Palavras-chave:Ações AfirmativasAções Afirmativas,Racismo InstitucionalRacismo Institucional,Poder JudiciárioPoder Judiciário.
Abstract:
This work falls within the framework of research on the role of law as an agent of per- petuation or fighting of racial inequality. It is intended to contribute to analysis of Insti- tutional Racism in the judiciary, specifically in the Court of Justice of the State of Rio de Janeiro, from the time of their performance at the trial related to ethnic-racial affirmative action policies. Lawsuits judged on appeal by TJRJ between the years 2002 and 2013 were analyzed. Goal was to see how the “color blindness”’ and institutional racism influence judicial decision-making on these demands. Affirmative Action; Institutional Racism; Judiciary.
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O Direito se inscreve na luta antirracismo no Brasil no momento em que formalmente se reconhece o alto grau de desigualdade racial no país e as nor- mas passam a ser elaboradas com declarado intuito de combate ao racismo. Por esse motivo, não se atribui às leis que pavimentaram o processo de abolição for- mal da escravatura (Lei Eusébio de Queiroz-1850, Lei do Ventre Livre-1871, Lei dos Sexagenários-1885, Lei Áurea-1888) a conotação de normas de com- bate ao racismo. Essa é uma postura recente e o enfrentamento pelo Direito extremamente lento e gradual3. Do período imperial à década de oitenta do século XX, muitos são os motivos que levaram ao não comprometimento normativo com o combate às desigualdades raciais. É com o processo constituinte de 1987/88 e a con- juntura de redemocratização após a ditadura militar que se pode perceber uma atuação mais significativa nesse sentido. Com viés repressivo4, voltado à execução de políticas públicas5 ou valorização da cultura e memória negra6 foram sendo desenvolvidas medidas públicas de forte caráter simbólico, mas parco potencial emancipatório. A Constituição de 1988 consagra-se como documento normativo de luta de diversos setores da sociedade brasileira. Para enfrentamento do racismo foram propostas medidas afirmativas, transformativas e repressivas. As medidas afir- mativas caracterizam-se por serem medidas concretas destinadas a assegurar igualdade de oportunidades e garantia de exercício de direitos fundamentais a grupos sociais historicamente oprimidos, agindo diretamente sobre o sistema de privilégios existentes. Ações transformativas são entendidas como aquelas destinadas a alterar padrões culturais, morais e sociais que naturalizam e perpe- tuam relações de dominação. As medidas repressivas, por sua vez, pretendem coibir normativamente práticas discriminatórias, utilizando-se do aparelho re- pressor do Estado para impor sanções restritivas de direitos e liberdades àque- les que desrespeitam o Outro. Após realização, em 1986, da Convenção Nacional do Negro sob o tema O Negro e a Constituinte, responsável por definir as prioridades a serem levadas à discussão na constituinte, sagraram-se “consensuais” as seguintes demandas: 1) a obrigatoriedade do ensino de história das populações negras na construção de um modelo educacional contra o racismo e a discriminação; 2) a garantia do título de propriedade das terras ocupadas por comunidades quilombolas; 3) a crimina- lização do racismo; 4) a previsão de ações compensatórias relativas à alimentação, transporte, vestuário, acesso ao mercado de trabalho, à educação, à saúde e aos
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demais direitos sociais; 5) liberdade religiosa; e, 6) a proibição de que o Brasil mantivesse relações com os países que praticassem discriminação e que violassem as Declarações de Direitos Humanos já assinadas e ratificadas pelo país7.
Keywords: Affirmative Action, Institutional Racism, Judiciary.
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de uma série de outros dispositivos como o Preâmbulo17 e dos artigos 3º IV18 , 7º XXX19, 22720, entre outros. Chama a atenção ainda a não utilização dos trata- dos internacionais21 sobre o tema e já ratificados pelo Brasil como a Convenção 111 OIT (1958)22, a Convenção relativa à luta contra a discriminação no ensino (1960)23 e a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1968)24.
Considerações Finais
O levantamento dos processos cíveis julgados pelo Tribunal de Justiça do Es- tado do Rio de Janeiro sobre o tema das ações afirmativas entre 2002 e 2013 gerou resultados que apontam para um tratamento refratário ao tema, apesar da manutenção da medida em 99% dos casos.
Em 96% dos casos apurados a ação foi movida por supostos prejudicados pela aplicação da ação afirmativa e não por beneficiários da medida. O tem- po de tramitação em primeira instância variou de 1 a 5 anos e, em segunda instância, manteve o mesmo tempo entre a distribuição do recurso e decisão final. Apesar de tratarmos de uma medida que não está restrita às instituições públicas, não houve no período pesquisado nenhum caso discutindo a sua incidência nas relações privadas.
O Tribunal decidiu pela aplicação da política em 99% dos casos, dando ganho de causa ao Estado em 96% deles e ao beneficiário da medida nos outros 3%. Percebeu-se que a aplicação da ação afirmativa é discutida apenas no âmbito da aplicabilidade das leis estaduais nº3524/2000 e 3708/2001, o que gerou em di- versos acórdãos o questionamento acerca da sua constitucionalidade. A discussão sobre a constitucionalidade das leis estaduais no TJRJ esteve esvaziada durante a tramitação da ADPF 186 no Supremo Tribunal Federal e depois da manifestação, por unanimidade, da Corte Constitucional pela sua compatibilidade com o orde- namento constitucional passou a ser referida brevemente nas decisões.
Mesmo tendo atribuído aplicação às ações afirmativas em 99% dos julgados, não se pode concluir que haja, por parte do Tribunal, uma postura comprometida com a sua implementação. O resultado das decisões só pode ser compreendido adequadamente se elencados os argumentos que as fundamentaram.O principal argumento usado pelo Tribunal para decidir foi o da meritocracia. Isto significa que o olhar que o órgão tem sobre a questão passa exatamente por este crivo.
O resultado, portanto, só foi majoritariamente favorável à implementação das ações afirmativas porque mesmo que afastada a sua aplicação, o suposto
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O Social em Questão - Ano XVII - nº 32 - 2014
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prejudicado não teria pontuação suficiente para aprovação no processo sele- tivo. O posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro sobre a matéria foi construído a partir de um dos principais argumentos con- trários à sua validade.
Pensar a meritocracia como mecanismo de seleção neutro e universal, sem que se perceba as escolhas políticas que subjazem aos referidos processos seletivos e as hierarquizações de seres humanos que eles representam é defender o modelo de privilégios que, sob a ideia de “cegueira à cor” garante a perpetuação de uma sociedade em que os lugares sociais e o respeito são racialmente definidos, ainda que haja a influência/sobreposição de outros critérios como os de classe, gêne- ro, orientação sexual ou escolha religiosa. Conforme ressaltou o Ministro Marco Aurélio Mello na ADPF 186: “Meritocracia sem igualdade de pontos de partida é apenas uma forma velada de aristocracia”.
A discussão judicial sobre as ações afirmativas de corte étnico-racial no TJRJ esteve restrita à política de cotas nas universidades públicas e apesar do reconhe- cimento da igualdade material, na ampla utilização do termo reparação, da vin- culação do direito à educação como esfera constitutiva e necessária da dignidade humana e os nefastos efeitos da discriminação sobre ela, o amplo apelo à ideia de meritocracia para defender o sistema de cotas mostra que há, por parte do Tribu- nal, uma noção acerca das ações afirmativas não completamente afinada com as principais discussões sobre o tema.